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Súmula vinculante: um limite e um convite à vontade de Poder

Súmula vinculante: um limite e um convite à vontade de Poder

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A súmula vinculante funciona como limite ao arbítrio e confere segurança jurídica. Ao mesmo tempo, parece ser interessante convite à vontade de poder, pelo ativismo judicial do STF. Afinal, quem controla o STF?

Sumário: INTRODUÇÃO. 1 – SEPARAÇÃO DOS PODERES E AS SEDUTORAS IMPERTINÊNCIAS DO PODER. 2 – HIPERTROFIA DA FUNÇÃO JURISDICIONAL POR CAUSA DO CONTROLE DIFUSO DE CONSTITUCIONALIDADE. 3 – NATUREZA JURÍDICA DA DECISÃO DO PODER JUDICIÁRIO NO CONTROLE REPRESSIVO DE CONSTITUCIONALIDADE. 4 – A SÚMULA VINCULANTE E SUA NATUREZA JURÍDICA5 – SÚMULA VINCULANTE E RESOLUÇÃO DO SENADO: CRISE NA SEPARAÇÃO DOS PODERES?. CONCLUSÃO. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

INTRODUÇÃO

A súmula vinculante surgiu no sistema brasileiro por força da Emenda Constitucional nº 45/2004. Até então muito havia se discutido sobre a sua natureza jurídica e, principalmente, sobre a sua utilidade. Assim, o Constituinte derivado optou por reformar a Carta Política e introduzir no nosso sistema jurídico a súmula vinculante. Destacamos, por oportuno, que o presente artigo analisará a súmula vinculante sob o seu prisma inovador e contrastante com a realidade anterior, sempre calcado na necessidade de se estudar o novo com olhares novos e não procurando adequar a novidade à realidade anterior, fazendo com que o texto novo seja, senão o mesmo do anterior, algo extremamente parecido, conforme bem advertem Luís Roberto Barroso e José Carlos Barbosa Moreira[2].

Contudo, não deixaremos de lado a inegável advertência de Ortega y Gasset: “Más congruente con los hechos es pensar que no hay ningún progreso seguro, ninguna evolución, sin la amenaza de involución y retroceso. Todo, todo es posible en la historia – lo mismo el progreso triunfal e indefinido que la periódica regresión. Porque la vida, individual o colectiva, personal o histórica, es la única entidad del universo cuya sustancia es peligro.”[3] De sorte que, sempre trataremos dos perigos que rodeiam a evolução que significa a súmula vinculante, pois se é certo que ela se revela uma ferramenta interessante, sobretudo pelo prisma da contenção da voluntariedade arbitrária e do decisionismo fortuito, é igualmente certo que ela também traz consigo a possibilidade de pontencializar esse mesmo perigo combatido; aí o progresso se renderá à ameaça da involução e do retrocesso. Numa frase, a súmula vinculante representa um limite à vontade de poder, mas também é um convite a esse mesmo sentimento.

Prevista no art. 103-A da CF/88, a súmula vinculante recebeu, em dezembro de 2006, a regulamentação legislativa exigida, através da lei nº 11.417/2006, com período de vacatio legis de três meses. Portanto, em pleno vigor a partir de 19 de março de 2007.

Assim, observando a norma constitucional acima referida, vemos que a súmula vinculante poderá ser editada, de ofício ou por provocação, mediante decisão de dois terços dos membros do STF, após reiteradas decisões sobre matéria constitucional, que, a partir de sua publicação na imprensa oficial, terá efeito vinculante em relação aos demais órgãos do Poder Judiciário e à Administração Pública direta e indireta, nas esferas federal, estadual e municipal, bem como proceder à sua revisão ou cancelamento, na forma estabelecida em lei.[4]

Portanto, saber como a súmula vinculante se apresenta constitucionalmente, isto é, se como um enunciado normativo de caráter geral e abstrato, de matéria constitucional, com efeito vinculante apenas em relação à Administração Pública e ao Judiciário; ou se como ato tipicamente jurisdicional dotado de efeito vinculante, mas não erga omnis, é ponto fundamental para um melhor entendimento sobre o tema.

Assim, com a certeza de que este trabalho se presta a provocar o debate, propomos ao leitor uma caminhada reflexiva, no decorrer deste artigo, abordando algumas problemáticas teórico-evolutivas para, ao final, apresentarmos o nosso posicionamento.


1 – SEPARAÇÃO DOS PODERES E AS SEDUTORAS IMPERTINÊNCIAS DO PODER

Não é de agora que a humanidade se questiona sobre o problema do Poder. Na verdade, a sede pelo Poder é inata ao ser vivo. Nietzsche[5], atento a isso, escreveu que “la voluntad de poderio es la forma primitiva de pasión, y todas las otras pasiones son solamente configuraciones de aquélla. (...) Precisamente en cada ser vivo se puede mostrar del modo más claro que hace lo que puede, no para conservarse sino para llegar a ser más...”. A história é fértil em casos de sedução, abuso e luta pelo Poder. Todos querem poder, e quando podem querem mais poder.

Aspecto interessante, destacado por Nietzsche, é o de que o poder ou a vontade de poder se revela na resistência. Noutras palavras, demonstramos o nosso poder ou a vontade de poder quando encontramos um obstáculo. Assim, diante dessa barreira, necessária para desencadear o sentimento de poder, fazemos uso das mais primitivas e instintivas vontades de poder. Dessa relação tensional surgem o prazer e o desprazer. Se vencemos, temos prazer; se perdemos, desprazer. Logo, como vencer dá prazer, é fácil entender por que dominar ou poder seduz!

Montesquieu, evoluindo a idéia aristotélica, pensa a teoria da separação dos poderes calcada numa dinâmica em que os poderes possam tudo, mas sempre e, invariavelmente, sob a real possibilidade de controle pelos outros, como ruptura com o absolutismo e ascensão da liberdade.

A descentralização do poder, portanto, foi o modelo adotado para racionalizar o exercício do poder e tentar minorar as suas seduções. Inquestionavelmente, uma tentativa legitimar o poder sob novo enfoque, descentralizando-o para melhor exercitá-lo.

 Perelman[6], ao discorrer sobre a teoria do Barão, afirma que “é para evitar tais abusos que Montesquieu preconiza, como ideal político, a doutrina da separação dos poderes, não devendo ao poder legislativo ser concedido nem ao poder executivo, que dele poderia aproveitar-se para contrariar seus adversários, nem aos juízes, que, por ocasião dos litígios, poderiam formular regulamentos que favorecessem, por razões muitas vezes inconfessáveis, alguma das partes”.

Montesquieu tinha a consciência de que sua idéia, apesar de possibilitar a legitimação da atuação de cada um dos poderes, não tinha o condão de garantir a justiça da atuação de tais funções e nem muito menos a real igualdade de seus exercícios.

Junto com a separação de poderes surge a hipertrofia funcional que, numa concepção da vontade de poder, revela-se conseqüencial da própria dinâmica da divisão e competição dos poderes. Não há mais um só órgão ou pessoa como centro de poder, há pelo menos três que lutarão entre si, não para se conservarem – como supunha o Barão –, mas para poderem mais (Nietzsche). Numa frase: controlar um ao outro não se revela atitude de conservação, mas de domínio. Assim, enquanto dure esse modelo, sempre haverá um dos poderes que se sobreporá aos demais, revelando-se mais forte ou hipertrofiado em relação aos demais.

Assim, após a ruptura com o Estado absolutista, o parlamento detinha a nobre função de editar leis para a regulamentação da vida social[7], mediante a participação popular, o que lhe conferiu destaque, sobretudo após a Revolução Francesa e a instituição do Estado Liberal. Ao Juiz e ao Executivo apenas competiam cumprir as leis; o primeiro não passava da boca da lei, de sorte que nada podia fazer, senão repetir o que ela determinava – eram controlados pelo Parlamento –, ou no dizer de Perelman[8]: “seres inanimados que não podem moderar-lhe nem a força nem o rigor”; e o segundo apenas deveria cumprir as leis, sobretudo as de cunho negativo (sobre o Executivo, em momento oportuno destacaremos a outra face dessa pseudo-subserviência à lei).

Com isso, imaginava-se garantida a segurança jurídica da liberdade, tão almejada pelo Estado Liberal, especialmente pela burguesia, que necessitava ao máximo da certeza de que o Estado não agiria de forma arbitrária contra sua liberdade. Tal fato é ligado à própria história dos direitos fundamentais de primeira geração[9].

Assim, o ideário da Revolução Francesa acaba sendo assentado na premissa de que o direito seria o conjunto de leis fruto da elaboração do poder legislativo, legítimo representante do povo – verdadeiro espírito da lei –, sobre o qual nenhum outro poder teria a legitimidade de nem sequer interpretá-lo, sob pena de deformar a sua vontade[10]. Deste modo, o juiz e o administrador[11] passaram a exercer um papel mínimo, de pouca ou quase nenhuma relevância social. Operava-se, portanto, a hipertrofia da função legislativa, centro máximo do poder, como negativa direta ao absolutismo e conseqüência da separação de poderes.

Para a magistratura era o período do non liquet. Ao juiz não eram conferidas nem legitimidade e nem competência de decidir senão em virtude da lei, se ele se deparasse com um caso concreto para o qual não existisse lei, só lhe restava um único caminho: o non liquet, que foi criado pela lei de nº 16, de 24 de agosto de 1790, e autorizava ao juiz, em caso de lacuna da lei, a recorrer ao parlamento para que regulasse o caso concreto, com a edição de lei.[12]

Por certo que essa hiper-atuação acabou por violar a própria idéia legitimadora da separação dos poderes, pois o legislativo começava a editar leis para compor litígios e seu funcionamento começava a se revelar ineficiente, sobretudo, diante das numerosas provocações a que davam ensejo os magistrados, fruto, em alguns dos casos, de abuso desse expediente. Assim, uma das conseqüências deste fenômeno foi a desvalorização da lei. Iniciava-se, assim, a corrosão do poder. Aquele que podia mais se mostra enfraquecido ou já enfraquecendo.

Então Napoleão, em seu código civil, modifica o non liquet e institui a sua vedação, de sorte que por força do art. 4, o juiz que se recusasse a julgar o caso concreto sob o pálio de silêncio, obscuridade ou insuficiência da lei, poderia ser punido como culpado por denegação de justiça. Surgia, então, o gérmen da integração do sistema jurídico e o juiz deixava de ser tão-só a boca da lei.

Posteriormente, a atuação do Estado Liberal deu azo a injustiças sociais e provocou uma nova revolução, inaugurando nova era social. Surge a revolução industrial e a busca pelo bem-estar social. O Estado abandona a sua atuação negativa e dá início a uma atuação também positiva, a fim de garantir direitos fundamentais, sobretudo de igualdade. É o momento da hiper-atuação executiva, o Estado precisa agir para prestar serviços públicos de qualidade e invadir a esfera particular para assegurar o equilíbrio social.

Essa atuação, por óbvio continuou subordinada à lei, mas ganhava, por necessidade lógica e demonstração direta da impossibilidade de o legislativo regrar tudo no âmbito social, o poder de agir com certa liberdade em determinada ação, isto é, agia com discricionariedade, escolhendo a conveniência e a oportunidade para esse atuar. O executivo voltava ao centro do poder, sua função novamente se hipertrofiava, mas não como antes.

Nesta senda, o direito administrativo ganhava relevo e passava a ser estudado com mais interesse, conforme revelam suas escolas definidoras. Diogo Figueiredo Moreira Neto, classifica essas escolas em limitatórias, nas quais se incluem Escola francesa ou legalista ou clássica, Escola italiana e Escola dos Serviços Públicos; e em ampliativas, compostas pelas escolas Teleológicas, Fenomenológicas e Integrativas.

Assim, o primeiro grupo, isto é, o das escolas que buscavam definir o direito administrativo de forma limitadora, era ligado diretamente ao Estado Liberal. Inseriam-se nesse grupo a escola francesa ou legalista, que entendia o direito administrativo como sendo aquele voltado ao estudo apenas das leis que cuidavam do Estado; a Escola italiana, que buscava estudar o direito administrativo não necessariamente sob o prisma legal, mas apenas sob o enfoque dos atos do Poder Executivo; e, posteriormente, sob a influência preponderante de Léon Duguit, a Escola dos serviços públicos, em que os franceses começam a estudar o direito administrativo sob um dos seus ângulos mais importantes, especialmente, para a transição de modelo estatal a ser implementada com o Estado de Bem-estar social: o serviço público. Assim, estudavam o conjunto de regras que definiam e regiam os serviços públicos[13].

