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Da uniformização jurídico-decisória por vinculação às súmulas de jurisprudência.

Objeções de ordem metodológica, sócio-cultural e político-jurídica

Da uniformização jurídico-decisória por vinculação às súmulas de jurisprudência. Objeções de ordem metodológica, sócio-cultural e político-jurídica

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Os pontos de vista oferecidos costumam não passar de conclusões opostas justificadas a partir das mesmas premissas. Defensores e opositores da dita súmula vinculante costumam partir de pressupostos comuns, sem questionar com seriedade as premissas de suas conclusões.

1. Introdução.

            Raramente o debate político brasileiro vai além da superficialidade. Mesmo quando o problema em questão é daqueles fundamentais, os pontos de vista oferecidos à apreciação do público costumam não passar de conclusões opostas justificadas a partir das mesmas premissas, e portanto comprometidas com os mesmos pressupostos. O que as torna apenas aparente ou superficialmente antagônicas. Isto obviamente encobre e oculta a problematicidade, e assim o possível equívoco, das próprias premissas.

            Tem sido assim no debate travado em torno do projeto de vinculação das decisões judiciais através das súmulas de jurisprudência. Defensores e opositores da dita súmula vinculante costumam partir de pressupostos comuns, sem questionar com seriedade as premissas que orientam suas conclusões. Um desses pressupostos, cuja validade a história e os fatos impõem questionar, pode ser traduzido pelo ideal da uniformização das decisões judiciais.

            Os defensores da vinculação às súmulas sequer cogitam de não ser a referida uniformização possível ou desejável. Já os opositores da proposta refutam-na mormente por discordar dos mecanismos de garantia da vinculação concreta, tendo em vista que acabariam por comprometer a autonomia e a possibilidade de livre formação do convencimento dos juízes, e assim a independência do Poder Judiciário. Preocupação, aliás, inteiramente justificável em razão do progressivo e perigoso agigantamento do Executivo.

            São escassas, todavia, as manifestações tendentes a problematizar a idéia de que devem existir mecanismos de uniformização da jurisprudência, tal como vem compreendido este propósito. Apenas opõem-se opiniões por divergirem quanto aos mecanismos adequados, o que acaba por ocultar e excluir do debate o problema central, como se a respeito problema não houvesse.

            Sendo inúmeras as refutações oponíveis à defesa da adoção da súmula vinculante, cumpre apresentá-las com cautela. Não apenas para evitar que pareçam frágeis, mas em razão da complexidade da matéria. Consciente deste imperativo, o presente ensaio tenta elucidar o sentido de uniformização que vai pressuposto pelo nascituro instituto, para então, sem ignorar diversos outros argumentos possíveis, apresentar algumas fundamentais objeções ao propósito de uniformização pela vinculação às súmulas de jurisprudência.


2. O sentido de uniformização pressuposto pelo propósito de vinculação às súmulas de jurisprudência.

            Tornando-se formalmente vinculantes, nossas súmulas de jurisprudência corresponderiam integralmente aos assentos portugueses, de que exaustivamente se ocupou Antonio Castanheira Neves em obra definitiva a respeito da matéria (1). As páginas inaugurais do estudo do notável catedrático da Universidade de Coimbra definem os assentos surpreendendo sua originalidade na possibilidade que conferem "1) a um órgão judicial (a um tribunal) de prescrever 2) critérios jurídicos universalmente vinculantes, mediante o enunciado de 3) normas (no sentido estrito de normas gerais, ou de ‘preceitos gerais e abstratos’, que, como tais 4) abstraem (na sua intenção) e se destacam (na sua formulação) dos casos ou decisões jurisdicionais que tenham estado na sua origem, com o propósito de 5) estatuírem para o futuro, de se imporem a uma aplicação futura" (2).

            Sendo irreparável a análise procedida pelo autor do sentido de uniformização pressuposto pela instituição dos assentos em Portugal, e dada a identidade verificável entre os caracteres fundamentais destes assentos e das nossas súmulas de jurisprudência — cuja única característica ainda capaz de diferenciá-las dos similares portugueses desaparecerá com a eficácia vinculante —, pede-se vênia para reproduzir as suas conclusões.

            A exigência de unidade da ordem jurídica — observa Castanheira Neves — traduz a nível global, perante o todo dessa ordem, o que a uniformidade traduz imediatamente ao nível da jurisprudência (3). Assim, a noção de uniformidade pressuposta pelo instituto dos assentos — e pelo da súmula vinculante, se vier a existir, dada a recíproca equivalência — deve ser compreendida a partir do tipo de unidade que a adoção do instituto pretende assegurar:

            "(...) esta — refere-se o autor à uniformidade da jurisprudência — terá de entender-se diferente, e de propor-se coisa diversa, consoante a unidade em vista seja a unidade (formal-abstrata) da lei ou a unidade (normativo material) do direito. Ou, ainda, consoante a unidade da ordem jurídica seja assumida como dada (enquanto pressuposto) ou pensada como constituenda (enquanto objetivo). Na primeira hipótese, a uniformidade jurisprudencial será um mero corolário funcional, terá a mesma índole intencional que corresponde a esse tipo de unidade e realizar-se-á em termos de mera explicitação do respectivo conteúdo pressuposto (seja axiomaticamente, seja apenas sistematicamente). Na segunda hipótese, a jurisprudência terá de contribuir como fator indispensável, e um dos mediadores constituintes, para a formação de uma unidade intencionada como objetivo (unidade problemático-dialética e regulativamente a conseguir)" (grifos nossos) (4).

            Dadas as suas características, os assentos denunciam uma orientação que se situa na linha do primeiro sentido de unidade (5). Unidade que traduz uma identidade formal e de conceitualização abstrata, e por isso exigente de uma acabada coerência lógico-dedutiva. Trata-se de uma unidade lógica a priori, garantida pela explicitação do seu conteúdo lógico-significativo e pela eliminação de contradições que se manifestem na função operatória desse sistema (6).

            Ao postulado dessa identidade lógico-abstrata no conteúdo corresponde o postulado da univocidade lógico-significativa na determinação e aplicação do direito. Daí a instituição dos assentos portugueses: pretendendo garantir aquela unidade (lógico-conceitualmente pressuposta num prescrito sistema de normas) na aplicação normativa (aplicação lógico-conceitual), imaginava-se possível conseguir este efeito mediante uma atividade interpretativa que explicitasse, reconstituísse ou recuperasse essa unidade, e pela qual se impusesse uma univocidade de sentido significativo. Uma vez obtida por aquela atividade uma interpretação de univocidade, se a deveria preservar, objetivando-a numa outra norma (7), expressa sob a forma de assento:

            "A pressuposta unidade abstrata de normas (ou de um sistema de normas) reafirma-se também lógico-abstratamente através de outras normas (supostamente critérios de univocidade). Tal é o sentido da unidade do direito, do sistema jurídico ou da ordem jurídica, que vai manifestamente implícito no instituto dos assentos, ao proporem-se estes assegurar a ‘uniformidade da jurisprudência’ através da prescrição de vinculantes normas gerais e abstratas.

            "Estamos perante uma unidade de identidade — unidade de identidade lógico-abstrata, estática e a priori..." (8).

            Ou seja, a unidade a que se orienta a uniformização da jurisprudência por vinculação a preceitos gerais e abstratos de origem judicial compreende o direito como um sistema normativo formalmente fechado e lógico-dedutivamente estruturado, e assim capaz de oferecer as premissas normativas a partir das quais, conjugadas às premissas de fato, a jurisprudência aplicaria silogisticamente aquele direito, pressuposto e integralmente pré-determinado em abstrato. Esta compreensão do direito pressupõe que o juízo prático-normativo de que se encarrega a jurisprudência no contexto dos problemas jurídicos concretos seja lógico-dedutivamente extraído de uma premissa normativa evidente, unívoca e perfeitamente acabada no seu sentido normativo abstrato. A tarefa do juiz ficaria limitada à investigação do caso para à correspondente premissa normativa conjugar outra relativa aos fatos, a partir das quais apenas uma conclusão seria possível (9).

