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Da transposição de cargos na Administração Pública

Da transposição de cargos na Administração Pública

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Sumário: 1. Introdução; 2. O Princípio do Concurso Público; 3. Noções Indispensáveis à Discussão da Matéria; 4. Da transposição de cargos da administração indireta para a administração direta: análise constitucional; 5. Conclusões; 6. Bibliografia.


1. Introdução.

A figura da "transposição de cargo público" tem sido cada vez mais sido utilizada pelo Poder Público como forma de reorganização de cargos e carreiras, com a constante veiculação de normas jurídicas que instituem as mais diversas formas de reestruturação e realocação de servidores, em alguns casos simplesmente transportando determinados cargos com seus titulares para outra carreira, em outros, transformando cargo anterior em um novo, com atribuições diversas das do primeiro, e até mesmo por inclusão de novas atribuições ao cargo anterior (1).

As implicações jurídicas de tais atos normativos não têm sido devidamente estudadas pelos juristas, ou, pelo menos, não o foram ainda na profundidade necessária ao esclarecimento dos contornos legais e constitucionais da referida figura jurídica. As justificativas para a implementação de tais medidas são das mais diversas, sendo as mais comuns a racionalização e a eficiência administrativas. Os juristas, no entanto, não têm se debruçado com a devida atenção sobre o tema, e têm, de certa forma, sido tímidos na análise da legalidade e da constitucionalidade de tais transposições. Nesse campo, é ainda parca a contribuição da doutrina, muito embora a jurisprudência sobre a matéria seja farta, e com posicionamento majoritário sobre o não cabimento dessa medida. Alguns pontos restam ainda duvidosos, dos quais poderíamos pinçar, para efeito de definição do objeto do presente estudo, a seguinte: A Constituição Federal albergaria a transposição de cargos da administração pública direta ou indireta?

O fato é que a adoção de tal figura contrasta com o momento histórico, social e político em que vivemos. A sociedade cobra moralidade e seriedade dos gestores públicos, e repudia a continuidade de antigas práticas administrativas, pautadas no clientelismo, no fisiologismo e no apadrinhamento. A superação dessas antigas práticas político-administrativas, erigidas à época em que não se tinha uma cultura de moralidade e legalidade consolidadas no seio da sociedade brasileira, depende, sem dúvida alguma, de uma atuação mais incisiva das instituições que possuem o papel constitucional de defender a ordem jurídica estabelecida pela Carta Constitucional de 88 (2), bem como daqueles que detém o relevante papel de "formadores de opinião", entre os quais insiro os juristas, o que, nas palavras de Konrad Hesse, significa que "todos nós estamos permanentemente convocados a dar conformação à vida do Estado, assumindo e resolvendo as tarefas por ele colocadas" (3).

A cediço que a Constituição Federal impõe limites à implementação de medidas administrativas que impliquem na investidura de servidores em outro cargo público, através de transposições ou figuras análogas, limites esses que merecem a devida compreensão e análise, e, acima de tudo, cumprimento, de forma a que medidas desse jaez somente possam ser adotadas em hipóteses restritas, sem afronta à moralidade administrativa e ao interesse público, os quais nem mesmo no plano puramente legislativo devem ser descurados.

Sábias são as palavras do Min. Celso de Mello assinaladas no voto prolatado no julgamento da ADIN n. 625/MA, in verbis:

"O repúdio ao ato inconstitucional decorre, em essência, do princípio que, fundado na necessidade de preservar a unidade da ordem jurídica nacional, consagra a supremacia da Constituição. Esse postulado fundamental de nosso ordenamento normativo impõe que preceitos revestidos de menor grau de positividade jurídica guardem, necessariamente, relação de conformidade vertical com as regras inscritas na Carta Política, sob pena de sua ineficácia e de sua completa inaplicabilidade" (4).

Perscrutaremos, pois, ainda que de soslaio, esse território ainda não muito explorado e nebuloso em que se insere a figura da "transposição de cargos públicos", tentando responder à indagação proposta nas linhas antecedentes, com vistas a que tenhamos, ao final, posicionamento claro acerca da compatibilidade ou não desse instituto com a norma constitucional, e, por conseguinte, se é ou não possível o seu manejo pela administração pública.


