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Limites à tipificação de atos de advogados pareceristas como improbidade administrativa, à luz das inovações trazidas pela Lei 13.655/2018

Limites à tipificação de atos de advogados pareceristas como improbidade administrativa, à luz das inovações trazidas pela Lei 13.655/2018

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Estudo sobre a tipificação de conduta de advogados pareceristas como improbidade administrativa, mediante abordagens jurisprudenciais e doutrinárias, cotejando-as com dispositivos da Lei Federal 13.655, de 25 de abril de 2018.

1. INTRODUÇÃO

O conceito de improbidade administrativa, no sistema jurídico pátrio, encontra-se histórica e normativamente vinculado ao que se denomina de “constitucionalização da moralidade administrativa”[1]. 

Ocorre que, ao tempo em que o Constituinte de 1988 atribuiu, no art. 37, caput da Constituição Federal, status constitucional à moralidade, enquanto princípio reitor da Administração Pública, instrumentalizou a sua proteção com mecanismos de tutela, como, por exemplo: a previsão contida no art. 5º, LXXII que “reconfigurou a Ação Popular, tornando-a o instrumento processual idôneo para anular ato lesivo ao patrimônio público ou de entidade de que o Estado participe, à moralidade administrativa”[2]; a inovadora previsão do conceito improbidade administrativa e respectivas sanções contida no art. 37, § 4 da CF; o aproveitamento do novo conceito de “improbidade administrativa” como uma das causas ensejadoras da perda ou suspensão dos direitos políticos (art. 15, V) e como hipótese de configuração de crime de responsabilidade (art. 85, V).

Neste artigo nos dedicaremos ao exame da aplicabilidade do remédio que se pode dizer o mais efetivo (pela abrangência dos respectivos sujeitos; e pela massificação de sua submissão ao Poder Judiciário) e drástico (pela diversidade e relevância e suas sanções[3]) na proteção da moralidade administrativa, que é a “ação de improbidade administrativa” - regulamentada infraconstitucionalmente pela Lei nº 8.429/92 -  à categoria profissional específica dos “advogados” quando na atuação de uma das suas fundamentais atividades, que é a “emissão de pareceres” como norte de agir de órgãos e agentes públicos. 

Sucede que, conquanto o art. 133 da Constituição Federal estabeleça que o “advogado é indispensável à administração da Justiça, sendo inviolável por seus atos e manifestações no exercício da profissão, nos limites da lei”, referido tratamento há de se compatibilizar com o vetor constitucional de proteção à moralidade e à probidade pública e vice-versa. 

No mesmo sentido é a Lei nº 8.906/94:

"Art. 2º:  O advogado é indispensável à administração da Justiça.

(...)3º – No exercício da profissão, o advogado é inviolável por seus atos e manifestações, nos limites desta lei."

Ou seja, embora referidos preceitos, naturalmente, não se constituam uma blindagem ao advogado para a prática impune de atos contrários à probidade administrativa, o exame da tipicidade da conduta do parecerista há de se promover em compatibilidade com a dignidade e relevância da atividade da advocacia bem como à luz das vicissitudes técnicas e científicas vigentes no contexto de sua atuação.

Buscando interpretação equânime e razoável dos diversos preceitos que envolvem a possibilidade de tipificação da conduta do advogado, quando atuante na condição de advogado parecerista, nos dispositivos da Lei nº 8.429/92, examinaremos as abordagens jurisprudenciais e doutrinárias sobre o tema, cotejando-as, ao fim, com dispositivos contidos na recém-editada Lei Federal de 13.655, de 25 de abril de 2018.

Nos cingiremos, no entanto, a discorrer sobre as perspectivas de configuração do ato de improbidade por advogado parecerista sob o ponto de vista do elemento subjetivo do tipo, ao exame da projeção da exigência do dolo ou culpa integrante da conduta,  por se tratar da orbe na qual gravita a quase totalidade dos debates judiciais e das divergências jurisprudenciais e doutrinárias sobre o tema. 

Há, entrementes, outros aspectos passíveis de serem apreciados na conduta do advogado parecerista, os quais podem ensejar ou não a configuração de ato de improbidade administrativa, como, por exemplo, o caráter facultativo ou vinculante do parecer, o nexo causal e o dano, como se infere das lições de Walber Agra:  

"Questão que suscita controvérsia é da responsabilidade do advogado parecerista por meio de ação civil de improbidade. Tem- se que o parecer se configura como um ato jurídico que pode ser facultativo ou opinativo e vinculante ou obrigatório.

Quando ele é facultativo, não há maiores divagações, pois o administrador tem toda liberdade para acatá-lo ou não, no que afasta qualquer tipo de responsabilidade para o advogado que emitiu o parecer. Nas hipóteses em que o parecer é obrigatório, mesmo assim, a autoridade competente para a autorização pode negar-se a cumprir o seu conteúdo se ele se configurar eivado de vícios evidentes.

Além de que se exige, sem exceção, a comprovação do nexo causal e da tipificação em todos os seus elementos.

Portanto, a responsabilidade do advogado parecista em ações de improbidade administrativa apenas será possível quando houver a comprovação cabal do aspecto subjetivo, especificando o dolo ou a culpa que contribui para ocasionar o enriquecimento ilícito, o nexo causal e o dano ou a afronta aos princípios da Administração Pública."[4]

Outrossim, manteremos o foco de análise no elemento que é, no mais dais vezes, tido por definitivo para a configuração ou não do ato de improbidade administrativa do advogado parecerista: o elemento subjetivo. 

Nesta senda, discorreremos, no capítulo seguinte (2), acerca exigência do elemento subjetivo para a configuração das hipóteses típicas previstas nos artigos 9º, 10 e 11 da Lei nº 8.429/92, para, no Capítulo 3, analisarmos a tipicidade subjetiva do advogado parecerista em relação a tais dispositivos.


2. DO ELEMENTO SUBJETIVO NECESSÁRIO AO ATO DE IMPROBIDADE ADMINSTRATIVA

Como já ressaltado no introito deste artigo, o conceito de improbidade administrativa introduzido pela Carta Magna de 1988 representa um dos relevantes instrumentos de proteção à moralidade administrativa.