            Nestes termos, a unidade do direito postula uma unívoca atribuição de sentido às normas abstratamente pressupostas, pois, consideradas univocamente em abstrato, delas extrair-se-iam conclusões de ordem prática rigorosamente idênticas sempre que as premissas relativas aos fatos fossem iguais ou equivalentes. Dada esta noção de unidade, e o tipo de racionalidade prático-jurídica que pressupõe, a uniformidade da jurisprudência seria assegurada pela unívoca atribuição de sentido às premissas normativas que compõem o sistema — ou seja, às normas gerais e abstratas das quais partiria o raciocínio prático-jurídico, uma vez identificadas as premissas de fato. Uniformidade que nestes termos significa identidade de sentido abstrato das premissas normativas pressupostas pelas diversas decisões concretas, e assim identidade de decisões concretas, desde que idênticas as circunstâncias de fato consideradas — devendo-se, nestes termos, considerar apenas aquelas circunstâncias "juridicamente relevantes", ou seja, necessárias à subsunção dos fatos a um preceito normativo geral e abstrato.

            Os assentos propõem-se garantir este tipo de uniformidade, pois em resposta a uma divergência na atribuição de sentido a um critério normativo considerado em abstrato, mesmo enquanto premissa de um raciocínio prático, tenta reconstruir a unidade lógico-formal do sistema ao revelar e impor obrigatoriamente o sentido em que se deve considerar tal critério quando relevante para o encargo de decidir casos futuros.

            Assim, é possível compartilhar a conclusão de que, para o instituto dos assentos, uniformidade da jurisprudência é a "geral-abstrata pré-determinação de uma normatividade fixa e imutável, no quadro de uma unidade lógico-normativística do sistema jurídico e com vista a uma igual aplicação formal do direito" (grifo nosso) (10).

            Não diverge deste o sentido de uniformidade que a instituição da súmula vinculante pretende assegurar. Através da emissão de preceitos normativos abstratos e geralmente vinculantes, o tribunal que os emitisse seria supostamente capaz de impor uma idêntica consideração dos critérios normativos oferecidos pelo sistema. Considerados univocamente nos seus sentidos significativos, e nestes termos obrigatoriamente assumidos na condição de premissas para as decisões futuras, os tais preceitos normativos de origem judicial implicariam a uniformização da jurisprudência, eliminando divergências na atribuição de sentido aos critérios normativos e assim garantindo a identidade das decisões sempre que equivalessem as premissas relativas aos fatos. Neste sentido, a uniformidade da jurisprudência corresponde à "pura igualdade de interpretação da lei, pura igualdade da sua aplicação ou pura igualdade de solução jurídica — em que ‘pura igualdade’ significa simples repetição da inalterável identidade formal de algo que tenha sido uma vez prescrito ou obtido" (11).

            Em suma, a instituição da súmula vinculante não pretende garantir a coerência e a harmonia entre as diversas decisões jurisprudenciais, consideradas as particularidades dos casos no contexto dos quais estas decisões sejam proferidas, mas pré-determinar em abstrato as premissas normativas do raciocínio prático-jurídico, com a intenção de assegurar a igualdade formal das decisões, consideradas apenas as circunstâncias de fato relevantes à subsunção do caso a um unívoco critério normativo, permitindo que a decisão resulte de um raciocínio lógico-dedutivo estritamente silogístico.


3. Objeções de ordem metodológica: da ineliminável problematicidade implicada no processo de concretização do direito.

            Freqüentemente, considera-se superada a exegese legalista, e assim a redução da função judiciária a uma atividade de aplicação lógico-dedutiva da lei ao caso concreto. Todavia, esta noção obliterada da função jurídico-decisória conserva sua força, condicionando os modos pelos quais a generalidade das pessoas percebe o fenômeno jurídico, porque decorre quase como corolário necessário da idéia de direito que a modernidade consagrou, e que ainda não logramos superar.

            Em diferentes versões, o jusnaturalismo moderno passou a radicar todo o direito na vontade, rompendo com as teorias de inspiração clássica, para as quais o fundamento do direito consistia, em linhas gerais, numa ordem justa inerente à comunidade humana; a expressão desta vontade com que se vai identificar o direito será sempre a lei, expressão do arbítrio de um órgão soberano (Hobbes), ou da "vontade geral" (Rousseau) (12). Sendo produto de uma vontade cujo conteúdo será, em princípio, arbitrário — e não uma realidade suscetível de compreensão racional —, o jurista só poderá aceder ao direito (que passa a identificar-se ao que a lei prescreve) interpretando, da forma mais humilde possível, a expressão daquela vontade (13). Assim, mesmo considerando superados os componentes políticos da tentativa de reduzir a função judicial à estrita e lógico-dedutiva aplicação da lei escrita (hipótese que em verdade o contexto atual parece infirmar), a sobrevivência da compreensão do direito enquanto produto da vontade — inclusive nos termos de uma vontade apenas politicamente orientada —, reafirma e continua sugerindo que os juízes possam e mesmo devam simplesmente deduzir de preceitos gerais e abstratos, de sentido evidente e unívoco, a solução desejada para o caso concreto. Este folclore (14), característico da fase moderna da nossa tradição, sobrevive também por resistirem as seqüelas do racionalismo que fazia crer possível tornar o direito claro e certo na sua expressão legal, bem como distinguir rigorosamente os momentos de criação (ou de descoberta e expressão em termos abstratos) e aplicação do direito (15). Sem falar no ainda presente — confirma-o a própria proposta de que se ocupa este ensaio — ideal da certeza, considerado em nossa tradição moderna uma espécie de valor supremo, de meta fundamental, cuja acentuação expressa a intenção de tornar o direito à prova de juízes (16), mormente por recurso a uma metodologia lógico-dedutiva.

            Nada garantiria, contudo, o êxito desses propósitos, pois a vinculação dos juízes a incontáveis preceitos legais gerais e abstratos, por mais claros e inequívocos, não seria capaz de eliminar a problematicidade dos casos concretos, e assim da formulação dos juízos prático-jurídicos.

            Apesar do consenso acadêmico atualmente verificável em torno desta conclusão, parece indispensável reprisá-la em resposta à tentativa de adoção da súmula vinculante, pois o alvitre que a defende supõe possível justamente a eliminação da problematicidade implicada no processo de concretização do direito. Ou seja, submetendo nossos magistrados a apenas mais alguns preceitos gerais e abstratos — não bastasse a submissão aos milhares inscritos nos diversos códigos e nos absurdamente numerosos estatutos legais que com eles coexistem —, a vinculação às súmulas seria capaz de eliminar toda e qualquer divergência jurisprudencial, desta vez com êxito, pois expressando em termos unívocos os critérios normativos relevantes, nossos tribunais tornariam evidentes e demonstráveis as soluções jurídicas que, no contexto dos casos, sem as súmulas pareceriam duvidosas. Suposição ingênua, que a experiência infirma.

            Assumindo o controle da jurisdição ordinária com o propósito de uniformizar a jurisprudência enunciando o sentido abstrato dos critérios normativos aplicáveis, os nossos tribunais reafirmariam com ainda mais vigor — posto que a sistemática do recurso especial já o faz — o propósito da Corte de Cassação francesa, cujos pormenores passam a interessar-nos por ilustrar o tipo de metodologia jurídico-decisória que as súmulas vinculantes pressupõem possível.

            Observa Calamandrei que a "exata observância das leis", finalidade característica da cassação, não significa obediência aos preceitos individuais concretos, tal como emanam da lei para a verificação em concreto dos fatos hipotizados por ela em abstrato, mas o exato conhecimento da lei em sua significação geral, a exata interpretação do alcance que tem a lei como norma geral e abstrata, aplicável a toda uma série indefinida de casos; exata observância por parte dos juízes, que, ao julgar sobre os fatos alheios, devem conhecer exatamente o alcance e a significação das leis que são chamados a aplicar (17).

            Sendo função própria da cassação a garantia do exato conhecimento da lei em sua significação geral, implica esta função também a de uniformização da jurisprudência, pois em sua significação geral a lei só poderia mesmo ter um sentido unívoco, independentemente dos casos em que se as aplicassem. A respeito, é elucidativa a explicação de Calamandrei: no sistema próprio dos ordenamentos modernos continentais, nos quais o direito, em vez de estar enunciado caso a caso, se formula, através da codificação, por antecipação, em normas gerais e abstratas, cada juiz deve ter o poder de interpretar o seu alcance; mas pode ocorrer que a interpretação de dita norma varie ao variar o intérprete, e que, ao aplicar a casos iguais diversas interpretações discordantes da mesma norma, se chegue a violar a exigência do trato igual de casos similares, que é o primeiro cânone da igualdade de todos ante a lei; é preciso, pois, escolher, dentre as diversas interpretações possíveis que a uma mesma lei se tenham dado em casos similares por juízes diversos, uma que fique mais acreditada, como mais exata, sobre todas as outras; é preciso, enfim, unificar no Estado a interpretação judicial das leis, ou seja, como costuma dizer-se, "unificar a jurisprudência" (18).