2. Noções Indispensáveis à Discussão da Matéria.

Antes de adentrarmos o cerne da questão a que nos propomos discutir, cabe conceituarmos alguns institutos administrativos que possuem vinculação direta com a matéria. Para tanto, nos socorreremos dos ensinamentos da Professora Maria Sylvia Di Pietro (5), que em sua prestigiada obra de Direito Administrativo apresenta as seguintes definições:

  • transposição – "era o ato pelo qual o funcionário ou servidor passava de um cargo a outro de conteúdo ocupacional diverso. Visava ao melhor aproveitamento dos recursos humanos, permitindo que o servidor, habilitado para o exercício de cargo mais elevado, fosse nele provido mediante concurso interno" (6);
     
  • promoção – "forma de provimento pela qual o servidor passa para cargo de maior grau de responsabilidade e maior complexidade de atribuições, dentro da carreira a que pertence" (7);
     
  • provimento efetivo – "é o que se faz em cargo público, mediante nomeação dependente de concurso público, assegurando ao funcionário, após dois anos de exercício, o direito de permanência no cargo, do qual só pode ser destituído por processo administrativo ou sentença judicial transitada em julgado" (8);
     
  • provimento derivado – "é o que depende de um vínculo anterior do servidor com a Administração; a legislação anterior à atual Constituição compreendia (com pequenas variações de um Estatuto funcional para outro) a promoção (ou acesso), a transposição, a reintegração, a readmissão, o aproveitamento, a reversão e a transferência" (9);
     
  • provimento originário – "é o que vincula inicialmente o servidor ao cargo, emprego ou função" (10).

3. O Princípio do Concurso Público.

O princípio do Concurso Público, previsto no artigo 37, II, da CF de 88 (11), foi admitido já há algum tempo em sede constitucional, e é considerando um dos mais relevantes para a atuação do administrador público, considerando-se o seu viés moralizador e garantidor da isonomia e da eficiência no serviço público. Durante muitos anos a Poder Público brasileiro desprezou o mérito como critério de admissão de servidores, e prestigiava as indicações políticas e o apadrinhamento, o que resultava no ingresso de servidores que nem sempre primavam pelo apuro técnico e pelo preparo para o exercício do cargo. As conseqüências dessa "chaga" nos alcançam até hoje. Os seus efeitos nefastos estão em nosso dia-a-dia, no péssimo atendimento que nos é fornecido nalguma repartição, na corrupção das páginas dos jornais, no engessamento da máquina administrativa. A Constituição de 1934 já acolhia tal princípio, que era, no entanto, totalmente olvidado pela nossa classe política e pelos administradores públicos, que atuavam como verdadeiros representantes de uma classe política pouco interessada em defender o interesse público e mais preocupada com em defender interesses privados. Foi com a Constituição de 88, chamada de "cidadã" por Ulisses Guimarães, que o cumprimento de tal princípio passou para a ordem do dia, como forma de oportunizar a todos o acesso a esses cargos, além de garantir à administração a aquisição de profissionais que detenham as condições mínimas de exercício de funções públicas (12), como forma de alcançar-se uma máquina administrativa eficiente e pronta a responder os reclamos da sociedade.

José Cretella Júnior define o concurso público como sendo "a série complexa de procedimentos para apurar as aptidões pessoais apresentadas por um ou vários candidatos que se empenham na obtenção de uma ou mais vagas e que submetem voluntariamente seus trabalhos e atividades a julgamento de comissão examinadora" (13). Para Hely Lopes Meirelles é "o meio técnico posto à disposição da Administração Pública para obter-se moralidade, eficiência e aperfeiçoamento do serviço público e, ao mesmo tempo, propiciar igual oportunidade a todos os interessados que atendam os requisitos da lei, fixados de acordo com a natureza e a complexidade do cargo ou emprego, em harmonia com o que determina o art. 37, II, da CF" (14).