É cediço, no entanto, que não é qualquer ilegalidade ou ofensa à moralidade que se ampara na tutela da improbidade administrativa, mas apenas aquela que se pratica em ofensa ao dever de "honestidade", do qual é inerente o conceito de “probidade administrativa”, consoante esclarece José Afonso da Silva:

"A probidade administrativa é uma forma de moralidade administrativa que mereceu consideração especial da Constituição, que pune o ímprobo com a suspensão de direitos políticos (art. 37,§4º). A probidade administrativa consiste no dever de o ‘funcionário servir a administração com honestidade, procedendo no exercício das suas funções, sem aproveitar os poderes ou facilidades delas decorrentes em proveito pessoal ou de outrem a quem queria favorecer’. O desrespeito a esse dever é que caracteriza a improbidade administrativa. Cuida-se de uma imoralidade qualificada. A improbidade é uma imoralidade qualificada pelo dano ao erário e correspondente vantagem ao ímprobo ou a outrem". [5](grifamos)

Nesse sentido, é preciso o escólio do Juiz Federal do TRF da 1º Região, André Jackson de Holanda Maurício Júnior, em obra conjunta (“Improbidade Administrativa”) com o Advogado da União, Ronny Charles L. de Torres:

"De acordo com esse entendimento, tendo em vista que a ato de improbidade constitui-se uma imoralidade qualificada pela lei com graves penalidades, a Lei nº 8.429/92 não deve ser utilizada para punir a agente público inábil que não incidiu em culpa notadamente grave. Coma já dito alhures, atos irregulares, mesmo que hipoteticamente compatíveis com as descrições dadas pelos artigos 9°, 10 e 11 da Lei no 8.429/92, não devem ser caracterizado coma atos de improbidade, caso não sejam relevantes ou não envolvam elementos subjetivos que apontem a desonestidade do agente ou do terceiro participante ou beneficiado.

A improbidade envolve um plus subjetivo, em relação a mera ilegalidade. Conforme sedimentada jurisprudência do STJ, a improbidade é ilegalidade tipificada e qualificada pelo elemento subjetivo da conduta do agente. Para isso mesmo, é indispensável, para a caracterização de improbidade, que a conduta do agente seja dolosa, para a tipificação das condutas descritas pelos artigos 9º e 11 da Lei nº 8.429/92, ou pelo menos eivada de culpa grave, nas condutas descritas pelo artigo 10.

Não condiz com o princípio da proporcionalidade a caracterização do ato de improbidade mediante a simples constatação de ilegalidade. A ratio do art. 37, § 42, da Constituição Federal e da Lei n. 8.429/92 consiste em reprimir condutas ilegais qualificadas por imoralidade que atente contra a probidade administrativa. Desse modo, para que a conduta que cause dano ao erário configure ato de improbidade torna-se imprescindível a presença de grau elevado de culpabilidade, incompatível com a mera culpa leve ou moderada.

Observa-se que somente será aceitável um ato de improbidade culposo, quando o próprio comportamento antecedente que gerou a lesão ao erário configure uma conduta deliberadamente violadora dos deveres de honestidade, imparcialidade, legalidade e lealdade, que possa autonomamente configurar ato de improbidade administrativa que atente contra os princípios da Administração Pública. E dizer, a conduta culposa que enseja ato de improbidade administrativa que causa prejuízo ao erário somente pode ser aquela derivada de uma conduta antecedente dolosa. Em face disso, sustenta-se, no âmbito doutrinário, ser a conduta culposa configuradora de ato de improbidade administrativa equiparável à própria atuação dolosa do agente.

Nesse contexto, somente a culpa grave pode resultar no reconhecimento de ato de improbidade culposo, uma vez que, embora não configure, por si só, um ato doloso, já que não haveria a intenção deliberada de causar dano ao erário, não deriva de conduta simplesmente negligente, imprudente ou mera inabilidade de gestão da coisa publica".[6]

Assim, para a correta fundamentação da condenação por improbidade administrativa é imprescindível além da subsunção do fato à norma caracterizar-se a presença do elemento subjetivo da conduta, o qual deverá corresponder ao dolo, nas condutas previstas nos artigos 9º e 11 da Lei nº 8.429/92, ou pelo menos culpa grave, nas condutas previstas pelo artigo 10.

Nesse sentido, é o entendimento consolidado do Superior Tribunal de Justiça:

"ADMINISTRATIVO.  AGRAVO  REGIMENTAL  NO  AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. IMPROBIDADE  ADMINISTRATIVA.  ACÓRDÃO  QUE, EM FACE DOS ELEMENTOS DE PROVA  DOS  AUTOS, CONCLUIU PELA AUSÊNCIA DE COMPROVAÇÃO DO ELEMENTO SUBJETIVO  E  NÃO CONFIGURAÇÃO DE ATO DE IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA, PELOS TERCEIROS, PARTICULARES  INDICADOS  COMO RÉUS. SÚMULA 7/STJ.AGRAVO REGIMENTAL IMPROVIDO.

(...)V.   Em  se  tratando  de  improbidade  administrativa,  é  firme  a jurisprudência  do Superior Tribunal de Justiça no sentido de que "a improbidade  é  ilegalidade  tipificada  e qualificada pelo elemento subjetivo  da conduta do agente. Por isso mesmo, a jurisprudência do STJ  considera  indispensável, para a caracterização de improbidade, que a conduta do agente seja dolosa, para a tipificação das condutas descritas  nos artigos 9º e 11 da Lei 8.429/92, ou pelo menos eivada de  culpa  grave,  nas  do artigo 10" (STJ, AIA 30/AM, Rel. Ministro TEORI  ALBINO ZAVASCKI, CORTE ESPECIAL, DJe de 28/09/2011). Em igual sentido:  STJ,  REsp  1.420.979/CE,  Rel.  Ministro HERMAN BENJAMIN, SEGUNDA  TURMA,  DJe de 10/10/2014; REsp 1.273.583/SP, Rel. Ministro BENEDITO GONÇALVES, PRIMEIRA TURMA, DJe de 02/09/2014; AgRg no AREsp 456.655/PR,  Rel.  Ministro  HUMBERTO MARTINS, SEGUNDA TURMA, DJe de 31/03/2014.(...)

(STJ. AgRg no AREsp 494.124/RS, Rel. Ministra ASSUSETE MAGALHÃES, SEGUNDA TURMA, julgado em 04/05/2017, DJe 09/05/2017)

PROCESSUAL  CIVIL.  AGRAVO  INTERNO NO RECURSO ESPECIAL. AUSÊNCIA DE COMPROVAÇÃO  DE  MÁ-FÉ  OU  DE  DOLO NA CONDUTA DO SERVIDOR. ACÓRDÃO FUNDADO NA PROVA DOS AUTOS. REVISÃO. SÚMULA 7/STJ.

(...) 2.  "A  improbidade  é  ilegalidade  tipificada  e  qualificada pelo elemento   subjetivo  da  conduta  do  agente.  Por  isso  mesmo,  a jurisprudência do STJ considera indispensável, para a caracterização de improbidade,  que  a  conduta  do  agente  seja  dolosa,  para a tipificação  das  condutas  descritas  nos  artigos  9º  e 11 da Lei 8.429/92,  ou  pelo  menos  eivada de culpa grave, nas do artigo 10" (AIA 30/AM, Rel. Ministro Teori Albino Zavascki, Corte Especial, DJe 28/9/2011).