            Além de confirmar o sentido de uniformização que vai implícito na adoção de mecanismos de controle da jurisprudência pela fixação em abstrato de critérios normativos, a explicação de Calamandrei acerca da cassação revela os pressupostos metodológicos que mecanismos deste tipo assumem. A cassação se justifica supondo que a divergência jurisprudencial possa decorrer apenas da diversidade de interpretações, por juízes diversos, do sentido abstrato da lei. Enunciado o direito em abstrato por antecipação, toda e qualquer divergência de juízo seria resultante de uma divergente consideração do sentido abstrato e antecipadamente definido das normas aplicáveis, e assim jamais de uma diversa ponderação das circunstâncias peculiares aos casos, pois o sentido dos critérios normativos aplicáveis seria pré-determinado independentemente de tais circunstâncias, em face das quais aplicar-se-ia a lei naquele sentido. Ou seja, competiria aos juízes "julgar sobre os fatos" e compreender o sentido abstrato, determinado por antecipação, da norma aplicável. Daí resultariam duas premissas, uma acerca dos fatos, outra acerca do direito, a partir das quais bastaria raciocinar lógico-dedutivamente para decidir o caso nos termos do direito pressuposto e dado por antecipação em abstrato. Sempre que às normas fossem em abstrato atribuídos sentidos equivalentes, destas atribuições resultariam julgamentos iguais, desde que similares as premissas de fato.

            A proposta de vinculação às súmulas parece supor que as coisas se passem desta forma, pois imagina que a apriorística determinação em abstrato dos critérios normativos aplicáveis, conjugada à obrigatoriedade de observar o sentido abstrata e antecipadamente revelado pela súmula, implicaria a formal igualdade das decisões tomadas no contexto de casos similares. Tudo como se o juízo prático-jurídico que o problema concreto reclama pudesse resultar lógico-dedutivamente da consideração de uma premissa acerca dos fatos e da sua conjunção a outra prévia e inequivocamente definida no seu sentido e alcance abstratos. Mas, sendo falso este pressuposto metodológico, a fixação em abstrato dos critérios normativos aplicáveis torna-se incapaz de garantir a igualdade formal das decisões jurisprudenciais. Por isso as súmulas de jurisprudência mostrar-se-ão incapazes de produzir o resultado esperado.

            A metodologia prático-jurídica pressuposta pela cassação, e nos mesmos termos pelos assentos portugueses, como pelas nossas súmulas, postula uma compreensão do conhecimento jurídico que o reduz a uma espécie de conhecimento dos critérios normativos gerais, dos quais resultariam imediatamente as soluções para os diversos casos concretos, sendo necessário ao jurista apenas confrontar àqueles critérios os fatos juridicamente relevantes. Mas o pensamento jurídico contemporâneo rechaça sem reservas esta compreensão, pois reconhece um aspecto de que já os juristas pré-modernos tinham nítida consciência: dos princípios gerais, e assim dos critérios normativos considerados em abstrato, não é possível extrair imediatamente o conhecimento relativo à ação a praticar. Ou seja, dos preceitos normativos gerais não é possível extrair lógico-dedutivamente os juízos prático-jurídicos acerca da ação a realizar em cada caso considerado em concreto.

            Ao jurista não basta compreender o sentido geral das normas que o orientam, pois encarregar-se do problema da ação devida a outrem por justiça requer prudência, virtude da razão prática que indica o meio (a ação particular) através da qual atingimos o fim (o bem a que a ação se orienta) (19). No caso do direito, a prudência oferece a compreensão da ação devida a outrem, por justiça, em cada circunstância particular (20). Dada a problematicidade destas circunstâncias, as normas gerais relativas à ação oferecem parâmetros à deliberação, mas não contêm inequivocamente pré-determinadas as soluções adequadas aos diversos problemas concretos. Determiná-las é tarefa da razão prática, que se move — e assim a razão prático-jurídica — no âmbito das coisas contingentes, e no qual, apesar da necessariedade dos princípios mais gerais, quanto mais descemos ao particular, mais dificuldades encontramos (21). Este hiato entre a generalidade da lei e a particularidade dos casos — lembra Pierre Aubenque, referindo-se a Aristóteles — é como um obstáculo ontológico que nenhuma ciência humana poderá jamais superar (22). O que significa que as normas jurídicas não indicam por si o que deva ser feito em cada circunstância particular: a passagem da norma geral ao justo concreto é tarefa da razão prática (23). Por isso, o conhecimento jurídico é prático-prudencial e, assim, fundamentalmente deliberativo. As normas gerais sugerem alternativas de ação sobre as quais é indispensável deliberar, pois no domínio contingente da praxis — reforça Aubenque — nenhum caminho é tal que estejamos seguros do seu êxito (24).

            A metodologia jurídica moderna tentou eliminar justamente a problematicidade do processo de concretização do direito, ofuscando o caráter prático-prudencial do conhecimento jurídico, pois, segundo postulava, o raciocínio do jurista partiria de uma premissa unívoca aprioristicamente determinada em extensão e sentido normativo, cuja conjugação à premissa de fato indicaria a solução correta do caso. A solução estaria desde antes do caso inequivocamente indicada pelo sentido abstrato da premissa normativa, de modo que o conhecimento da solução concreta identificar-se-ia com o daquele sentido, ou seria dele logicamente extraído. Não haveria sobre o que deliberar, pois a deliberação pressupõe incerteza sobre a ação, dadas as alternativas que nas circunstâncias se abrem. Partindo de premissas das quais deveria deduzir a solução do caso, o raciocínio prático-jurídico perderia a problematicidade. Mas não perdeu, porque é essencialmente problemático, dada a problematicidade com que se apresentam as próprias premissas do raciocínio prático-jurídico.

            O conhecimento jurídico é daqueles que nunca perdem este caráter, pois se orienta à praxis, e assim sofre o influxo da variabilidade das circunstâncias dos casos particulares, no contexto dos quais as premissas do raciocínio são sempre incertas. Parece então correto considerar o pensamento jurídico tópico: dedica-se fundamentalmente à solução de problemas, ou seja, de questões para as quais apresentam-se diversas respostas aparentemente possíveis, mas dentre as quais apenas uma deve ser considerada correta (25). Quando ocorrem mudanças nas circunstâncias particulares — lembra-nos Viehweg —, é preciso encontrar novos dados para resolver os problemas. Os tópicos, que nada são além dos pontos de vista capazes de oferecer respostas possíveis a estes problemas, recebem sentido desde o próprio problema, pois à vista de cada um aparecem como adequados ou inadequados, apresentando-se como possibilidades de orientação e como fios condutores do pensamento (26). Ou seja, por ocupar-se de problemas práticos o raciocínio jurídico se caracteriza precisamente pela busca das premissas capazes de oferecer soluções adequadas a estes problemas, dadas as particularidades de cada um. Não é exclusivamente lógico, mas antes tópico, pois assume a busca daquelas premissas, tarefa da tópica (27). As normas legislativas e as construções doutrinárias, por sua vez, não indicam inequívoca e aprioristicamente as premissas imediatas do raciocínio prático-jurídico, antes oferecendo uma multiplicidade riquíssima de pontos de vista, em meios aos quais o jurista prático buscará as premissas adequadas à solução do concreto problema de que se ocupa. Raramente são estas premissas evidentes no contexto do caso, mesmo que se as tenha tentado tornar claras e unívocas definindo o sentido abstrato dos critérios normativos aplicáveis. Como diria um jurista de common law, as normas legais nunca são claras no contexto do caso, por mais claras que possam parecer em abstrato (28).