Devidamente instituído o Estado de Bem-estar social, cuja expressão máxima foi a Constituição de Weimar, o estudo do direito administrativo amplia seus horizontes, justamente no período em que há uma maior atuação do Poder Executivo. Infelizmente, em alguns países, tal atuação descamba para as ditaduras – fruto não só da impertinente sedutora vontade de poder, em que o Executivo domina os demais, mas também da atrofia dos outros poderes, que sucumbem totalmente diante do poder dominante e, para sobreviverem, unem-se ou fundem-se ao organismo vencedor (Nietzsche) –, e, com isso, é banida da realidade social a democracia.

Entretanto, pondo entre parênteses o problema das ditaduras[14], é momento, especialmente no direito administrativo, de se estudar de forma ampla a sua natureza jurídica, surgem então as escolas ampliativas teleológicas, compostas pelas escolas do interesse público, do bem comum e a do interesse coletivo; fenomenológicas, nas quais se inserem a funcional e a subjetiva; e, por fim, a integrativa.

Esta última escola teve como seu principal mentor, no Brasil, o saudoso Hely Lopes Meirelles e tinha como foco de sua atenção conceitual a definição do direito administrativo pela mescla das escolas fenomenológicas e teleológicas, de forma que entendia o direito administrativo como sendo o ramo do direito que regulava não só as atividades das pessoas jurídicas de direito público, diversas da função legislativa e jurisdicional, mas também o ramo que regulava a atuação dessas pessoas na persecução de atividades de interesse público, do bem comum e do interesse da coletividade.

Desta forma, era preciso emprestar dinamismo a esse novo centro de poder, fortalecido pelas necessidades sociais e pelo fracasso dos anteriores. Contudo, o executivo é limitado, ainda assim, pela atuação em conformidade com a lei, pois do contrário estaríamos diante de ato ilegal e, por conseguinte, ilegítimo, pois nesse período a legitimidade estava convertida em legalidade (Pasqualini). Todavia, o parlamento se mostrava anacrônico e ineficiente, incapaz de produzir diplomas legais que possibilitassem uma atuação melhor do executivo.

A solução para esse problema foi dada com a conferência de poderes legislativos aos chefes do executivo, isto é, pelo menos no Brasil, eles poderiam se valer de Decretos-lei, atos institucionais (Ditadura Militar) e, modernamente, de Medidas Provisórias, todos atos do executivo, mas com força de lei (opera-se, com isso, uma mutação do poder – o poder separado adquiria parcela de outro).

Nada obstante, mais uma vez os abusos se revelaram flagrantes, de modo que se inicia novo processo de corrosão e enfraquecimento do centro de poder dominante. O executivo já não mais agia em prol da coletividade, mas começava a regrar interesses particulares e impronunciáveis, violando, por conseguinte a sua própria fonte responsiva de agir, especialmente, porque fundava sua atuação em interesse subjetivo e irracional, portanto.

Com o giro Copérnico vivido pelo constitucionalismo moderno pós-positivista, a supremacia da constituição dá ensejo a controle, pelo judiciário ou por órgão autônomo, da constitucionalidade dos atos legislativos e normativos frente a ela.

Diante dessa nova realidade, até a discricionariedade administrativa, detentora durante muito tempo de impermeável barreira ao controle judicial, passará a ser objeto de sindicabilidade, de sorte que hoje, como adverte Binenbojm, “ (...) da noção de juridicidade administrativa, com a vinculação direta da Administração à Constituição, não mais permite falar, tecnicamente, numa autêntica dicotomia entre atos vinculados e atos discricionários, mas em diferentes graus de vinculação dos atos administrativos à juridicidade. O antigo mérito do ato administrativo sofre, assim, um sensível estreitamento, por decorrência desta incidência direta dos princípios constitucionais.”[15]

Assim, no modelo brasileiro, espelhado no americano, o Judiciário ganha poderes também legislativos (mutação), pois ele pode, no controle concentrado, retirar do sistema jurídico lei ou ato normativo incompatível com a Constituição.

É o que o próprio STF denomina de função ou atuação legislativa negativa. Iniciamos, portanto, o apogeu dos juízes, que agora não só podem decidir os casos concretos, como podem controlar as próprias leis ou atos normativos editados no país para regular os atos da sociedade, superando a concepção clássica fundada no pacto social de Rousseau e na leitura ortodoxa da teoria de Montesquieu[16]. É, sem dúvida, o limiar duma nova hipertrofia funcional: a jurisdicional.

Se é certo que o Judiciário ao exercer o controle das ações ou omissões legislativas e administrativas do próprio Estado, de forma geral e abstrata, em processo objetivo, de forma concentrada, é evolução da própria idéia de separação de poderes. É igualmente correto que a outorga desse mesmo poder à atuação difusa, individual e concreto, em processo subjetivo, foi, no mínimo, terreno nebuloso[17]. Direcionávamos para a era do que Alexandre Pasqualini[18] denomina de olhar invasivo e evasivo dos intérpretes, que cede a todos os apelos e se adapta a qualquer palato, dando ensejo a um decisionismo fortuito e desconcentrado capaz de seqüestrar, para muito além do bem e do mal, a própria razão, em prol de uma sedutora de vontade de poder.

Assim, se o controle concentrado de constitucionalidade conferiu poderes maiores ao judiciário, autorizando-o a revogar (conduzir do mundo jurídico à inexistência) lei ou ato normativo inconstitucional e a definir os limites dessa revogação, o mesmo poder não havia sido outorgado ao judiciário no sistema difuso, individual e concreto e, portanto, no processo subjetivo.

Observamos, portanto, que no decorrer da história os centros gravitacionais de poder vão se deslocando, passando, desde o absolutismo até as democracias modernas, por hipertrofias funcionais, sempre seduzidas e corrompidas pela vontade de Poder. Hoje com a súmula vinculante e com a poda das arestas implementadas pela história e pelo sistema jurídico, especialmente frente ao neoconstitucionalismo[19], o Poder Judiciário parece estar sendo alçado ao centro gravitacional do poder, de modo que essa concentração de poder precisa ser ministrada com doses profiláticas de controle responsivo a fim de se evitar a sedução impertinente do Poder (Nietzsche) e a quebra da separação de poderes (Montesquieu). 


2 – HIPERTROFIA DA FUNÇÃO JURISDICIONAL POR CAUSA DO CONTROLE DIFUSO DE CONSTITUCIONALIDADE

Os juízes, por anos, sempre foram “escravos da lei”, estiveram sempre presos aos seus enunciados, sobretudo, com e após a Revolução Francesa, de sorte que não podia dizer o direito nem além e nem aquém do que determinava a lei. Contudo, com a evolução da sociedade, a “boca da lei” ganhou vida e inteligência e como toda e qualquer criatura, quando se sente poderosa, rebela-se contra o seu criador, porque também quer criar.

A lei, solução genial de outrora, transformou-se, especialmente com advento da 2ª guerra mundial, num problema concreto, pois legitimou a violação ao que há de mais finalístico no direito: a humanidade! A lei, nessa circunstância, retirou do homem o que há de mais especial em sua essência, sua dignidade[20], de modo que os jusnaturalistas, frente à decadência do positivismo, ressurgem com ânimos e forças renovadas. Logo, a lei, expressão lógica e desprovida, até então, de valor axiológico pensada por Kelsen, já não mais seria obedecida cegamente, e sua presunção quase absoluta de legitimidade e de validade acaba por estar abalada[21].

Reformulam-se as ideologias e as exclamações dogmáticas são, pouco a pouco, questionadas e relativizadas (Niilismo), a Constituição, fundamento de validade de todo o ordenamento jurídico, fruto de um poder constituinte originário e ilimitado, que no dizer de Ayres Brito, tudo pode, menos deixar de tudo poder[22], transforma-se em centro de gravidade do sistema jurídico, de modo que quanto mais longe dela fique uma norma, maior será a sua chance de tombar, desgarrando-se do sistema e sendo banida para o vácuo inabitável da inconstitucionalidade, perdendo a força de incidir sobre os seus suportes fáticos.

Verdade que a lei não é sempre fonte de normas justas, como bem advertem Perelman e Juarez Freitas[23], mas, como bem destaca este último, a justiça será construída a partir do sistema, devido à hierarquização-axiológica de normas, valores e princípios. Com isso, libertos da clausura legal, os juízes estão livres para pensar o direito e, através de um sistema lógico e hierarquizado por normas, valores e princípios, aplicarem ao caso concreto o ideário de justiça que ele demanda. Eis um sedutor convite à vontade de poder.

As leis e seus conteúdos jurídicos passam a ser questionados pelos intérpretes, especialmente quanto à sua constitucionalidade, e, mais uma vez, a função que devia controlar para assegurar a sobrevivência acaba seduzida pela vontade de poder (Nietzsche), dando ensejo ao surgimento de um niilismo infrene que emergiu como o maior símbolo da filosofia do estado das coisas e especialmente da filosofia do direito. Assim, se esse relativismo teve a virtude de romper com os grilhões do dogmatismo, teve também o defeito de sufocar a racionalidade ainda fértil e factível do iluminismo[24].

Por causa disso, os juízes, antes seres anímicos e meros repetidores das palavras da lei, passam a poder interpretar o direito. Contudo, com o poder de interpretar surge, por uma via oblíqua, a vontade de criar o próprio direito, relativizando a objetividade construída do sistema, em prol dum subjetivismo irracional, como bem adverte Alexandre Pasqualini[25]: “De acordo com os herdeiros de Nietzsche, o mundo contemporâneo gira como um pião sobre o eixo aleatório e dionisíaco de uma subjetividade desgarrada da antiga segurança da metafísica e do direito natural. Na ótica desses sombrios roteiristas, a razão, com o martírio dos projetos more religiosos, foi desterrada da Ética e do Direito, produzindo como desfecho um largo descrédito para com os padrões normativos universalizáveis. Uma vez que a legitimidade acomodou-se ao legalismo (Weber, Kelsen, Luhmann) e, de outra parte, a validade misturou-se ao poder (Foucault), a razão teria perdido o seu sagrado direito ao voto e, dessa forma, já não poderia ser escrutinada. Segundo essas descrições modernas, o ‘sim’ e o ‘não’ racionais finaram-se sob os escombros da esperança aufklärer.”

De conseqüência, a lei passa a valer tanto e quanto os intérpretes (juízes e operadores do direito) acham que ela vale, de sorte que ela pode ser afastada ou aplicada sempre que o julgador ache que ela deva. Assim, a crise emergente não é do fenômeno jurídico e nem muito menos da incidência da norma jurídica – como bem demonstram Adriano Soares da Costa e Pontes de Miranda[26] –, mas da própria aplicação e interpretação da lei. E nesse sentido são profícuas as lições de Alexandre Pasqualini: “Em uma frase, a filosofia prática foi isolada do seu kantiano pendor universalista e, ato contínuo, como reparação de guerra imposta pelos céticos, anexada à devastadora vontade de poder. Com outras palavras, a anuência racional se teria curvado à construção antiiluministra do apoderamento (Nietzsche), desvitalizando os consensos tradicionais e, sobretudo, abalando a crença em uma racionalidade capaz de discernir o melhor. É por esse motivo que, no irracionalismo pós-moderno dos desconstrutivismos e dos voluntarismos de todo gênero – onde qualquer leitura entroniza uma desleitura (Derrida, Culler, De Man) -, o que está em jogo já não é o mero contraste entre as diferentes interpretações, mas, sim, a legitimidade mesma da hermenêutica, enquanto hermenêutica.”[27]

Contudo, apesar da crise na atividade hermenêutica, não podemos olvidar que o problema da inconstitucionalidade, sobretudo nas decorrentes de omissões legislativas é um problema grave, porque retira da Constituição o que lhe há de mais caro: sua densidade mandamental.

Entrementes, se calcados num ideário democrático ortodoxo, poderíamos pensar que a omissão inconstitucional do parlamento é um problema político-eleitoral, para o qual o único órgão legítimo para o exercício de seu controle seria o povo, e não o Judiciário. Porém, como bem adverte Pires Rosa[28]: “esta perspectiva política y electoral de ver el problema, fundada básicamente en concepciones primitivas y traspasadas de la teoria de la separación de poderes, tiene como mínimo una grave consecuencia: la disminución de la fuerza normativa de la Constituición. Admitir sencillamente que el legislador es absolutamente libre jurídicamente pone en peligro la supremacia jerárquica formal y material del Texto Constitucional. El parlamento deja de respetar no solo la ordem de legislar expedida por el constituyente sino también niega la realización de los valores establecidos por la Constituición. (...) En las democracias incipientes la relación elector-elegido es evidentemente distinta y menos efectiva que en democracias ya estables. En este contexto, la existencia de instrumentos para enfrentarse a los efectos negativos de las omisiones legislativas ilícitas puede ser un importante aliado en la realización del proyecto constitucional y en la construcción de la democracia.”