3.  No caso dos autos, não há como acolher a impugnação da parte sem afastar  a afirmação feita pelo Tribunal de origem no sentido de que não  vislumbrou  que  eles (os réus) tivessem agido com a deliberada intenção  de  praticar ato ilegal ou desonesto, que atentasse contra os  princípios insertos no caput do art. 37 da Constituição Federal.(...)

(STJ. AgInt no REsp 1305859/PR, Rel. Ministro OG FERNANDES, SEGUNDA TURMA, julgado em 08/06/2017, DJe 14/06/2017)"

Marçal Justen Filho adverte, no entanto, que a admissão de improbidade em casos de culpa grave deve ocorrer em caráter excepcional, in verbis:

“Admite-se a improbidade em casos de culpa grave com caráter excepcional. São aquelas hipóteses em que a atuação culposa grave dá oportunidade à ocorrência de danos muito intensos. Dito de outro modo, são os casos em que a relevância da função pública é tamanha que qualquer descuido se configura como ímprobo. A danosidade dos efeitos, propiciados pela ausência da adoção pelo agente das cautelas exigíveis, conduz ao enquadramento da infração na categoria da improbidade.

A jurisprudência do STJ se orienta nesse sentido. Reconhece, inclusive, que certas condutas apresentam tamanha anomalia que a configuração da improbidade resulta da dimensão de sua patologia em face do dever objetivo de diligência que recai sobre o administrador público.”[7]

Reputamos, no entanto, com a devida vênia, equivocada a caracterização do elemento subjetivo do ato de improbidade exclusivamente em face à relevância da função exercida pelo agente público, porquanto não se pode apurá-lo à revelia de elementos concretos que circundam o fato, sem a necessária projeção da respectiva percepção do agente.


3. ASPECTOS DA TIPIFICAÇÃO DE ATOS DE ADVOGADOS PARECERISTAS COMO IMPROBIDADE ADMINSTRATIVA, A PARTIR DO ELEMENTO SUBJETIVO DA CONDUTA

No que se refere à tipificação específica de atos de advogado parecerista como improbidade administrativa, há de se ressaltar que doutrina e jurisprudência são pacíficos a exigir um plus “adicional” para além do exigido à generalidade dos agentes, justamente ante a necessidade referida na introdução de compatibilizar-se a proteção da probidade administrativa à dignidade e relevância da atividade da advocacia (art. 133 da CF), em observância às naturais vicissitudes técnicas e científicas que envolvem mister advocatício.

Dentro desta perspectiva, evidenciamos que doutrina e jurisprudência exigem, no mínimo, o que se denomina de “erro grosseiro” do advogado parecerista.

Há, no entanto, parcela da doutrina que apenas reconhece o cometimento de improbidade administrativa em caso de dolo em qualquer hipótese de responsabilização de advogado parecerista.

Trataremos, a seguir, destas duas diversas formas de abordagem da condição mínima para a tipificação do ato de improbidade administrativa por advogado parecerista :

3.1 - EXIGÊNCIA DE DOLO (DESDE O NASCEDOURO)

Dentre os nomes de relevo da doutrina que apenas aceitam a tipificação de improbidade administrativa de advogado parecerista em havendo dolo na sua conduta, destaca-se José dos Santos Carvalho Filho, o qual defende que "o agente que emite o parecer não pode ser considerado solidariamente responsável com o agente que produziu o ato administrativo final, decidindo pela aprovação do parecer. A responsabilidade do parecerista pelo fato de ter sugerido mal somente lhe pode ser atribuída se houve comprovação indiscutível de que agiu dolosamente, vale dizer, com intuito predeterminado de cometer improbidade administrativa. Semelhante comprovação, entretanto, não dimana do parecer em si, mas, ao revés, constitui ônus daquele que impugna a validade de ato em função da conduta de seu autor" (CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. 28ª ed. São Paulo: Atlas, 2015, p. 139-140).

Em idêntica linha de compreensão, a Segunda Turma do Superior Tribunal de Justiça, no julgamento do REsp 1183504/DF, fixou entendimento no sentido de que a responsabilidade do advogado na condição de parecerista apenas deve ocorrer em “situação excepcional”, na qual “desde o nascedouro a má-fé tenha sido o elemento subjetivo condutor da realização do parecer”, consoante se infere da transcrição da respectiva ementa, in verbis:

"ADMINISTRATIVO – IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA – MINISTÉRIO PÚBLICO COMO AUTOR DA AÇÃO – DESNECESSIDADE DE INTERVENÇÃO DO PARQUET COMO CUSTOS LEGIS – AUSÊNCIA DE PREJUÍZO – NÃO OCORRÊNCIA DE NULIDADE – RESPONSABILIDADE DO ADVOGADO PÚBLICO – POSSIBILIDADE EM SITUAÇÕES EXCEPCIONAIS NÃO PRESENTES NO CASO CONCRETO – AUSÊNCIA DE RESPONSABILIZAÇÃO DO PARECERISTA – ATUAÇÃO DENTRO DAS PRERROGATIVAS FUNCIONAIS – SÚMULA 7/STJ.

(...) 3. É possível, em situações excepcionais, enquadrar o consultor jurídico ou o parecerista como sujeito passivo numa ação de improbidade administrativa. Para isso, é preciso que a peça opinativa seja apenas um instrumento, dolosamente elaborado, destinado a possibilitar a realização do ato ímprobo. Em outras palavras, faz-se necessário, para que se configure essa situação excepcional, que desde o nascedouro a má-fé tenha sido o elemento subjetivo condutor da realização do parecer. (...)

(STJ. REsp 1183504/DF, Rel. Ministro HUMBERTO MARTINS, SEGUNDA TURMA, julgado em 18/05/2010, DJe 17/06/2010)".

Nesse sentido, também do STJ:

"EMBARGOS DE DECLARAÇÃO. OMISSÃO EXISTENTE. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA. INDISPONIBILIDADE DE BENS. REQUISITO DO FUMUS BONI IURIS NÃO EXAMINADO. EFEITO INFRINGENTE. AGRAVO REGIMENTAL PROVIDO. RECURSO ESPECIAL DESPROVIDO.

(...)4. Já o Tribunal de origem permaneceu silente no acórdão dos Embargos de Declaração, mantendo a compreensão de que o ora embargante "não exercia qualquer ingerência ou poder de comando sobre as atividades exercidas pela Administração do Município e muito menos sobre as contratações e pagamentos que por lá ocorriam" e que "não existiam elementos que indicassem que o agravante teria se beneficiado diretamente da suposta fraude narrada na petição inicial".

5. A omissão apontada toma relevância quando considerada a jurisprudência do STJ no sentido de que é possível configurar como improbidade administrativa o ato de procurador do município que emite parecer dolosamente direcionado para a prática de ato ímprobo, aliando-se a isso o entendimento de que as hipóteses de improbidade administrativa não se resumem a enriquecimento ilícito dos agentes (art. 9º), mas também abrangem violação aos princípios da Administração Pública (art. 11) e prejuízo ao erário (art. 10).