Ainda que passível de vícios e falhas, o concurso é ainda o meio mais adequado para aferir a capacidade técnica do pretendente a cargo público, garantindo a igualdade de chances aos interessados. Na feliz observação de Cretella Jr., "embora se diga que o concurso não é isento de falhas insanáveis, afastando as maiores capacidades que, por modéstia ou timidez, não pretendem arriscar a reputação de que gozam perante comissões nem sempre unanimemente idôneas, tendo sido, por isso mesmo, repelido pelas antigas legislações da Inglaterra e da Alemanha, que, no entanto, por outros processos levaram às cátedras nomes famosos, como Kant e Ihering, embora também se diga que alguns candidatos, por acaso, podem ser beneficiados com matéria que justamente mais conheçam, não obstante se diga também que os mais brilhantes possam impressionar melhor nas provas públicas, o que ninguém pode negar é que, de todos os modos de seleção, é o único que tem o grande mérito de arredar in limine os absolutamente incapazes, o único que procede de acordo com princípios informativos de índole científica" (15).

Com efeito, ainda que não imune às falhas e interferências maléficas, especialmente de natureza política, o concurso público ainda se mantém como o único procedimento capaz de afastar os candidatos absolutamente incapazes de exercer o cargo público pretendido, ou, nos dizeres de Hely Lopes Meirelles, "pelo concurso afastam-se, pois, os ineptos e os apaniguados que costumam abarrotar as repartições, num espetáculo degradante de protecionismo e falta de escrúpulos de políticos que se alçam e se mantêm no poder leiloando cargos e empregos públicos" (16).

Trata-se, portanto, de instituto administrativo que é consectário de outros valores jurídicos contemplados na Carta Constitucional, considerados vetores da administração pública brasileira, como os da legalidade, moralidade e eficiência (artigo 37, caput, CF) (17). Para Celso Bastos, o "concurso público é obviamente, mais do que um sorteio" (18). E continua: "Respeita o princípio da igualdade na medida em que todos podem nele se inscrever (é por isso que ele é público) e o critério da escolha repousa nos maiores méritos do candidato. Daí porque o concurso tem de necessariamente a idéia de competição aberta a todos os interessados. Mas há também de estar presente a judiciosa escolha dos critérios que poderão ser erigidos em determinados da escala de valores" (19). Em suma, o concurso público visa não só a igualdade dos competidores, como também garantir que a administração admita servidores que estejam aptos ao exercício do cargo, de modo a que a população possa ser atendida em seus anseios com um mínimo de eficiência, garantindo-se a normalidade dos serviços públicos.

Di Pietro, com muita propriedade, explica que a exigência de concurso público, atualmente, não se aplica tão somente à primeira investidura, "o que inclui tanto os provimentos originários com os derivados, somente sendo admissíveis as exceções previstas na própria Constituição, a saber, a reintegração, o aproveitamento, a recondução e o acesso ou promoção, além da reversão ex officio, que não tem base constitucional, mas ainda prevalece pela razão adiante exposta..." (20).

Observa com muita acuidade Alexandre de Moraes que o Supremo Tribunal Federal construiu ao longo do tempo um sólido posicionamento de intransigente defesa do Concurso Público, "vedando expressamente tanto a ausência deste postulado, quanto o seu afastamento fraudulento, através de transferência de servidores públicos para outros cargos diversos daquele para o qual foi originariamente admitido" (21).

O STF, de fato, não tem admitido, nos últimos anos, o provimento de cargos públicos a não ser pela via estreita do concurso público, mesmo que para o cargo originário o servidor tenha se submetido a esse requisito, situação que é confirmada pela recente Súmula nº 685.

É inquestionável que essa postura da nossa maior Corte constitui-se em blindagem das mais importantes contra as freqüentes investidas dos famosos "trens da alegria", tão comuns nos tempos de outrora, os quais retornam vez por outra ao cenário jurídico brasileiro, travestidos em novas formas e configurações, calcadas em modernas "teorias" de administração pública, supostamente defensoras do interesse público e da eficiência administrativa, cujos idealizadores, ao que parece, desprezam princípios comezinhos do Direito e da Moral Administrativa.


4. Da transposição de cargos na administração Púbica: análise constitucional.

A análise da matéria pressupõe, inicialmente, que tenhamos servidores ocupantes de cargos públicos que sejam alçados, pela via legal, a outro cargo dentro da administração pública, e que tais cargos componham carreiras diversas, cujas atribuições previstas legalmente não se confundam e sejam específicas.

