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Estado democrático de direito social

O poder político na Constituição Federal de 1988

Estado democrático de direito social: O poder político na Constituição Federal de 1988

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Reflexões sobre os desdobramentos do poder político na Constituição, a partir da constitucionalização do Estado de Direito para alcançar a concepção de democracia dentro da organização do Estado.

RESUMO: No Estado Democrático de Direito Social a questão que se põe é quanto à sua concepção jurídica, se burguesa ou se socialista, na Modernidade tardia. Foram utilizados o método dedutivo e a pesquisa bibliográfica para vislumbrar a conclusão de que os direitos fundamentais podem ser garantidos pelo acesso e pela participação popular no espaço político.

PALAVRAS-CHAVE: Carta Política de 1988; Direitos fundamentais; Estado Democrático de Direito Social; Soberania popular; Cidadania ativa.


INTRODUÇÃO

A necessidade de poder é uma realidade. No entanto, em um exercício saudável, o poder encontra na democracia a fórmula de compreensão “de todos” (ou da maioria) em um processo de decisão e organização dos rumos da vida em sociedade. Acontece que o espaço público não é uma mera reprodução dos espaços privados; a política se gradua na sociedade, atribuindo-se às pessoas o poder e a vontade de mudança, de certa forma, nos limites do Estado ou além deles.

Nesta senda, se insere uma preferência pelo Estado democrático de Direito Social, como atributo da forma-Estado definida pela Carta Política de 1988, com vistas ao seu maior potencial de realização da cidadania, do sentimento republicano e também pelo seu notável respeito aos valores da dignidade da pessoa humana e aos direitos fundamentais: individuais e sociais. Juridicamente, é pelo Estado democrático de Direito Social desenhado na Constituição que se construíram os mecanismos para o exercício do poder.

Desta forma, o objetivo deste artigo é demonstrar a constitucionalização do Estado Democrático como possibilidade de organização do poder e de realização dos direitos humanos fundamentais. A título de problematização, são colocadas as questões: É possível garantir direitos fundamentais pela mera organização do poder? A democracia exerce força suficiente para dirigir os rumos da sociedade? Há na Constituição de 1988 um modelo de organização do poder que viabiliza a participação popular? O que na CF/88 a credencia na forma superior de Carta Política, para além de “mais um” Texto Constitucional?

A partir disso, foram construídas as hipóteses, por meio do método dedutivo e da pesquisa do tipo bibliográfica, revisitando textos jurídicos, a legislação e trabalhos de autores principalmente pesquisadores do Direito Constitucional. O artigo foi dividido em cinco partes para favorecer ao corte metodológico, trazendo 1) a política na Constituição de 1988, 2) seguida da constitucionalização do Estado Democrático, 3) encaminhando-se à soberania popular na Constituição e 4) a estrutura do Estado, e, por fim, 5) a separação dos poderes.


1 A POLÍTICA NA CF88

Os primeiros direitos humanos tinham natureza negativa (Habeas corpus), ou seja, constituíam-se na obrigação do Estado de não-fazer ou deixar de cometer o arbítrio (TAVARES, 2007). Neste sentido, uma finalidade do Estado – como obrigação positiva, de fazer – é criar meios para a construção da sociedade justa. Inicialmente, os objetivos do Estado eram de se coibir ações autoritárias do poder. Para Loewenstein (1979), citado por Tavares (2007), a própria divisão dos poderes deveria ser revista, substituída por novas atribuições propriamente políticas: 1. A decisão política conformadora ou fundamental; 2. A execução desta decisão política; 3. O controle político.

O que certamente imporia nova orientação aos objetivos estatais destilados na Carta Política de 1988. Desse modo, a Constituição derivaria a Teoria do Estado, definiria e articularia os preceitos e as finalidades do Estado; por isso, pela Constituição desfila a essência política do Estado: “O objeto da Constituição consiste na estrutura fundamental do Estado e da sociedade” (MORAES, 2003, p. 68). Nesta sequência, a definição ou restrição jurídica do tema, sobretudo no que se aplica ao direito brasileiro, consta da previsão constitucional:

Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil:

I - construir uma sociedade livre, justa e solidária;

II - garantir o desenvolvimento nacional;

III - erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais;

IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.

Para o constituinte brasileiro, as finalidades do Estado coincidem com seus objetivos. O artigo 3º da CF/88 confirma as chamadas “proclamações emblemáticas”, com evidente valor literário (libertário) e simbólico, no mesmo sentido que já vinha expresso no preâmbulo. Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembléia Nacional Constituinte para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias, promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL (in verbis).

Na utopia do art. 3º está enraizada uma “consciência do amanhã”, como dialética entre a crítica do presente e a proposição do futuro. Propõem-se uma consciência emancipadora. Nesta utopia do possível está clara a intenção do constituinte em asseverar pela construção de uma sociedade mais justa; há no texto constitucional uma proposição sociológica como “pensamento político dinâmico”: o aplicador da lei constitucional deve ter uma atuação concreta na realidade. Uma vez estabelecida a superioridade hierárquica dos objetivos do Estado brasileiro no texto legal, evita-se qualquer conflito entre a lei e o justo.

Neste afã, os objetivos fundamentais são enunciados de forma objetiva (construir, garantir, erradicar, reduzir, promover). Ademais, nos títulos VII e VIII – ordem econômica e social – estão previstos os meios e os instrumentos com vistas à realização dos objetivos do Estado (CARVALHO, 2009). Entretanto, no exemplo da Constituição Portuguesa, que serviu de lastro para a CF/88, o rol de tarefas precípuas ou finalidades previstas ao Poder Público é mais amplo (Artigo 9.º):

a) Garantir a independência nacional e criar as condições políticas, económicas, sociais e culturais que a promovam;

b) Garantir os direitos e liberdades fundamentais e o respeito pelos princípios do Estado de direito democrático;

c) Defender a democracia política, assegurar e incentivar a participação democrática dos cidadãos na resolução dos problemas nacionais;

d) Promover o bem-estar e a qualidade de vida do povo e a igualdade real entre os portugueses, bem como a efectivação dos direitos económicos, sociais, culturais e ambientais, mediante a transformação e modernização das estruturas económicas e sociais;

e) Proteger e valorizar o património cultural do povo português, defender a natureza e o ambiente, preservar os recursos naturais e assegurar um correcto ordenamento do território;

f) Assegurar o ensino e a valorização permanente, defender o uso e promover a difusão internacional da língua portuguesa;

g) Promover o desenvolvimento harmonioso de todo o território nacional, tendo em conta, designadamente, o carácter ultraperiférico dos arquipélagos dos Açores e da Madeira;

h) Promover a igualdade entre homens e mulheres.

Os manuais portugueses trazem a recomendação de separarmos os fins de Estado entre tarefa e atividade: “Enquanto tarefa encontramos a sua consagração constitucional no disposto no artigo 9.º da CRP, que se refere às principais tarefas do Estado Português [...] Enquanto atividade, as funções do Estado podem definir-se como um conjunto de atos destinados à prossecução de um fim comum ou semelhante” (FONTES, 2009, p. 30-31).

Muito antes disso, entretanto, o bem comum como bem público já fora anunciado. Na percepção religiosa, mas vocacionada para o infinito social é clara a orientação provinda da ética social como compromisso com a coisa pública. Isto é, a finalidade do bem comum coincide com os objetivos do Estado Republicano: 

Hoje em dia se crê que o bem comum consiste sobretudo no respeito aos direitos e deveres da pessoa humana. Oriente-se, pois, o empenho dos poderes públicos, sobretudo no sentido de que esses direitos sejam reconhecidos, respeitados, harmonizados, tutelados e promovidos, tornando-se assim mais fácil o cumprimento dos respectivos deveres. A função primordial de qualquer poder público é defender os direitos invioláveis da pessoa e tornar mais viável o cumprimento dos seus deveres. Por isso mesmo, se a autoridade não reconhecer os direitos da pessoa, ou os violar, não só perde ela a sua razão de ser como também as suas injunções perdem a força de obrigação em consciência (BOMBO, 1993, p. 33 – grifos nossos).