6. "É possível, em situações excepcionais, enquadrar o consultor jurídico ou o parecerista como sujeito passivo numa ação de improbidade administrativa. Para isso, é preciso que a peça opinativa seja apenas um instrumento, dolosamente elaborado, destinado a possibilitar a realização do ato ímprobo. Em outras palavras, faz-se necessário, para que se configure essa situação excepcional, que desde o nascedouro a má-fé tenha sido o elemento subjetivo condutor da realização do parecer." (REsp 1.183.504/DF, Rel. Ministro Humberto Martins, Segunda Turma, DJe 17.6.2010).

7. Embargos de Declaração acolhidos para dar provimento ao Agravo Regimental e, com isso, prover parcialmente o Recurso Especial para anular o acórdão dos Embargos de Declaração.

(STJ. EDcl no AgRg no REsp 1408523/PR, Rel. Ministro HERMAN BENJAMIN, SEGUNDA TURMA, julgado em 14/06/2016, DJe 10/10/2016)"

Referido entendimento nos remete e encontra respaldo na lógica e precisa acepção de “conduta antecedente dolosa” como requisito para caracterização de ato de improbidade culposo proficientemente explanada nas lições de André Jackson de Holanda Maurício Júnior e Ronny Charles L. de Torres, em obra já referida no Capítulo 2 (“Improbidade Administrativa”):

"É dizer, a conduta culposa que enseja ato de improbidade administrativa que causa prejuízo ao erário somente pode ser aquela derivada de uma conduta antecedente dolosa. Em face disso, sustenta-se, no âmbito doutrinário, ser a conduta culposa configuradora de ato de improbidade administrativa equiparável à própria atuação dolosa do agente".[8]

Reputamos ser este o único entendimento consentâneo com o conceito constitucional de improbidade administrativa (art. 37, §4º da CF), a qual, por ontologicamente equivaler ao conceito de corrupção, como já discorremos neste artigo, não pode prescindir da presença da vilania do intuito de seu agente.  

3.2 – ERRO GROSSEIRO

Há, por outro lado, linha de entendimento jurisprudencial e doutrinário concorrente, a qual, embora conceba a tipificação de ato “não doloso” de improbidade por advogado parecerista, exige, no mínimo, a presença de “erro grosseiro” no agir do profissional.   

O pré-requisito mínimo de “erro grosseiro”, ainda que menos criterioso que o exame do dolo, representa, de qualquer modo, indubitavelmente um acréscimo à exigência “culpa grave” tida por parte relevante doutrina e jurisprudência como mínimo à configuração dos atos de improbidade à generalidade dos agentes.

Com efeito, ao exigir-se “erro grosseiro”, ao invés de simplesmente culpa, ainda que grave, ultrapassa-se a análise das atribuições do cargo e do correspondente dever ser projetado pelo julgador e aprofunda-se no exame da conduta do profissional a partir do pré-reconhecimento das variadas perspectivas de compreensões e atuações possíveis e defensáveis[9] ou, como justifica Walber Agra, da “multiplicidade das possibilidades interpretativas do fenômeno jurídico”[10].     

Neste diapasão, exigindo, no mínimo, a evidência de erro grosseiro na conduta do advogado parecerista para a sua responsabilização, destacamos, exemplificativamente, os seguintes precedentes do Superior Tribunal de Justiça: 

“PROCESSO PENAL. RECURSO ORDINÁRIO EM HABEAS CORPUS. PREVARICAÇÃO. CRIME CONTRA A ORDEM TRIBUTÁRIA. ORGANIZAÇÃO CRIMINOSA. TRANCAMENTO DA AÇÃO PENAL. EXCEPCIONALIDADE NA VIA ELEITA. FLAGRANTE ATIPICIDADE EVIDENCIADA. DENÚNCIA INEPTA. RECURSO PROVIDO.

(...)4. Nos termos do art. 133 da Constituição Federal, "o advogado é indispensável à administração da Justiça, sendo inviolável por seus atos e manifestações no exercício da profissão, nos limites da lei." Sem embargo, a inviolabilidade do advogado não pode ser tida por absoluta, devendo ser limitada ao exercício regular de sua atividade profissional, não sendo admissível que sirva de salvaguarda para a prática de condutas abusivas ou atentatórias à lei e à moralidade que deve conduzir a prática da advocacia.

5. No julgamento do MS n. 24.631/DF, da relatoria do Exmo. Sr.Ministro Joaquim Barbosa, o Plenário do Supremo Tribunal Federal reconheceu a impossibilidade de responsabilização dos advogados públicos pelo conteúdo de pareceres técnico-jurídicos meramente opinativos, salvo se evidenciada a presença de culpa ou erro grosseiro. 6. Conforme o consolidado no âmbito deste Superior Tribunal de Justiça, a imunidade do advogado público não obsta a sua responsabilização por possíveis condutas criminosas praticadas no exercício de sua atividade profissional, desde que demonstrado que agiu imbuído de dolo. (...)

9. Ainda que a jurisprudência atual desta Corte reconheça não ser possível a compensação tributária na ausência de lei estadual disciplinadora, a teor do disposto no art. 170 do Código Tributário Nacional, a autorização baseada na aplicação imediata do artigo 78, § 2º, do ADCT, acrescentado pela Emenda Constitucional 30/2000, não pode ser tida por manifestamente ilegal, não evidenciando erro grosseiro e, muito menos, que o parecerista agiu dolosamente com intuito de causar prejuízo ao erário.

(STJ. RHC 82.377/MA, Rel. Ministro RIBEIRO DANTAS, QUINTA TURMA, julgado em 10/10/2017, DJe 18/10/2017)"

É relevante ademais destacar-se entendimento sufragado pelo Superior Tribunal de Justiça no sentido de que não existe erro grosseiro do advogado ao adotar tese plausível, mesmo minoritária, desde que de forma fundamentada. Nesse sentido:

"DIREITO PROCESSUAL CIVIL E ADMINISTRATIVO. RECURSO ESPECIAL. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA. DECISÃO QUE REJEITA A PETIÇÃO INICIAL. AGRAVO DE INSTRUMENTO. RECURSO CABÍVEL. JURISPRUDÊNCIA PACIFICADA NESTA CORTE. PARECER EQUIVOCADO. AUSÊNCIA DE INDÍCIOS DE ERRO GROSSEIRO OU MÁ-FÉ. INVIOLABILIDADE DOS ATOS E MANIFESTAÇÕES. EXERCÍCIO DA PROFISSÃO. REJEIÇÃO DA PETIÇÃO INICIAL QUE SE IMPÕE. RECURSO ESPECIAL PROVIDO EM PARTE.