            Ao invés de partirem de uma premissa normativa, uma vez estabelecida a premissa de fato, os juristas que se ocupam de problemas concretos buscam nos critérios normativos as premissas possíveis. As normas não as estabelecem com rigor nem as indicam com evidência, pois isto é incompatível com a relativa indeterminação normativa dos preceitos gerais e abstratos:

            "(...) sempre, com efeito, as normas legais exigem, na sua aplicação histórico-concreta, uma normativa e complementar concretização, desenvolvimento ou adaptação (correcção) constitutiva. É isso conseqüência, desde logo, da sua intencionalidade geral abstracta e, assim, da sua essencial indeterminação material quando referidas as normas aos históricos e individualizados casos concretos da sua aplicação" (29).

            Sendo assim, é impraticável o tipo de metodologia necessário à uniformização da jurisprudência pela vinculativa e apriorística determinação do sentido abstrato dos critérios normativos. Esta fixação do sentido abstrato das normas é incapaz de eliminar a problematicidade dos casos nos quais tais normas reclamem aplicação, pois se revelarão sempre relativamente indeterminadas em concreto, ao menos se consideradas as circunstâncias do caso e os problemas que suscitam. Noutras palavras, as súmulas de jurisprudência, estabelecendo critérios normativos gerais e abstratos, são objetos de interpretação, tais como as demais normas jurídicas. Esta evidência — percebe Castanheira Neves, referindo-se aos assentos —, pode ser considerada uma frustração do objetivo último do instituto. Se os assentos podem e devem ser igualmente interpretados, "na sua interpretação as dúvidas e controvérsias interpretativas, embora outras, podem nascer — e, assim, aquilo a que através deles se quis pôs cobro pode ressurgir afinal com eles" (30). Que isto vale para as nossas súmulas, é algo cuja demonstração podemos dispensar.

            A insistência na proposta de vinculação às súmulas revela, portanto, uma certa ingenuidade e um profundo desprezo pela experiência que a história oferece. Tendo fracassado a tentativa de estabelecer a estrita submissão do Judiciário à legislação escrita, como se os casos jurídicos admitissem a mera aplicação da lei no seu abstrato sentido aprioristicamente determinado, a vinculação às súmulas renova a intenção de eliminar a problematicidade do direito, desta vez impondo aos juízes a aplicação de preceitos normativos gerais previamente fixados por tribunais superiores. Mas esta intenção supõe critérios metodológicos incompatíveis com a natureza do direito, razão pela qual encontrará a mesma sorte que encontrou a submissão do juiz ao legislador. Nas palavras de Castanheira Neves, "é metodologicamente incorreto, o mesmo é dizer praticamente ilusório e ineficaz, pretender ao nível da jurisprudência o que não foi possível ao nível da legislação: antecipar e fixar em abstrato o conteúdo juridicamente concreto das decisões jurídicas" (31).

            Por fim, mesmo que a indiferença pelas circunstâncias concretas dos casos tornasse possível a formal igualdade das decisões, a proposta de vinculação às súmulas de jurisprudência mereceria integral rejeição por negar uma fundamental intenção do direito: a intenção de justiça, que traduz a exigência de decisões materialmente adequadas às sempre novas circunstâncias e aos problemas concretos que invariavelmente suscitam (32).


4. Objeções de ordem sócio-cultural: da crise ético-valorativa implicada no agravamento da insegurança jurídica.

            A rigorosa previsibilidade das decisões judiciais é praticamente impossível. Esta fundamental constatação, momentaneamente esquecida pelo pensamento moderno, impõe uma revisão de sentido do ideal de segurança jurídica, já que se o identificou por algum tempo, com conseqüências dramáticas, à intenção de garantia daquela previsibilidade, como se fosse possível estabelecer um estado de absoluta certeza jurídica.

            Mas segurança e certeza não se identificam necessariamente. Ao passo que a certeza quanto ao conteúdo das particulares decisões judiciais é incompatível com a contingência, com a indeterminada e irredutível variedade das circunstâncias em que operam os juristas, uma relativa segurança é certamente desejável e praticamente possível, ao menos quando reunidas certas condições. E o grau de segurança esperado do direito deve ser o que a sua natureza comporta, nem mais nem menos.

            Nestes termos, a segurança jurídica supõe certa estabilidade nos fundamentos, nos princípios e valores basilares e ordenadores da praxis, e a sua preservação pela jurisprudência. Nas palavras de Castanheira Neves, estabilidade histórico-cultural de uma intenção normativa material, a garantir num grau compatível com o caráter prático-normativo do direito: constância nos fundamentos com justificada diferenciação no concreto das decisões. A segurança que este tipo de estabilidade oferece resulta de ser fator de ordem, de objetividade, de racionalidade, de confiança assegurada por aquela objetividade, e assim capaz de excluir o arbítrio (33).

            No caso do direito, a estabilidade traduz-se na "subsistência da sua intencionalidade normativa fundamental, definida em coerência sistemática pelos seus valores e princípios, não pela repetida identidade de soluções..." (34). Mas não é evidentemente aquele tipo de estabilidade que as súmulas pretendem garantir, e sim certeza enquanto rigorosa previsibilidade, tornada possível pela apriorística determinação em abstrato do conteúdo das decisões judiciárias, com o correlativo desprezo pelas circunstâncias particulares e pelos problemas que casuisticamente suscitam. Propósito, já vimos, incompatível com a ineliminável problematicidade do raciocínio prático-jurídico, e francamente contrário à adequada ordenação da praxis ao bem da justiça. A questão a elucidar, portanto, é a seguinte: se a vinculação às súmulas de jurisprudência pode assegurar aquela estabilidade, e por conseqüência o grau de segurança que o direito comporta. Questão a que se responde em sentido evidentemente negativo, pois as súmulas expressam critérios normativos que apesar de gerais não explicitam ou desenvolvem os princípios primeiros da racionalidade prático-jurídica nem os fins ou valores que orientam a atividade judicante. Antes ao contrário, propõem-se estabelecer de antemão o conteúdo dos juízos prático-jurídicos de modo a tornar dispensável a consideração, no contexto de cada caso, daqueles princípios e destes fins ou valores.

            Sendo impossível ou ao menos indesejável, todavia, estabelecer por antecipação o conteúdo das decisões judiciárias concretas — dada a ineliminável problematicidade do raciocínio que a elas conduz, em razão da contingência das circunstâncias que as exigem —, qualquer grau de segurança supõe um certo acordo fundamental acerca dos fins do direito, dos valores fundantes da experiência jurídica, dos bens no sentido dos quais os juristas devam ordenar suas ações e decisões particulares, daquilo, enfim, que por justiça se exige de cada um, mesmo que de um ponto de vista mais geral e relativamente indeterminado.

            Eis então como deve ser compreendida a unidade do direito: unidade de opções axiológicas, de postulados normativos e princípios jurídicos fundamentais constituintes, dos quais as normas e todas as outras manifestações da realização do direito (juízos, decisões e atos concretos) não são (ou não deveriam ser) mais que expressões particulares e nas quais jurídico-normativamente se fundam, direta ou indiretamente (35). Ou seja, os juízos prático-jurídicos em que se fundam as decisões judiciárias devem assumir o caráter de expressões particulares de um todo, do qual extrairão validade e em relação ao qual tornar-se-ão suscetíveis de avaliação racional:

            "Especificamente no plano prático-normativo, uma intenção de validade traduz sempre a referência de atos ou situações ao absoluto de um todo (ordem/sistema) axiológico, global e intencionalmente integrante, mediante juízos que, nessa referência axiológico-universal, compreendem e julgam aqueles actos e situações particulares — o todo absoluto de valor (ou um sistema de valores) e a sua intencional universalidade fundamentante perante uma parte-objecto valoranda e a fundamentar na sua particularidade pelo seu sentido vinculado naquele todo. Ora, se o direito, na sua idéia e intenção material, é um todo de valor (um sistema específico de valores) em que tanto a sociológica universalidade comunitária, como o axiológico-intencional ‘comum’ comunitário se exprimem normativamente, a função jurisdicional é função do ‘sistema político’ de um Estado de Direito chamada a assumir aquele valor nessa perspectiva de vinculada universalidade perante os atos e situações concretas que controvertidamente suscitam a problemática da sua afirmação ou da sua realização. Naquele valor e na sua correlativa universalidade tem, pois, a jurisdição a sua intencionalidade" (grifo nosso) (36).