A Encíclica Pacem in Terris, de João XXIII, também é definida como a Encíclica da Paz. Por outro lado, definindo-se o Estado como capacidade política organizada para o exercício do governo, apesar das dificuldades já apontadas por Reale (2000), cabe ressaltar que a finalidade precípua do governo é “assumir” o desenvolvimento nacional através da intervenção econômica – que pode ter como finalidade o bem estar social. Assim, tudo o que não é Estado, mas que se configura como agente político, é da ordem da socialmente civil. Desse modo, a legitimação decorre do sentido atribuído ao próprio Estado; quando se harmonizam o poder do Estado com a finalidade do Estado (na idealidade constitucional).

A dificuldade de se definir o que é paz social, ou até onde este objetivo deve se curvar à sobrevivência objetiva do Poder Político, acabou por restringir o alcance dessa concepção. Por isso, para muitos, a principal finalidade do Estado é a pacificação social a fim de se assegurar a Razão de Estado como última instância ou reserva de poder. Isto é, a finalidade em comum a todos os Estados seria unicamente a manutenção do poder. O que ainda não corresponde à plena verdade, se pensarmos nos protetorados em que há divisão do poder ou governos de soberania conjunta (na formação do Congo, por exemplo) e/ou na aquisição de porções territoriais e abdicação integral da soberania, como é o caso de Porto Rico, inserindo-se como Estado-membro dos EUA.

Por essas razões publicistas, para o Estado Moderno em sua fase atual, mas desde o fim da Segunda Guerra Mundial, estabelecer uma ordem jurídica democrática e impenetrável ao uso/abusivo do poder de exceção passou a ser uma fixação constitucional. Todavia, além de suplantar a tese de “ordem e progresso”, como finalidade estatal, a questão passaria a definir o que se entende pela ordem jurídica como finalidade do Estado.

Neste âmbito, a cultura e a política tornam-se instituições públicas, mas essencialmente como vivência pública, no sentido de que passa a haver um controle popular, além do domínio político-institucional dos aparelhos ideológicos e repressores do Estado. Na modernidade clássica, do Estado Moderno até fins do Estado Social nas décadas de 60-70, o Estado de Direito transbordou de princípios e de valores (CANOTILHO, 1999). Porém, mesmo com esse transbordamento de princípios humanizantes, o direito público não se desapegou do privatismo que tem por base o direito à propriedade. Portanto, nem mesmo o chamado Welfare State foi capaz de bloquear o privado em razão do público – ao contrário, estimulou-o:

A Lei Fundamental  contém, em primeiro lugar, condições para a efetividade real de importantes institutos jurídico-privados e os protege de uma supressão ou de um esvaziamento por meio da própria lei, oferece assim um seguro aos fundamentos do Direito Privado que, por si mesmo, não poderia produzir, de atualidade por exemplo às garantias do matrimônio e da propriedade [...] produz assim uma certa concordância objetiva entre a ordem do Estado social de Direito e o conteúdo do ordenamento jurídico-privado [...] A liberdade privada da pessoa [...] é requisito para as decisões responsáveis [...] Na autodeterminação e na própria responsabilidade se manifesta em parte essencial o tipo de pessoa de que parte a Lei Fundamental e do que depende a ordem constitucional [...] O Homem como pessoa livre, autodeterminada e responsável só pode existir onde o ordenamento jurídico abre possibilidades para a autonomia do pensamento e de ação (HESSE, 2001, p. 83-87 – grifo nosso).

Mas, persiste a questão de se saber com mais clareza de que indivíduo está se falando – se mais público ou mais privado:

Só em homens que pensam, julgam e atuam por si mesmos descansa o potencial de novas ideias, concepções e iniciativas irrenunciáveis para a comunidade, sem as quais esta com o tempo haverá de se empobrecer, se não fossilizar-se, cultural, econômica e politicamente, e das quais dependerá de forma crescente em um tempo de trocas fundamentais como é o nosso (HESSE, 2001, p. 88).

Assim, depois de sofrer uma restrição jurídica aos caprichos do Poder Político, concluindo-se essa transformação na tese do Bem Público, agora, politicamente, legitima-se o mecanismo instrumental autotransformador do Estado Moderno (Kliksberg, 1993, p. 76-77 – grifos nossos). Quando as bases sociais se desestruturam, também revelaram as evidências de problemas emocionais e de condutas antissociais. Precisamos recuperar a ética e relacioná-la com a economia, nessa visão abrangente do direito ao desenvolvimento humano. Foi com esta perspectiva que a ordem jurídica como defesa da unidade política foi elevada à condição de tarefa do Estado.

Nem todo Estado define, objetivamente, e põe em prática, os fins a que aludiu em sua organização política e constitucional. Por isso, podem estar evidentemente em conflito com os “fins subjetivos” indicados por seus cidadãos. Desse modo, o Estado tem uma função objetiva e isto congrega uma função social, como ação social objetiva: “o Estado não é possível sem uma atividade conscientemente dirigida a um fim, a partir de certos homens em seu interior. Os fins estabelecidos por esses homens atuam causalmente sobre outros homens como elementos indutores de sua vontade” (Heller, 1998, p. 258). O Estado existe unicamente em seus efeitos. O poder não é, pois, o fim do Estado.

Portanto, a função (como finalidade) do Estado consiste na organização social-territorial fundada na necessidade histórica de um status vivendi comum, que harmonize todas as oposições de interesses dentro de um território, e que seja limitado em soberania pela existência de outros Estados de natureza semelhante. A finalidade do Estado Democrático de Direito Social é, enfim, garantir a liberdade material como recurso da Justiça Social. Esta é a República que queremos. Do que decorre a célebre divisão dos poderes.


2 A CONSTITUCIONALIZAÇÃO DO ESTADO DEMOCRÁTICO

Mas, de onde provém este espírito ou necessidade democrática? De forma conclusa e histórica, este processo é marcado pela década de 1950: um período de finalização do regime totalitário na Alemanha e a total rendição do Japão alinhado. Isto não quer dizer que os regimes totalitários em aspecto mundial tenham se findado igualmente: o stalinismo, por exemplo, perdura até 1954, além do franquismo, na Espanha, e do salazarismo, em Portugal. Por isso, essa democracia moderna receberá a alcunha institucional de Estado Democrático. Para Celso Bastos (2001, p. 164-165), entretanto, este processo de democratização se inicia no limiar do século XX:

Desencadeia-se, então, um processo de democratização do Estado; os movimentos políticos do final do século XIX, início do XX, transformam o velho e formal Estado de Direito num Estado Democrático, onde além da mera submissão à lei deveria haver a submissão à vontade popular e aos fins propostos pelos cidadãos. Assim, o conceito de Estado Democrático não é um conceito formal, técnico, onde se dispõe um conjunto de regras relativas à escolha dos dirigentes políticos. A democracia, pelo contrário, é algo dinâmico, em constante aperfeiçoamento, sendo válido dizer que nunca foi plenamente alcançada. Diferentemente do Estado de Direito — que, no dizer de Otto Mayer, é o direito administrativo bem ordenado — no Estado Democrático importa saber a que normas o Estado e o próprio cidadão estão submetidos.