Partindo-se de tais pressupostos, há que se averiguar, portanto, se é possível, à luz da Constituição Federal, a transposição de cargos dentro da administração pública, seja de um órgão da administração direta para outro, seja da administração indireta para a direta.

Uma interpretação histórica nos dá a noção exata do que pretendeu o legislador constitucional quando inseriu a exigência do artigo 37, II, no texto constitucional. Conforme informa Dênerson Dias Rosa, "quando o legislador constituinte decidiu estatuir que a investidura em cargos públicos depende de aprovação prévia em concurso público, não pretendeu este extinguir o mecanismo de promoção como crescimento funcional dentro de uma carreira, mais, como perfeitamente aclarado na Emenda Supressiva 2T00736-1, simplesmente impedir que pudessem, no serviço público, ocorrer situações de servidores, concursados para cargos de determinadas carreiras, serem realocados para cargos integrantes de outras carreiras" (22). E complementa: "Buscou o legislador constituinte impedir que houvesse a possibilidade de servidores serem admitidos para carreiras com mínimas exigências profissionais e depois aproveitados em cargos especializados".

Dessa forma, é óbvio que o legislador constituinte de 88 queria dar um "plus", um diferencial ao princípio do Concurso Público no direito brasileiro, e não simplesmente repetir a norma já adotada em várias Constituições. E esse diferencial é exatamente a impossibilidade de mudança de cargos após o ingresso por concurso público em outro cargo, de modo a violar as garantias da isonomia e da aferição de capacidade técnica objetivadas pelo procedimento do Concurso Público. O provimento derivado é, portanto, visto com reservas pelo próprio texto constitucional.

O primeiro ponto a que devemos atentar é que a transposição de cargo público constitui-se, indubitavelmente, em provimento derivado de cargo público, uma vez que se efetiva mediante o deslocamento de um conjunto de atribuições vinculadas ao cargo público e que compõem uma carreira específica para outro órgão ou ente público, pressupondo anterior vínculo funcional do servidor, o que implica, por conseguinte, na dispensa de concurso específico para assunção no novo cargo. Ainda que tais transposições se apresentem nos diplomas jurídicos como simples transferência ou acomodação de cargos já existentes, ou seja, dando a impressão de que na verdade não há ali novo provimento de cargo público, mas tão somente uma "reestruturação", uma análise mais acurada da situação demonstra que se trata sim de provimento de cargo público efetivo, e de provimento derivado, o que, por si só, já prenuncia a inconstitucionalidade dessa figura administrativa.

A transposição, com efeito, implica no deslocamento de determinado cargo e a sua conseqüente realocação em outra unidade, alçando-se o seu ocupante para um novo quadro de servidores e para uma nova carreira, distinta da anterior.

Às vezes esse deslocamento se dá através de simulacros de atos administrativos, como o seria na hipótese de primeiro ocorrer a transferência de dada carreira para outro órgão ou entidade, mantendo-se inicialmente os servidores com os seus cargos e atribuições originários, para depois se proceder à transposição desses servidores para cargos existentes no novo órgão, de modo a induzir a ilação simplista de que estaria a ocorrer ali meros "reajustes" ou "reestruturação" administrativa. Ou seja, transfere-se de início a carreira como um todo, mantendo-a, no entanto, intacta em seus integrantes e funções, para em seguida proceder-se à transposição desses servidores na nova carreira.

Trata-se, obviamente, de medida que tenta burlar o princípio do concurso público, constituindo-se em verdadeira "fraude" à Constituição, como muito bem ressalta o Ministro Maurício Correia no voto proferido no julgamento da Adin 2713/DF, em excerto cuja transcrição se impõe neste momento:

"8. Veja que se admitirmos a constitucionalidade da transformação, abre-se a possibilidade de fraude – o que não é o caso presente, estou convencido – , de forma que se aprove primeiro uma lei equiparando as atribuições dos cargos que se deseja unificar para, depois, também por lei, promover a união das carreiras envolvidas, em manifesta burla à exigência prevista no inciso II do artigo 37 da Constituição Federal" (23).