Logo, se é certo que o poder de exercer controle difuso de constitucionalidade pelos juízes é um convite à vontade de poder, também é certo que nas democracias ainda não consolidadas, a exemplo do Brasil, a atuação dos juízes com esse poder é relevante para a própria construção dos projetos constitucionais.

Assim, como brasileiros, experimentamos ainda indefinido sabor de viver na zona cinza da necessidade de maior atuação do judiciário, devido à falência dos outros poderes, para dar efetividade às normas constitucionais e os não-incomuns abusos cometidos por esses juízes no trato das questões postas a seus exames, especialmente porque conseqüente do sentimento de poder que impregna essa atividade.

Por isso, não é surpresa o problema relatado pelo professor Calmon de Passos, que em uma palestra foi interpelado por um jovem magistrado nos seguintes termos: onde é que ficam, diante da súmula vinculante, a minha liberdade de consciência e o meu sentimento de justiça? Eis aqui a suma conclusiva do problema demonstrado nas linhas anteriores, a preocupação do julgador é a sua liberdade de consciência e o seu sentimento de justiça que pode, no mais das vezes, não coincidir com o da sociedade, especialmente devido ao não-incomum comportamento dos tribunais que vazam o seguinte entendimento: “Sucede que estamos aqui não para caminhar seguindo os passos da doutrina, mas para produzir o direito e reproduzir o ordenamento. Ela nos acompanhará, a doutrina. Prontamente ou com alguma relutância. Mas sempre nos acompanhará, se nos mantivermos fiéis ao compromisso de que se nutre a nossa legitimidade, o compromisso de guardarmos a Constituição. O discurso da doutrina [= discurso sobre o direito] é caudatário do nosso discurso, o discurso do direito. Ele nos seguirá; não o inverso.”[29] . Verdade que, felizmente, isso não é a regra!

Mas, para concluir, não poderíamos deixar de trazer, porque perfeitamente válida, a resposta do professor baiano, que foi mais ou menos a seguinte: respondo a pergunta do mesmo jeito que pergunta o vencido na lide julgada pelo senhor. Por que os juízes podem nos torturar em nome da justiça que se dizem obrigados, subjetivamente, e estariam livres de serem torturados por um sistema jurídico capaz de oferecer alguma segurança jurídica objetiva aos jurisdicionados?[30]

A resposta questionadora do processualista baiano, se dirigida aos juízes em geral, revela-se até certo ponto satisfatória, mas quando voltada ao STF queda-se carente de fundamento. De modo que quem é que vai “torturar o STF” para oferecer uma segurança jurídica objetiva aos jurisdicionados? Eis aqui o problema da súmula vinculante quanto à hipertrofia dos juízes e o controle difuso de constitucionalidade.

Nesse aspecto, surge mais um ponto de necessária reflexão pelo leitor. A súmula vinculante, incontestavelmente, limitou a hipertrofia dos juízes singulares, tolhendo e conformando as suas liberdades de consciência e os seus sentimentos de justiça subjetivos, em prol de uma tentativa de uniformizar as decisões judiciais, emprestando alguma segurança jurídica ao sistema que hoje vive a crise do decisionismo fortuito e irracional. Assim, seria ela uma evolução democrática ou involução? A resposta a esse questionamento optamos por lançar em nossas conclusões.


3 – NATUREZA JURÍDICA DA DECISÃO DO PODER JUDICIÁRIO NO CONTROLE REPRESSIVO DE CONSTITUCIONALIDADE

O controle repressivo de constitucionalidade no Brasil é realizado pelo Poder Judiciário de duas formas: concentrada e difusamente. Apesar de exercido por um único Poder, cada uma dessas modalidades de controle é revestida de características que as diferenciam não só em suas fenomenologias, mas também por suas conseqüencialidades, isto é, na qualidade de suas conseqüências.

A concentração ou difusão do controle, temos quando em foco o órgão que o exerce; ser concentrado, portanto, é ser exercido exclusivamente por um determinado órgão do Poder Judiciário, no caso do Brasil, o STF; ser difuso, como variante oposta à concentração, é ser distribuída a vários órgãos tal competência.

Contudo, o critério da concentração ou difusão em si mesmo nada esclarece ou explica sobre a natureza desse controle, mas apenas indica a legitimidade de agir para cada um dos órgãos que compõe o Judiciário.

Em linhas anteriores demonstramos que ao Juiz só era conferida a competência para repetir as palavras da lei no caso concreto. Noutras palavras, o Juiz só tinha poder de julgar, mesmo assim em estrita observância da lei, os casos subjetivos. Decidia ele calcado em premissas casuísticas firmadas pelas partes, sua decisão era, mesmo dentro de uma racionalidade, subjetiva, não por que já decorrente do seu arbítrio, mas por que efetivadora de direito subjetivo da parte.

As conseqüências dessa decisão são suportadas pelas partes em suas individualidades relacionais, o efeito é, portanto, inter partis. A legitimidade do ato de julgar do Juiz, ato jurisdicional, é conferida e extraída pelo e do caso concreto, este como realidade construída pelo discurso processual das partes.

Desta forma, o ato do juiz que diz o direito no caso concreto qualifica-se como ato jurisdicional. É este o ato próprio e distintivo do Judiciário frente ao demais Poderes, os atos do juiz em funções típicas são jurisdicionais. Entretanto, isso não quer dizer que o Juiz ou o Judiciário não pratiquem também os atos típicos dos outros Poderes. Pratica, mas nem por isso se confunde com os demais por essa razão, pois o ato jurisdicional é refratário da função de julgar.

Aqui nos filiamos à doutrina de Ovídio A. Baptista da Silva e Fábio Gomes, sem, contudo, olvidar a existência da controvérsia doutrinária sobre a matéria que, infelizmente, não traremos para este trabalho. Para o professor supracitado as notas capazes de estremar a jurisdicionalidade de um ato ou uma atividade realizada por um Juiz seriam a aplicação da lei ao caso concreto, como finalidade específica de seu agir, e a sua imparcialidade de terceiro, como conseqüente de ser um ser distinto das partes. [31]

Pontes de Miranda, em seus comentários ao Código de Processo Civil, destaca que: “Jurisdição é a atividade do Estado para aplicar as leis, como função específica. O Poder Legislativo, o Poder Executivo e os próprios particulares aplicam a lei, porém falta a todos a especificidade da função.”[32]

Assim, julgar casos concretos e subjetivos, como especificidade de função, em pólo eqüidistante das partes, devido à sua condição de terceiro imparcial, é produzir substancialmente ato jurisdicional. Logo, quando afirmamos na nota 15, que o controle de constitucionalidade realizado pelo Juiz difusamente produz ato tipicamente jurisdicional, tínhamos em mente a clareza dessas premissas. Por isso, entendemos que o Juiz ou o Tribunal, nessa espécie de controle, por estar especificamente julgando o caso concreto, apenas tem o poder jurisdicional e, por isso, só tem competência de julgar o caso concreto. Noutras palavras, decidirá o caso em sua subjetividade, limitando-se a declarar que a norma jurídica não incidiu sobre ele, porque contaminada por vício da inconstitucionalidade, impediente de sua passagem pelo plano da eficácia e conseqüente incidência sobre os fatos apresentados no caso.

O ato do Juiz ou Tribunal, porque calcado em realidades subjetivas das partes, é substancialmente jurisdicional e, por isso, subjetivo, concreto e com efeito inter partis  e ex tunc.

Logo, diante dessas premissas, somente podemos concluir que o controle repressivo difuso de constitucionalidade, porque realizado em processo subjetivo e concreto, com efeitos ex tunc e inter partis, é limitado à declaração de não-incidência da norma inconstitucional sobre os fatos, porque é conseqüente de ato tipicamente jurisdicional em sua especificidade de função. Numa frase: ser difuso, subjetivo e concreto decorre da ontologia do ato do Juiz como jurisdicional.

O controle repressivo de constitucionalidade concentrado, apesar de exercido por um órgão do Poder Judiciário, no modelo adotado pelo Brasil, não guarda as mesmas características e conseqüências do difuso.

O Supremo Tribunal Federal, quando no exercício dessa função específica de fiscal da constitucionalidade das leis ou atos normativos federais ou estaduais, age não só sob o manto da especificidade da jurisdição, vista como poder de decidir o caso concreto na posição de terceiro imparcial, mas sob o pálio da função também legislativa, ainda que apenas negativa[33].

É legislativa não nos mesmos quadrantes da função específica do Poder Legislativo, mas nos limites constitucionais de repressão – ser repressivo, nesta hipótese, revela algo de importante: a interrupção de uma determinada realidade de inconstitucionalidade –, contudo, sua função não é plenamente legislativa, como pretende Kelsen, porque é inquestionavelmente órgão jurisdicional.

Disso deflui, segundo entendemos, que o Supremo Tribunal Federal, no controle repressivo concentrado de constitucionalidade, transverte-se em órgão híbrido, pois é a um só tempo legislador e julgador: é legislador negativo porque órgão jurisdicional; e, julgador porque não pode criar lei com a liberdade de legislador[34].

Portanto, devido à sua mutação funcional, neste momento o STF produzirá um ato ontologicamente jurislegisdicional, pois dotado de força legislativa capaz de retirar do mundo jurídico a lei ou o ato normativo inconstitucional sem a necessidade da concorrência de nenhum outro Poder, desde que provocado para agir em processo próprio: ADI e ADC.

Observamos que a sua natureza jurislegisdicional se revela com maior clareza quando temos em foco os seguintes núcleos: produção de ato capaz de conduzir a norma jurídica inconstitucional do mundo jurídico para a inexistência, sem a concorrência de nenhum outro Poder, e a necessária provocação pelos legitimados constitucionais, por meio de ações próprias, para que exerça tal controle repressivo.

Exemplo que afasta qualquer possibilidade de dúvida e põe a nu essa natureza híbrida, apontada acima, é o controle concentrado de lei ou ato normativo municipal que fere norma da Constituição Estadual de repetição obrigatória da Constituição Federal. Nessa hipótese, do julgamento do Tribunal de Justiça Estadual sobre a inconstitucionalidade da norma municipal caberá, nos termos do art. 102, III, “d”, da CF/88, Recurso Extraordinário para o STF. Ora, a admissão de revisão da decisão por meio de recurso eviscera da natureza legislativa do controle de inconstitucionalidade a sua indiscutível natureza jurisdicional. 

Assim, como nessas ações de controle de constitucionalidade repressivo concentrado, ADI e ADC, não há análise de casos concretos, mas exames de compatibilidades axiológicas de lei ou atos normativos federais ou estaduais em face da Constituição abstratamente, tal controle tem que ser legitimado pelo diálogo democrático, não por outro motivo se admite, nesses processos a figura do amicus curiae.

Disso, portanto, já podemos extrair que o controle concentrado é também abstrato, em contraposição ao difuso, que é concreto. Outro aspecto relevante, decorrente da abstração da discussão no controle concentrado, é a objetividade do processo. Como não há interesses subjetivos concretos na condição de objeto do processo, diz-se que este é objetivo, de sorte que apesar de haver legitimação para o seu exercício, uma vez iniciado, não têm sobre ele os legitimados nenhum poder de índole subjetiva, como por exemplo, a faculdade de desistir da ação ou há qualquer impedimento ou suspeição quanto aos julgadores.

Por fim, como o controle repressivo de constitucionalidade exercido pelo STF concentradamente, fruto de um processo objetivo e abstrato, tem por finalidade, conduzir a norma jurídica inconstitucional (revogar) do mundo jurídico para a inexistência, com natureza declaratória (inconstitucionalidade) e desconstitutiva (retirada do mundo jurídico), os seus efeitos serão erga omnis, vinculante e, de regra, ex tunc, pois o STF poderá, nos termos da Lei. 9.868/99, art. 27, modificar esse efeito para ex nunc, de sorte que tem o poder de definir a partir de quando é que será retirada do mundo jurídico a lei ou ato normativo federal ou estadual.

