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O direito de propriedade e o advento da função social

O direito de propriedade e o advento da função social

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Antes se limitava a propriedade de alguém pelas fronteiras dos imóveis vizinhos; hoje há um vizinho abstrato e soberano chamado coletividade.

Os direitos de propriedade podem recair sobre praticamente todos os bens, imóveis ou móveis, e até mesmo sobre animais. Há também propriedade sobre bens incorpóreos, como a propriedade intelectual. Será tratada, neste trabalho, a propriedade dos bens imóveis, sem considerar a equiparação que o Código Civil faz de aeronaves e navios. O foco nos bens imóveis se dá pelo entendimento doutrinário da função social, que é usualmente analisada quando dos estudos da propriedade imobiliária. Não se olvida que referido princípio possa ser aplicado a bens móveis, mas percebe-se que também o ordenamento jurídico costuma trazê-lo em diplomas que versam sobre bens imóveis, como é o caso dos planos diretores dos municípios, que adotam a função social como parâmetro para a organização do espaço urbano.

Deste modo, neste capítulo será apresentada a evolução da propriedade, desde fenômeno natural, ainda indissociável à posse, passando pela consolidação como direito individual até se tornar uma instituição da sociedade, ponto que será defendida com mais precisão no quarto capítulo. Traçada a linha histórica da propriedade, será exposto o surgimento da função social associada a ela, considerando o contexto histórico nacional e internacional, bem como os marcos legislativos que explicam o nascimento de referido princípio, como a constituições de Weimar, na Alemanha, e a brasileira de 1934.


1. O Surgimento da Propriedade

Não há um marco histórico documentado que demonstre o surgimento da propriedade, mas é possível sustentar que a primeira noção nasceu com o fim do período nômade do ser humano, quando ele deixa de vagar pelas savanas africanas e passa a se fixar em determinados locais. Ainda assim, não se pode defender que a propriedade como entendemos hoje tenha surgido na pré-história. A propriedade surge junto com a civilização. Mais do que isso, a civilização surge graças à propriedade. Os espaços físicos dominados por tribos e clãs foram as primeiras fronteiras das civilizações surgidas no período conhecido como crescente fértil. A noção de propriedade nasce pelas condições geográficas e climáticas desses locais. Eram regiões raras, nas margens de rios, com clima estável, que permitiam o plantio do trigo e o abastecimento de água. Isso tornou imperativo o controle desses locais, a proteção contra invasores, tornando lugares antes da natureza selvagem em propriedade humana.

O autor português e professor de Coimbra, José Marnoco e Sousa (1910, p. 354-356) destacou as principais teorias do surgimento da propriedade, consubstanciados em sistemas, sendo eles o sistema de ocupação, de convenção, da lei, do direito natural, do trabalho e da necessidade, detalhados a seguir.

O sistema de ocupação, conforme expôs o autor lusitano, foi adotado pelos jurisconsultos romanos, que remontavam pela imaginação aos tempos primitivos, descrevendo os primeiros homens apoderando-se das coisas que não tinham dono. Quanto à propriedade imobiliária, esta teoria não levava em conta o animus da ocupação, vez que, muitas vezes, era apenas temporária, sem a intenção de longa permanência.

Pelo sistema do direito natural, a propriedade deriva da própria natureza humana, visto ela ser uma condição necessária para a existência e desenvolvimento do homem. O direito de viver implicaria o direito de procurar os meios para isso. Hegel (1997, tradução de Orlando Vitorino, p. 44) disse que a pessoa tem a sua existência externa na propriedade, sendo domínio da liberdade e condição para existência do homem enquanto ideia.

No sistema do trabalho, o homem, cultivando a terra e adaptando as coisas externas à satisfação das suas necessidades, imprime aos objetos o carimbo da sua personalidade, fazendo-os assim sair da comunidade primitiva, aberta aos esforços de todos. Em virtude desta transformação, o homem torna-se um segundo criador dos objetos, adquirindo o direito a considerá-los propriedade sua.

Esta teoria foi primeiramente apresentada por Locke (2002, p.38), que considerava que a Terra e todos os seus frutos são propriedade comum a todos os homens e cada qual tem uma propriedade particular em sua própria pessoa; a esta ninguém teria qualquer direito senão ele mesmo. O trabalho de seus braços e a obra de suas mãos pode-se afirmar, aduziu o autor escocês, são propriamente dele. Seja o que for que ele retire da natureza no estado em que lhe forneceu e no qual o deixou, continua Locke, mistura-se e se superpõe ao próprio trabalho, acrescentando-lhe algo que pertence ao homem e, por isso mesmo, torna-se propriedade dele.