A Jurisprudência consolidada na nossa Corte Maior foi acolhida com todo o vigor pela doutrina nacional, que majoritariamente posta-se pela não admissão da figura da transposição no direito brasileiro.

Alexandre de Moraes leciona que a exigência do concurso público se impõe à administração pública compulsoriamente, asseverando que as "hipóteses de transformação de cargos e a transferência de servidores para outros cargos ou para categorias funcionais diversas das iniciais, quando desacompanhadas da prévia realização de concurso público de provas ou de provas e títulos, constituem formas inconstitucionais de provimento no serviço público, pois implicam o ingresso do servidor em cargos diversos daqueles nos quais foi ele legitimamente admitido" (24).

No mesmo sentido, Celso Ribeiro Bastos anota que "o Texto Constitucional quis, sem dúvida nenhuma, repudiar aquelas modalidades de desvirtuamento da Constituição anterior criadas por práticas administrativas, muitas vezes até com abono jurisdicional, que acabavam na verdade por costear o espírito do preceito" (25). E acrescenta o seguinte:

"referimo-nos ao instituto com o da "transposição ao" – citado aqui exemplificativamente, uma vez que não exclui outros -, que, com a falsa justificativa de que o beneficiado já era servidor público, guindava-o para novos cargos e funções de muito maior envergadura e vencimentos, que não nutriam, contudo, relação funcional com o cargo de origem. E tudo isso recebia o beneplácito da legalidade com o fundamento de que primeira investidura não era" (26).

Maria Sylvia Zanella Di Pietro, da mesma forma, vê com reservas o instituto da transposição ou transformação de cargos públicos, consignando que "deixaram de existir, com a nova Constituição, os institutos da readmissão, da transposição e da reversão, ressalvada, neste último caso, a reversão ex officio, porque, nessa hipótese, desaparecendo a razão de ser da inatividade, deve o funcionário necessariamente reassumir o cargo, sob pena de ser cassada a aposentadoria" (27).

No plano doutrinário, portanto, vê-se que as formas de provimento derivado são repudiadas com veemência, sendo considerada, de maneira geral, como forma inconstitucional e espúria de provimento de cargo público.

O Supremo Tribunal Federal tem também adotado a postura de repudiar a figura da "transposição", de modo a não permitir a admissão no sistema jurídico brasileiro de qualquer forma de provimento derivado em cargo público efetivo, consoante se depreende do teor da Súmula nº 685 do STF, a qual dispõe que "é inconstitucional toda modalidade de provimento de que propicie ao servidor investir-se, sem prévia aprovação em concurso público destinado ao seu provimento, em cargo que não integra a carreira na qual anteriormente investido". Esse enunciado deixa patente a impossibilidade da transposição de cargos públicos para cargos que não integrem a carreira original do servidor transposto, de modo que estariam vedadas quaisquer transposições para cargos diversos daquele para o qual o servidor ingressou mediante concurso público.

Obviamente que a transposição do servidor em outro cargo diverso do original não restará maculada quando se tratar de servidor efetivado no órgão em que se dará a recolocação e quando tenha se submetido a concurso público similar em dificuldade e exigências ao realizado para o cargo em que se dará o novo provimento, e quando houver similaridade nas atribuições do cargo. Nessa hipótese, o STF adotou posição que mitiga o rigor do princípio constitucional sob exame, conforme se vê, por exemplo, nas ADin’s 2713/DF e 1.150/RJ, cujos acórdãos aparentemente colidem com o teor da súmula acima mencionada, mas que, a uma análise mais acurada, nada mais são do que uma aplicação da jurisprudência consagrada na corte a situações especiais, que mereceriam, por parte do Poder Judiciário, um tratamento diferenciado pela especifidade da matéria posta à discussão. Trata-se aqui, a bem da verdade, não de transposição, mas de unificação ou fusão de carreiras, hipótese possível quando os cargos das carreiras a serem fundidas possuem idênticas atribuições, assim como se tenha atendido, no provimento dos respectivos cargos, ao princípio do concurso público, com similaridade de exigências e complexidade.