Aqui, não expressamos uma divergência, pois a Constituição de Weimar já era parte desse resultado de democratização do direito político, mas frisamos que a democracia plebiscitária como a compreendemos (e praticamos) hoje provém do fim dos Estados Autocráticos da Segunda Guerra Mundial e desse revigoramento das instituições políticas populares. O denominado Estado Democrático (democracia plebiscitária de cunho popular) alça seus primeiros voos ao findar da Segunda Guerra, como corretivo às barbaridades cometidas em nome do povo, e por isso teria de assegurar a constitucionalização de novos direitos.

Não é à toa, portanto, que nasce juntamente com a formação da ONU e a Declaração dos Direitos Humanos (1948). No Brasil, a Constituição de 1946  teria de promover algum acerto de contas com o populismo getulista: alinhado a Mussolini e depois pressionado pelos aliados. Nesta Constituição, a igualdade política dos eleitores brancos e negros, e entre homens e mulheres sairia fortalecida, mesmo que os analfabetos não tivessem direito de voto – ao contrário de hoje – como constava do art. 132, bem como a delimitação dos direitos sociais ganharia novo fluxo. Traz-se o texto da Constituição de 1946:

Art 132 - Não podem alistar-se eleitores:

I - os analfabetos;

II - os que não saibam exprimir-se na língua nacional;

III - os que estejam privados, temporária ou definitivamente, dos direitos políticos.

Parágrafo único - Também não podem alistar-se eleitores as praças de pré, salvo os aspirantes a oficial, os suboficiais, os subtenentes, os sargentos e os alunos das escolas militares de ensino superior. (grifos nossos).

A defesa dos direitos fundamentais já aparece clara, inclusive imputando crime de responsabilidade do Presidente da República:

Art 89 - São crimes de responsabilidade os atos do Presidente da República que atentarem contra a Constituição federal e, especialmente, contra:

I - a existência da União;

II - o livre exercício do Poder Legislativo, do Poder Judiciário e dos Poderes constitucionais dos Estados;

III - o exercício dos direitos políticos, individuais e sociais;

IV - a segurança interna do País; V - a probidade na administração; VI - a lei orçamentária;

VII - a guarda e o legal emprego dos dinheiros públicos; VIII - o cumprimento das decisões judiciárias. Parágrafo único - Esses crimes serão definidos em lei especial, que estabelecerá as normas de processo e julgamento. (grifo nosso)

Na Constituição Federal de 1946 também se notava um excesso de zelo em relação aos regimes de exceção (fato compreensível se lembrarmos do nazi-fascismo), com a defesa clara dos direitos e dos princípios democráticos – tanto no art. 89, III, que punia diretamente o presidente, quanto no artigo 141, §13: “É vedada a organização, o registro ou o funcionamento de qualquer Partido Político ou associação, cujo programa ou ação contrarie o regime democrático, baseado na pluralidade dos Partidos e na garantia dos direitos fundamentais do homem” (grifo nosso). Note-se, mais uma vez, a clara preocupação com os direitos humanos (na grafia dos direitos humanos fundamentais).

Retomamos parte desse quadro histórico e conceitual do Estado Democrático, no Brasil e em Portugal, porque esta será a base do posterior Estado Democrático de Direito Social. Na CF/88, tempos em que se acertava contas com o regime militar e estava absorto o discurso proto-fascista, os cuidados explícitos com a democracia foram reduzidos, como se vê no art. 5º: XLIV - constitui crime inafiançável e imprescritível a ação de grupos armados, civis ou militares, contra a ordem constitucional e o Estado Democrático (in verbis);

Advoga-se, hoje, que a implicação de estarem “armados” deve receber uma conotação extensiva, alargando-se o sentido para armados de ódio, de ranço autoritário, classista, racista, homofóbico, antidemocrático – em suma, e não apenas armados de instrumentos bélicos letais. Afinal, quem manda, a voz de comando, costuma matar muito mais do que aquele indivíduo que porta uma arma de fogo. Esta é a lembrança de Goebbels, Ministro da Propaganda Nazista.

Em Portugal, com a Revolução dos Cravos , a primeira grande frente de luta popular contra a ditadura foi o movimento operário. A classe operária intervinha como vanguarda em toda a luta antifascista, em todo o processo popular em prol dos direitos e das garantias democráticas. Note-se, enfim, que aqui popular é sinônimo de operário (ou de trabalhador, como se requer atualmente).

É de fundamental importância reter essa imagem da gradativa constitucionalização dos direitos fundamentais, das garantias democráticas e das liberdades públicas, pois este é o fermento ou estopim do quadro institucional e jurídico do Estado Democrático de Direito Social. Para Paulo Napoleão Nogueira da Silva (2002, p. 28), trata-se de controlar o arbítrio governamental ou abuso de poder:

O “Estado Democrático de Direito” ao qual alude a Constituição Federal brasileira, assim, é algo mais do que o simples “Estado Democrático”; destina-se a limitar o poder político, tornar em qualquer hipótese garantido o exercício dos direitos substanciais que consagra a todos os membros da sociedade, a tornar impossível o arbítrio governamental, e a tornar – tanto quanto possível, antecipadamente – previsíveis quaisquer consequências do exercício do seu poder pelos cidadãos, assim como as consequências dos atos do Poder Público genericamente considerado.

No plano político-constitucional brasileiro, para além dessa importantíssima questão do controle do poder institucional , temos que analisar a materialidade da justiça. Mais especificamente, temos a análise consagrada de José Afonso da Silva, para quem trata-se agora de um Estado Material de Direito. Tecnicamente, teríamos um “modelo jurídico-estatal” menos dogmático e menos injusto, ou o perfil de um Estado que pudesse colocar a dogmática a serviço da justiça social. Com isto em mente, citando e reinterpretando Verdú, José Afonso da Silva (2005, p.115), ressalta que:

Mas, o Estado de Direito, que já não poderia justificar-se como liberal, necessitou, para enfrentar a maré social, despojar-se de sua neutralidade, integrar, em seu seio, a sociedade, sem renunciar ao primado do Direito. O Estado de Direito, na atualidade, deixou de ser formal, neutro e individualista, para transformar-se em Estado material de Direito, enquanto adota uma dogmática e pretende realizar a justiça social.

Então, a partir da constatação de que as máximas e os dogmas do liberalismo eram insuficientes para regular a crescente diacronia social, surge o Estado Social primeiro na forma do Estado do Bem Estar Social. Aliás, essa dinâmica social deverá expandir as cortinas do Estado de Direito Liberal, que é visto com as seguintes características:

a)submissão ao império da lei, que era a nota primária de seu conceito, sendo a lei considerada como ato emanado formalmente do Poder Legislativo, composto de representante do povo, mas do povo cidadão;

b) divisão de poderes, que separe de forma independente e harmônica os poderes Legislativo, Executivo e Judiciário, como técnica que assegure a produção das leis ao primeiro e a independência e imparcialidade do último em face dos demais e das pressões dos poderosos particulares;

c) enunciado e garantias dos direitos individuais. (SILVA, 2005, p. 112-113).

A noção de aprimoramento que envolve a superação do Estado Liberal para o Estado Social é o desafio que a Constituição Federal de 1988 se propôs a enfrentar; é a busca pelo Estado de Direito substancial, pautado na força dos valores sociais e solidários que estão vinculados na sua força normativa. Mas ainda é insuficiente a concepção do Estado Social de Direito, ainda que, como Estado Material de Direito, revele um tipo de Estado que tende a criar uma situação de bem-estar geral que garanta o desenvolvimento da pessoa humana. Sua ambiguidade, porém, é manifesta.