O Sistema da necessidade sustenta que a propriedade foi a consequência das exigências da produção e da circulação da riqueza, visto que, sem ela, não se poderia realizar estes fenômenos, tornando-se impossível todo o progresso econômico e social. Este sistema também é conhecido como natural econômico.

No Sistema da conquista, a propriedade é o resultado do merecimento bélico. A tribo conquistadora reserva-se para si a maior e a melhor parte do território. Assim, o que antes era comum, ou nullius constituo, ainda segundo Marco e Sousa, torna-se propriedade particular da tribo dominante. Entre os conquistadores e conquistados, estabelece-se como poderosa linha divisória o conceito completamente novo do nosso e não vosso. Deste modo fez aparição na vida social a primeira forma da propriedade, como pura negação, como exclusão dos dominados dos direitos de propriedade dos dominadores. Com a posterior divisão do território conquistado entre os vencedores, adquire o novo direito de propriedade o seu ulterior aperfeiçoamento. Converte-se em propriedade particular pessoal, reconhecendo e sancionando o Estado este direito pessoal e declarando-o excelso e sagrado (MARNOCO, 1910, p. 356).

Em todas as teorias apresentadas, percebe-se a presença de um motivo comum: a escassez. Se locais como os descritos acima fossem abundantes e de fácil localização, não haveria motivo para cercar e dominar, o que seria um trabalho irracional. Mas, referidos locais não são tão abundantes, ainda mais na região das primeiras civilizações. Diante dessa imposição natural, a propriedade imobiliária torna-se meio de administrar racionalmente ambientes escassos que permitam o desenvolvimento de uma comunidade.

Não à toa, os principais conflitos entre povos quase sempre foram originados pela disputa de terras. Até as grandes guerras modernas tiveram na disputa por regiões o cerne dos conflitos. A Primeira Guerra Mundial originou-se com a disputa por regiões nos Bálcãs, enquanto a Segunda, pelo desejo alemão de recuperar a importante região portuária de Gdańsk, o que levou à invasão da Polônia. Até mesmo a grande guerra brasileira, a contra o Paraguai, foi resultado do anseio desse país por uma saída para o mar. Parafraseando Marx, a propriedade é o motor da história. Uma vez constatada a evolução e importância factual da propriedade imobiliária, cabe agora fazer um breve histórico da sua consolidação enquanto direito.

1.2. O Direito de Propriedade

A propriedade, de início, era vista como algo ligado aos clãs, tribos, ou famílias. Não era um direito individual, como entendemos hoje. Essa visão perdurou até mesmo no Império Romano. Sobre o direito de propriedade nesse período, João Luís Nogueira Matias e Afonso de Paula Pinheiro Rocha (2006, p. 05) apontam que a ordem jurídica e econômica romana girava em torno da propriedade. Entretanto, não é prevista definição precisa do instituto, sendo a sua percepção intuída. Há a previsão do direito de gozar e dispor da coisa, que são os principais atributos do dominium. Para alguns autores, a sua origem pode decorrer do enfraquecimento e divisão do mancipium, poder unitário, amplo, que gozava o pater famílias, englobando pessoas e coisas, que se desdobrou em diversas formas de poder, como o manus (sobre a mulher), patria potestas (sobre os filhos), dominica potestas (sobre os escravos) e dominium (sobre as coisas).

Em sua feição inicial, a propriedade (proprietas, dominium) era prevista de forma absoluta, consistindo no direito de usar (jus utendi), gozar (jus fruendi) e abusar (jus abutendi) das coisas, possibilitando ao proprietário destruir a coisa, caso queira. Possuía caráter personalista, oponível a todos, podendo ser assegurada por ação própria no jus civile, que era a rei vindicatio. Dividia-se em propriedade quiritária, pretoriana (in bonis), peregrina (ex jure gentium) e provincial. A mais ampla era a quiritária, própria dos romanos. A propriedade peregrina era conferida ao estrangeiro, não há dominium ex jure quiritium. A propriedade é garantida pelo direito peregrino local ou por autoridades romanas. Após a promulgação do Edito de Caracala, que conferiu cidadania a quase todos os habitantes do império, desaparece esta forma de dominium. A propriedade provincial era a assegurada sobre terras das províncias romanas, não asseguramdp o domínio pleno, mas apenas os direitos correlatos. É equiparada à propriedade plena (quiritária) nos fins do século III (MATIAS e ROCHA, 2006, p. 06).