Nessa hipótese, não basta que o servidor a ser transposto tenha se submetido a concurso público para ocupação do cargo anterior. É fundamental que esses servidores tenham se submetido a concurso com o mesmo grau de dificuldade e exigência do concurso a que foram submetidos os ocupantes do cargo para os quais eles foram transpostos. Não poderia, por exemplo, haver a transposição de servidores ocupantes do cargo de fiscal que foram submetidos a uma simples prova objetiva para outro cargo de fiscal cujo concurso exige prova objetiva, subjetiva, e curso de formação. Muitos menos de servidores que foram investidos no cargo mediante ascensão funcional, no que vem a calhar a observação apresentada pelo Min. Joaquim Barbosa no bojo da ADIN n. 2713/DF (28).

Não seria possível, portanto, o deslocamento de servidores que compõe carreira de um determinado Ministério ou Secretaria do Poder Executivo para cargo integrante de carreira diversa pertencente a outro Ministério ou Secretaria sem que sejam atendidos, previamente, os requisitos acima descritos, de modo a que a Constituição Federal possa ser respeitada em sua integralidade. A administração, nessa hipótese, deve atentar que tão somente os servidores que atendam o requisito do concurso público análogo possam ter acesso ao novo cargo ou à nova carreira, excluindo-se de tal provimento os que provieram de nomeações espúrias e de concursos absolutamente distintos.

Nesse sentido, registre-se o julgamento da ADIN n. 1.150-2/RS, em cuja ementa consignou-se que:

"-Inconstitucionalidade da expressão ‘operando-se automaticamente a transposição de seus ocupantes’, contida no § 2º do artigo 176, porque essa transposição automática equivale ao aproveitamento de servidores não concursados em cargos para cuja investidura a Constituição exige os concursos aludidos no artigo 37, II, de sua parte permanente e no § 1º do artigo 19 de seu ADCT" (29).

E ainda, para rematar, citemos o teor de parte da ementa do acórdão da ADIN n. 248-1/RJ, cujo texto é o seguinte:

"-Os Estados-membros encontram-se vinculados, em face de explicita previsão constitucional (art. 37, caput), aos princípios que regem a Administração Pública, dentre os quais ressalta, como vetor condicionante da atividade estatal, a exigência de observância do postulado do concurso público (art. 37, II).

A partir da Constituição de 1988, a imprescindibilidade do certame público não mais se limita à hipótese singular da primeira investidura em cargos, funções ou empregos públicos, impondo-se à pessoas estatais como regra geral de observância compulsória.

-A transformação de cargos ou a transferência de servidores para outros cargos ou para categorias funcionais diversas traduzem, quando desacompanhadas da prévia realização do concurso público de provas ou de provas e títulos, formas inconstitucionais de provimento no serviço público, pois implicam o ingresso do servidor em cargos diversos daquele nos quais foi ele legitimamente admitido. Insuficiência, para esse efeito, da mera prova de títulos e da realização de concurso interno. Ofensa ao princípio da isonomia" (30).

O deslocamento de cargos da administração indireta para a direta encontra entraves ainda maiores. É que essas entidades possuem personalidade jurídica própria, e são, portanto, independentes do órgão central que as criou. Conforme leciona Di Pietro, "ela é titular de direitos e obrigações próprios, distintos daqueles pertencentes ao ente que a instituiu" (31). Possuem como atributo a auto-administração, o que implica na sua total independência em relação ao órgão central na aquisição do seu pessoal, bem como na definição de atribuições e funções dentro do seu quadro de servidores. Cada ente da administração indireta pode, autonomamente, realizar concurso público para a contratação de servidores, e utilizar, nesses certames, requisitos e exigências que guardem relação direta com os seus fins específicos, diferentemente do que ocorre no âmbito da administração central. Ou seja, cada autarquia impõe aos seus servidores requisitos e exigências que lhe são próprios, no que concerne ao provimento de cargo, atribuições, e até mesmo na fixação dos vencimentos, que podem variar de ente para ente. No caso das Universidades Públicas, esse argumento é ainda mais forte, considerando a autonomia administrativa e de gestão financeira-patrimonial garantida pelo artigo 207 da Constituição Federal, o que implica na impossibilidade de transferência de servidores ou competências desses entes para o órgão central.