Primeiro, porque a palavra social está sujeita a várias interpretações. Todas as ideologias, com sua própria visão do social e do Direito, podem acolher uma concepção do Estado social de Direito, menos a ideologia marxista que não confunde o social com o socialista [...] Em segundo lugar, o importante não é o social qualificando o Estado, em lugar de qualificar o Direito. [...] a expressão Estado Social de Direito manifesta-se carregada de suspeição, ainda que se torne mais precisa quando se lhe adjunta a palavra democrático como fizeram as Constituições da República Federal da Alemanha e da República Espanhola para chamá-lo Estado Social e Democrático de Direito. Mas aí, mantendo o qualificativo social ligado a Estado, engastasse aquela tendência neocapitalista e a petrificação do Welfare State [...], delimitadora de qualquer passo à frente no sentido socialista (SILVA, 2005, p.115-116).

O que nos conduz à análise ou diagnóstico clássico de que apenas o social não qualifica legitimamente o direito quanto aos aspectos democráticos e humanitários. Aliás, um traço que ressaltaremos, logo adiante, ao apontar alguns documentos que regularizaram a condição do detento e do preso, sobretudo após a Segunda Guerra Mundial. Isto se deve ao fato de que tanto os Estados totalitários quanto a democracia liberal podem priorizar o social, por isso, não nos é suficiente neste momento a alegação sociológica de que o direito é um fato social. Daí a importância de se reler o Estado de Direito à base da democracia e do social – como é destacado neste tópico condizente com a insurgência do Estado Democrático no pós-guerra:

Talvez, para caracterizar um Estado não socialista preocupado, no entanto, com a realização dos direitos fundamentais de caráter social, fosse melhor manter a expressão Estado de Direito que já tem uma conotação democratizante, mas, para retirar dele o sentido liberal burguês individualista, qualificar a palavra Direito com o social, com o que se definiria uma concepção jurídica mais progressista e aberta, e então, em lugar de Estado social de Direito, diríamos Estado de Direito Social (SILVA, 2005, p. 116-117).

Este é o quadro que só irá se definir mais claramente quando o Estado assumir, portanto, o seu verdadeiro retrato democrático, pautando-se não só pela legalidade estrita, mas conferindo ao sentido transformador das leis – aqui insere-se a Constituição – como substancial representação do povo e de suas necessidades, no espaço público:

É precisamente no Estado Democrático de Direito que se ressalta a relevância da lei, pois ele não pode ficar limitado a um conceito de lei, como o que imperou no Estado de Direito Clássico. Pois ele tem que estar em condições de realizar, mediante lei, intervenções que impliquem diretamente uma alteração na situação da comunidade. Significa dizer: a lei não deve ficar numa esfera puramente normativa, não pode ser apenas lei de arbitragem, pois precisa influir na realidade social. E se a Constituição se abre para as transformações políticas, econômicas e sociais que a sociedade brasileira requer, a lei se elevará de importância, na medida em que, sendo fundamental expressão do direito positivo, caracteriza-se como desdobramento necessário do conteúdo da Constituição e aí exerce função transformadora da sociedade, impondo mudanças sociais democráticas ... (SILVA, 2005, p. 121)

De forma decorrente, esse período de formação do Estado Democrático também coincide com várias resoluções e declarações da ONU em defesa dos prisioneiros e detidos (quer sejam políticos ou militares, quer sejam presos comuns), como por exemplo as Regras Mínimas para o Tratamento dos Reclusos de 31 de julho de 1957. Além de muitos outros documentos que foram sendo firmados até o final dos anos 1970, como: “Convenção contra a Tortura e outros Tratamentos ou Penas cruéis, desumanos ou degradantes”; “Princípios básicos relativos ao tratamento de reclusos; Princípios de Ética Médica aplicáveis à função do pessoal de saúde, especialmente aos médicos, na proteção de prisioneiros ou detidos contra a Tortura e outros Tratamentos ou Penas cruéis, desumanas ou degradantes”; “Conjunto de Princípios para a Proteção de todas as Pessoas Sujeitas a qualquer forma de Detenção ou Prisão”; “Declaração sobre a proteção de todas as pessoas contra a tortura ou outros tratamentos ou penas cruéis, desumanas ou degradantes”; “Declaração sobre os princípios básicos de Justiça para as vítimas de criminalidade e de abuso de poder”. Este, digamos, é o referencial mínimo do que se convencionou chamar de direito humanitário – além das retificações e ratificações da Convenção de Genebra.

Esses documentos ou princípios são tomados como mais uma demonstração dessa preocupação com os direitos humanos fundamentais, porque esta seria a base de sustentação humanitária do Estado Democrático de Direito Social.


3 A SOBERANIA POPULAR NA CONSTITUIÇÃO DE 1988

A peça inaugural da ruptura com a visão singular do direito que se refletia com a manutenção da ditadura militar foi a Anistia, seguindo-se a Constituinte de 1985 e a Constituição Federal de 1988. Não por acaso, foi batizada de Constituição Cidadã. Com a sua promulgação, se ampliaram os postulados de direitos políticos das pessoas, bem como em texto constitucional foram fixados para que se tornarem direitos pétreos, especialmente, o sufrágio universal e a separação dos Poderes.

Sob a forma de dizer a nacionalidade, a Constituição de 1988 trouxe importantes critérios para definir quem é o povo brasileiro. No art. 12 estabeleceu não somente o jus sanguini como também o jus solis para os brasileiros natos, assim como conferiu o regime de aquisição da nacionalidade pela naturalização:

Art. 12. São brasileiros:

I - natos:

a) os nascidos na República Federativa do Brasil, ainda que de pais estrangeiros, desde que estes não estejam a serviço de seu país;

b) os nascidos no estrangeiro, de pai brasileiro ou mãe brasileira, desde que qualquer deles esteja a serviço da República Federativa do Brasil;

c) os nascidos no estrangeiro de pai brasileiro ou de mãe brasileira, desde que sejam registrados em repartição brasileira competente ou venham a residir na República Federativa do Brasil e optem, em qualquer tempo, depois de atingida a maioridade, pela nacionalidade brasileira

II - naturalizados:

a) os que, na forma da lei, adquiram a nacionalidade brasileira, exigidas aos originários de países de língua portuguesa apenas residência por um ano ininterrupto e idoneidade moral;

b) os estrangeiros de qualquer nacionalidade, residentes na República Federativa do Brasil há mais de quinze anos ininterruptos e sem condenação penal, desde que requeiram a nacionalidade brasileira.

Assim, a Constituição garante àqueles que se encontram em território brasileiro o princípio geral de igualdade, com os direitos fundamentais básicos não suprimíveis da pessoa humana, pois a todos é asseverada a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos do art. 5º. A preocupação constitucional com a questão do acesso ao direito fundamental de ser cidadão, é quase que exauriente do tema, especialmente porque o Pacto de San José da Costa Rica, em seu art. 20, esclarece que toda pessoa tem direito à nacionalidade (ARAUJO; NUNES JUNIOR, 2016, p. 289), desta forma a Constituição não poderia descuidar de tal questão de existência para o indivíduo.

Ainda se atrela à nacionalidade, o exercício dos direitos políticos, tanto para se exercer a cidadania ativa que na forma do direito de votar, de opinar e de participar, como também a oportunidade de se candidatar a cargos públicos eletivos ou de provimento por concurso de provas e títulos. De um modo especial, a Constituição de 1988 se preocupou com o acesso a certos cargos, quando reduziu aos brasileiros natos o acesso às presidências da República, da Câmara dos Deputados e do Senado Federal, bem como restringiu-se a brasileiros natos os cargos de Ministro do STF, de Ministro de Estado da Defesa, da carreira diplomática e de oficial das forças armadas. A preocupação, é óbvio, refere-se à Razão de Estado.