            Compreendido o direito nestes termos, evidencia-se que a relativa indeterminação dos preceitos gerais que o enunciam é correlativa da sua relativa determinabilidade geral. É a correspondência daqueles preceitos a um todo de sentido normativo que permite determiná-los relativamente, ou seja, no grau de determinação que comportem dado o seu caráter de normas gerais. Mas sem referência a um todo integrante e ordenador os preceitos gerais passam a ser absolutamente indeterminados, e aí está o fator central de insegurança.

            Nossa hipótese, a respeito da insegurança que parece justificar a proposta de vinculação às súmulas, pode então ser enunciada nos seguintes termos: não deriva — a insegurança que atualmente angustia — da inobservância, pelos juízes, dos preceitos gerais que o legislador enuncia, mas da perda de referência destes preceitos a um todo integrante e ordenador que lhes confira sentido, mesmo um sentido geral e, portanto, relativamente indeterminado. As notáveis divergências jurisprudenciais não revelariam, portanto, um disseminado desprezo pelos preceitos normativos gerais e pela autoridade do legislador — mesmo admitindo que isto se verifique em alguma medida — , mas refletiriam em concreto a exagerada indeterminabilidade que preceitos daquele tipo assumem quando deixam de se referir a um todo, dos quais seriam expressões relativamente determinadas caso houvesse uma noção compartilhada do sentido normativo deste todo, e a partir dos quais seria também possível atingir prudentemente uma compreensão racionalmente fundada das exigências do todo para cada caso concreto.

            Hipótese cuja verossimilhança se acentua considerando os traços fundamentais da cultura moral contemporânea, dos quais é notório intérprete Alasdair MacIntyre. Do ponto de vista da tradição filosófica que mereceu a adesão do filósofo, é dizer, especialmente para Aristóteles e Tomás de Aquino, só podemos compreender o justo à luz do bem, que nesta tradição se identifica com o fim no sentido do qual o homem se dirige para alcançar a sua perfeição específica (37). Qualquer pessoa que careça do conhecimento do seu verdadeiro bem estará privada das únicas razões seguras para a ação reta, pois sem o conhecimento genuíno do bem humano não se pode ter o conhecimento adequado das normas morais. Segundo postula a tradição aristotélico-tomista, as normas morais ordenam as ações humanas no sentido daqueles fins a que o homem se inclina, ou seja, daqueles bens que são a dimensão da sua perfeição (38). Segue-se que qualquer acordo racional sobre as normas morais pressupõe um acordo racional sobre a natureza do bem humano (39). Contudo, nas sociedades ocidentais contemporâneas os desacordos são numerosos e fundamentais tanto quanto à natureza do bem humano quanto a se esse bem existe. Segundo a teoria liberal sobre a qual estas sociedades se organizam, a adesão a qualquer concepção particular acerca do bem passa a ser questão de preferência individual e de eleição privada (40). Disto decorre a exagerada indeterminação das normas morais, pois para que uma comunidade política possua normas morais racionalmente fundadas, compartilhadas e suficientemente determinadas, é uma precondição necessária a posse compartilhada de uma concepção de bem humano racionalmente justificável (41).

            Não havendo uma compreensão compartilhada do que seja bom para o homem, do que seja uma vida boa (eudaimonia), o que genuinamente compartilhamos na forma de máximas, preceitos e princípios morais, não está suficientemente determinado para orientar a ação com segurança (42). Apesar da aparente impessoalidade dos argumentos que freqüentam o debate, o emotivismo passa a caracterizar a cultura moral das sociedades onde se verifica aquela perda. Passamos a agir como se o emotivismo fosse verdadeiro, ou seja, como se todos os juízos estimativos, e mais especificamente os juízos morais, fossem meras expressões de preferência individual, atitude ou sentimento, e assim insuscetíveis de verdade e falsidade. Sendo expressões de sentimento, a concordância acerca dos juízos morais não deveria ser assegurada por algum método racional, mas pela produção de certos efeitos não-racionais nas emoções ou atitudes dos outros. Neste contexto, verifica MacIntyre, usamos os juízos morais não apenas para expressar nossos próprios sentimentos, mas também, precisamente, para produzir estes efeitos nos outros (43). Temos, portanto, algo ainda mais grave que a simples perda de determinabilidade das normas morais, pois ao invés de orientarmo-nos por elas passamos a usá-las para expressar sentimentos ou preferências e para provocar efeitos não-racionais nos outros.

            Numa sociedade caracterizada por esta cultura moral emotivista, as premissas iniciais do raciocínio prático são fornecidas pelos desejos do agente (44). Os pontos de vista morais e políticos são construídos como expressões de atitude e sentimento, de preferências individuais. Não sendo argumentos, a persuasão não-racional desloca a argumentação racional (45). Se for ao menos em parte verdadeiro este diagnóstico, torna-se imperativo questionar sobre uma possível contaminação emotivista do discurso, da praxis e da racionalidade prático-jurídica.

            Sabemos hoje que é um folclore ingênuo imaginar que o direito seja claro e evidente no contexto da generalidade dos casos, e assim que os juízes devam limitar-se a formular juízos de fato, em face dos quais deveriam declarar o direito com certeza. Sendo assim, mesmo a submissão honesta dos juristas à legislação escrita não garante a objetividade dos juízos prático-jurídicos e a racionalidade do debate em torno deles. Pois da mesma forma que o absoluto desacordo acerca do bem para o homem torna as normas morais insuficientemente determinadas para guiar a ação moral, o dissensoacercaaaaa acerca dos fins da comunidade política, e portanto dos bens que a ordem jurídica deve realizar ou garantir, torna as normas jurídicas insuficientemente determinadas para orientar com segurança a ação do jurista. Como parece verossímil que não compartilhamos — ou ao menos que não elaboramos racionalmente —, noções fundamentais acerca dos fins do direito e daquilo que por justiça se exige de cada um, em face dos outros ou da comunidade política como um todo, o que compartilhamos na forma de máximas, preceitos e princípios jurídicos, mesmo por respeito à legislação, não está suficientemente determinado para orientar a praxis jurídica, garantindo a sua racionalidade e objetividade, e assim aquele tipo de estabilidade capaz de oferecer segurança.

            É possível, noutros termos, que nos falte aquele todo de valor, de que nos falou Castanheira Neves, em que a sociológica universalidade comunitária e o axiológico-intencional comum comunitário se exprimem normativamente. Simplesmente, porque talvez nos faltem aquela universalidade e este comum comunitário. E neste caso o domínio do direito está vulnerável ao emotivismo, pois estando insuficientemente determinados para orientar a ação com segurança, dada a ausência daquele todo integrante que a determinabilidade exige, as máximas, princípios e preceitos jurídico-normativos deixam de oferecer critérios objetivos de ação e de verificação racional da veracidade ou falsidade dos juízos prático-jurídicos concretos, e passam a ser usados em tom impessoal para obter a adesão alheia às preferências individuais de quem os usa. Se a premissa inicial do raciocínio prático é fornecida pelos desejos do agente, se os pontos de vista são em verdade expressões de atitude e sentimento, e não argumentos, e se a submissão à legislação não garante sozinha a objetividade dos juízos jurídicos e a racionalidade do debate, também no direito a persuasão não-racional pode estar deslocando a argumentação racional. E isto é duma gravidade insuspeitável, pois além de minar a pretensão de objetividade do direito, gera um avassalador sentimento de insegurança. O direito deixa de orientar a ação, para passar a ser usado como instrumento de persuasão não-racional. E a partir daí tudo é possível, pois nada oferece respostas seguras acerca do que o direito impõe à praxis.

            Que as súmulas de jurisprudência possam fazer frente à crise decorrente desta grave desordem cultural é algo de que devemos seriamente suspeitar. Por mais que explicitem critérios normativos, continuarão incapazes de antecipar o conteúdo das decisões judiciárias concretas, não apenas por ser isto metodologicamente impossível, mas por ser incompatível com a natureza prático-prudencial do conhecimento jurídico e da função jurisdicional. Por mais que se expressem adequadamente, conservarão certa indeterminação de sentido abstrato, e exigirão dos juristas que determinem o sentido concreto de cada uma no contexto de cada problema que suscite sua aplicação. E desta forma ficarão sujeitas ao influxo das mesmas circunstâncias de ordem sócio-cultural que tornam os preceitos legislativos exageradamente indeterminados e incapazes de ordenar com segurança a prática judiciária.