(...)2. A existência de indícios de irregularidades no procedimento licitatório não pode, por si só, justificar o recebimento da petição inicial contra o parecerista, mesmo nos casos em que houve a emissão de parecer opinativo equivocado.

3. Ao adotar tese plausível, mesmo minoritária, desde que de forma fundamentada, o parecerista está albergado pela inviolabilidade de seus atos, o que garante o legítimo exercício da função, nos termos do art. 2º, § 3º, da Lei n. 8.906/94.

4. Embora o Tribunal de origem tenha consignado o provável equívoco do parecer técnico, não demonstrou indícios mínimos de que este teria sido redigido com erro grosseiro ou má-fé, razão pela qual o prosseguimento da ação civil por improbidade contra a Procuradora Municipal configura-se temerária. Precedentes do STF: MS 24631, Relator Min. Joaquim Barbosa, Tribunal Pleno, julgado em 09/08/2007, pub. 01-02-2008; MS 24073, Relator: Min. Carlos Velloso, Tribunal Pleno, julgado em 06/11/2002, DJ 31-10-2003. Precedentes desta Corte: REsp 1183504/DF, Rel. Ministro Humberto Martins, Segunda Turma, DJe de 17/06/2010. (...)(STJ. REsp 1454640/ES, Rel. Ministro BENEDITO GONÇALVES, PRIMEIRA TURMA, julgado em 15/10/2015, DJe 05/11/2015)"

Referido entendimento encontra defesa correspondente na doutrina, como, por exemplo, podemos citar Emerson Garcia e Rogério Pacheco Alves, em obra “Improbidade Administrativa”:

"Em virtude disso, é necessário que sejam perquiridos os fundamentos do parecer, devendo ser identificado um nexo de encadeamento lógico entre estes e a conclusão.

Estando devidamente fundamentado o parecer, ainda que seja minoritária a corrente encampada, a questão se manterá adstrita à independência funcional do parecerista e à discricionariedade do administrador em adotá-lo, não sendo divisada, em linha de princípio, qualquer ilegalidade em tais condutas (...)"[11]

Observamos, ademais, que a não responsabilização de advogado parecerista quando amparado em entendimento jurisprudencial válido, ainda que não pacífico ou predominante, encontra simetria no correspondente entendimento quanto à inocorrência de erro judiciário em se tratando de sentença condenatória que tenha se fundado em interpretação jurisprudencial controversa à época da condenação:

"PENAL E PROCESSO PENAL. REVISÃO CRIMINAL FUNDADA NO ART. 621, I, CPP. ESTELIONATO PREVIDENCIÁRIO (ART. 171, § 3º, CP) PRATICADO POR TERCEIRO NÃO BENEFICIÁRIO DA FRAUDE. CRIME INSTANTÂNEO DE EFEITOS PERMANENTES. ENTENDIMENTO JURISPRUDENCIAL DO STF SUPERVENIENTE À CONDENAÇÃO. PRESCRIÇÃO DO IUS PUNIENDI RECONHECIDA. INEXISTÊNCIA DE ERRO JUDICIÁRIO. IMPOSSIBILIDADE DE CONCESSÃO DE INDENIZAÇÃO (ART. 630, CPP). DEVOLUÇÃO DOS VALORES PAGOS A TÍTULO DE PENA DE MULTA: POSSIBILIDADE.

(...) 5. Não há como se reconhecer a existência de erro judiciário capaz de gerar indenização por injusta condenação (art. 630, CPP) se a sentença condenatória fundou-se em interpretação jurisprudencial controversa à época da condenação e que somente veio a se firmar após a confirmação da sentença pelo Tribunal de segundo grau.

(...) (STJ. RvCr 3.900/SP, Rel. Ministro REYNALDO SOARES DA FONSECA, TERCEIRA SEÇÃO, julgado em 13/12/2017, DJe 15/12/2017)"

É dizer, se o Estado, que possui responsabilidade objetiva (art. 37, §6º da CF), não deve ser responsabilizado por sentença judicial posteriormente invalidada quando esta estiver fundada em interpretação jurisprudencial válida, ainda que controversa à época de sua edição, a fortiori,  não deve ser responsabilizado o advogado, cuja responsabilidade é subjetiva, quando  seu parecer estiver arrimado interpretação jurisprudencial válida, ainda que controversa à época de sua edição, notadamente quando a Constituição Federal atribui à sua atividade a mesma indispensabilidade, relevância e inviolabilidade funcional (art. 133 da CF) atribuída ao Judiciário.

Destacamos, a este propósito, que, quão nefasto é à Democracia tolher o Poder Judiciário de autonomia interpretativa, mediante ameaça de penalização por divergências de entendimentos jurídicos, assim também o é impingir a mesma ameaça desmedida aos advogados pareceristas.

Com efeito, enquanto na primeira situação (Judiciário) estar-se-ia a ameaçar a eficiência da jurisdicional, na outra, estar-se-ia a contribuir para uma desastrosa estagnação da atividade estatal, na esteira do que bem alertou o Ministro César Asfor rocha, em voto proferido nos autos da APn 480/MG, ao admoestar sobre o risco da criminalização exarcebada de agentes estatais,  in verbis:

“Ouso divergir da orientação das Turmas componentes da Terceira Seção, por entender que as infindáveis e naturais dúvidas que gravitam em torno da legalidade dos atos praticados em todos os momentos pelas administrações em geral, ensejando erros e acertos por parte dos agentes públicos, inclusive pelos mais habilitados juridicamente, impõem uma interpretação mais cuidadosa e restrita das normas punitivas, sobretudo as do âmbito criminal.

Ademais o engessamento da atividade administrativa mediante ameaças de condenações criminais é tão pernicioso quanto a sua liberação total, descontrolada, sendo necessário encontrar um ponto de equilíbrio na interpretação das normas jurídicas destinadas a punir os agentes públicos, os quais têm a obrigação de impedir uma desastrosa estagnação da atividade estatal".

Desta feita, o pré-requisito de “erro grosseiro”, ainda que menos criterioso que o exame do dolo, representa o mínimo que se há de conferir de segurança jurídica à atuação advogados no exercício do mister público de emissão de pareceres, imprescindíveis à conclusão dos mais diversos procedimentos administrativos necessários à efetivação de políticas públicas essenciais à população.


4. DAS “INOVAÇÕES”  TRAZIDAS PELA LEI FEDERAL Nº 13.655, DE 25 DE ABRIL DE 2018  E SUA REPERCUSSÃO NA TIPIFICAÇÃO DE ATOS DE ADVOGADOS PARECERISTAS COMO IMPROBIDADE ADMINSTRATIVA

Recentemente, o legislador ao editar a Lei Federal de 13.655, de 25 de abril de 2018, fora explícito e enfático ao prestigiar a aplicação do princípio da segurança jurídica no ordenamento pátrio[12], o que se anuncia desde a sua ementa, in litteris: “Inclui no Decreto-Lei nº 4.657, de 4 de setembro de 1942 (Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro), disposições sobre segurança jurídica e eficiência na criação e na aplicação do direito público .