As distinções que há entre a condição de brasileiro nato e naturalizado são só aquelas consignadas na Constituição. Nisso, ela foi expressa no art. 12, §2ª, segundo o qual “a lei não poderá estabelecer distinção entre brasileiros natos e naturalizados, salvo nos casos previstos nesta Constituição. Não precisava dizê-lo; reforça, contudo, o princípio da não distinção e não preferências entre ambas as categorias de brasileiros (arts. 3º, IV e 19, III) e o princípio da igualdade entre elas, que encontra arrimo no caput do art. 5º, de modo que qualquer tratamento desigual, para situações iguais, envolvendo-as, infringe o princípio da isonomia consignado naqueles dispositivos.

A regra a seguir nessa matéria é a seguinte: se a Constituição só fala em brasileiro, sem qualificativo, para qualquer fim, a expressão inclui o nato e o naturalizado; se quer excluir este último, expressamente menciona brasileiro nato. (SILVA, 2005, p. 331-332)

Entender a questão da nacionalidade como um pressuposto da cidadania é importante para observar que o Estado brasileiro não faz acepção das pessoas na realização do processo democrático, no entanto, cabe diferenciar que o cidadão é aquele que tem direitos políticos de votar e ser votado, assumindo também suas consequências (SILVA, 2005, p. 346). Isto porque, a partir da ideia de que o cidadão é apto para a ação política, pesa sobre seus ombros a carga principiológica constitucional. A formatação do Estado Democrático de Direito Social reflete os conteúdos de uma democracia representativa, participativa e pluralista, com direitos e garantias fundamentais individuais, coletivas, sociais, culturais, assim como o respeito ao meio ambiente, às pluralidades étnicas e o acesso aos bens primários como condição da dignidade da pessoa humana: é “uma democracia, pois, com forte conteúdo social” (SILVA, 2005, p. 125).

Aparece, logo de início no texto constitucional, que “todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente” (art. 1º, parágrafo único), destacando-se, ainda, que esse exercício está pautado nos fundamentos da República, consoante a cidadania, a dignidade da pessoa humana, os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa e o pluralismo político (art. 1º). Após discorrer sobre os fundamentos, valores e objetivos do Estado Democrático de Direito Social (arts. 1º a 6º), e trazer um extenso rol de direitos fundamentais (arts. 5º a 12), a Constituição traz, no art. 14, a maneira como é exercido o poder:

Art. 14. A soberania popular será exercida pelo sufrágio universal e pelo voto direto e secreto, com valor igual para todos, e, nos termos da lei, mediante:

I - plebiscito;

II - referendo;

III - iniciativa popular.

Embora esteja no art. 14 da Constituição o primado da cidadania ativa, há outras formas, igualmente constitucionais de exercício da soberania popular, como por exemplo: a consulta prévia – ainda que plebiscitária – para criação de municípios (art. 18, §4º); o Conselho da República, composto por seis cidadãos eleitos em votação bicameral (art. 89. VII); os Conselhos de Políticas Públicas de planejamento municipal (art. 29, XII), de gestão da seguridade social (art. 194, parágrafo único, VII), de gestão das ações e serviços de saúde (art. 198, III), de atuação na área da assistência social (art. 204, II), de participação e de gestão democrática no ensino público (art. 206, VI).

Esta forma de disposição em Conselhos ativos – e outros consultivos – denota forte espírito constitucional de se avançar na descentralização e, sobretudo, na desconcentração do poder. Sob esta condição, de desconcentrar poderes à participação social, observa-se pois um postulado da Carta Política: não apenas disciplinar o Poder Político, não somente instaurar os direitos políticos, mas especialmente garantir, por meio da desconcentração do poder, a ação direta da sociedade na condução das políticas públicas. Na Carta Política de 1988, o “fazer-política” não se limita, obviamente, pelo direito de voto, posto que o poder desconcentrado exige um “fazer-política” difuso, desconcentrado, propriamente como arranjo político dos coletivos.

A par disso, a soberania popular se desenvolve continuamente com a inserção das pessoas no espaço público de decisões, garantido e denominando-se em direitos políticos:

O regime representativo desenvolveu técnicas destinadas a designação dos representantes do povo nos órgãos governamentais. A princípio, essas técnicas aplicavam-se empiricamente nas épocas em que o povo deveria proceder à escolha dos seus representantes. Aos poucos, porém, certos modos de proceder foram transformando-se em regras, que o direito positivo sancionara como normas de agir. Assim, o direito democrático de participação do povo no governo, por seus representantes, acabara exigindo a formação de um conjunto de normas legais permanentes, que recebera a denominação de direitos políticos. (SILVA, 2005, p. 344)

Ainda que exista uma gama de possibilidades de exercício dos direitos políticos, por um viés crítico é possível notar que os cidadãos sejam tangenciados do processo democrático, não em um aspecto jurídico, mas procedimental do decisionismo concentrado nas mãos dos representantes do poder, “tem-se que são os representantes eleitos – que demandam, portanto, excelência no trato do que é público – [que] acabam tomando decisões em nome do povo e instrumentos como o referendo e o plebiscito sequer são usados, ou sequer uma consulta pública é feita” (SCHERCH, 2017, p. 144). Neste aspecto a representatividade precisa espelhar a soberania popular, sob pena de se tornar um obstáculo aos direitos políticos:

Com a democracia semidireta, a alienação política da vontade popular faz-se apenas parcialmente. A soberania está com o povo, e o governo, mediante o qual essa soberania se comunica ou exerce, pertence por igual ao elemento popular nas matérias mais importantes da vida pública. Determinadas instituições, como o referendum, a iniciativa, o veto e o direito de revogação, fazem efetiva a intervenção do povo, garantem-lhe um poder de decisão de última instância, supremo, definitivo, incontrastável. (BONAVIDES, 2000, p. 355)

Em que pese os direitos políticos ocuparem uma posição de destaque nesta estrutura democrática de Estado, a partir do voto livre, secreto e soberano, é urgente retomar a configuração dos conselhos populares já instaurados na CF/88, uma vez que por este caminho se ultrapassa com facilidade as críticas individualistas, minimalistas e de excessivo liberalismo constitucional.

De outro modo, pode-se dizer que é obrigatório o alistamento eleitoral e o voto para os maiores de dezoito anos (art. 14, §1º, I) – ainda que facultativo para analfabetos, maiores de setenta anos e maiores de dezesseis e menores de dezoito (art. 14, §1º, II, ‘a’, ‘b’, ‘c’) – bem como são inalienáveis de plano, em vista da vedação à sua cassação e do rol taxativo para perda ou suspensão do seu exercício nos termos do art. 15 da Constituição de 1988.

Os direitos políticos positivos consistem no conjunto de normas que asseguram o direito subjetivo de participação no processo político e nos órgãos governamentais. Eles garantem a participação política por meio das diversas modalidades de direito de sufrágio: direito de voto nas eleições, direito de elegibilidade (direito de ser votado), direito de voto nos plebiscitos e referendos, assim como por outros direitos de participação popular, como o direito de iniciativa popular, o direito de propor ação popular e o direito de organizar e participar de partidos políticos. (SILVA, 2005, p. 348)

Desta forma, a soberania popular, que se desdobra no direito fundamental e individual de participação política, não se resume ao voto de tempos em tempos, é um exercício cotidiano – e mais do que um pleito individual por direitos políticos, é uma conquista (esquecida) dos coletivos de organização e de manifestação do poder social, na forma dos Conselhos Ativos e não meramente consultivos. No geral, não é apelo reconhecer a democracia como direito fundamental, pois:

A democracia poderia ser considerada um direito fundamental (mas permeado por uma série de conotações de ordem patrimonial, especialmente se esses direitos desempenharem, num sistema específico, funções assecuratórias) com o explícito apelo à inclusão. Isso não ocorre nas democracias socialmente parciais (modernidade tardia), que desconsideram os laços existentes entre política, solidariedade e direitos humanos. A democracia conteria, dessa forma, um comando objetivo tendente a conferir legitimidade a todas as formas de relação possíveis, assegurando não só o direito à participação, mas também capacidade matéria de participação efetiva, em uma perspectiva igualitária ou protoigualitária (igualitarismo liberal). (ALVES, 2013, p. 117)

A partir da soberania popular exercida em condições substanciais, na forma como a Constituição de 1988 se propõe a nortear, ganha relevo a estruturação do poder na organização do Estado.