Apesar de não ser um direito individual, nos termos que entendemos hoje, alguns autores consideram que no período romano a propriedade tinha, sim, esse caráter, como sustenta Carlos Roberto Gonçalves (2014, p. 170), para qual, no direito romano, a propriedade tinha natureza individualista, passando na Idade Média por uma fase peculiar, com dualidade de sujeitos (o dono e o que explorava economicamente o imóvel, pagando ao primeiro pelo seu uso). Havia todo um sistema hereditário para garantir que o domínio permanecesse numa dada família de tal forma que esta não perdesse o seu poder no contexto do sistema político. Após a Revolução Francesa, a propriedade assumiu feição marcadamente individualista. No século passado, no entanto, foi acentuado o seu caráter social, contribuindo para essa situação as encíclicas Rerum Novarum, do Papa Leão XIII, e Quadragésimo Ano, de Pio XI. O sopro da socialização acabou, com efeito, impregnando o século XX, influenciando a concepção da propriedade e o direito das coisas.

Também nesse sentido, Silvio de Salvo Venosa (2013, p. 158-159) sustenta que se enraizou no espírito romano a propriedade individual e perpétua. A Lei das XII Tábuas projetou a noção jurídica do ius utendi, fruendi et abutendi. Considerava-se o domínio sobre a terra de forma absoluta. Nos primeiros séculos da história romana admitia-se apenas o dominium ex jure quiritium, propriedade adquirida unicamente sob formas determinadas, fora das quais não poderia constituir-se (Petit, 1970, p. 242). Apenas na época clássica o Direito Romano admitiria a existência de uso abusivo do direito de propriedade e sua reprimenda. O Digesto já reconhece direitos de vizinhança, mas o elemento individual ainda é preponderante (VENOSA, 2013, p. 159).

A propriedade grega e romana colocava-se ao lado de duas outras instituições: a religião doméstica e a família, ambas com íntima relação entre si (Coulanges, 1957, v. 1, p. 84). A propriedade privada ligava-se à própria religião e esta, por sua vez, à família, com o culto dos antepassados, os deuses Lares. O lar da família, lugar de culto, tem íntima relação com a propriedade do solo onde se assenta Propriedade e onde habitam também os deuses. Ali se situam o altar, o culto e a propriedade do solo e das coisas que o guarnecem sob o poder do pater. Daí o sentido sagrado que se atribui ao lar, à casa, sentido que sempre permaneceu na civilização ocidental. Os deuses pertenciam somente a uma família, assim como o respectivo lar. Foi, portanto, a religião que garantiu primeiramente a propriedade (VENOSA, 2013, p. 159).

Ante a isso, deve-se ter em mente que a origem do instituto jurídico da propriedade, cientificamente sistematizado, se prendem ao Direito Romano, que o definia como ius utendi, fruendi et abutendi, ou seja, direito de usar, fruir e dispor, em tradução livre. Mística, ligada a rituais religiosos, a propriedade do solo, por exemplo, só podia ser adquirida por cidadãos romanos, e em solo romano. As razões se devem ao culto religioso dos mortos. Cada família cultuava seus próprios deuses, chamados “lares” ou manes. Nada mais eram que seus antepassados. Os romanos não acreditavam em céu. Os mortos continuavam vivendo, mas no mesmo território que haviam ocupado enquanto vivos. Daí a importância das terras familiares, solo sagrado em que se enterravam os ancestrais e se lhes prestava culto. Estando vinculada a esses sentimentos, era natural que só se concebesse a propriedade em solo romano. Com a evolução dos tempos, todavia, a propriedade perdeu seu caráter místico, o que veio a favorecer o expansionismo romano. Passou-se a admiti-la fora dos muros da cidade. Mais adiante, foi estendido o direito a todos os habitantes do Império, independentemente de sua origem (FIUZA, 2016, p. 561).