Quanto à projeção e aplicação do princípio da segurança jurídica na atividade de agentes públicos (em que se incluem os advogados pareceristas), destacamos os seguintes dispositivos incluídos pela Lei Federal nº 13.655/2018 ao Decreto-Lei nº 4.657, de 4 de setembro de 1942 (Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro):

“Art. 22.  Na interpretação de normas sobre gestão pública, serão considerados os obstáculos e as dificuldades reais do gestor e as exigências das políticas públicas a seu cargo, sem prejuízo dos direitos dos administrados.

§ 1º Em decisão sobre regularidade de conduta ou validade de ato, contrato, ajuste, processo ou norma administrativa, serão consideradas as circunstâncias práticas que houverem imposto, limitado ou condicionado a ação do agente.

 § 2º Na aplicação de sanções, serão consideradas a natureza e a gravidade da infração cometida, os danos que dela provierem para a administração pública, as circunstâncias agravantes ou atenuantes e os antecedentes do agente.

§ 3º As sanções aplicadas ao agente serão levadas em conta na dosimetria das demais sanções de mesma natureza e relativas ao mesmo fato.”

“Art. 23. A decisão administrativa, controladora ou judicial que estabelecer interpretação ou orientação nova sobre norma de conteúdo indeterminado, impondo novo dever ou novo condicionamento de direito, deverá prever regime de transição quando indispensável para que o novo dever ou condicionamento de direito seja cumprido de modo proporcional, equânime e eficiente e sem prejuízo aos interesses gerais.

Parágrafo único.  (VETADO).”

“Art. 24.  A revisão, nas esferas administrativa, controladora ou judicial, quanto à validade de ato, contrato, ajuste, processo ou norma administrativa cuja produção já se houver completado levará em conta as orientações gerais da época, sendo vedado que, com base em mudança posterior de orientação geral, se declarem inválidas situações plenamente constituídas.

Parágrafo único.  Consideram-se orientações gerais as interpretações e especificações contidas em atos públicos de caráter geral ou em jurisprudência judicial ou administrativa majoritária, e ainda as adotadas por prática administrativa reiterada e de amplo conhecimento público.”

 “Art. 28.  O agente público responderá pessoalmente por suas decisões ou opiniões técnicas em caso de dolo ou erro grosseiro.

§ 1º  (VETADO).

§ 2º  (VETADO).

§ 3º  (VETADO).”

 “Art. 30.  As autoridades públicas devem atuar para aumentar a segurança jurídica na aplicação das normas, inclusive por meio de regulamentos, súmulas administrativas e respostas a consultas.

Parágrafo único.  Os instrumentos previstos no caput deste artigo terão caráter vinculante em relação ao órgão ou entidade a que se destinam, até ulterior revisão.”

Relevante entendemos a transcrição de excerto do parecer da Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania da Câmara dos Deputados quanto ao Projeto de Lei nº 7.448, de 2017, que resultara na Lei Federal de 13.655/2018, ao justificar a inserção de normas de direito público no Decreto-Lei nº 4.657, de 4 de setembro de 1942, antes nomeado como “Lei de Introdução ao Código Civil”, mas que hoje intitula-se como Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro:

"(...) Assim, pode parecer estranho que regras aparentemente relacionadas ao direito público venham a ser introduzidas neste decreto-lei, mas, em verdade, cuida-se de introduzir novas balizas interpretativas para a aplicação de todo o direito. A exemplo, eis o que afirmam os professores Carlos Ari Sundfeld e Bruno Meyerhof Salama sobre o artigo 20 da proposta:

O projeto de lei sugere um art. 20 para a LICC. Ele trataria das decisões judiciais, administrativas e controladoras (dos Tribunais de Contas, hoje ativos e interventivos) que se baseiem em “valores jurídicos abstratos” (que podem ser entendidos como princípios). É fácil entender a importância de uma norma desse tipo. Como hoje se acredita cada vez mais que os princípios podem ter força normativa – não só nas omissões legais, mas em qualquer caso – o mínimo que se pode exigir é que juízes e controladores (assim como os administradores) pensem como políticos. Por isso, a proposta é que eles tenham de ponderar sobre “as consequências práticas da decisão” e considerar as “possíveis alternativas” (art. 20, caput e parágrafo único).

Desse modo, presente também ao projeto de lei a constitucionalidade material e a juridicidade, pois a proposta encontra-se de acordo com os princípios gerais e racionalidade do atual sistema jurídico.

(...)

Preza-se pela implementação de um controle prudente e responsável, que averigue as peculiaridades e as circunstâncias fáticas a que estão submetidos os gestores públicos, considerando, assim, a complexidade que envolve o desempenho diário da função administrativa.

No tocante aos arts. 23 e 24 do projeto, verificamos neles a clara preocupação com o respeito ao princípio da segurança jurídica. Este, um dos mais relevantes princípios do Direito, é o garantidor da estabilidade das relações jurídicas, conferindo aos cidadãos a confiança de que, no caso de novas interpretações ou orientações sobre determinada norma que interfiram na validade de atos ou contratos, sejam preservadas situações já devidamente constituídas no tempo e garantida uma transição razoável quando inevitável a exigência do novo dever ou do novo condicionamento de direito.

Nas palavras do professor Celso Antônio Bandeira de Mello:

Bem por isto, o Direito, conquanto seja, como tudo o mais, uma constante mutação, para ajustar-se a novas realidades e para melhor satisfazer interesses públicos, manifesta e sempre manifestou, em épocas de normalidade, um compreensível empenho em efetuar suas inovações causando o menos trauma possível, a menor comoção, às relações jurídicas passadas que se perlongaram no tempo ou que dependem da superveniência de eventos futuros previstos.

É nesse sentido, portanto, em respeito à segurança jurídica e aos próprios princípios da lealdade e da boa-fé, que se trouxe no projeto a necessidade de sempre se estabelecer uma transição em caso de mudança de interpretação, mesmo que não haja regime previamente estabelecido, permitindo-se que, a partir do diálogo entre o interessado e a autoridade prolatora da decisão definidora de nova orientação, seja negociada a referida transição, com a celebração de um compromisso para o ajustamento.(...)”

O art. 28 do projeto, por sua vez, positiva tema bastante relevante, relacionado à responsabilidade de agentes públicos por decisões e opiniões técnicas em caso de dolo ou erro grosseiro.

De fato, com a oscilação própria que é do direito, visto que em constante construção e reconstrução, é imperativo salvaguardar profissionais que emitem decisões e opiniões técnicas baseadas em jurisprudência, doutrina, orientação geral ou interpretação razoável, devendo a responsabilização pessoal ocorrer apenas em caso de erro grosseiro ou dolo. Nesse sentido é a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, como bem pontuou o Parecer (SF) nº 22, de 2017, da Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania do Senado Federal.