Logo, diante dessas premissas, somente podemos concluir que o controle repressivo concentrado de constitucionalidade (ADI e ADC), porque realizado em processo objetivo e abstrato, com efeitos ex tunc, erga omnis e vinculante, é conseqüente de fusão de competência legislativa negativa e jurisdicional, motivo por que produz ato jurislegisdicional em sua especificidade de função híbrida. Numa frase: ser concentrado, objetivo e abstrato decorre da ontologia jurislegisdicional do STF, neste controle.

Finalmente, uma vez que tratados os dois sistemas de fiscalização da constitucionalidade, importa que analisemos, já que não mencionada de propósito, a natureza jurídica da decisão que julga a ADPF – Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental. A ADPF é processo afeto ao controle concentrado, porque exercido exclusivamente pelo STF, porém não com abstração, pois trata de caso concreto, uma vez que destinada a prevenção ou repressão de ato do poder público violador de preceito fundamental e a controvérsia jurídica de lei ou ato normativo federal, estadual ou municipal, inclusive anteriores à Constituição.

Apesar de ter em foco a violação de preceito fundamental em casos concretos, a ADPF, devido aos vetos que lhe foram impostos, tem caráter objetivo, pois tem como legitimados para a sua propositura os mesmos da Ação Direta de Inconstitucionalidade. A decisão do STF neste caso será erga omnis, vinculante e, em regra, ex tunc, podendo ser ex nunc, nos termos do art. 11 da lei 9.882/99.

Se da análise da ADI e da ADC concluímos pela natureza híbrida jurislegisdicional do ato do STF, na ADPF essa natureza é mais acentuada, sobretudo porque julga o caso concreto, controlando a constitucionalidade do ato do poder público ou da lei ou ato normativo federal, estadual ou municipal, inclusive anterior à Constituição com o poder de conduzi-los do mundo jurídico para a inexistência. Assim, se a hibridez se revela na ADI e na ADC pelas características da inércia e da processualização por órgão do judiciário, aqui a natureza híbrida se acentua pelo próprio objeto, pois age o STF, quanto ao ato do poder público, como órgão em função especificamente jurisdicional; e quanto aos atos normativos, em função legislativa negativa.

Logo, diante dessas premissas, somente podemos concluir que o controle concentrado repressivo de constitucionalidade na ADPF, porque realizado em processo objetivo e concreto, com efeitos erga omnis, vinculante e, em regra, ex tunc, é conseqüente de fusão de competência legislativa negativa e jurisdicional, motivo por que produz ato jurislegisdicional em sua especificidade de função híbrida. Numa frase: ser a ADPF concentrada, objetivo e concreta decorre também da ontologia jurislegisdicional do STF.

De tudo isso, concluímos que a natureza jurídica da decisão do controle repressivo de constitucionalidade, variando segundo suas duas modalidades, será de ato tipicamente jurisdicional, no difuso; e ato jurislegisdicional, no concentrado.


4 – A SÚMULA VINCULANTE E SUA NATUREZA JURÍDICA

Muito se discutiu acerca da súmula vinculante na doutrina, antes mesmo de sua incorporação ao texto constitucional. Porém, qual a natureza jurídica da súmula vinculante dentro do limite textual vazado na Constituição?

J. J. Calmon de Passos[35], em artigo publicado na Revista Eletrônica de Direito do Estado, intitulado de súmula vinculante, calcado nas idéias de Luhman, destaca três redutores de complexidade: o de definição do direito material, o de direito processual e o de direito organizacional, estabelecendo da alçada de competência deste último a distinção entre o processo legislativo e jurisdicional. Assim, haveria consequentemente dois outros redutores de complexidade no processo global de produção do direito: um geral e abstrato, de competência política; e outro, de natureza concreta, de competência dos processos administrativo e jurisdicional.

Assim, Calmon de Passos, partindo do pressuposto que a vinculação ou o efeito vinculante é inato das decisões judiciais proferidas pelos tribunais, em especial o STF, demonstra-se perplexo com a celeuma criada em torno do tema da súmula vinculante.[36] Para o processualista baiano, falar-se em decisão de tribunal superior sem força vinculante é incidir-se em contradição manifesta.

Portanto, pelo que se extrai do artigo do professor baiano, seria fácil compreender a súmula vinculante como conseqüente natural da própria atividade jurisdicional.

Nada obstante, com a edição da EC nº 45/04 e da lei 11.417/2006, hoje já possuímos a súmula vinculante como realidade constitucional e, sobretudo, legislativa. Nessa quadra, o legislador, no art. 2º e § 1º da mencionada lei prescreveu o seguinte:

Art. 2º O Supremo Tribunal Federal poderá, de ofício ou por provocação, após reiteradas decisões sobre matéria constitucional, editar enunciado de súmula que, a partir de sua publicação na imprensa oficial, terá efeito vinculante em relação aos demais órgãos do Poder Judiciário e à administração pública direta e indireta, nas esferas federal, estadual e municipal, bem como proceder à sua revisão ou cancelamento, na forma prevista nesta Lei.

§ 1º O enunciado da súmula terá por objeto a validade, a interpretação e a eficácia de normas determinadas, acerca das quais haja, entre órgãos judiciários ou entre esses e a administração pública, controvérsia atual que acarrete grave insegurança jurídica e relevante multiplicação de processos sobre idêntica questão.

O art. 2º é cópia quase integral do art. 103-A da CF/88. Portanto, o legislador nos dispositivos acima cuidou de quando poderá ser editada a súmula, por quem e qual o seu objeto. Assim, como o objeto da súmula é a validade, a interpretação e a eficácia de normas determinadas que gerem controvérsias jurídicas entre órgãos do judiciário ou desses com a Administração Pública, vê-se à evidência caracterizado um fenômeno identificado pela doutrina, em especial por Fredie Didier Jr., como objetivação[37] do controle difuso de constitucionalidade[38].

Mas, diante dessa realidade normativa, qual seria então a natureza jurídica da súmula vinculante? Seria ela ato tipicamente jurisdicional ou ato normativo?

A professora Mônica Sifuentes enxerga a súmula vinculante como ato normativo do Poder Jurisdicional, pois segundo o seu entendimento o que diferenciaria o ato jurisdicional do normativo seria a sua capacidade de extrapolar as fronteiras do caso concreto, apresentando-se no ordenamento jurídico com as características da generalidade e da abstração, dotado de cogência.

Noutras palavras, a decisão jurisdicional seria normativa sempre que fosse erga omnis. A professora supra, contudo, extrai essa idéia de normatividade do processo de controle concentrado, para, ampliando os paradigmas de lá, trazer para a súmula vinculante essa mesma característica de generalidade e abstração com efeito contra todos[39].

Todavia, não concordamos com o pensamento acima, pois ao atribuir à súmula vinculante a eficácia erga omnis a professora acima confundiu dois efeitos distintos: vinculatividade e oposição contra todos. Para ela, é oponível contra todos a súmula vinculante porque vincula o Judiciário e a Administração Pública, de sorte que, a prevalecer essa idéia, o Estado e a Sociedade não passariam do Juiz e da Administração, restando de fora de tal conceito o Legislativo e o Povo. A súmula é vinculante, mas não erga omnis!

Outro ponto, a nosso ver falho, da teoria acima, é o de enxergar a súmula vinculante como refretária, tão-só por que há no controle difuso uma tendência à sua objetivação, de competência similar ou idêntica ao controle concentrado. Baralhar tais conceitos acabou por prejudicar a clareza da ontologia da súmula, por parte da professora supracitada.

É preciso estremar os atos decisórios emitidos nos controles difuso e concentrado, tal qual fizemos no item anterior, de sorte que não há como emprestar normatividade ao controle difuso só porque no concentrado há o poder legislativo negativo. No controle difuso, o ato decisório, seja sumular ou não, é sempre jurisdicional, nunca normativo. Para que esse ato converta-se ou ganhe força normativa, conforme demonstraremos no próximo item, ele necessitará da indispensável edição de Resolução do Senado Federal (art. 52, X, da CF/88) que se unirá ao ato jurisdicional e dará origem, a partir de sua edição pelo Senado, ao ato jurislegisdicional.

Assim, pelo que podemos extrair do objeto da súmula vinculante, a par do entendimento da professora supracitada, não resta muita dúvida acerca da sua natureza jurídica como ato tipicamente jurisdicional com força vinculante. Explicamos a nossa conclusão. A súmula terá por objeto sempre uma declaração acerca da validade, da interpretação ou da eficácia de normas determinadas.

Assim, se o objeto, exemplificativamente, for a validade, o STF só poderá concluir por declarar a invalidade de uma norma jurídica, incidentalmente, sem que isso, contudo, dê ensejo à expulsão do mundo jurídico da lei inválida, por vício de inconstitucionalidade, pois esta é ato jurídico impedido de ingressar no plano da eficácia e, por conseguinte, de incidir sobre seus suportes fáticos.

No controle difuso, o juiz ou o tribunal apenas declaram tal realidade de forma incidental para concluir pela não incidência da norma jurídica (ato jurídico lei) no caso concreto posto a exame em processo subjetivo. Aí, ao contrário do que ocorre no controle concentrado, há produção de ato tipicamente jurisdicional sem capacidade de expurgar do sistema jurídico a lei declarada incidentalmente inconstitucional (vide nota 15 e item anterior).

Tanto isso se mostra crível, que o texto sumular só operará efeito vinculante em relação aos órgãos do judiciário e da Administração. Aqui, entendemos necessária a abertura de um pequeno parêntese. Para que possamos caminhar com certa tranqüilidade sob essa realidade proposta, é preciso que tenhamos em mente a dimensão do que seja órgão do judiciário e da Administração.

Para nós, revela-se claro que os órgãos do judiciário são todos os componentes do sistema judicante, ou seja, os órgãos dotados do plexo de atribuições concernentes à jurisdição; quanto aos órgãos da Administração, vemos como identificados nesse quadrante não só os órgãos do Executivo, mas todos os Poderes sempre que no exercício de funções tipicamente administrativas.

Assim, para que a declaração incidental produza efeito de retirar do sistema a norma inconstitucional, o ato jurisdicional precisará se transmudar em ato jurislegisdicional. A única forma prevista pelo Constituinte para que ocorra essa transmudação é a edição da Resolução do Senado. 

Outro ponto interessante, e que precisamos levar em consideração, uma vez que realça a natureza da súmula vinculante como resumo de entendimentos decorrentes do fato de julgar lides subjetivas (ato jurisdicional), está no detalhe do texto do § 1º, do art. 2º, da lei 11.417/2006, qual seja, a controvérsia judicial que acarrete insegurança jurídica e relevante multiplicação de processos sobre idêntica questão.

A discussão é judicial, isto é, fruto do exercício de competência jurisdicional, de modo que potencialize a multiplicação de processos, ou seja, previne, pela uniformização de entendimento, as demandas em juízo. Ora, diante disso, só podemos concluir que a súmula vinculante é invariavelmente ato jurisdicional típico com força vinculante uniformizadora.

Portanto, como não vemos na súmula vinculante nenhuma característica que lhe retire o traço marcante da jurisdição, sem poder de veicular pautas de condutas a serem seguidas por toda a sociedade, limitando-se a resumir entendimentos declaratórios uniformizados do STF acerca de validade, interpretação e eficácia de leis ou atos normativos, concluímos que sua natureza jurídica é de ato jurisdicional típico, provido do efeito vinculante inato às decisões judiciais dos Tribunais, conforme destaca Calmon de Passos.


5 – SÚMULA VINCULANTE E RESOLUÇÃO DO SENADO: CRISE NA SEPARAÇÃO DOS PODERES?

Nem o juiz, nem o tribunal e nem mesmo o STF, no controle difuso possui, poder de revogar a lei e nem a prerrogativa de suspender a sua eficácia diretamente. Pois tal competência é cumulativa do STF e do Senado Federal, nos termos do art. 52, X, da CF/88, como reflexo direto da separação dos poderes. Assim, suspender a execução, no todo ou em parte, de lei declarada inconstitucional por decisão definitiva do Supremo Tribunal Federal é tarefa exclusiva do parlamento e não do judiciário (vide nota 15).