Superado o período romano, o direito de propriedade ganhou nova roupagem na Idade Média, quando a vida urbana existente naquela civilização fora suprimida pela volta ao campo, onde, em um sistema descentralizado, as grandes propriedades formaram os feudos. Nesse contexto, a propriedade passou a ser privilégio de poucos - os senhores feudais - os quais exploraram ao máximo o imperativo da escassez, submetendo que não tinha terras ao seu poder. Apesar de novo contexto social, a redescoberta do Direito Romano no século XIII fez com que a propriedade ganhasse mais proteção jurídica, adquirindo de vez o status de direito. Nesse período, a propriedade perde o caráter unitário e exclusivista. Com as diferentes culturas bárbaras, modificam-se os conceitos jurídicos. O território passa a ser sinônimo de poder. A ideia de propriedade está ligada à de soberania nacional. Os vassalos serviam ao senhor. Não eram proprietários do solo (VENOSA, 2013, p. 159). O Direito Canônico incute a ideia de que o homem está legitimado a adquirir bens, pois a propriedade privada é garantia de liberdade individual. No entanto, por influência de Santo Agostinho e Santo Tomás de Aquino, ensina-se que a propriedade privada é imanente à própria natureza do homem que, no entanto, deve fazer justo uso dela (CÂMARA, 1981, p. 79).

Com o renascimento urbano e comercial, o direito de propriedade ganha nova abrangência, servindo como base das transações econômicas feitas nos novos centros urbanos. Mais à frente, com ascensão das teorias contratualistas, a propriedade passaria a ser vista como direito natural do homem, anterior ao Estado, cabendo ao ordenamento jurídico protegê-la. John Locke (2006, tradução de Magda Lopes e Marisa Lobo da Costa, p. 44) define a propriedade com um dos três principais direitos naturais, ao lado da vida e da liberdade. A propriedade, na ótica do contratualista inglês, também é o garantidor dos demais direitos naturais, haja vista que a primeira propriedade de todas é o próprio corpo, e que este para existir precisa de espaço, o que só pode ser garantido, materialmente, se houver propriedade privada para abrigá-lo. Por fim, para ter liberdade, é necessário antes existir, direito que só é garantido, pela propriedade privada.

Diante da revelação filosófica da importância da propriedade privada, os códigos civis do período iluminista trataram de positivar o aludido direito. A partir do século XVIII, a escola do direito natural passa a reclamar leis que definam a propriedade. A Revolução Francesa recepciona a ideia romana. O Código de Napoleão, como consequência, traça a concepção individualista do instituto no art. 544, o qual dispõe que a propriedade é o direito de gozar e dispor das coisas do modo mais absoluto, desde que não se faça uso proibido pelas leis ou regulamentos. Esse Código e as ideias da Revolução repercutiram em todos os ordenamentos que se modelaram no Código Civil francês, incluindo-se a grande maioria dos códigos latino-americanos (VENOSA, 2013, p. 159). Nessa nova perspectiva do direito positivado, o titular da pro­priedade adquire, em relação ao bem, um poder interno e outro externo; in­terfere no destino da coisa e impede que terceiros o façam, a não ser que estejam em acordo com seus desígnios (BEVILACQUA, 1958, p. 45).

O abuso praticado pelos senhores feudais, com o poder advindo da propriedade, fez com que a burguesia percebesse a importância desse instituto. Deste modo, a classe revolucionária do iluminismo não quis acabar com a propriedade, mas, sim, garantir que ela fosse igualmente protegida, independente de quem fosse o seu titular, um plebeu ou monarca. Como resultado da Revolução Glorioso de 1689, o Bill of Rights previa como um dos direitos do homem a garantia da propriedade privada. O impacto dessa positivação do referido direito foi tanto, que muitos historiadores atribuem a ela o surgimento do ambiente necessário para a Revolução Industrial ocorrida no século XVIII. O direito de propriedade também está guardado pela Constituição Americana de 1787, constituindo-se um dos pilares daquela civilização. Seguindo em uma linha histórica, a propriedade é consagrada como direito individual na Declaração dos Direitos do Homem de 1867, com reflexos também no Brasil, como será visto a seguir.