Assim, servidores técnicos do IBAMA ou da FUNASA não poderiam ser transpostos para a União, face a especificidade das suas atribuições, bem como o fato de terem sido submetidos a concursos públicos com requisitos totalmente distintos, e graus de exigência variáveis. O Procurador do Departamento de Estradas de Determinado Estado da Federação, por exemplo, não poderia ser transformado em Procurador do Estado, considerando a especificidade da sua atuação no órgão de origem, o que implica normalmente na realização de concursos públicos mais específicos e com grau de exigência inferior ao de Procurador do Estado. Enquanto estes últimos podem ter sido submetidos a várias etapas de um concurso público, com um vasto programa, o primeiro fora admitido no serviço público mediante concurso público onde se exigiu apenas uma prova objetiva com conteúdo relacionado às atribuições do órgão (leis de trânsito, licitações e contratos, legislação especifica do órgão).

Do exposto constata-se que jamais poderá haver a ocorrência de transposição de cargos públicos de autarquias ou fundações públicas para os entes da administração direta, sendo inconstitucional qualquer lei que venha a adotar tal medida. A tal conclusão se chega exatamente pela constatação de que não há possibilidade de coincidência de atribuições entre cargos da administração central e da administração indireta, bem como pela discrepância existente na forma de seleção desses servidores, em face da autonomia administrativa desses órgãos, o que implica na realização de certames distintos por cada entidade, e na fixação de atribuições que guardem relação com o fim específico de cada órgão. Ou alguém acha que atende o interesse público a transposição de Procurador de uma fundação municipal, que se submeteu apenas a uma prova objetiva com 60 (sessenta) questões sobre "legislação securitária" e análise curricular, para o cargo de Procurador do Município, onde o candidato se submeteu a provas objetiva e discursiva ampla, de títulos e em alguns casos à prova oral?

Nesse sentido o entendimento do Supremo Tribunal Federal sobre a matéria, cujos julgados, de maneira geral, corroboram o entendimento acima esposado, no sentido de serem inconstitucionais as normas legais que veiculem casos de transposição de cargos públicos para outros órgãos ou entidades da administração pública (32). Caso interessante é o da Adin nº 362-3, proposta pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, a qual tinha por objeto a declaração de inconstitucionalidade de artigo da Constituição do Estado de Alagoas no qual se concedida aos servidores públicos daquele Estado o direito à transposição a pedido, "para outro cargo público permanente, para cujo exercício haja obtido qualificação profissional suficiente, desde que, existente vaga, comprove sua aptidão em exame seletivo interno". A Ação foi julgada procedente pelo Plenário do Supremo Tribunal Federal.

No mesmo diapasão, o STF acenou para impossibilidade tais transposições ocorrem quando do julgamento do Mandado de Segurança 188-0/RJ, impetrado por Procuradores Autárquicos e Fundacionais de Entidades Públicas Federais visando a sua integração ao futuro cargo de Advogado da União. No acórdão, o Min. Sepúlveda Pertence cristalizou o entendimento de que os impetrantes não possuíam direito liquido e certo à sua transferência ou ingresso no cargo de Advogado da União, conforme podemos ver pelos trechos do voto abaixo transcritos:

"(...)

30. A conclusão se me afigura além do que o texto autoriza. No art. 29, é certo, fica implícito que a lei complementar – a exemplo do que fizera o D. 93.237/86, regulará a Advocacia Consultiva da União - , deverá disciplinar o relacionamento funcional entre a Advocacia da União e as procuradorias das autarquias; não, necessariamente, porém, que deva o legislador optar pela solução radical de dissolver, no organismo da advocacia contenciosa e consultiva da administração central, os servidores jurídicos das autarquias, que são entidades com personalidade e conseqüente capacidade processual próprias (cf. CF, art. 109, II).

31. É significativo, aliás, que essa absorção completa, ora postulada, tenha sido proposta à Constituinte, mas explicitamente recusada.