E sobre o tema são profícuas as lições de Carlos Velloso, citado por Ivo Dantas[40], in verbis: “a comunicação ao Senado deveria ficar restrita às declarações de inconstitucionalidade havidas no controle difuso de constitucionalidade, vale dizer, no caso concreto. É que, neste, a lei declarada inconstitucional somente não será aplicada na demanda em que foi suscitado o incidente, porque não vigora, no sistema judicial brasileiro, o princípio da força obrigatória do precedente, ou do stare decisis. Por isso, no controle incidenter tantum, difuso, torna-se necessário que o Senado suspenda a eficácia da lei declarada inconstitucional, o que vem desde a Constituição de 1934.”

Porém, se essa realidade normativa e doutrinária era pacífica até 2004, com o advento da EC nº 45/2004, hoje ela enfrenta sérios questionamentos. Sumular entendimentos sempre foi visto e estudado, desde o direito romano, como conseqüência do fato de julgar lides subjetivas, de sorte que a súmula nos Tribunais sempre funcionou como forma de resumir o pensamento dominante do órgão julgador sobre a matéria e, ainda que dotada de alguma força social vinculante, nunca possuiu juridicamente tal poder. É importante destacar que afirmamos isso tendo em mira apenas as súmulas e não as decisões dos Tribunais, pois estas sempre tiverem poder vinculante. 

Assim, hoje com a nova roupagem, sobretudo normativa, de que se revestiu a súmula, o efeito social se transverteu em efeito jurídico. De modo que a força obrigatória do precedente ou do stare decisis, destacada por Carlos Velloso, parece ganhar força a ponto de nos levar a uma obrigatória reflexão: como ficam as resoluções do Senado Federal, nas hipóteses do inciso X, do art. 52, da CF/88 a partir de agora? Está revogado o referido inciso pela mudança constitucional implementada pela EC nº 45/2004?

À primeira vista até poderíamos responder positivamente às indagações anteriores, o que nos levaria de fato a concluir pela total instalação da crise de legitimidade de poder[41], pois o Judiciário teria esbulhado a função legislativa e se apoderado, com a súmula, da competência de editar pautas de condutas gerais, abstratas e cogentes.

Mas, se olharmos com o devido cuidado, perceberemos que a súmula vinculante, em que pese a sua abrangência aparentemente ampla, tem seu uso naturalmente condicionado, especialmente porque o § 3º, do art. 2º, da lei 11.417/06, exige que a edição, a revisão e o cancelamento de enunciado de súmula com efeito vinculante dependerão de decisão tomada por 2/3 (dois terços) dos membros do Supremo Tribunal Federal, em sessão plenária.

Outro ponto relevante sobre o qual devemos refletir é o seguinte: a EC nº 45/2004 alterou a Constituição e inseriu nela o art. 103-A, mas não modificou o inciso X, do art. 52, da CF/88.

Assim, partindo da idéia do diálogo que nos é imposta pela ciência, Teríamos, por óbvio, vários caminhos interpretativos, dos quais podemos destacar pelo menos três seguramente possíveis:

1) a EC nº 45/2004 estaria em confronto com norma originariamente constitucional e por isso seria inconstitucional, pois ao permitir que o STF retire com força vinculante – por meio de ato próprio judicial que é a súmula – do sistema jurídico norma jurídica de natureza constitucional que suscite diversidade de demandas que tenham por fundamento sua validade, interpretação ou eficácia, teria incorrido o legislador derivado em plena violação ao inciso X, do art. 52, da CF/88, pois tal tarefa seria exclusiva do Senado Federal;

2) haveria sim uma antinomia entre as duas regras constitucionais, mas que, devido à força normativa da Constituição e à necessidade de utilização de interpretação sistemática, entenderíamos que teria havido uma revogação parcial do inciso X, do art. 52, da CF/88, de modo que as matérias afetas à súmula vinculante estariam fora do âmbito de exigência da Resolução do Senado; e

3) existiria, da mesma forma que a opção anterior, a antinomia entre as duas normas constitucionais e, fazendo uso da mesma razão interpretativa, entenderíamos que a restrição se daria em relação à súmula vinculante, de sorte que se houvesse declaração de inconstitucionalidade pelo STF em controle difuso de constitucionalidade, o uso da súmula com a finalidade de atribuir efeito erga omnis, isto é, jurislegisdicionalidade, sem a resolução do Senado Federal seria inconstitucional, pois feriria o inciso X, do art. 52, da CF/88.

Diante dessa redução problemática, poderíamos, desde logo, abandonar a primeira opção, pois seria a menos evolutiva das três.

A prevalecer a 2ª opção, para a qual já acenam alguns Ministros do STF, especialmente no julgamento da Rcl 4335, a súmula vinculante haveria esvaziado o sentido normativo do inciso X do art. 52 da CF/88 e o STF, devido à instalação da teoria do precedente judicial ou stare decisis, não mais precisaria da participação do parlamento para afastar a “exeqüibilidade” da norma declarada difusa e concretamente inconstitucional, restringindo-se a resolução a tão-só dar publicidade à decisão do STF[42].

Logo, teríamos que a resolução do Senado só seria necessária, para a retirada da exeqüibilidade da lei declarada concretamente inconstitucional, se não aprovada a edição da súmula vinculante. Assim, tendo declarado em controle difuso a inconstitucionalidade de alguma norma jurídica o STF poderá editar a súmula vinculante, devendo notificar o Senado Federal para que edite a resolução do inciso X, do art. 52, da CF/88, a fim de que dê publicidade à decisão do STF; ou, não aprovada a edição da súmula, notificar o Senado Federal para suspender a “exeqüibilidade” da lei ou ato normativo declarados inconstitucionais, de modo que não houve a revogação pela EC nº 45/04 da resolução do Senado.

Mas, sem dúvida, existiu um enfraquecimento, uma vez que ela agora passou, segundo entendimento do Supremo, a ser via residual. E é residual pelo motivo de que a súmula vinculante, desculpem a obviedade, só tem sentido de ser como fruto de processo subjetivo e, portanto, conseqüência direta de controle difuso de constitucionalidade.

Assim, a prevalecer esse entendimento, por dispensar completamente a Resolução do Senado, a súmula vinculante seria uma evolução procedimental no que diz respeito à força das decisões do STF, ainda quando atue puramente como órgão jurisdicional, mas estaria por decretar a involução constitucional, pois acabaria por retirar da Constituição a sua própria força normativa.

Não podemos deixar de destacar que esse entendimento do STF, traz incauto consigo o danoso menosprezo e diminuto respeito ao parlamento, que, por mais merecedor de tal atitude, ainda representa a vontade soberana do povo, de sorte que se não for devidamente controlado o seu uso, a súmula vinculante poderá dar azo à não-incomum violação da legitimidade do poder, transviando a função de garantir a segurança jurídica da sociedade em entronização irracional do arbítrio, conseqüência direta da sedução do poder, acabando por decretar a completa involução da súmula e a plena crise da separação dos poderes[43]. Numa frase: o limite é seduzido pelo impertinente convite à vontade de Poder.

Apesar de se encaminhar o STF já para a adoção da opção anterior, não concordamos com tal posicionamento e entendemos mais adequada a terceira opção. Na última hipótese aqui debatida, a via residual seria não da resolução do Senado Federal, mas da própria súmula vinculante.

A declaração de inconstitucionalidade não é regra, as normas jurídicas (leis e atos normativos) são mais constitucionais do que inconstitucionais, de modo que o processo subjetivo e concreto não se desvela terreno apto à semeadura desse controle[44], pois o perigo da subversão da legitimidade do Poder e sua impertinente sedução crescerão a ponto de anular a vontade democrática da comunidade do discurso (doutrina e povo), veiculada em normas jurídicas.

A súmula vinculante tem por finalidade precípua não o controle em si da constitucionalidade dos atos normativos e das leis, mas a conformação e uniformização das decisões judiciais, sem poder de vincular, pelo menos diretamente, o particular, uma vez que sua incidência vinculativa é expressamente dirigida ao próprio Judiciário e à Administração Pública.

Tanto têm ciência disso os Ministros do STF que eles vêem como necessária a resolução do Senado Federal, apesar de tentarem minorar o seu valor, com a interpretação de que a sua função seria apenas a de dar publicidade à decisão do STF. Puro engodo!

A súmula vinculante, nos moldes traçados pela Constituição e pela Lei 11.417/2006, tem campo eficacial limitado, isto é, só vincula a Administração Pública e o Judiciário.

Logo, o significado dessa publicidade, que traz velada a conseqüência de antes, é simplesmente admitir que a súmula vinculante, ainda que editada para veicular entendimento de que determinada norma é inconstitucional, só vai ter, realmente, o poder de vincular a todos, quanto à suspensão da “exeqüibilidade” da norma, quando o Senado Federal editar a resolução.

Do contrário, a súmula vinculante do STF continuará com o seu campo eficacial restrito e a norma tida por inconstitucional continuará no sistema jurídico, ainda que inválida.

Logo, entendemos que o caminho interpretativo do STF somente mascara a realidade, pois tenta esconder debaixo de uma pseudopublicidade o verdadeiro significado da Resolução do Senado Federal.

Assim, não temos a menor dúvida que a terceira opção supramencionada, em que a súmula não seria admitida como substitutiva da Resolução do Senado Federal, assegura que o controle difuso de constitucionalidade continuaria legitimado pela responsiva supervisão do Senado Federal, mantendo-se equilibrada a balança dos Poderes, com a preservação dos pesos e contrapesos do exercício do poder.

Desta forma, a súmula vinculante, como via residual, só poderia ter um alcance erga omnis, a fim de resguardar a sua própria legitimidade e assegurar um maior controle no seu próprio uso, após a edição, pelo Senado Federal, da competente resolução de que trata o inciso X, do art. 52, da CF/88, sempre que seu objeto fosse a declaração incidental de inconstitucionalidade, pois no que diz respeito às demais matérias não haveria sentido para tal procedimento.

O fato de entendermos a súmula com via residual e só admitirmos a sua edição com força erga omnis, quando houver declaração de inconstitucionalidade de lei ou ato normativo, após a resolução do Senado, é porque não vemos a súmula vinculante como plexo de competência legislativa, nem negativa e nem positiva, ela, apesar de sua vinculatividade, é ato tipicamente jurisdicional, de sorte que sua edição, ainda que sem a resolução do Senado Federal, tem o condão apenas de uniformizar a jurisprudência, de admitir a Reclamação Constitucional em caso de sua inobservância etc., mas jamais o de revogar (conduzir a norma para fora do mundo jurídico) a lei julgada concreta e difusamente inconstitucional e nem suspender-lhe a eficácia, por uma simples razão: não tem força normativa e nem constitucional para isso, é ato jurisdicional e não legislativo, subordinado à lei e à própria Constituição.

O STF é guardião da Constituição, é poder constituído, limitado, portanto. Não tem ele, por ser o guardião, poder de “tudo” sobre a obra do Constituinte Originário. Ao STF não foi conferido nenhum poder, na via difusa de controle, de retirar do sistema jurídico ou até mesmo de suspender a eficácia de qualquer norma do sistema jurídico[45], pois tal missão constitucional, assim como a de ser guardião, foi outorgada também ao Senado Federal.

Não é crível que, agora, sob a égide da limitação jurídica imposta pelo Constituinte Originário, os poderes constituídos queiram subverter a ordem e se tornarem maiores que o criador. Ao STF foi conferida a guarda da Constituição, assim como ao Senado Federal, sobretudo, se vista a obrigação de respeitá-la e seguí-la. Contudo, a este último, também entendemos conferida a guarda das leis e atos normativos objeto de apreciação pelo Judiciário.

Portanto, o mais importante, é enxergarmos que só com a Resolução do Senado Federal é que o efeito da decisão do STF, no controle difuso de constitucionalidade, terá o poder de vincular a todos (Particulares, Executivo, Legislativo e Judiciário), seja através de súmula vinculante ou não.

É a Resolução quem tem o poder, ainda que entendida como ato jurídico vinculado, de transmudar o ato jurisdicional em jurislegisdicional, possibilitando a retirada da lei ou ato normativo inconstitucional do mundo jurídico.

A Resolução não poderá ser editada em contrariedade à decisão que a provocou, mas sem ela a decisão do STF continuará ontologicamente jurisdicional, ou seja, inter partis e ex tunc em hipótese de não edição de súmula, e vinculante, mas não erga omnis, e ex nunc com sua edição.

Em suma, nem a Resolução do Senado Federal sem a decisão do STF no controle difuso e nem a decisão do STF (súmula vinculante) sem a Resolução do Senado Federal, nesse mesmo controle, têm, em sua individualidade o poder de retirar do sistema jurídico a norma inconstitucional, elas se completam e formam um só ato: o jurislegisdicional.