4 A ESTRUTURA DO ESTADO NA COSNTITUIÇÃO DE 1988

O poder enquanto capacidade de determinar o comportamento de outras pessoas não pode ser fracionado: a edição de um ato administrativo, de uma lei ou de uma sentença, embora sejam elaborados por distintas funções, emana de um único polo de poder, o Estado (ARAUJO; NUNES JUNIOR, 2016, p. 387). Neste caso, observa-se com veemência o limite aposto como Monismo Jurídico na base da CF/88 – na esteira do direito codificado – que não aprofundou os requisitos do assim chamado Estado Pluriétnico, em que as etnias não são tratadas sumariamente, simbolicamente, mas que se afirmam como acento no poder: Bolívia, Colômbia fizeram mais pela Carta Política, neste sentido, ao destinar parcelas do Poder Político aos grupos e às nações indígenas.

Em todo caso, o Estado brasileiro tem sua organização a partir do tradicional modelo de separação dos Poderes, tal qual proposto por Montesquieu (1996), em três funções: Poder Executivo, Poder Legislativo e Poder Judiciário, expressões dotadas de duplo sentido, que designam “a um tempo, as funções legislativa, executiva e jurisdicional e indicam os respectivos órgãos, conforme descrição e discriminação estabelecidas no título da organização dos poderes (respectivamente, nos arts. 44 a 75, 76 a 91 e 92 a 135)” (SILVA, 2005, p. 106).

Expressamente, a Constituição trouxe esse esquema em seu art. 2º: “São Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário” (grifo nosso), e do que se depreende que, embora separadas as funções, elas conservam unidade de desígnios nos objetivos da República, representando a tripartição do Poder em uma espécie de modelo distributivo-organizacional e preventivo de ataques absolutistas e totalitários contra a democracia.

Os órgãos do Estado são supremos (constitucionais) ou dependentes (administrativos) Aqueles são os a quem incumbe o exercício do poder político, cujo conjunto se denomina governo ou órgãos governamentais. Os outros, estão em plano hierárquico inferior, cujo conjunto forma a Administração Pública, considerados de natureza administrativa. Enquanto os primeiros constituem o Direito Constitucional, os segundos são regidos pelas normas de Direito Administrativo. E aí se acha o cerne da diferenciação entre os dois ramos do Direito. (SILVA, 2005, p. 106)

No dizer de José Afonso da Silva (2005, p. 106-107), as funções são a especialização de tarefas governamentais que consideram a natureza da atribuição, sem se importar com o órgão que as exerce. Já a divisão dos poderes consiste em destinar as funções governamentais a órgãos diferentes. E, por fim, à separação dos poderes insere-se principiologia idealizada por Aristóteles (2007), John Locke (1994) e Rousseau (2013), mas que veio a ser definida e divulgada em doutrina por Montesquieu (1996). A influência da separação dos poderes tomou grande proporção na Revolução Francesa e se tornou um pressuposto constitucional, segundo a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789, como um postulado sem o qual não há garantia dos direitos individuais.

Embora seja uma fórmula válida, um eficiente antídoto para o absolutismo que dominava enquanto técnica de governo, atualmente a separação ficta já se aparenta mais maleável:

Hoje, o princípio não configura mais aquela rigidez de outrora. A ampliação das atividades do Estado contemporâneo impôs nova visão da teoria da separação de poderes e novas formas de relacionamento entre os órgãos legislativo e executivo e destes com o judiciário, tanto que atualmente se prefere falar em colaboração de poderes, que é a característica do parlamentarismo, em que o governo depende da confiança do Parlamento (Câmara dos Deputados), enquanto, presidencialismo, desenvolveram-se as técnicas de independência e harmonia dos poderes. (SILVA, 2005, p. 109)

O Brasil adotou o presidencialismo como sistema de governo, observando sua origem estadunidense: “nele a relação de interdependência entre os Poderes Executivo e Legislativo fica esmaecida à regra geral da Harmonia entre os Poderes” (ARAUJO; NUNES JUNIOR, 2016, p. 397). São características marcantes do presidencialismo: a chefia de governo e de Estado concentradas na figura do Presidente da República; o Presidente da República é eleito para mantado determinado e não responde diretamente ao Poder Legislativo; o Poder Executivo tem liberdade para a formação de seu ministério – leia-se a nomeação dos cargos; o Parlamento não se dissolve por ordem de eleições gerais emanada do Poder Executivo.

Do ponto de vista formal, fica evidente a opção do constituinte pelo presidencialismo, no entanto, no plano material houve a sua deformação no que autores como Leonardo Avritzer (2016) e Marcos Nobre (2016) denominam presidencialismo de coalizão.

O presidencialismo de coalizão pode ser entendido de duas formas: como solução institucional para um problema político específico, a saber, uma configuração da relação entre eleições presidenciais e representação proporcional no Congresso, na qual o presidente não alcança maioria na Casa; ou como maneira de realizar amplas coalizões que despolitizam uma agenda progressista da política no Brasil. E, uma situação, o presidencialismo de coalizão pode gerar governabilidade, enquanto na outra, cria problemas para a sua manutenção. (Avritzer, 2016, p. 29)

Em jeito de verdadeiro entrave político, Marcos Nobre (2016, p. 137-138), apresenta o presidencialismo de coalizão mais contextualizado no tempo e na realidade:

No meio do caminho, entre a realidade caótica da década de 1980 e a expectativa em relação ao futuro, criou-se o conceito de “presidencialismo de coalizão”. Tratava-se de uma espécie de acomodação de um regime presidencialista a um sistema partidário já então razoavelmente fragmentado. A eleição em dois turnos deveria produzir um grande negociador da coalizão, o partido vencedor da eleição presidencial. Com isso, haveria também uma certa tensão — saudável e produtiva, esperava-se — entre o programa de governo da candidatura presidencial vencedora e os interesses partidários representados no Congresso, que teriam de se compor. Não se confirmou o esperado processo de fusões & aquisições partidárias que permitiria uma gestão menos turbulenta do presidencialismo. Em lugar da maior concentração partidária, o que aconteceu, a partir de 1994, foi uma especialização partidária de caráter binário. De um lado, a esmagadora maioria dos partidos se especializou em venda de apoio parlamentar ao governo, seja qual for o governo [...] Um arranjo como esse parece permitir que o partido líder que venceu a eleição presidencial aplique seu programa, seu projeto de concretização da Constituição de 1988. O que de fato acontece é o contrário. Uma base “inchada” de apoio ao governo coloca entraves e obstáculos à concretização do programa apresentado pelo partido vencedor da eleição. Para conseguir introduzir as transformações propostas em seu programa, mesmo aquelas de ordem marginal, o líder da coalizão está obrigado quase que permanentemente a contornar vetos de importância dentro de sua própria base de apoio, vetos que não consegue simplesmente afastar para impor sua posição.

Justifica-se trazer este aspecto do presidencialismo de coalizão dentro da organização do poder na estrutura do Estado para ficar evidente que o direito não se aparta da política, mas recebe influências dela, especialmente nos aspectos de alcançar o Estado Material de Direito com a efetiva participação das pessoas no espaço público.