1.3. O Direito de Propriedade no Brasil

No período colonial, o Brasil seguia as diretrizes jurídicas imposta pela Coroa Portuguesa. No que diz respeito à propriedade imobiliária, ganha destaca a instituição das sesmarias, sistema de arrendamento que dividiu e distribuiu grandes porções de terras a famílias portuguesas, visando ao povoamento do enorme território da colônia. Sobre esse período, Matias e Rocha (2006, p. 06) destacam que a propriedade era dividida em domínio direto e útil, passando a ter importância as tenências, consistentes no uso e gozo da terra de terceiros, por longos períodos, podendo ser alienado a outros, como eram exemplos o censo e o feudo. Com a independência do Brasil, em 1822, a propriedade veio a ser expressamente protegida pela Constituição Imperial de 1824, em seu artigo 179, o qual tinha a seguinte redação:

Art. 179. A inviolabilidade dos Direitos Civis, e Politicos dos Cidadãos Brazileiros, que tem por base a liberdade, a segurança individual, e a propriedade, é garantida pela Constituição do Imperio, pela maneira seguinte. XXII. E'garantido o Direito de Propriedade em toda a sua plenitude. Se o bem publico legalmente verificado exigir o uso, e emprego da Propriedade do Cidadão, será elle préviamente indemnisado do valor della. A Lei marcará os casos, em que terá logar esta unica excepção, e dará as regras para se determinar a indemnisação.

Percebe-se que a propriedade já era tratada como direito individual, seguindo a vertente jus naturalista, a qual era base para o liberalismo em alta naquele período, tanto na Europa quanto nas colônias americanas. Grande parte da doutrina defende que era dado ao proprietário poder absoluto sobre a propriedade, podendo agir da forma que bem entendesse. Apesar da predominância desse entendimento, percebe-se no artigo acima uma considerável limitação do exercício do direito de propriedae: a vontade do Estado, que poderia, a qualquer momento, intervir e sequestrar a propriedade.

A Constituição de 1891, primeira após o golpe da República, também manteve esse entendimento sobre a propriedade. A constituição republican, em sua Seção II – Declaração de Direitos -, no artigo 72 também garantia, em termos similares, o direito de propriedade, marcado pelo individualismo (FERREIRA, 2007, p. 06). Seguindo referida ideia, ditava o parágrafo 17 do artigo 72:

“O direito de propriedade mantem-se em toda a sua plenitude, salvo a desapropriação por necessidade ou utilidade publica, mediante indenização previa. As minas pertencem aos proprietários do solo, salvas as limitações que forem estabelecidas por lei a bem da exploração deste ramo de indústria”.

Sustentáculo do Império, a propriedade viria a ser tutelada de modo mais preciso na República, com o Código de Civil de 1916, diploma cuja criação tinha sido prevista na Constituição de 1824. Tido como patrimonialista, doutrina-se hoje que o Código Beviláquia dava ao direito de propriedade caráter absoluto. Sobre a propriedade nesse código, Eduardo Junqueira (2008, p. 04) traz à tona que o Código de 1916 reproduziu a ideia do Código Napoleônico, ao considerá-la direito natural e valor em si. No diploma francês, no art. 544, consta que “a propriedade é o direito de gozar e dispor das coisas da maneira mais absoluta”; no código brasileiro, no art. 524, “a lei assegura ao proprietário o direito de usar, gozar e dispor de seus bens, e de reavê-los do poder de quem quer que injustamente os possua”. Mas, se no código francês, resultado do processo revolucionário, foram abolidos todos os direitos senhoriais originários do feudalismo, no código brasileiro, alguns daqueles privilégios de domínio, ligados à enfiteuse e aos foros (art. 674), permaneceram quase que idênticos ao que dispunham as Ordenações Filipinas.

Apesar de a doutrina defender a existência do pleno direito de propriedade nesse período, é possível notar que há a mesma limitação já dita acima, desta vez prevista na Constituição da República de 1891, dando ao Estado o poder de intervir e tomar a propriedade privada, considerando os seus interesses. Além dessa costumeira limitação, também havia a aplicação da teoria do abuso de direito. Apesar de não ser expressamente prevista no Código de 1916, o abuso de direito poderia ser apreendido do art. 160, inciso I, o qual dispunha que: não constituem atos ilícitos: I. Os praticados em legítima defesa ou no exercício regular de um direito reconhecido. A expressão ‘exercício regular’ dar a entender que não se poderia usar de direito de forma não razoável, podendo ser enquadrado nisso o abuso.

Assim, percebe-se que a própria legislação civil já dava limitação ao direito de propriedade, sendo certo que qualquer excesso cometido não estaria tutelado pelo ordenamento jurídico. Num contínuo histórico, o direito de propriedade ganharia nova roupagem no Brasil com a promulgação da Constituição Federal de 1988, quando se estabelece de forma mais sólida o princípio da função social, estudado a seguir.