CONCLUSÃO

A súmula vinculante surgiu no sistema brasileiro como a solução para o problema da diversidade de interpretações dadas às normas jurídicas, sobretudo constitucionais, na vida forense. Vivemos a era do relativismo, na qual a lei vale o tanto e o quanto os magistrados dizem que ela vale, distorcendo, com isso, toda a racionalidade do próprio sistema jurídico que acaba por perder a sua principal fonte de legitimação: a segurança.

Vige o império do decisionismo arbitrário e subjetivo, verdade que estimulada pela própria crise hermenêutica e o papel do intérprete, porém já se tornou claro que é preciso conter essa desenfreada relativização das coisas, especialmente jurídicas. Se é certo que a história nos ensina com os erros e acertos do passado, também é certo que viver só no e do passado nos leva a cometer os mesmos erros, porque deixamos de nos perceber como realidade do hoje.

Nesse sentido, Ortega y Gasset: “El saber histórico es una técnica de primer orden para conservar y continuar una civilización provecta. No porque dé soluciones positivas al nuevo cariz de los conflictos vitales – la vida es simpre diferente de lo que fue - , sino porque evita cometer los errores ingênuos de otros tiempos.”[46]

A atividade jurisdicional, em sua acepção mais clássica (Rousseau e Montesquieu), tem que oferecer à sociedade uma segurança jurídica dotada de certa uniformidade, sem ceder a todo qualquer apelo ou se amoldar a qualquer palato, sob pena de pôr em risco a própria força normativa da Constituição e minar o ideário constitucional definido pelo Constituinte Originário.

Não podemos negar o papel relevante que exerce o Judiciário na sociedade hodierna, sua missão é nobre, é o último poder a que podemos nos socorrer, especialmente, contra o Estado devido à adoção do sistema Inglês de controle. Porém, como todo e qualquer poder, sem limites acaba por impor a todos o império de suas sedutoras vontades de Poder (Nietzsche), pois todos os meios estariam justificados pelos fins perseguidos (Maquiavel).

Assim, revelam-se indispensáveis as lições de Bonavides[47], ao cuidar da teoria do Barão, in verbis: “A separação de poderes é pois o remédio supremo. Se o poder legislativo estiver enlaçado com o poder executivo nas mãos de um único titular – o monarca ou órgão coletivo – não há liberdade, visto que aquele monarca ou órgão coletivo poderá fazer leis tirânicas para executá-las tiranicamente. Tampouco haverá liberdade se o poder judiciário vier associado ao poder legislativo e ao poder executivo. Na primeira hipótese – acrescenta Montesquieu – o poder judiciário somado ao poder legislativo num mesmo titular faz do juiz legislador, com poder arbitrário sobre a vida e a liberdade dos cidadãos. Na segunda hipótese – poder judiciário mais poder executivo – temos o juiz com a força de um opressor. Conclui Montesquieu que tudo estaria perdido se o mesmo homem ou órgão coletivo enfeixasse os três poderes – o de fazer as leis, o de executá-las e o de julgar os crimes e dissídios entre as partes.”

Portanto, limitar esse poder que, apesar de tudo, ainda é o último refúgio da sociedade revela-se uma tarefa melindrosa e de alto risco, pois poderemos salvar o Judiciário da patológica sedução do poder irracionalmente subjetivo, ou agravarmos o quadro dessa patologia, e nos enveredarmos para uma revolução social como jamais vista ou vivida no Brasil.

Assim, por tudo que foi exposto, só podemos chegar à conclusão de que a súmula vinculante é um importante instrumento para a devolução da segurança jurídica à sociedade, que deverá ser ministrada com doses adequadas de responsividade.

Noutras palavras, a súmula vinculante terá que ser, se o STF quiser mantê-la como instrumento de legitimação do poder, fruto de um construcionismo calcado na consciência jurídica comum (isto é, não poderá desprezar o papel da comunidade, especialmente da doutrina – poderá até não concordar com ela, mas não menosprezá-la), não poderá utilizar a súmula vinculante contra o ideário comum de justiça que se formar na sociedade, pois esta não é a função da súmula.

Em suma, o instrumento da súmula vinculante terá sua eficiência benéfica ou maléfica de acordo com o seu uso, tal qual toda ferramenta posta à disposição do homem. Assim, se ela for utilizada para exprimir uma vontade geral será agasalhada pelo princípio da responsividade e será um benéfico instrumento social; do contrário, não passará de mais uma ferramenta de massacre social e imposição imperial de arbitrária e irracional vontade de poder, calcada em subjetivo dirigido à manutenção ou ampliação das sedutoras corrupções do Poder, na acepção mais plena de Nietzsche.


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Notas

[1] O presente texto foi escrito em Abril de 2007, em Maceió/AL. Todavia, sua realidade teórica demanda uma revisão para os dias atuais.

[2] BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição. 6ª ed., Saraiva: São Paulo, 2004, p. 71.

[3] ORTEGA Y GASSET, José. La rebelión de las masas, Altaya: Barcelona, 1996. p.102.

[4] De fato, a realidade prática já demonstrou que o STF em muito se distanciou da finalidade da lei e hoje, tomado por uma impertinente sedução de poder, transformou o instituto em meio arbitrário de produção de emendas constitucionais judiciais, assim como faz com as repercussões gerais nos recursos.

[5] NIETZSCHE, Federico. La voluntad de dominio: ensayo de una transmutación de todos los valores, T. IX, Aguilar: Buenos Aires, 1951. p. 422/423.

[6] PERELMAN, Chaïm. Lógica Jurídica: nova retórica; tradução: Verginia K. Pupi. – São Paulo: Martins Fontes, 1998, p. 21.

[7] Ortega y Gasset destaca com sobriedade uma característica marcante do direito, ser conseqüência espontânea da própria sociedade. Estar em sociedade, ser social é estar em interação jurídica com a comunidade. O direito é conseqüência da sociedade e não o inverso, e como tal ele é muito mais cumprido que descumprido, pois surge do acordo, da vontade comum do ser social, consequencial da dialética democrática do parlamento. Pensar o contrário é, no dizer ainda de Ortega y Gasset, colocar a carroça na frente dos bois. (Ortega y Gasset, op. cit. p. 17)

[8] Idem, p. 22.

[9] SARLET, Ingo Wolfegang. A Eficácia dos Direitos Fundamentais. 5 ed., Livraria do Advogado: Porto Alegre, 2005, p. 54/55.

[10] PERELMAN, op. cit. p. 23. Era o tempo da famosa discussão travada sobre a vontade da lei ou do legislador.

[11] Neste ponto, especificamente, acreditamos oportuno abrir um parêntese no que diz respeito ao executivo, pois se é induvidoso que para o judiciário a realidade se mostrou assim completamente amordaçada, para a administração, em especial a francesa, ela não se construiu de forma tão submissa à lei. Gustavo Binenbojm, in Uma teoria do direito administrativo, destaca com bastante sobriedade o que realmente teria acontecido com a administração, pois se a lei vinculava o juiz e este nada podia fazer senão repeti-la, para o executivo a interferência e vinculação à lei foi meia verdade. Isto porque a separação de poderes serviu para imunizar o Poder Executivo, sobretudo, porque o mesmo princípio que justificou a criação do contencioso administrativo seria invocado para impedir que os órgãos de controle exercessem sobre a administração alguma ingerência, de sorte que se houve alguma inspiração garantista no surgimento e desenvolvimento da dogmática administrativa esta foi claramente em favor da própria administração e não dos administrado. A esse fenômeno Gustavo Binenbojm denominou de pecado original do Poder Executivo. Assim, para concluir o parêntese acima aberto, importa que destaquemos, ainda calcados nas lições de Binenbojm, o fenômeno Francês não se repetiu nos países de origem anglo-saxônica, em especial a Inglaterra, onde em princípio o Poder Público não era submetido a privilégios.

[12] Vide PERELMAN, op. cit., p. 23.

[13] Maiores aprofundamentos, vide MOREIRA NETO, Diogo Figueiredo. Curso de Direito Administrativo, 14. ed, Forense: Rio de Janeiro, 2005.

[14] A ditadura é tentativa óbvia de reinstalação do absolutismo, atualmente remodelada pelo movimento chavista da Venezuela, com o autoritarismo buscado pelo ato de silenciar a crítica e se tornar uma unanimidade anti-evolutiva, pois sempre que um centro de poder é criticado e tem seus pontos fracos ou erros expostos, há a possibilidade de sua correção: portanto, evolui-se. O progresso, mesmo não tendo uma exclusão total dos riscos da involução, se advindo de um debate democrático e plúrimo já é em si uma notável evolução.

[15] BINENBOJM, Gustavo. Uma Teoria do Direito Administrativo: direitos fundamentais, democracias e constitucionalização, Renovar: Rio de Janeiro, 2006, p. 71.

[16] Vide nota nº 17.

[17] Durante muito tempo a doutrina debateu acerca dessa possibilidade, se ela feriria ou não a separação dos poderes. Ivo Dantas, tratando do tema em seu livro o Valor da Constituição, colaciona importante argumento de Celso Agrícola Barbi: “Nesse caso, razões jurídicas e políticas foram, e são, invocadas para impedir o controle de constitucionalidade da lei. Argumenta-se com a separação e independência dos Poderes, o que impediria que um julgasse os atos de competência do outro, ou os anulasse. Argumenta-se também a soberania do Parlamento, que é o representante do povo, intérprete da vontade nacional, que é o mais alto poder. Como o órgão controlador de constitucionalidade não procede do voto popular, admitir-se o controle seria submeter a vontade popular, entidade soberana, a um órgão politicamente inferior àquela.” (DANTAS, Ivo. O Valor da Constituição, 2 ed. Renovar: Rio de Janeiro, 2001,p. 37).

   Contudo, é importante observar que o controle concentrado é ato legislativo exercido pelo judiciário, cunhado sob permissivo político-jurisdicional. A lei ou o ato normativo, como atos jurídicos que são, submetem-se à incidência das normas jurídicas e, portanto, ainda que inconstitucionais, são atos jurídicos porque ingressaram no mundo jurídico devido à incidência das normas jurídicas do processo legislativo (COSTA, Adriano Soares da. Teoria da Incidência da Norma Jurídica, crítica ao realismo lingüístico de Paulo de Barros Carvalho, Del Rey: Belo Horizonte, 2003.).

   Deste modo, ao ingressarem no mundo jurídico criam o efeito de necessitarem de um outro ato jurídico que o desjurisdicize. Noutras palavras, a lei inconstitucional, porque impedida de produzir efeito (incidência) pelo não ingresso no plano da eficácia, encontra-se no mundo jurídico e para ser retirada de lá necessitará de outro ato jurídico, fruto de um processo, no presente caso, de um processo legislativo, uma vez que, em regra, nenhum dos outros poderes possuem a competência de retirar a lei do mundo jurídico.

   Nessa circunstância, o nosso pensamento converge em direção da teoria Pontesiana, como bem demonstra Lourival Vilanova em seu prefácio: “12. Utilizamos os conceitos de validade e eficácia tomando-os de PONTES DE MIRANDA. Sua teoria é sobre a validade (e a invalidade) de atos jurídicos. A invalidade, na espécie de nulidade, acarreta a ineficácia. Corta o lado efectual da relação jurídica: direitos/deveres, pretensões/obrigações, ações/exceções. O ato jurídico, em direito privado ou público, em regra, é o ato sem-efeitos, que requer, em nosso sistema, ser desconstituído processualmente, passando para o nível da inexistência.” (VILANOVA, Lourival. Causalidade e Relação no Direito, 4 ed., São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2000, p. 12).

   Assim, ainda, dentro da visão clássica, só há um único ato capaz de desjurisdicizar uma lei: outra lei ou ato de igual envergadura. Logo, tomando por parâmetro, as características gerais do controle concentrado de constitucionalidade, parece claro observarmos que o principal efeito desse controle é revogar (entenda-se aqui no exato sentido de conduzir o ato jurídico lei para a inexistência jurídica) a lei ou o ato normativo inconstitucional, com poderes, inclusive, de determinar a partir de quando se opera a revogação. Não por outra razão, os processos de controle concentrado de constitucionalidade são denominados de objetivos. Por isso, o controle de constitucionalidade, ainda que exercido pelo órgão máximo do judiciário, é refratário de competências legislativas, legitimadas exclusivamente pelo poder soberano do povo em Assembléia Constituinte. Noutra banda, já no que concerne ao controle difuso, consoante demonstraremos em oportunidade específica, tal não ocorre do mesmo modo, pois neste não há competência para promover a revogação da lei, mas tão-só a possibilidade de declarar a sua invalidade e aplicar o efeito conseqüente da inconstitucionalidade que é o corte do lado efectual do ato jurídico lei.