            O estado de crescente insegurança jurídica que verificamos no Brasil deste limiar de milênio supera certamente o grau de incerteza que o direito impõe dada a sua própria natureza. Mas aquele fenômeno não decorre da falta de instrumentos de controle jurisdicional, nem pode ser enfrentado com o incremento dos que existem — até porque nosso sistema é pródigo em mecanismos deste tipo, e a experiência os demonstra inócuos na contenção da insegurança. As súmulas de jurisprudência são evidentemente incapazes de obstar os males da perda dos vínculos tradicionais e autoritativos, estes sim eficazes na manutenção de uma ordem fundante e ordenadora da praxis (46). Nem podem forjar uma estabilidade nos fundamentos, uma coerência nos princípios, quando o ambiente cultural em que a função jurisdicional se realiza é caracterizado por um profundo desacordo acerca das questões de fundamento e de princípio. Impor, nestas circunstâncias, a uniformidade da jurisprudência, exigiria talvez uma certa ruptura com algumas das inalienáveis conquistas democráticas. Assim, provavelmente está certo Ovídio A. Baptista da Silva ao alertar para o fato de que a renúncia ao propósito de uniformizar a jurisprudência "é o preço que as épocas de crise e profundas transformações, como a nossa, devem pagar, para manter o império do Direito" (47).


5. Objeções de ordem político-jurídica: do caráter autoritário implicado na intenção de restringir a independência judicial por vinculação a preceitos normativos de origem não-legislativa.

            O Legislativo não deve ter o monopólio da manifestação do direito, mas o monopólio desta manifestação numa das suas particulares expressões, que é a expressão legal. Pois a democracia não exige que o Legislativo monopolize aquela manifestação, e sim que apenas o Legislativo possa manifestar o direito através do estabelecimento de normas gerais e abstratas. Assim como exige o monopólio, pelo Judiciário, da manifestação prático-concretamente-normativa do direito, através de julgamentos proferidos no contexto de casos particulares. A concentração dos poderes de estabelecer normas geralmente aplicáveis e de julgar casos jurídicos particulares de acordo com estas normas é francamente contrária aos postulados sobre os quais está assentado o Estado de Direito, e por isto atentam contra estes postulados quaisquer tentativas de atribuir ao Legislativo a função de estabelecer o conteúdo concreto das decisões judiciárias particulares, ou de atribuir ao Judiciário a função de impor critérios normativos abstratos geralmente aplicáveis. Partindo desta fundamental constatação, cumpre apreciar a validade político-jurídica da proposta de vinculação às súmulas de jurisprudência.

            Também quanto a este ponto a gênese e a experiência da cassation oferecem riquíssimas perspectivas, pois revelam o caráter autoritário da tentativa de estabelecer aprioristicamente o conteúdo das particulares decisões judiciárias, concentrando num só Poder aquelas duas funções pelo exercício das quais o direito se manifesta.

            Segundo Calamandrei, o recurso de cassação originou-se de um instituto já existente na França do ancien régime. Na luta que se desenvolveu entre o poder centralizador da monarquia e as tendências descentralizadoras dos Parlamentos (órgãos judiciais de última instância surgidos em várias cidades, à semelhança do de Paris), uma arma freqüentemente utilizada pelo Soberano para paralisar os intentos de ingerência daquelas Cours no terreno das prerrogativas régias, foi a de anular de son propre mouvement os atos jurisdicionais de tais Parlamentos e que por qualquer forma parecessem contrários à vontade do Monarca. Em razão deste poder se desenvolveu um verdadeiro e próprio meio de impugnação (demande en cassation) concedido à parte vencida em um juízo en dernier ressort, para denunciar ao Soberano, com o fim de anulação, a sentença de um Parlamento que estivesse viciada de contravention aux ordonnances. Esta demande en cassation só podia ser dirigida ao Soberano, que tomava conhecimento dela por meio do próprio Conselho de Governo, dentro do qual, quando a cassação começou a funcionar regularmente, se especializou uma seção especial chamada Conseil des Parties. Dado que já então este meio de impugnação visava à manutenção das ordenações e não à satisfação das partes, concluiu Calamandrei que o arquétipo da cassação estava já no Conseil des Parties do ancien régime, órgão supremo do conselho político do Soberano, instituído para controlar a atividade dos juízes (48).

            Os fatos sugerem, portanto, que a cassação surge em consonância com aquele postulado hobbesiano segundo o qual todo o poder está concentrado no soberano, razão pela qual os juízes nada decidem, senão pronunciando a vontade daquele soberano enquanto mandatários constituídos por sua autoridade. As sentenças dos juízes, enuncia Hobbes, são autênticas por serem dadas pela autoridade do soberano, mediante a qual elas se tornam sentenças do soberano, que então se tornam leis para as partes em litígio (49). Tendo sido originariamente estabelecida como mecanismo de garantia da observância, pelos juízes, da vontade do soberano, que deveria concentrar os poderes de legislar estabelecendo comandos gerais e de julgar através dos seus mandatários, de modo que a sua vontade arbitrária fosse rigorosamente observada, a cassação mostra-se em princípio antitética com o Estado de Direito e com o princípio da independência judicial, o que suscita curiosidade a respeito da sobrevivência do instituto.

            A respeito, Calamandrei observa que aquele instrumento de luta do poder real contra os Parlamentos rebeldes voltou a ser adotado pela Revolução, transformando-o num instrumento para a defesa da lei contra as transgressões dos juízes. Sobre o esqueleto processual da cassation do ancien régime, mas sob a nova roupagem adotada pelas ideologias revolucionárias, que magnificavam a onipotência da lei e a igualdade de todos perante ela, nasceu, em 1790, o Tribunal de Cassation. Na sua forma originária, o Tribunal não foi um órgão verdadeiramente judicial, mas de controle constitucional, posto ao lado do Poder Legislativo para vigiar a atividade dos órgãos judiciais e reprimir as ingerências com que os juízes tratavam de subtrair-se à observância da lei. Sobre a estrutura do antigo conselho do Soberano, o Tribunal surgiu como expressão de uma profunda desconfiança dos legisladores revolucionários a respeito dos juízes, considerados o mais grave perigo para a manutenção das leis. Precisamente aquela mesma desconfiança em que teve origem a disposição que proibia aos juízes o poder de interpretá-las, e que, através do instituto do référé législatif, procurava retirar dos juízes o poder de julgar para transferi-lo aos órgãos legislativos (50).

            Isto indica que mesmo a cassação pós-revolucionária tinha um propósito francamente autoritário, pois pressupunha não a independência da função jurisdicional, e sim a sua estrita subordinação ao Poder Legislativo. E revela uma das singulares características da feição que a nossa tradição jurídico-política atribuiu ao princípio da separação dos poderes: o soberano poder do povo não se manifesta em qualquer medida pelo Poder Judiciário, mas exclusivamente através da atividade legislativa, à qual os juízes devem subordinar-se passivamente aplicando a lei, manifestação da vontade geral. Ou seja, não se concebe a submissão dos poderes estatais à soberania popular, mas a submissão dos demais ao poder soberano do legislador, a quem o povo incumbe a função de representá-lo com exclusividade. Por isso costumamos dizer que o juiz não tem legitimidade democrática, razão pela qual não poderia exercer nenhuma função normativamente constitutiva ou conformadora da ordem jurídica nacional. Tanto é assim que o Tribunal de Cassation nasce como órgão anexo ao legislativo com a função de vigiar, como referiu Calamandrei, a atividade dos juízes. Dada a sobrevivência desta ideologia de fundo, imagina-se que a posteriormente nomeada Cour de Cassation, mesmo tendo assumido função mais propriamente jurisdicional, cumpre o papel de "adestramento científico" das instâncias ordinárias (51), controlando as premissas normativas do raciocínio prático-jurídico com a pretensão de garantir a rigorosa aplicação da lei no seu sentido abstratamente considerado.

            Contudo, apesar do genético propósito autoritário da cassation, as decisões proferidas pelo antigo Tribunal se abstinham de decidir a causa em questão, a fim de não usurpar funções judiciais que não lhe competiam. As decisões proferidas em sede de cassação tinham caráter puramente negativo, pois não determinavam como deveria ser julgada a causa pelo juiz de reenvio, que mantinha liberdade para fazê-lo conforme o seu convencimento. Conseqüência lógica, observa Calamandrei, do caráter não judicial deste órgão de controle, cujo influxo positivo sobre o exercício da jurisdição apareceu como um limitação externa à função judicial e, por conseguinte, como uma violação do princípio da separação dos poderes, de que foram os revolucionários rígidos custódios (52).