Retomando-se a questão da organização do Poder, importante é verificar que nada se concentra em uma só vontade ou ação, o Estado se faz num destroncamento de funções e atribuições saindo de um centro (federal) até a capilaridade que alcança as pessoas (municipalidades). Assim, há uma divisão horizontal em Executivo, Legislativo e Judiciário, para as funções orgânicas ou típicas de, respectivamente, administrar, legislar e exercer a jurisdição, mas há também há descentralização em camadas, onde a União, os Estados, o Distrito Federal e os municípios recebem poderes para atuar em limites e atribuições especificados na Constituição de 1988.

A essência da forma federativa de Estado é promover a descentralização política do Poder Estatal em prol dos Entes Federados, por isso o art. 18 da Constituição de 1988 prevê que a Federação brasileira é composta por quatro tipos de entes políticos autônomos: (i) União; (ii) Estados-membros; (iii) Distrito Federal; (iv) municípios. (Importa, ressaltar, neste momento, que não se confunde descentralização com desconcentração do poder: sendo esta figura jurídica um aporte dos mais notáveis da Carta Política, ao coletivizar – o social que suplanta os direitos políticos individuais – a inserção da sociedade nos meandros da política organizadora do Estado).

Enquanto base da descentralização do Poder Político, a autonomia se configura a partir de quatro capacidades políticas asseguradas igualmente aos entes políticos: auto-organização para elaborar a Constituição Federal, as Constituições Estaduais e Leis Orgânicas; autogoverno com eleições próprias; autolegislação para organização e elaboração das próprias leis; e autoadministração para prestação dos serviços públicos.

Segundo a jurisprudência do STF, não há hierarquia entre a União, os Estados, o DF e os municípios, pois todos eles têm o mesmo atributo, qual seja, autonomia. Logo, não há hierarquia entre leis federais, estaduais, distritais e municipais. Contudo, muito embora não exista hierarquia entre os entes federados, vigora no Brasil o princípio da preponderância de interesses, o qual define que o interesses nacional (representado pela União) prepondera sobre os interesses regionais (representados pelos Estados e DF) e sobre os interesses locais (representados pelos municípios e DF). Ressalta-se, portanto, que não havendo hierarquia entre os entes federados, quando a República Federativa do Brasil assina um tratado, ainda que disponha de matérias que dizem respeito só aos Estados ou aos Municípios, não está se violando a autonomia, pois “o Presidente da República não subscreve tratados como Chefe de Governo, mas como Chefe de Estado” (STF RE 229096 RS).

Como se pode observar, a soberania popular faz um giro de poder: remete ao Estado as prerrogativas para que, em nome do povo, atue e, por conseguinte, o poder vá se reorganizando em raios que retornam ao indivíduo na forma dos serviços públicos. Na idealidade constitucional da Carta Política, sob o Estado democrático de Direito Social, ao mesmo tempo que o poder é outorgado ao Estado, (re)encontra-se novamente com o povo.

Uma vez que a República Federativa do Brasil se orienta pelo pluralismo político de ideias e pela sociedade pluralista (art. 1º, IV e preâmbulo), o Estado é administrador dos conflitos de uma sociedade complexa que se insere num contexto de Modernidade Tardia (Giddens, 1991) marcado por “antagonismos sociais e por uma série de distinções, que são capazes de produzir uma variedade de posições de sujeitos e de identidades” (ALVES, 2013, p. 120). Nas lacunas entre a sociedade, a política e o direito, a Constituição coloca o Estado com a missão conciliadora:

A Constituição opta, pois, pela sociedade pluralista que respeita a pessoa humana e sua liberdade, em lugar de uma sociedade monista que mutila os seres e engendra as ortodoxias repressivas. O pluralismo é uma realidade, pois a sociedade se compõe de uma pluralidade de categorias sociais, de classes, grupos sociais, econômicos, culturais e ideológicos. Optar por uma sociedade pluralista significa acolher uma sociedade conflitiva, de interesses contraditórios e antinômicos. O problema do pluralismo está precisamente em construir o equilíbrio entre as tensões múltiplas e por vezes contraditórias, em conciliar a sociabilidade e o particulares, em administrar os antagonismos e evitar divisões irredutíveis. Aí se insere o papel do poder político: “satisfazer pela edição de medidas adequadas o pluralismo social, contendo seu efeito dissolvente pela unidade de fundamento da ordem jurídica” (SILVA, 2005, p. 143 – grifos nossos)

A organização do Estado foi, sobretudo, idealizada para que o desenvolvimento do Poder Político seja capaz de produzir soluções adequadas a todos, não a pequenas parcelas ou a seletos grupos da sociedade. Portanto, a democracia somente é substancial se possibilita as aberturas para as pessoas em seu exercício pleno de cidadania. Estando de acordo com o ideário de que o melhor exercício do poder é quando este se encontra repartido, disciplinado e regulamentado democraticamente.


5 SEPARAÇÃO DOS PODERES

Norberto Bobbio recorre aos ensinamentos sobre Teoria Política para esclarecer que o Estado é definido como portador da summa potestas (poder supremo, soberania) e que a Teoria do Estado se apoia, basicamente, sobre a teoria dos três poderes (Legislativo, Executivo e Judiciário) e das relações entre eles (1909, p. 100).

Todavia, a utilização do termo “separação” ou “tripartição” dos poderes se faz imprópria, pois, como se sabe, o Poder do Estado é uno, indivisível e indelegável (LENZA, 2013, p. 518), de modo que qualquer classificação ou divisão se dá em relação às três funções essenciais: i) legislar; ii) governar (ou administrar); iii) julgar segundo suas próprias leis e costumes. Funções estas que ficarão sob a responsabilidade de órgãos estatais distintos, exercendo cada qual seu papel. José Afonso da Silva, por sua vez, afirma que “o poder é um fenômeno sociocultural”, uma vez que o Estado, como estrutura social, carece de vontade própria e real, ficando determinado que poderá exercer sobre seus cidadãos um poder político capaz de coordenar e impor decisões visando à realização de determinados fins (SILVA, 2017, pp. 108-109).

A separação dos poderes do Estado, na realidade brasileira, representa uma forma de se exercer o controle e a fiscalização sobre os atos do governo soberano, de modo a se combater a concentração do Poder Político (absolutismo), visando minimizar os riscos de abuso de poder (LENZA, 2013, p. 514); tratando-se, portanto, de um mecanismo de freios e contrapesos, admissível na estruturação das unidades federadas (Supremo Tribunal Federal - MS23.452, Rel. Min. Celso de Mello, j. 16.09.1999, Plenário, DJ de 12.05.2000).

Nesse sentido, cada poder estatal possuirá funções típicas ou predominantes, quais sejam aquelas inerentes à sua própria natureza: a) ao Poder Legislativo caberá incidir sobre regras gerais, abstratas, impessoais e inovadoras da ordem jurídica, bem como fiscalizar os atos do Poder Executivo; b) ao Poder Executivo caberá praticar atos de chefia de Estado, chefia de governo e atos de administração, de modo a se resolver problemas concretos e individualizados, todas as vezes que sua intervenção seja necessária; c) ao Poder Judiciário caberá julgar os conflitos que lhes são levados para que seja aplicada a competente legislação (função jurisdicional).