Registre-se a tempestividade da inclusão, durante a tramitação do projeto perante o Senado Federal, do § 3º ao art. 28, para prever que, em caso de reconhecimento, por decisão transitada em julgado, da ocorrência de dolo ou erro grosseiro por parte do agente público, o erário seja ressarcido dos recursos públicos gastos com a defesa do agente".

Examinando acuradamente os dispositivos sancionados e esclarecimentos legislativos supra transcritos, em cotejo com a interpretação do Superior Tribunal de Justiça já referida no Capítulo 3 deste artigo, observamos que:

-  No caput do art. 28 do Decreto-Lei nº 4.657, de 4 de setembro de 1942 (Lei de Introdução às normas do Direito Brasileiro) introduzido pela Lei Federal de 13.655, de 25 de abril de 2018 apenas veio-se a estender aos demais agentes públicos aquilo que já há muito vinha sendo reconhecido pelo STJ como exigência mínima à responsabilização do advogado parecerista, que é a presença do dolo ou erro grosseiro, este último em substituição ao conceito mais elástico de “culpa grave” que  prevalecia até então na jurisprudência em relação à generalidade dos agentes públicos;

- Avançou a nova Lei Federal de 13.655, de 25 de abril de 2018, no art. 24, caput e parágrafo único, ao criar um novo conceito, inerente ao princípio da segurança jurídica que é o de “orientações gerais da época”, assim consideradas as “interpretações e especificações contidas em atos públicos de caráter geral ou em jurisprudência judicial ou administrativa majoritária, e ainda as adotadas por prática administrativa reiterada e de amplo conhecimento público”(destaque nosso). A incorporação da praxe administrativa como parâmetro interpretativo de vetor de conduta do agente público é uma inovação em atenção às peculiaridades que envolvem a realidade do agente público, incluindo a do advogado parecerista, quando em busca do modo mais eficaz e idôneo de satisfação do interesse público;

-   Nesse sentido, também de grande valia fora a redação do § 1º do art. 22 ao acrescentar que “Em decisão sobre regularidade de conduta ou validade de ato, contrato, ajuste, processo ou norma administrativa, serão consideradas as circunstâncias práticas que houverem imposto, limitado ou condicionado a ação do agente”, por representar a instrumentalização prática dos princípios da razoabilidade e proporcionalidade, no tocante à adequação da previsão normativa em tese às peculiaridades do caso concreto, de modo paralelo à respectiva subsunção objetiva.

- Não obstante, entendemos que se deixou de avançar na busca pela segurança jurídica dos agentes públicos, incluídos os advogados pareceristas, em face ao veto presidencial § 1º do art. 28 do Decreto-Lei nº 4.657, de 4 de setembro de 1942, acrescido pelo art. 1º do Projeto de Lei nº 7.448, de 2017.

O dispositivo vetado previa:

"Art. 28 (...)

§ 1º Não se considera erro grosseiro a decisão ou opinião baseada em jurisprudência ou doutrina, ainda que não pacificadas, em orientação geral ou, ainda, em interpretação razoável, mesmo que não venha a ser posteriormente aceita por órgãos de controle ou judiciais".

O § 1º vetado era de sobremaneira importância por positivar entendimento já sufragado pelo Superior Tribunal de Justiça, já referido neste artigo, no sentido de que “Ao adotar tese plausível, mesmo minoritária, desde que de forma fundamentada, o parecerista está albergado pela inviolabilidade de seus atos, o que garante o legítimo exercício da função, nos termos do art. 2º, § 3º, da Lei n. 8.906/94(STJ. REsp 1454640/ES, Rel. Ministro BENEDITO GONÇALVES, PRIMEIRA TURMA, julgado em 15/10/2015, DJe 05/11/2015).

É dizer, além de estabilizar o entendimento já sedimentado pelo STJ, enquanto intérprete-mor da legislação infraconstitucional, estaria a estender aos demais agentes públicos a segurança jurídica inerente à salvaguarda de sua conduta, quando amparada em entendimento válido e motivado, ainda que não pacificado.

Por tal razão, cremos que andou mal o Exmo. Presidente da República ao vetar o dispositivo sob as seguintes razões:

"A busca pela pacificação de entendimentos é essencial para a segurança jurídica. O dispositivo proposto admite a desconsideração de responsabilidade do agente público por decisão ou opinião baseada em interpretação jurisprudencial ou doutrinária não pacificada ou mesmo minoritária. Deste modo, a propositura atribui discricionariedade ao administrado em agir com base em sua própria convicção, o que se traduz em insegurança jurídica."

Ocorre que não tratava o texto de atribuir aos agentes públicos discricionariedade de agir “com base em sua própria convicção”, mas apenas de não penalizar o agente quando o tenha agido em momento em que jurisprudência ou doutrina ainda não estavam pacificadas em dado sentido amparando-se em alguma das correntes defendidas ou em interpretação razoável.

É dizer, tratar-se-ia de situações de interpretação de condutas quando ainda não estabilizado o entendimento sobretudo jurisprudencial sobre o tema, porquanto, após pacificado e uniformizado este, nos termos do art. 926 do CPC[13], e dando-se ao mesmo ampla publicidade, na forma do § 5º[14] do art. 927 também do CPC, não há como deixar-se de interpretar-se como erro grosseiro a conduta do advogado parecerista, como de qualquer agente público, que tenha laborado em sua desconformidade.

Ao reverso, enquanto nem os próprios tribunais houverem obtido consenso quanto a determinada temática, a conduta do advogado parecerista, amparada em quaisquer dos entendimentos defendidos na doutrina e jurisprudência, embora possa merecer crítica, não deve ser justificadora de qualquer reprimenda, na esteira do que já sufragado pelo STJ.  

Ao nosso ver, mesmo em face ao veto presidencial ao § 1º do art. 28 do Decreto-Lei nº 4.657, de 4 de setembro de 1942, acrescido pelo art. 1º do Projeto de Lei nº 7.448, de 2017, permanece válido o entendimento do STJ quanto à não responsabilização de advogado parecerista albergado em entendimento jurisprudencial, ainda que minoritário (o que pressupõe a não pacificação).