32. De fato. No projeto do relator, de setembro de 1987, é que – além da mesma regra transitória que terminou acolhida no art. 29, caput - , previam-se dois parágrafos, a ditar:

‘art. 14(...)

§ 4º. Os atuais assistentes jurídicos da União, os Procuradores e advogados de ofício junto ao Tribunal Marítimo, os Procuradores da Fazenda Nacional e os Procuradores ou advogados das autarquias federais passam a integrar, em caráter efetivo, a carreira de Procurador da União.

§ 5º. Os órgãos consultivos e judiciais da União atualmente existentes serão absorvidos pela Procuradoria-Geral da União...’

33. Esses preceitos, no entanto, foram rejeitados: já não os contém o art. 9º, relativo à matéria, do Projeto ‘A’, resultante dos trabalhos da comissão de Sistematização. Fracassaram, em Plenário, as tentativas de reeditá-los ( ).

34. Concluo, assim, que - salvo os Procuradores da República optantes (ADCT, art. 29, § 2º) – a Constituição não conferiu a ninguém direito subjetivo a integrar-se na futura da Advocacia-Geral da União, não sendo esse o momento de aferir se o pode conferir a lei complementar, malgrado o art. 131, § 2º, do texto fundamental" (33).

Existem ainda inúmeros outros julgados sobre essa matéria, o que só confirma o entendimento de que no direito brasileiro não há espaço para qualquer provimento derivado de cargo público, e que a administração deve sempre atentar para o atendimento do princípio do concurso público, expurgando, de uma vez por todas, as forma de provimento derivado, como a transposição, do ordenamento jurídico brasileiro.

Para rematar, calha citar acórdão proferido pelo Pretório Excelso, na qual resta consignado, de forma veemente, o repúdio a tal forma de investidura em cargo público:

"TRANSFORMACAO, EM CARGOS DE CONSULTOR JURID ICO, DE CARGOS OU EMPREGOS DE ASSISTENTE JURIDICO, ASSESSOR JURIDICO, PROCURADOR JURIDICO E ASSISTENTE JUDICIARIO-CHEFE, BEM COMO DE OUTROS SERVIDORES ESTAVEIS JA ADMITIDOS A REPRESENTAR O ESTADO EM JUIZO (PAR 2. E 4. DO ART. 310 DA CONSTITUICAO DO ESTADO DO PARA). INCONSTITUCIONALIDADE DECLARADA POR PRETERICAO DA EXIGENCIA DE CONCURSO PUBLICO (ART. 37, II, DA CONSTITUICAO FEDERAL). LEGITIMIDADE ATIVA E PERTINENCIA OBJETIVA DE ACAO RECONHECIDAS POR MAIORIA" (34).


5. CONCLUSÕES.

De tudo o que expusemos acima, podemos concluir que:

a) a transposição, ou transformação, é forma de provimento derivado de cargo público, sendo, portanto, inconstitucional;

b) é inconstitucional a transposição de cargos da administração indireta para a administração indireta;

c) a jurisprudência mansa e pacífica do Supremo Tribunal Federal rejeita o provimento derivado de cargo público no direito brasileiro, sendo nulo o ato administrativo que implemente tal medida e totalmente inconstitucional a norma jurídica sob a qual se fundamenta a atuação administrativa;

d) que a reestruturação de carreiras, com o deslocamento de cargos, pode se dar, excepcionalmente, no âmbito interno dos órgãos administrativos, e desde que atendidos alguns requisitos, como a similaridade de atribuições, concurso público assemelhado em exigências e requisitos.


6. BIBLIOGRAFIA.

BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de Direito Administrativo. 3ª. Edição. Saraiva.

DE MORAES, Alexandre. Direito Constitucional. 3ª. Edição. Atlas.

DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 9ª. Edição. São Paulo: Atlas. 1998.

HESSE, Konrad. A Força Normativa da Constituição. Tradução de Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor. 1991.

JACQUES, Paulino. Curso de Direito Constitucional. 9ª. Edição. Editora Forense.

Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.


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Informações sobre o texto

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SILVA, Marcos Luiz da. Da transposição de cargos na Administração Pública. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 10, n. 651, 20 abr. 2005. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/6605. Acesso em: 28 mar. 2024.