   Noutras palavras, como a lei inválida, por vício de inconstitucionalidade, é ato jurídico impedido de ingressar no plano da eficácia e, por conseguinte, incidir sobre seus suportes fáticos. No controle difuso o juiz ou o tribunal apenas declara tal realidade de forma incidental para concluir pela não incidência da norma jurídica (ato jurídico lei) no caso concreto posto a exame em processo subjetivo. Aqui, ao contrário do que ocorre no controle concentrado, há produção de ato tipicamente jurisdicional sem capacidade de expurgar do sistema jurídico a lei declarada incidentalmente inconstitucional. É evolução, sem dúvida, da separação de poder, mas não deixa de revelar ainda limitação ao poder jurisdicional.

[18] PASQUALINI, Alexandre. Hermenêutica e sistema jurídico: uma introdução à interpretação sistemática do Direito, Livraria do Advogado: Porto Alegre: 1999, p. 9.

[19] BINENBOJM destaca que: “em passado não muito distante, considerava-se que a Constituição não seria autêntica norma jurídica, dotada de cogência e imperatividade, mas antes uma proclamação retórica de valores e diretrizes políticas. Os preceitos constitucionais deveriam inspirar o legislador, mas não poderiam ser diretamente aplicados pelos juízes na resolução de controvérsias judiciais. Os magistrados e operadores do Direito em geral deveriam fundamentar suas decisões exclusivamente nas leis em vigor, consideradas autênticas expressões da soberania popular. Nos países adeptos do sistema jurídico romano-germânico, esta concepção correspondeu ao período chamado ‘legicentrismo’, que tinha como pressuposto político-filosófico a visão rousseauniana da lei com encarnação da vontade geral do povo, aliada a uma leitura ortodoxa do princípio da separação de poderes, inspirada em Montesquieu, pela qual o juiz nada mais seria do que ‘a boca que pronuncia as palavras da lei’.” (op. cit. p. 61/62)

[20] Maiores aprofundamentos sobre a dignidade da pessoa humana, vide SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fundamentais, 4ª ed., Livraria do Advogado: Porto Alegre, 2006.

[21] Nesse sentido BINENBOJM destaca que: “Nessa época, as leis eram ainda escassas, e o centro do ordenamento jurídico não era ocupado pela Constituição, mas pelo Código Civil – considerado verdadeira Constituição das relações privadas. Contudo, uma série de fatores contribuiu para a derrocada desse modelo e para a ascensão de um novo paradigma jurídico, no qual se vai atribuir às Constituições um papel muito mais destacado no sistema normativo. Por um lado, com a crise do Estado liberal-burguês e advento do Welfare State, assistiu-se a um vertiginoso processo de ‘inflação legislativa’. O Estado, que antes se ausentava do cenário das relações econômicas e privadas, foi convocado a intervir nesta seara, e assim o fez, dentre outras formas, pela edição de normas jurídicas com freqüência cada vez maior. Uma das conseqüências desta volúpia legiferente foi exatamente a desvalorização da lei. Ademais, a multiplicação de normas jurídicas, que passavam a constituir novos microssistemas normativos, nutridos por valores e objetivos por vezes dissonantes daqueles, de inspiração liberal, acolhidas pelo Código Civil, importou em movimento de ‘descodificação’ do Direito. Com isso, o Código foi perdendo progressivamente a posição de centralidade que até então desfrutava na ordem jurídica. Paralelamente a esse fenômeno, a jurisdição constitucional foi se ampliando e fortalecendo em todo o mundo ao longo do século XX, sobretudo após a traumática experiência do nazi-facista. A barbárie perpetrada pelas potências do Eixo com o beneplácito do legislador revelou, com eloqüência, a imperiosa necessidade de fixação de limites jurídicos para a ação de todos os poderes públicos, inclusive os parlamentos.” (op. cit. p. 62)

[22] AYRES BRITTO, Carlos. Teoria da Constituição, Forense: Rio de Janeiro, 2003.

[23] PERELMAN, op. cit.; e FREITAS. Juarez. A substancial inconstitucionalidade da lei injusta, Vozes: Porto Alegre, 1989.

[24] PASQUALINI, op. cit. p. 9/10.

[25] ibdem.

[26] Vide Teoria da Incidência da Norma Jurídica e Tratado de Direito Privado, T. I.

[27] Idem, p. 11.

[28] PIRES ROSA, André Vicente. Las omissiones legislativas y su control constitucional, Renovar: Rio de Janeiro, 2006, p.14/15.

[29] Grau, Eros Roberto. Voto vista na Rcl. 4335, STF: Brasília, 2007, <http://www.stf.gov.br/imprensa/pdf/rcl4335eg.pdf>, acessado em 24.4.2007.

[30] http://www.direitodoestado.com/revista/REDE-9-JANEIRO-2006-CALMON%20PASSOS.pdf, acessado em 4.4.2007.

[31] BAPTISTA DA SILVA, Ovídio Araújo e GOMES, Fábio. Teoria Geral do Processo Civil, 3ª ed., RT: São Paulo, 2002. p. 73/74.

[32] PONTES DE MIRANDA, Comentários ao Código de Processo Civil, Tomo I, 5ª ed., Forense: Rio de Janeiro, 1999, p. 81.

[33] Nesse sentido KELSEN, Hans. Jurisdição Constitucional, introdução e revisão técnica Sérgio Sérvulo da Cunha, Martins Fontes: São Paulo, 2003, p. 151/152.

[34] Não há porém, legítimo consenso sobre o tema, pois para parte da doutrina, espelhadas nas lições de KELSEN o órgão que exerce a função de controlar a constitucionalidade da leis, quando no exercício desse controle, é legislativo. Entretanto, em sentido contrário, para o qual, inclusive, convergimos, MIRANDA leciona que: “qual seja a natureza destas decisões do Tribunal Constitucional é outrossim controvertido. Kelsen sustenta ser ela legislativa, pois anular uma lei seria ainda editar uma norma geral, editá-la com sinal negativo. A benefício de uma análise variável de ordenamento para ordenamento, não parece correcta essa qualificação: desde que o Tribunal não possa conhecer de qualquer questão de inconstitucionalidade senão a requerimento de outra entidade (princípio do pedido), desde que tenha de decidir segundo critérios jurídicos, desde que não possa modificar as suas decisões e desde que os seus titulares tenham o estatuto e gozem das garantias de independência dos juízes, deve reconhecer-lhe a natureza jurisdicional.” (MIRANDA, Jorge. Teoria do Estado e da Constituição, Forense: Rio de Janeiro, 2002, p. 502.)

[35] http://www.direitodoestado.com/revista/REDE-9-JANEIRO-2006-CALMON%20PASSOS.pdf, acessado em 4.4.2007.

[36] ibidem.

[37] Sobre o problema da objetivação do controle difuso se constitucionalidade vide nota 42.

[38] Para maiores aprofundamentos, vide: LIMA, Jonatas Vieira de. A tendência de abstração do controle difuso de constitucionalidade no direito brasileiro . Jus Navigandi, Teresina, ano 11, n. 1320, 11 fev. 2007. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=9485>. Acesso em: 04 abr. 2007.; SOBRINHO, Suian Alencar. Ocaso do julgamento a varejo: comentários sobre a Lei nº 11.418/2006. Jus Navigandi, Teresina, ano 11, n. 1283, 5 jan. 2007. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=9356>. Acesso em: 04 abr. 2007.; e DIDIER JR, Fredie. Ações Constitucionais. Edições Juspodivm: Salvador, 2005.

[39] SINFUENTES, Mônica. Súmula Vinculante, um estudo sobre o poder normativo dos tribunais, Saraiva: São Paulo, 2005, p. 277.

[40] Op. cit. p. 133.

[41] E assim, mais uma vez, o parlamento brasileiro se vê à beira de uma crise institucional capaz de abalar o próprio regime democrático, pois conferiu ao Judiciário o “sacro-santo” poder de tornar seu entendimento normativamente até mesmo mais forte que a lei, fruto de um processo democrático, ainda que não nos moldes gregos da democracia direta, legítimo e soberano. No passado, especialmente, no governo de Juscelino Kubitschek – curto período democrático brasileiro entre as duas ditaduras –, quando o então Presidente Juscelino pediu licença à Câmara dos Deputados para processar o Dep. Carlos Lacerda, devido ao seu discurso no plenário da Câmara, no qual fez acusações ao governo, decorrentes de um telegrama recebido pelo Itamaraty acerca da Petrobrás S.A.. Àquela época o Poder Executivo esteve na iminência de, repetindo os fatos passados, violar as prerrogativas do parlamento brasileiro, especialmente com a conivência dos próprios parlamentares, uma vez que a maioria da bancada era governista. Entretanto, naquele instante o parlamento disse não à quebra da separação de poderes e negou a licença para processar o Dep. Carlos Lacerda da UDN, pois este exercia apenas o seu mister e, por conseguinte, estava acobertado pela imunidade parlamentar. (Portal Interlegis. História Legislativo - Câmara dos Deputados –  DISCURSO DE CARLOS LACERDA SOBRE A PROPOSTA DE LICENÇA DA CÂMARA PARA ELE SER PROCESSADO E DEFESA DO PARLAMENTARISMO EM 16 DE MAIO DE 1957 <http://www2.interlegis.gov.br/interlegis/processo_legislativo/20050124115411/20050124115504/view?page=histri73.htm>, acessado em 20.4.2007)

Hoje, a história se repete, porém com um único diferencial, o Poder que invade e ameaça o Legislativo não é o Executivo, mas o Judiciário. Diante disso, parece prudente o alerta quanto ao perigo da súmula vinculante, não para o próprio judiciário atual, especialmente regido pelo decisionismo fortuito de seus julgadores, mas para o próprio soberano do poder: o povo. Por isso, sempre buscaremos uma interpretação do instituto da súmula vinculante que una a modernidade que a sociedade hodierna carece, quanto ao seu sistema judicial e processual, com a própria preservação da responsividade da atuação dos poderes.

[42] Transcrevemos aqui trechos do voto vista do Min. Eros Roberto Grau, na Rcl. 4335, no STF, in verbis:

 “O eminente Relator, jurista sensível à necessidade de adequação da Constituição ao devir social, em seu voto propõe se a promova no que tange aos efeitos das decisões do Supremo no exercício do controle difuso. E o faz extraindo o seguinte sentido do texto do inciso X do artigo 52 da Constituição, no quadro de uma autêntica mutação constitucional: ao Senado Federal está atribuída competência para dar publicidade à suspensão da execução de lei declarada inconstitucional, no todo ou em parte, por decisão definitiva do Supremo Tribunal Federal. A própria decisão do Supremo conteria força normativa bastante para suspender a execução da lei declarada inconstitucional. (...)O exemplo que no caso se colhe é extremamente rico. Aqui passamos em verdade de um texto [compete privativamente ao Senado Federal suspender a execução, no todo ou em parte, de lei declarada inconstitucional por decisão definitiva do Supremo Tribunal Federal] a outro texto [compete privativamente ao Senado Federal dar publicidade à suspensão da execução, operada pelo Supremo Tribunal Federal, de lei declarada inconstitucional, no todo ou em parte, por decisão definitiva do Supremo]. Eis precisamente o que o eminente relator pretende tenha ocorrido, uma mutação constitucional. Pouco importa a circunstância de resultar estranha e peculiar, no novo texto, a competência conferida ao Senado Federal --- competência privativa para cumprir um dever, o dever de publicação [= dever de dar publicidade] da decisão, do Supremo Tribunal Federal, de suspensão da execução da lei por ele declarada inconstitucional. Essa peculiaridade manifesta-se em razão da circunstância de cogitar-se, no caso, de uma situação de mutação constitucional. O eminente Relator não está singelamente conferindo determinada interpretação ao texto do inciso X do artigo 52 da Constituição. Não extrai uma norma diretamente desse texto, norma essa cuja correção possa ser sindicada segundo parâmetros que linhas acima apontei. Aqui nem mesmo poderemos indagar da eventual subversão, ou não subversão, do texto. O que o eminente Relator afirma é mutação, não apenas uma certa interpretação do texto do inciso X do artigo 52 da Constituição. (...) Obsoleto o texto que afirma ser da competência privativa do Senado Federal a suspensão da execução, no todo ou em parte, de lei declarada inconstitucional por decisão definitiva do Supremo Tribunal Federal, nele se há de ler, por força da mutação constitucional, que compete ao Senado Federal dar publicidade à suspensão da execução, operada pelo Supremo Tribunal Federal, de lei declarada inconstitucional, no todo ou em parte, por decisão definitiva do Supremo. Indague-se, a esta altura, se esse texto, resultante da mutação, mantém-se adequado à tradição [= à coerência] do contexto, reproduzindo-a, de modo a ele se amoldar com exatidão. A resposta é afirmativa. Ademais não se vê, quando ligado e confrontado aos demais textos no todo que a Constituição é, oposição nenhuma entre ele e qualquer de seus princípios; o novo texto é plenamente adequado ao espaço semântico constitucional. Ainda uma outra indagação será neste passo proposta: poderia o Poder Legislativo, no que tange à decisão a que respeita a Reclamação n. 4.335, legislar para conferir à Constituição interpretação diversa da definida pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento do HC n. 82.959, quando considerou inconstitucional o artigo 2o, § 1o, da Lei n. 8.072/90 [a chamada Lei dos crimes hediondos]? Entendo que não. (...) Diz ele: o Poder Legislativo pode exercer a faculdade de atuar como intérprete da Constituição, para discordar de decisão do Supremo Tribunal Federal, exclusivamente quando não se tratar de hipóteses nas quais esta Corte tenha decidido pela inconstitucionalidade de uma lei, seja porque o Congresso não tinha absolutamente competência para promulgá-la, seja porque há contradição entre a lei e um preceito constitucional. Neste caso, sim, o jogo termina com o último lance do Tribunal; nossos braços então alcançam o céu. Vou dizê-lo de outro modo, em alusão às faculdades de estatuir e de impedir, para o quê recorro à exposição contida no capítulo VI do Livro IX d'O espírito das leis(23), de MONTESQUIEU, sobre a distinção entre os poderes Legislativo e Executivo (23 Coleção Os Pensadores. v. XXI, trad. de Fernando Henrique Cardoso e Leôncio Martins Rodrigues. São Paulo, Editor Víctor Civita, 1973.) (distinção e não separação entre poderes --- não me cansarei de repeti-lo --- que disso jamais tratou o barão). Distinguindo entre faculdade de estatuir --- o direito de ordenar por si mesmo, ou de corrigir o que foi ordenado por outrem --- e faculdade de impedir --- o direito de anular uma resolução tomada por qualquer outro (isto é, poder de veto)(24) ---, entende deva esta última estar atribuída ao Poder Executivo, em relação às funções do Legislativo; com isso, o Poder Executivo faz parte do Legislativo, em virtude do direito de veto: “Se o Poder Executivo não tem o direito de vetar os empreendimentos do campo Legislativo, este último seria despótico porque, como pode atribuir a si próprio todo o poder que possa imaginar, destruiria todos os demais poderes”(25). “O Poder Executivo, como dissemos, deve participar da legislação através do direito de veto, sem o quê seria despojado de suas prerrogativas”(26). Bem se vê que MONTESQUIEU faz alusão a faculdades --- de estatuir e de impedir --- do Legislativo e do Executivo. Mas desejo referir, agora, a faculdade de impedir, do Judiciário, exercida em relação a atos do Legislativo. Ele, o Judiciário, pode [= deve] impedir a existência de leis inconstitucionais. Aí --- atualizo MONTESQUIEU --- como que um poder de veto do Judiciário. O Legislativo não poderá, nesta hipótese, retrucar, reintroduzindo no ordenamento o que dele fora extirpado, pois os braços do Judiciário nesta situação alcançam o céu. Pode fazê-lo quando lance mão da faculdade de estatuir, atuando qual intérprete da Constituição, por não estar de acordo com a interpretação dada pelo Supremo Tribunal Federal a um texto normativo. Mas não, repito, quando aquele que estou referindo como poder de veto do Judiciário [= poder de afirmar (24 Ob. cit., pág. 159. 25 Idem, pág. 159. 26 Idem, pág. 161.) a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo] houver sido exercido. Outra questão a ser imediatamente introduzida, anexa à anterior, diz com a impossibilidade de o Senado Federal permanecer inerte, da sua inércia resultando comprometida a eficácia da decisão expressiva do que venho referindo como poder de veto exercido pelo Supremo. A resposta é óbvia, conduzindo inarredavelmente à reiteração do entendimento adotado pelo Relator, no sentido de que ao Senado Federal, no quadro da mutação constitucional declarada em seu voto --- voto dele, Relator --- e neste meu voto reafirmada, está atribuída competência apenas para dar publicidade à suspensão da execução de lei declarada inconstitucional, no todo ou em parte, por decisão definitiva do Supremo Tribunal Federal. A própria decisão do Supremo contém força normativa bastante para suspender a execução da lei declarada inconstitucional(27). No caso, ademais, trata-se da liberdade de pessoas, cumprimento de pena em regime integralmente fechado. A não atribuição, à decisão do STF no HC n. 82.959, de força normativa bastante para suspender a execução da lei declarada inconstitucional compromete o regime de cumprimento de pena, o que não se justifica a pretexto nenhum. Julgo procedente a reclamação. (27 A resolução do Senado consubstancia ato normativo vinculado --- decorrente, diria eu --- à decisão declaratória de inconstitucionalidade, ato secundário, conseqüente à comunicação do julgamento pelo Supremo Tribunal Federal, como assevera JOÃO BOSCO MARCIAL DE CASTRO, em O controle de constitucionalidade das leis e a intervenção do Senado Federal, mimeografado, Brasília, 2.006.)” [Supremo Tribunal Federal – STF – <http://www.stf.gov.br/imprensa/pdf/ rcl4335eg.pdf>, acessado em 24.4.2007].

[43] Só a título de exemplificar a concreta possibilidade de ocorrência desse fenômeno, basta-nos colacionar outros trechos do voto do Min. Eros Roberto Grau, na Rcl. 4335, in verbis:

 “(...) Breve relato da nossa sessão plenária do dia 28 de março passado: julgamos algumas ADI’s e alguns RE’s; debatia-se depósito em dinheiro como requisito necessário ao exercício, pelo administrado, do direito ao recurso administrativo; julgamos inconstitucional a exigência, em mais de uma de suas manifestações; consta que no mesmo dia do julgamento, ao final da tarde, algum ou alguns contribuintes obtiveram o levantamento de depósitos que teriam anteriormente efetuado; se isso não for veraz, passa por ser na minha versão dos fatos; mas isso apenas se tornara possível, na realidade ou no conto que eu conto, porque a matéria à qual corresponderam os depósitos de que se tratava foi decidida em uma das ADI’s; as decisões tomadas em RE’s, atinentes a outra matéria, não aproveitarão os particulares senão quando, um dia, o Senado Federal vier a suspender a execução, no todo ou em parte, da lei que veicula a exigência de depósito... Um dia, no futuro... Esse relato diz tudo. Quem não se recusar a compreender perceberá que o texto do inciso X do artigo 52 da Constituição é --- valho-me da dicção de HSÜ DAU-LIN18 --- obsoleto. A esta altura a doutrina dirá que não, que entre nós coexistem a modalidade de controle concentrado e a de controle difuso de constitucionalidade e que a nossa tradição é a do controle difuso, atribuído à competência do Poder Judiciário desde a Constituição de 1.891. Que o Senado Federal participa desse controle a partir de 1.934, a ele competindo suspender, por meio de resolução, a execução de lei declarada inconstitucional por decisão definitiva do STF. Que o controle concentrado de constitucionalidade veio bem depois, inicialmente quando alterada a redação do artigo 101 da Constituição de 1.946 pela Emenda Constitucional n. 16/65, após em 1.988, com a incorporação ao nosso direito da Ação Direta de Inconstitucionalidade. Que a decisão tomada no âmbito do controle concentrado é dotada, em regra, de efeitos ex tunc(19); a definida no controle difuso, de efeitos ex tunc entre as partes. Que os efeitos da decisão em recurso extraordinário sendo inter partes e ex tunc, o Supremo, caso nela declare a inconstitucionalidade da lei ou do ato normativo, remeterá a matéria ao Senado da República, a fim de que este suspenda a execução dessa mesma lei ou ato normativo. Que, se o Senado suspender a execução da lei ou ato normativo declarado inconstitucional pelo STF, agregará eficácia erga omnes e efeito ex (18 Mutación de la Constitución, cit., pág. 67. 19 A exceção está prevista na Lei 9.868.) nunc a essa decisão(20). Por fim a doutrina dirá que, a entender-se que uma decisão em sede de controle difuso é dotada da mesma eficácia que uma proferida em controle concentrado, nenhuma diferença fundamental existiria entre as duas modalidades de controle de constitucionalidade. Sucede que estamos aqui não para caminhar seguindo os passos da doutrina, mas para produzir o direito e reproduzir o ordenamento. Ela nos acompanhará, a doutrina. Prontamente ou com alguma relutância. Mas sempre nos acompanhará, se nos mantivermos fiéis ao compromisso de que se nutre a nossa legitimidade, o compromisso de guardarmos a Constituição. O discurso da doutrina [= discurso sobre o direito] é caudatário do nosso discurso, o discurso do direito. Ele nos seguirá; não o inverso.” (grifos nossos) [ibidem]

[44] Não olvidamos o processo de objetivação por qual passam as decisões do Supremo Tribunal Federal, especialmente no julgamento de Recursos Extraordinários. Porém, isso não implica ser esse o terreno adequado para o efeito que se pretende dar ao controle de constitucionalidade difuso. Prover o controle do caso concreto de força vinculante e, portanto, erga omnis é voltar na história e determinar o naufrágio da própria democracia constitucional de 1988. A história é rica em nos mostrar o problema que esse mesmo fenômeno causou na França, quando o juiz enviava para o parlamento o caso concreto para ser regrado. A vontade geral, ou a utilitas publica, uma das mais benfazejas do pensamento kantiano sucumbe sempre diante da entronização irracional do arbítrio do caso concreto (Pasqualini), onde a exceção vira a regra e todo o sistema jurídico vira ao averso, a vontade geral e popular, representada pelo parlamento e pela comunidade, dá lugar ao atendimento do interesse particular, de modo que a minoria (mais forte) derrota a maioria (mais fraca) e a democracia se transforma em esquizofrenia ditatorial, na qual o poderoso até acredita e vê como verdade que a sua ação é para o bem da nação, onde tudo não passa de uma fantasia doentia desencadeada pela sedução desenfreada de poder. A direção para a qual ruma o STF é a da ditadura da toga, onde a vontade, na maioria das vezes, arbitrária, subjetiva, individual e antidemocrática do Plenário do STF submete toda a nação sem nenhum traço de respeito ao regime democrático. É sem dúvida uma perigosa tentativa de frutificação a semeadura da objetivação do controle de constitucionalidade no sistema difuso, concreto e subjetivo. Podemos, ao admitir isso anencefalicamente, estar cavando a nossa própria cova, pois a democracia, que aqui já é insipiente, não chegará nem à juventude e não passará de mais uma promessa que não se cumpre.

[45] Vide nota 15.

[46] Idem, p. 113.

[47] BONAVIDES, Paulo. Teoria do Estado, 6ª ed., rev. e amp., Malheiros Editores: São Paulo, 2007, p. 269.


Autor

  • Alessandro Samartin de Gouveia

    Promotor de Justiça do Estado do Amazonas. Possui graduação em Direito pelo Centro de Estudos Superiores de Maceió (2004). Pós-graduado em nível de Especialização em Direito Processual pela ESAMC/ESMAL(2006). Formação complementar em política e gestão da saúde público para o MP - 2016 - pela ENSP/FIOCRUZ. Pós-graduando em prevenção e repressão à corrupção: aspectos teóricos e práticos, em nível de especialização (2017/2018), pela ESTÁCIO/CERS. Mestre em direito constitucional pela Universidade de Fortaleza - UNIFOR. Tem experiência na área de Direito, com ênfase em Direito Público, atuando principalmente nos seguintes temas: súmula vinculante, separação dos poderes, mandado de segurança, controle de constitucionalidade e auto de infração de trânsito. http://orcid.org/0000-0003-2127-4935

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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

GOUVEIA, Alessandro Samartin de. Súmula vinculante: um limite e um convite à vontade de Poder. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 23, n. 5536, 28 ago. 2018. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/66628. Acesso em: 25 abr. 2024.