5. CONCLUSÕES

Da análise dos dispositivos da Lei Federal de 13.655, de 25 de abril de 2018, em cotejo com a interpretação do Superior Tribunal de Justiça acerca da tipificação de atos de advogados pareceristas como improbidade, concluímos que:

a) O caput do art. 28 do Decreto-Lei nº 4.657, de 4 de setembro de 1942 (Lei de Introdução às normas do Direito Brasileiro) introduzido pela Lei Federal de 13.655, de 25 de abril de 2018 a Lei Federal de 13.655, de 25 de abril de 2018, positivara exigência mínima  (indistintamente quanto às hipóteses dos artigos 9º, 10 e 11 da Lei nº 8.429/92) à responsabilização do agente público concernente na presença do dolo ou erro grosseiro, este último em substituição ao conceito mais elástico de “culpa grave” que vinha prevalecendo na jurisprudência do STJ quanto à responsabilização por improbidade administrativa da generalidade dos agentes públicos;

b) A redação do caput do art. 28 da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (LINDB), introduzido pela Lei Federal de 13.655, de 25 de abril de 2018 apenas veio a estender aos demais agentes públicos entendimento que há muito vinha sendo sufragado pelo STJ em relação especificamente aos advogados pareceristas no sentido que estes apenas podem ser responsabilizados quando demonstrados indícios mínimos de que o parecer tenha sido redigido com erro grosseiro ou má-fé;   

c) Ao nosso ver, mesmo em face ao veto presidencial ao § 1º do art. 28 do Decreto-Lei nº 4.657, de 4 de setembro de 1942, acrescido pelo art. 1º do Projeto de Lei nº 7.448, de 2017, permanece válido o entendimento do STJ quanto à não ocorrência de erro grosseiro quando estiver o advogado parecerista albergado em entendimento jurisprudencial, ainda que minoritário (o que pressupõe a não pacificação);

d) A par do novo balizamento introduzido pela Lei Federal de 13.655, de 25 de abril de 2018, entendemos que o único entendimento consentâneo com o conceito constitucional de improbidade administrativa (§6º do art. 37 da CF), a qual, por ontologicamente equivaler ao conceito de corrupção, como já discorremos neste artigo, não pode prescindir da presença da vilania do intuito de seu agente, é aquele segundo o qual, para a tipificação de ato de advogado parecerista como improbidade administrativa, é necessário que “desde o nascedouro a má-fé tenha sido o elemento subjetivo condutor da realização do parecer” (REsp 1183504/DF, Rel. Ministro HUMBERTO MARTINS, SEGUNDA TURMA, julgado em 18/05/2010; EDcl no AgRg no REsp 1408523/PR, Rel. Ministro HERMAN BENJAMIN, SEGUNDA TURMA, julgado em 14/06/2016), o que equivale à acepção de “conduta antecedente dolosa” como requisito para caracterização de ato de improbidade culposo, contida no lições de André Jackson de Holanda Maurício Júnior Ronny Charles L. de Torres, em obra referida no Capítulo 2 (“Improbidade Administrativa”)[15].


Notas

[1] Conceito adotado por Walber Agra, in: AGRA, Walber de Moura. Comentários sobre a lei de improbidade administrativa. Belo Horizonte: Fórum. 2017. 3 MB. ISBN 978-85-450-0247-5. Posição 650.

[2] AGRA, Walber de Moura. Comentários sobre a lei de improbidade administrativa. Belo Horizonte: Fórum. 2017. 3 MB. ISBN 978-85-450-0247-5

[3] Art. 37 da CF: “...suspensão dos direitos políticos, a perda da função pública, a indisponibilidade dos bens e o ressarcimento ao erário, na forma e gradação previstas em lei, sem prejuízo da ação penal cabível”

[4] Ob. cit. posição 3190

[5] SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 29ª Ed. São Paulo:Malheiros, 2007.

[6] Direito Administrativo. I. Holanda Jr., André. II. Torres, Ronny Charles Lopes de. III. Título. Improbidade administrativa / coordenador Leonardo de Medeiros Garcia - 2. ed. rev., ampl. e atual. - Salvador: Juspodivm, 2016. 704 p. (Leis Especiais para Concursos, v.23). págs. 143-145.

[7] Justen Filho, Marçal Curso de direito administrativo/ Marçal Justen Filho, -- 11. Ed. Ver, Atual. E ampl. – São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2015. P. 1125-1126

[8] Direito Administrativo. I. Holanda Jr., André. II. Torres, Ronny Charles Lopes de. III. Título. Improbidade administrativa / coordenador Leonardo de Medeiros Garcia - 2. ed. rev., ampl. e atual. - Salvador: Juspodivm, 2016. 704 p. (Leis Especiais para Concursos, v.23). págs. 144-145.

[9] Neste pertinente, lembramos que grande parte das decisões mais relevantes à República editadas pelo Supremo Tribunal Federal têm resultado da divergência de votos, não raro por diferença de apenas “um voto” (como, por exemplo, o julgamento do Pleno, no ARE 964.246, sob o rito da repercussão geral, sobre prisão antes do trânsito em julgado e o RE 848.826, em que se definira, com repercussão geral, a competência exclusiva das Câmaras Municipais para julgamento das contas do chefe do Poder Executivo como ordenador de despesas), sempre oriundos de ponderações diametralmente antagônicas, porém igualmente fundadas em respeitáveis fundamentos. 

[10] AGRA, Walber de Moura. Comentários sobre a lei de improbidade administrativa. Belo Horizonte: Fórum. 2017. 3 MB. ISBN 978-85-450-0247-5. posição 3190

[11] Improbidade Administrativa. 8ª Ed., São Paulo, Saraiva, 2014 - fl. 587/591.

[12] O princípio da segurança jurídica já encontrava-se positivados em outros dispositivos no ordenamento jurídico pátrio, como, p.ex.: art. 2º, caput, da Lei Federal nº 9.784, de 29 de janeiro de 1999, caput; art. 926 e 927, §§2º, 3º e 4º do novo CPC.

[13] Art. 926.  Os tribunais devem uniformizar sua jurisprudência e mantê-la estável, íntegra e coerente.

[14] § 5o Os tribunais darão publicidade a seus precedentes, organizando-os por questão jurídica decidida e divulgando-os, preferencialmente, na rede mundial de computadores.

[15] Direito Administrativo. I. Holanda Jr., André. II. Torres, Ronny Charles Lopes de. III. Título. Improbidade administrativa / coordenador Leonardo de Medeiros Garcia - 2. ed. rev., ampl. e atual. - Salvador: Juspodivm, 2016. 704 p. (Leis Especiais para Concursos, v.23). págs. 144-145.


Autor

  • Leonardo Saraiva

    Advogado e Consultor jurídico especialista em Direito Administrativo. Conselheiro Estadual da OAB/PE. Membro da Comissão de Direito Administrativo da OAB/PE. Professor de pós-graduação. Vice-presidente do Instituto de Infraestrutura e Energia -INFRAE. Pós-graduado em Direito Administrativo pela Universidade Federal de Pernambuco - UFPE. Autor de livros e artigos. Sócio administrador do escritório AZEVEDO SARAIVA ADVOGADOS ASSOCIADOS.

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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SARAIVA, Leonardo. Limites à tipificação de atos de advogados pareceristas como improbidade administrativa, à luz das inovações trazidas pela Lei 13.655/2018. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 23, n. 5459, 12 jun. 2018. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/66319. Acesso em: 29 mar. 2024.