O artigo 44 da Constituição Federal prescreve que o Poder Legislativo será exercido pelo Congresso Nacional, sendo composto pela Câmara dos Deputados e pelo Senado Federal, assim como o artigo 76 da Carta Política de 1988 define que o Poder Executivo será exercido pelo Presidente da República (órgão) e auxiliado pelos respectivos Ministros de Estado, restando finalmente o disposto no artigo 92 ao tratar do Poder Judiciário e da função jurisdicional. Esta sendo exercida pelo Supremo Tribunal Federal (inciso I), pelo Conselho Nacional de Justiça (inciso I-A), pelo Superior Tribunal de Justiça (inciso II), pelos Tribunais Regionais Federais e Juizes Federais (inciso III), pelos Tribunais e Juízes do Trabalho (inciso IV), pelos Tribunais e Juízes Eleitorais (inciso V), pelos Tribunais e Juízes Militares (inciso VI) e pelos Tribunais e Juízes dos Estados e do Distrito Federal e Territórios (inciso VII).

Enunciadas as funções típicas de cada poder, cumpre destacar que poderão eles exercer funções atípicas, desde que exista previsão legal expressa para tanto. A exemplo disso podemos mencionar alguns artigos da Constituição Federal em que essas funções atípicas poderão ocorrer:

a) artigo 52, inciso I - competirá privativamente ao Senado Federal (representante do Poder Legislativo) processar e julgar o Presidente e o Vice-Presidente da República (representante do Poder Executivo), nos crimes de responsabilidade;

b) artigo 53, §1º, c.c. art. 102, I, “b” – eventual condenação pelo STF (representante do Poder Judiciário) de parlamentar federal corrupto (Poder Legislativo) que se vale de seu cargo para indevidamente enriquecer, assim como ocorreu no julgamento do denominado “mensalão” na AP 470);

c) artigo 62 – as medidas provisórias adotadas pelo Presidente da República (Poder Executivo) poderão ser rejeitadas pelo Congresso Nacional (Poder Legislativo);

d) artigo 66, §1º - o Chefe do Poder Executivo pode sancionar ou vetar projetos de lei aprovados pelo Parlamento (Poder Legislativo);

e) artigo 66, §§4º e 6º - o parlamento (Poder Legislativo) poderá “caçar” o veto lançado pelo Chefe do Poder Executivo;

f) artigo 66, §7º - não havendo promulgação da lei, no prazo de 48 horas, pelo Presidente da República, nos casos dos §§3º e 5º, o presidente do Senado (Poder Legislativo) poderá promulga-la, se este não o fizer em igual prazo, cabendo, portanto, ao Vice-Presidente do Senado (Poder Legislativo) fazê-lo;

g) artigo 63, incisos I e II – caberá emenda parlamentar (Poder Legislativo) em projeto de lei de iniciativa exclusiva do Presidente da República (Poder Executivo);

h) artigo 64, §1º - o Presidente da República (Poder Executivo) poderá solicitar urgência para o Parlamento (Poder Legislativo) apreciar os projetos de sua iniciativa;

i) artigo 97 – os juízes (Poder Judiciário) poderão declarar a inconstitucionalidade de lei (Poder Legislativo) ou ato normativo do Poder Público (seja ele Executivo, Legislativo ou Judiciário);

j) artigo 101, parágrafo único (c.c. artigo 52, inciso III, “a”, e artigo 84, inciso XIV) – os Ministros do Supremo Tribunal Federal (Poder Judiciário) serão nomeados pelo Presidente da República (representante do Poder Executivo), depois de aprovada a escolha pela absoluta do Senado Federal (Poder Legislativo);

k) artigo 102, inciso I – competirá ao Supremo Tribunal Federal (Poder Judiciário) declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo federal ou estadual (Poder Legislativo).

A atipicidade de determinadas funções orgânicas de um poder específico também se justifica pela necessidade de equilíbrio (harmonia) entre os poderes estatais, propiciando a devida intervenção de um poder sobre o outro (fiscalização entre os Poderes do Estado).

Por fim, há de se dizer que a cláusula da separação dos poderes (art. 2º da Constituição Federal) é de suma importância para a manutenção do poder do Estado, e que a própria Constituinte a reconheceu como sendo uma cláusula pétrea, não podendo, portanto, ser modificada, conforme os termos expressos no artigo 60, §4º, inciso III, da Constituição Federal.


6 CONSIDERAÇÕES FINAIS

A partir do conhecimento do processo de construção da constitucionalização do Estado Democrático de Direito Social, na Carta Política de 1988 e no derivativo ordenamento jurídico brasileiro, é possível notar a sua ideia motriz, pautada na preocupação com as questões humanitárias: ou seja, não se trata de garantir direitos individuais, mas é preciso que se dê acesso à materialização (fruição) dos direitos fundamentais individuais, mas também sociais, de ordem ambiental, econômica, cultural, de inclusão.

Sob a idealidade constitucional dos princípios globais e das cláusulas pétreas da Carta Política de 1988, o povo é definido como a fonte do poder do Estado, não em um aspecto de legitimação dos interesses liberais, mas com o substancial exercício da soberania popular por meio de uma cidadania ativa. A CF/88 conferiu retorno político-jurídico ao indivíduo, nos moldes republicanos, com amplo acesso aos cargos públicos, câmaras de deliberação e com representatividade das minorias e de todas as características que conformam a sociedade plural, e de forma igualitária. Destacamos posição ao definir constitucionalmente a “desconcentração” do Poder Político – além da descentralização administrativa –, muito embora, não tenhamos avançado, como poderíamos, em termos da amplitude aposta na forma do Estado Pluriétnico.

De todo modo, como temos na Carta Política de 1988, a organização do poder, enquanto se reflete na estrutura do Estado, deve estar intimamente ligada ao aspecto de eficiência na solução das demandas sociais, conferindo meios de realização do Estado Democrático de Direito Social e inclinada à preservação das múltiplas visões de mundo inseridas no pluralismo político.

Desta forma, a partir da organização do poder político, a partir do reconhecimento da democracia como uma força normativa que atua dentro da organização do Estado, é possível o cumprimento de todas as promessas constitucionais, com uma considerável abertura para a participação popular nas questões sociais. Ao mesmo tempo que a Modernidade Tardia é palco de complexas questões de desigualdade social, pode ter nestas diferentes experiências as soluções necessárias ao alcance do Estado Material de Direito, em que fosse plena realidade tanto a Força Normativa da Constituição, quanto a Força Normativa da Democracia Constitucional.


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NOGUEIRA DA SILVA, Paulo Napoleão. Breves Comentários à Constituição Federal. Vol. 1. Rio de Janeiro : Forense, 2002.

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SILVA, José Afonso. Curso de Direito Constitucional positivo. 25ª ed. São Paulo: Malheiros, 2005.


Autores

  • Vinício Carrilho Martinez

    Pós-Doutor em Ciência Política e em Direito. Coordenador do Curso de Licenciatura em Pedagogia, da UFSCar. Professor Associado II da Universidade Federal de São Carlos – UFSCar. Departamento de Educação- Ded/CECH. Programa de Pós-Graduação em Ciência, Tecnologia e Sociedade/PPGCTS/UFSCar Head of BRaS Research Group – Constitucional Studies and BRaS Academic Committee Member. Advogado (OAB/108390).

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  • Vinícius Scherch

    Graduado em Direito pela Faculdade Cristo Rei, Cornélio Procópio - Paraná (2010). Pós-Graduado em Direito e Processo do Trabalho pela UNOPAR, Campus Bandeirantes - Paraná (2014). Graduado em Gestão Pública pela UNOPAR, Campus Bandeirantes-Paraná (2015). Mestre em Ciência Jurídica pela UENP -Jacarezinho. Advogado na Prefeitura Municipal de Bandeirantes - Paraná.

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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MARTINEZ, Vinício Carrilho; SCHERCH, Vinícius. Estado democrático de direito social: O poder político na Constituição Federal de 1988. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 23, n. 5462, 15 jun. 2018. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/66660. Acesso em: 4 maio 2024.