            Disto tudo se infere o seguinte: a cassação assumiu o autoritário propósito de controle da estrita submissão dos juízes ao soberano poder legislativo, todavia sem decidir em lugar deles os casos concretos no contexto dos quais se proferiam as decisões cassadas, pois se imaginava que àquele controle bastava a reprovação das equivocadas premissas normativas abstratamente consideradas, com a conseqüente cassação das decisões que as considerassem, e que além disso o controle positivo seria inadmissível pois implicaria uma indevida interferência do legislativo na função judicial. Quanto ao que nos importa, é possível concluir que o controle das premissas normativas de que partiam os juízes tinha um propósito nitidamente autoritário — pois rejeitava que ao Judiciário coubesse assumir com independência a função de revelar o direito numa das suas particulares manifestações —, mas que todavia este propósito não se realizou plenamente, pois, sem assumir o controle positivo da jurisprudência, o Tribunal, vinculado ao legislativo, em verdade manteve a cargo dos juízes a tarefa de determinar em concreto o sentido prático-normativo dos critérios de julgamento, dado que o controle das premissas é essencialmente incapaz de impedi-lo, como vimos anteriormente.

            E mesmo quando a Cour de Cassation assumiu o controle positivo da jurisprudência, a realização daquele propósito foi obstada, fundamentalmente por dois motivos: a) já se havia transformado em órgão jurisdicional (53) e deixado de ser órgão de controle político, pelo legislativo, da atividade dos juízes; e b) mesmo supondo possível garantir a uniformidade da jurisprudência pela estrita observância da lei no seu sentido abstrato, o sistema da cassation permitiu que os juízes se mantivessem independentes, pois aquela suposição estava equivocada e as decisões proferidas pela Cour não são juridicamente obrigatórias e têm valor meramente persuasivo e exemplar (54). Em suma, o controle das premissas do raciocínio prático-jurídico foi assumido com o autoritário propósito de estabelecer por antecipação o conteúdo das decisões judiciais, de modo que mesmo o sentido prático-concretamente-normativo do direito não fosse estabelecido com independência pelos juízes, mas este propósito não teve êxito porque não dispôs de mecanismos de vinculação suficientes e supôs uma metodologia incompatível com a natureza do direito e da sua realização concreta.

            Eis precisamente, pois, o que atualmente se pretende no Brasil: estabelecer mecanismos de vinculação suficientes, partindo da mesma equivocada compreensão do raciocínio prático-jurídico, de modo a realizar finalmente aquele autoritário propósito de eliminar a independência judicial submetendo os juízes à observância de critérios normativos gerais dos quais deduziriam as soluções antecipadamente estabelecidas em abstrato para os casos futuros. Com uma peculiaridade agravante: a proposta de vinculação às súmulas pretende submeter as instâncias ordinárias à observância estrita de preceitos normativos gerais emitidos não pelo Legislativo — a quem deve competir com exclusividade esta forma de manifestação do direito —, mas pelo próprio Judiciário — a quem deve competir apenas a manifestação prático-concretamente-normativa do direito. Ou seja, com a proposta o Legislativo seria usurpado e o Judiciário pervertido nas suas exclusivas atribuições institucionais.

            Considerando que no Brasil é praticamente inexistente uma autêntica cultura da independência judicial, algumas observações são ainda necessárias quanto ao sentido deste princípio, pois só compreendendo-o plenamente é possível perceber o acerto das parciais conclusões até aqui enunciadas.

            O mais trivial sentido do princípio da independência judicial postula a autonomia do Judiciário perante os outros poderes. Esta autonomia de forma alguma pressupõe qualquer espécie de insubmissão à lei, mas impõe que o Judiciário assuma com absoluta independência a função de revelar, no contexto de problemas prático-jurídicos concretos, as exigências do direito — e assim da lei, enquanto particular expressão sua —, para os casos em que estes problemas se apresentam. O primeiro e mais evidente desdobramento do princípio da independência judicial consiste, portanto, na interdição aos demais Poderes de qualquer atividade tendente a interferir nesta tarefa de revelar as exigências do direito, em geral, e da lei, particularmente, para cada caso concreto cuja apreciação seja levada ao Judiciário. Ao decidir um caso os juízes se sujeitam apenas ao direito, e às suas particulares manifestações legais, que assumem nestes termos o papel de critérios únicos da sua atividade. Isto exclui a legitimidade de quaisquer instruções e do estabelecimento de critérios e prescrições normativos que se pretendam impor além daquelas que a lei, já por si, impõe em termos gerais (55).

            Este primeiro sentido do princípio poderia aparentemente legitimar a instituição das súmulas vinculantes, pois o Judiciário, como um todo, continuaria exclusivamente submetido ao direito e às suas manifestações legislativas. Todavia, o princípio exige a exclusiva submissão de cada juiz ao direito e àquelas manifestações (56). Postula, já num sentido axiológico-jurídico material, a exclusão da interferência de gerais critérios formais, juridicamente vinculantes na aplicação do direito, para além da lei; e a liberdade de cada tribunal ou juiz na concreta decisão jurídica ou na normativa apreciação dos casos concretos que sejam chamados a julgar (57). Neste sentido axiológico-jurídico material a independência é garantia, condição e meio indispensáveis para a realização do direito e da justiça (58).

            Considerado nestes termos, o princípio da independência é inconciliável com a imposição de diretivas e instruções decisórias vinculantes para além da lei, mesmo que esta imposição se dê desde dentro do próprio Judiciário. O exclusivo compromisso dos tribunais e de cada magistrado com o direito e a justiça pressupõe a divergência de soluções concretas dada a diferenciação concreta dos casos — exigência de igualdade material perante a lei —, assim como a admissão de divergências na busca das melhores soluções para casos similares, até mesmo porque o contributo de diversos pontos de vista é indispensável, conforme ensina Castanheira Neves, à evolução seletiva que acaba por permitir encontrar aquelas soluções, que virão decerto a prevalecer e que, de outro modo, possivelmente não se alcançariam (59). A este respeito, percebeu o notável catedrático que os assentos portugueses, "como critérios gerais-abstratos para uma fixada e uniforme jurisprudência, não são sensíveis à validade daquela diferenciação e opõem-se diretamente ao interesse desta divergência". Para enfim concluir: "se é uma coisa e outra — a diferenciação concreta e a divergência normativa, fomentadora de uma experimentação selectiva — o que os assentos visam impedir, é agora evidente como são eles incompatíveis — claro está, se conseguissem o que pretendem — com uma independente procura e realização jurisprudencial do direito" (60). Que isto valeria para as nossas súmulas, tornando-se vinculantes, é algo que a estas alturas dispensa comprovação.

            Por fim, cumpre considerar o seguinte alerta: não é "só cerceando os seus poderes ou intervindo directamente nela que a função judicial poderá ver afectada a sua verdadeira independência e autonomia, mas também desvirtuando-a funcionalmente..." (61). Considerando os assentos e a sua ainda incerta versão brasileira instruções hierárquicas dirigidas pelas instâncias extraordinárias às ordinárias, comprometer-se-ia a independência dos juízes, pois os tribunais superiores assumiriam uma função administrativo-burocrática que ao invés de afirmar um princípio de independência implicaria, ao contrário, dependência e obediência. Considerando-os, todavia, verdadeiras normas jurídicas de sentido abstrato e aplicação geral, comprometer-se-ia a independência funcional da jurisdição, pois esta passaria a assumir uma tarefa que não é a sua, para a qual não tem legitimidade e não está institucionalmente destinada. Nisto reside, fundamentalmente, o caráter autoritário da proposta de vinculação às súmulas de jurisprudência. Pois implica a usurpação das funções do legislativo e a supressão da liberdade jurídico-decisória concreta, reunindo num único órgão o poder de estabelecer critérios normativos abstratos geralmente aplicáveis e de julgar casos particulares de acordo com estes mesmos critérios.