2. A Função Social da Propriedade

2.1. Histórico

A função social não se aplica apenas ao direito de propriedade, é um princípio que pode reger vários outros institutos jurídicos, como os contratos. Na Constituição Federal de 1988, no entanto, ela se presta quase que exclusivamente a tratar da propriedade. A primeira citação está no inciso XXIII do artigo 5º, quando estabelece que a propriedade atenderá a sua função social, sendo citada novamente nos artigos 170, III, 182, §2º, 185, parágrafo único, e 186, caput, todas tratando da propriedade. Trata-se de uma transição dos poderes proprietários para deveres-poderes proprietários (TEIZEN JR, 2004, p. 132).

A função social da propriedade ou de qualquer outro instituto jurídico é fruto do contexto histórico da virada do século XIX para o XX. Foi um período de revolta em boa parte do Ocidente, onde as mazelas da Revolução Industrial estavam no auge. A pobreza da classe da trabalhadora era vista como algo irreversível sem a intervenção estatal; não se entendia aquele momento como transitório para o progresso, mas definitivo se nada fosse feito de cima para baixo, ou seja, do poder estatal para a sociedade. Nasce nesse período a social democracia, uma tentativa de dar ao Estado obrigações sociais além das clássicas obtidas pelo liberalismo, quais sejam, manter a ordem, garantir o cumprimento dos contratos e dar igualdade perante a lei.

Pode-se ter como origem desse movimento a encíclica católica Rerum Novarum, lançada em 1891 pelo Papa Leão XIII, apesar de a propriedade privada não ser contestada nesse documento, o qual se preocupou mais em instigar o Estado a agir em prol do social. Sobre a origem da função social, Carlos Roberto Gonçalves (2014, p. 170) aduz que o princípio da função social da propriedade tem controvertida origem. Teria sido, segundo alguns, formulado por Augusto Comte e postulado por Léon Duguit, no começo do aludido XIX. Em virtude da influência que a sua obra exerceu nos autores latinos, Duguit é considerado o precursor da ideia de que os direitos só se justificam pela missão social para a qual devem contribuir e, portanto, que o proprietário deve comportar-se e ser considerado, quanto à gestão dos seus bens, como um funcionário.

Para o mencionado autor, citado por Gonçalves (2014, p. 170), a propriedade deixou de ser o direito subjetivo do indivíduo e tende a se tornar a função social do detentor da riqueza mobiliária e imobiliária; a propriedade implica para todo detentor de uma riqueza a obrigação de empregá-la para o crescimento da riqueza social e para a interdependência social. Só o proprietário pode executar uma certa tarefa social. Só ele pode aumentar a riqueza geral utilizando a sua própria; a propriedade não é, de modo algum, um direito intangível e sagrado, mas um direito em contínua mudança que se deve modelar sobre as necessidades sociais às quais deve responder.

Nesse contexto, a propriedade é vista como fator central do sistema liberal, vez que era pelo poder dado ao proprietário que toda a cadeia de submissão da classe trabalhadora se mantinha. Já dito por Marx, no século XIX, a propriedade privada seria a primeira e maior alienação do homem. Assim, a burguesia manteria seu poder graças à proteção dada pelo Estado à propriedade privada. Desse entendimento histórico, nasce o movimento constitucional que buscou dar ao Estado obrigações sociais, ganhando destaque o que formulou a Constituição Alemã de Weimar, 1919. Sobre a influência desse documento no conceito de função social da propriedade, Fabrício Bertini Pasquot Polido (2006, p. 04) aduz que o artigo 153 da Constituição de Weimar primeiro estabeleceu a garantia e os efeitos vinculativos (Bindungseffekte) da propriedade privada, especialmente decorrentes da expressão “a propriedade obriga”(das Eigentum verpflicht).

O modelo ali adotado prevê que a propriedade possa ser objeto de desapropriação por meio de lei, sem eventualmente incluir direito de indenização. Na concepção de Weimar, a propriedade não admite uma abordagem individualista, inviolável ou sacralizada, pois submete o exercício pelo titular ao interesse da coletividade. No Brasil, influenciada por Weimar, a Constituição Federal de 1934 foi a primeira a atrelar expressamente a propriedade a uma função esperada, a qual teria como beneficiário a coletividade. Em seu artigo 113, ponto 17, vinha a seguinte disposição:

“É garantido o direito de propriedade, que não poderá ser exercido contra o interesse social ou coletivo, na forma que a lei determinar. A desapropriação por necessidade ou utilidade pública far-se-á nos termos da lei, mediante prévia e justa indenização. Em caso de perigo iminente, como guerra ou comoção intestina, poderão as autoridades competentes usar da propriedade particular até onde o bem público o exija, ressalvado o direito a indenização ulterior.”

Com o Estado Novo de Getúlio, a propriedade deixou de ser vinculada à função social, haja vista a falta de previsão na Constituição de 1937. No art. 147 da Constituição de 1946, todavia, volta-se a atribuir à propriedade uma obrigação, determinando que “O uso da propriedade será condicionado ao bem-estar social. A lei poderá com observância do disposto no artigo 141, § 16, promover a justa distribuição da propriedade, com igual oportunidade para todos”. O termo função social seria usado pela primeira vez na Constituição de 1967, tendo-o como princípio da ordem econômica, conforme o art. 157, que trazia: “A Ordem econômica tem por fim realizar a justiça social, com base nos seguintes princípios: III – a Função Social da Propriedade”. Em que pese essa previsão anterior, é apenas com a Constituição de 1988 que a função social da propriedade ganha relevância e aplicação. Como já dito acima, ela aparece no inciso XXIII do artigo 5º, quando estabelece que a propriedade atenderá a sua função social, sendo citada novamente nos artigos 170, III, como princípio da ordem econômica, 182, §2º, quando diz que a propriedade urbana cumpre sua função social quando atende às exigências fundamentais de ordenação da cidade expressas no plano diretor, 185, parágrafo único, onde estabelece que compete à União desapropriar por interesse social, para fins de reforma agrária, o imóvel rural que não esteja cumprindo sua função social, mediante prévia e justa indenização (...), 184, parágrafo único, quando diz que a lei garantirá tratamento especial à propriedade produtiva e fixará normas para o cumprimento dos requisitos relativos a sua função social, e 186, caput, que traz os requisitos para o cumprimento da função social da propriedade rural.

Adotando a imposição constitucional, o Código Civil 2002 estabelece normas baseadas na função social da propriedade, proclamando que “o direito de propriedade deve ser exercido em consonância com as suas finalidades econômicas e sociais e de modo que sejam preservados, de conformidade com o estabelecido em lei especial, a flora, a fauna, as belezas naturais, o equilíbrio ecológico e o patrimônio histórico e artístico, bem como evitada a poluição do ar e das águas” (art. 1.228, § 1º); e que “são defesos os atos que não trazem ao proprietário qualquer comodidade, ou utilidade, e sejam animados pela intenção de prejudicar outrem” (§ 2º). Ademais, referido código criou uma nova espécie de desapropriação, determinada pelo Poder Judiciário na hipótese de “o imóvel reivindicado consistir em extensa área, na posse ininterrupta e de boa-fé, por mais de cinco anos, de considerável número de pessoas, e estas nela houverem realizado, em conjunto ou separadamente, obras e serviços considerados pelo juiz de interesse social e econômico relevante” (§ 4º).

Desta forma, a função social é vista atualmente como um dos principais mecanismos da chamada constitucionalização do direito, que inclui sua esfera privada, tendo como objetivo analisar a sociedade na sua historicidade, considerando suas dimensões local e universal, de modo a possibilitar a individualização do papel e do significado da juridicidade no entendimento do fenômeno social (PERLINGIERI, 1999, p. 1). Tem-se que, assim, buscou-se introduzir no Direito Civil diretrizes principiológicas previstas na Constituição, visando a atender aos fins socais determinados pela Carta Magna de 1988.

2.2. O Conceito de Função Social da Propriedade

Apresentados a origem e o histórico da função social da propriedade, é necessário entender o seu conteúdo. Como visto, a função social é tida como princípio, e de natureza constitucional, estando expresso na carga magna. Ademais, também é vista como princípio da ordem econômica (MORAIS, 1999, p. 64). Como tal, acaba sendo guia de interpretação e aplicação do direito. Assim, o direito de propriedade deve ser exercido considerando-se a sua função social. A Constituição Federal de 1988 expressa quando a propriedade cumpre a sua função. Quanto à urbana, o artigo 182, §2º, estabelece que a propriedade urbana cumpre sua função social quando atende às exigências fundamentais de ordenação da cidade expressas no plano diretor. Já a propriedade rural cumpre sua função social, segundo artigo 186, quando atende, simultaneamente, segundo critérios e graus de exigência estabelecidos em lei, aos seguintes requisitos: I - aproveitamento racional e adequado; II - utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio ambiente; III - observância das disposições que regulam as relações de trabalho; IV - exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores.

Seria, assim, a função social uma limitação da propriedade? Gilmar Ferreira Mendes e Paulo Gustavo Gonet Branco (2017, p. 291), em capítulo sobre restrições ao direito de propriedade, reconhecem que este direito está submetido a um intenso processo de relativização, sendo interpretado, fundamentalmente, de acordo com parâmetros fixados pela legislação ordinária. As disposições legais relativas ao conteúdo têm, portanto, inconfundível caráter constitutivo.

Isso não significa, porém, que o legislador possa afastar os limites constitucionalmente estabelecidos. A definição desse conteúdo pelo legislador há de preservar o direito de propriedade na qualidade de garantia institucional. Ademais, continuam os autores, as limitações impostas ou as novas conformações emprestadas ao direito de propriedade hão de observar especialmente o princípio da proporcionalidade, que exige que as restrições legais sejam adequadas, necessárias e proporcionais. Como acentuado pela Corte Constitucional alemã, a faculdade confiada ao legislador de regular o direito de propriedade obriga-o a compatibilizar o espaço de liberdade do indivíduo no âmbito da ordem de propriedade com o interesse da comunidade. Ademais, para Celso Bandeira de Melo (2008, p. 795-796), a função social da propriedade é exceção entre as limitações administrativas, vez que, ao invés de apenas prever abstenções, também determinar ações positivas para os particulares, impondo aos proprietários de imóveis destinações sociais tanto para os bens urbanos quanto para os rurais.

Seguindo esse entendimento, poder-se-ia concluir que a função social da propriedade é uma limitação cujo interessado direto é a comunidade. Mas as limitações corriqueiras tradicionais do referido direito, como de qualquer outro, têm como causa primeira os interesses tutelados de terceiros. É máxima de que o direito de um acaba quando começa o de outrem. Desta forma, pode-se entender que foi dado à comunidade o status de sujeito de direito quando no uso da propriedade privada por particulares. Antes se limitava a propriedade de alguém pelas fronteiras dos imóveis vizinhos, já hoje, há um vizinho abstrato e soberano chamado coletividade.

Sobre esse novo aspecto do direito real, Marco Aurélio Bezerra de Melo (2011, p. 86) sustenta que a função social da propriedade transformou-se em exigência da vida em comunidade, porque da mesma forma que é imperiosa a defesa dos direitos individuais dos titulares da propriedade, é fundamental que se exija do proprietário a observância das potencialidades econômicas e sociais dos bens que deverão ser revertidos em benefício da coletividade. Isso tudo em consonância com a Constituição de 1988 que, como sabido, é de caráter social-programático, onde o Estado estabelece metas de ‘evolução’, visando sempre ao maior grau de justiça social. Desta forma, seus princípios estabelecidos são meios para cumprir esse objetivo, o que engloba a função social da propriedade. Nesse contexto, não se pode observar o aludido preceito apenas como garantia de uso regular da propriedade, a fim de atender suas funções esperadas. Mais que isso, a função social impõe uma ideia de propriedade artificial, baseada no modelo idealizado pelo Estado como justo.

Uma propriedade pode estar cumprindo sua função social histórica de reserva de valor, de bem negociável, de instituição econômica, mas pode não estar atendendo ao que o Estado entende pelo preceito constitucional por ele instituído, haja vista estar inserido nesse objetivo máximo de justiça social e distributiva. Tem-se, assim, que a função social não é tirada, de fato, da sociedade e positivada pelo Estado, mas, sim, determinada por este e imposta àquela. Era de esperar que o Estado observasse os resultados desejados e possíveis da propriedade e, então, os substabelecessem como meta para o exercício generalizado do direito em questão, mas não é esse o conteúdo do que se entende por função social.

 Assim, é possível definir função social como meio de alocar um recurso escasso, a propriedade, conforme as diretrizes estatais que se direcionam a fins sociais guiados pela noção de justiça distributiva.


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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

PARENTE, Max. O direito de propriedade e o advento da função social. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 23, n. 5480, 3 jul. 2018. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/66589. Acesso em: 28 mar. 2024.