            Apesar dos diversos e reiterados avisos a respeito, não percebemos ainda que não precisamos temer os juízes, e sim este tipo de concentração de poder. Dado o total desprezo que atualmente parece haver por estes avisos que nos vem de um passado recente, não deixa de ser oportuno relembrar um deles, de Alexander Hamilton no The Federalist nº 78: "liberty can have nothing to fear from the judiciary alone, but would have every thing to fear from its union with either of the other departments".


6. Conclusão.

            No século VI da Era Cristã, Justiniano, imperador romano do oriente, compilou textos de alguns notáveis juristas clássicos e outorgou-lhes validade legal, proibindo fossem sequer comentados. A compilação visava sistematizar o direito romano para eliminar conflitos e dúvidas, e assim vincular os juristas aos escritos que na concepção do Imperador expressavam o verdadeiro espírito do direito romano (62). Na França pós-revolucionária, o regime napoleônico, nitidamente autoritário, assumiu o controle das escolas de Direito e sobre elas exerceu pressões políticas de modo a impor o método exegético de estrita observância ao Código Civil (63). Assim como Justiniano, Napoleão almejava impedir que as inevitáveis interpretações desvirtuassem o sentido dos preceitos do seu Código. Estas pressões de caráter autoritário foram reforçadas pelo advento da Escola da Exegese, que professava uma concepção legalista e racionalista segundo a qual a tarefa dos juízes seria a de aplicar mecanicamente a lei, sem nem mesmo interpretá-la.

            Para quem conhece, mesmo superficialmente, a história destas tentativas de controle e de uniformização da jurisprudência, fica patente a ingenuidade daqueles que crêem nas chances de êxito da retomada da empreitada. Mas como no Brasil de hoje recusamos procurar na história orientações seguras para nossos projetos futuros, trabalhos como este tornam-se lamentavelmente necessários. Nem que seja para lembrar dos históricos fracassos que prenunciam o iminente fracasso de alguns dos nossos atuais projetos.

            Menos evidente pode parecer a impossibilidade de conciliar a democracia e a proposta de vinculação das decisões judiciais por recurso a mecanismos de controle burocrático. Mas é exatamente do mesmo grau a ingenuidade de quem não percebe o desprezo pela democracia invariavelmente presente no propósito de restringir a independência judicial.

            Na obra de referência para o desenvolvimento das linhas anteriores, A. Castanheira Neves alertou para a ausência, na generalidade dos regimes democráticos pertencentes à nossa tradição jurídica, de mecanismos de vinculação da jurisprudência que se pudessem identificar com os assentos. A propósito, lembrou que no totalitário regime da extinta URSS, os Supremos Tribunais exerciam um poder de controle centralizado impondo diretivas às jurisdições subordinadas. Algo nada estranho, referiu, "num sistema jurídico que não se propõe traduzir a axiologia e a institucionalidade do Estado-de-direito" (64).

            É de se duvidar, por óbvio, que os atuais integrantes da cúpula do Executivo desconheçam a organização política dos regimes socialistas, e que ignorem a função neles desempenhada pelos órgãos superiores de jurisdição. Não surpreende, assim, que o Executivo insista na adoção da súmula vinculante para garantir a estrita e incondicional submissão dos órgãos jurisdicionais às decisões do Supremo Tribunal Federal. Afinal, esta é a única Corte brasileira integralmente composta por magistrados indicados pelo Presidente da República. Mesmo concedendo que este mecanismo de composição seja adequado, a facilidade com que admitimos o propósito de controle burocrático das decisões judiciais escancara a fragilidade da democracia brasileira e denuncia a vocação autoritária de quem, consciente das objeções de que é passível, defende a súmula vinculante.


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            WIEACKER, Franz. História do direito privado moderno. Tradução de A. M. Botelho Hespanha. 2ª ed. Fundação Calouste Gulbenkian : Lisboa, 1993.


Notas

            1 Antonio Castanheira Neves, O instituto dos ‘assentos’ e a função jurídica dos Supremos Tribunais, Coimbra, Coimbra Editora, 1983.

            2 Idem, ibidem, pp. 02-04.

            3 Idem, ibidem, p. 230.

            4 Idem, ibidem, pp. 231/232.

            5 Idem, ibidem, p. 232

            6 Idem, ibidem, pp. 240/241. Corresponde ao tipo de unidade sistemática que vai implícita na compreensão normativístico-conceitual do direito-lei, correspondente no plano dogmático-doutrinal às intenções político-jurídicas do legalismo e do seu prescrito sistema de legalidade, sobretudo codificada (Castanheira Neves, op. cit., pp. 241/242)

            7 Castanheira Neves, op. cit., pp. 244/245.

            8 Idem, ibidem, pp. 245/246.

            9 Este esquema desconsidera, portanto, a problematicidade das próprias premissas, inexoravelmente característica do raciocínio prático-jurídico, que assim não pode ser representado na forma de um raciocínio lógico-dedutivo, mormente porque a contingência e a variabilidade das circunstâncias não admite a passagem da norma geral ao juízo prático, como veremos, sem a mediação de uma atividade prudencial que as considere.

            10 Castanheira Neves, op. cit., p. 269.

            11 Idem, ibidem, p. 227.

            12 António Manuel Hespanha, Panorama histórico da cultura jurídica europeia, 2ª ed., Portugal, Publicações Europa-América, 1998, pp. 156-158.

            13 Idem, ibidem, p. 111.

            14 A respeito deste folclore, vide Merrymann, "Lo ´´stile italiano´´: l´´interpretazione", tradução de Diego Corapi e Giuseppe Marziale, in Rivista trimestrale di diritto e procedura civile, Milano, 1968, pp. 377 a 383.

            15 Vide, a respeito, Merrymann, "Lo ´´stile italiano´´: la dottrina", tradução de Diego Corapi e Giuseppe Marziale, in Rivista trimestrale di diritto e procedura civile, Milano, 1966.

            16 "Although the ideal of certainty has been used for a variety of purposes, its most important application is a reflection of the distrust of judges. Judges are prohibited from making law in the interest of certainty. Legislation should be clear, complete, and coherent in the interest of certainty. The process of interpretation and application of the law should be as automatic as possible, again in the interest of certainty. In this sense the emphasis on certainty is an expression of a desire to make the law judge-proof" (Merryman, The civil law tradition, 2ª ed., Stanford, Stanford University Press, 1985, p. 48).

            17 Piero Calamandrei, Casación civil, tradução de Santiago Sentís Melendo e Marino Ayerra Redín, Buenos Aires, EJEA, 1959, pp. 13/14.

            18 Idem, ibidem, pp. 14/15.

            19 "(...) the work of man is achieved only in accordance with practical wisdom as well as with moral virtue; for virtue makes us aim the right mark, and practical wisdom makes us take the right means" (Aristóteles, The nicomachean ethics, 1144a, tradução de David Ross, Oxford, Oxford University Press, 1998, p. 155).

            20 Carlos Ignacio Massini-Correas, La prudencia jurídica, Buenos Aires, Abeledo-Perrot, 1983, p. 46.

            21 Sto. Tomás de Aquino, apud Massini-Correas, op. cit., p. 174.

            22 Pierre Aubenque, La prudencia en Aristóteles, tradução de Mª. José Torres Gómez-Pallete, Barcelona, Crítica, 1999, pp. 54-56.

            23 Massini-Correas, La prudência..., op. cit., p. 29.

            24 Aubenque, op. cit., pp. 127/128.

            25 Theodor Viehweg, Tópica y jurisprudencia, tradução de Luis Díez-Picazo, Madrid, Taurus, 1986, p. 55.

            26 Idem, ibidem, p. 61.

            27 Idem, ibidem, p. 63.

            28 Merrymann, "Lo ´´stile italiano´´: l´´interpretazione", op. cit., pp. 384/385.

            29 Castanheira Neves, op. cit., p. 212.

            30 Idem, ibidem, pp. 352/353.

            31 Idem, ibidem, p. 272.

            32 Idem, ibidem, pp. 218/219.

            33 Idem, ibidem, pp. 38 e 219 a 222.

            34 Idem, ibidem, p. 220.

            35 Idem, ibidem, p. 249.

            36 Idem, ibidem, pp. 464/465.

            37 MacIntyre, "La privatización del bien", in El iusnaturalismo actual, Buenos Aires, Abeledo-Perrot, 1996, p. 215. Isto deriva do postulado metafísico de que o bem de uma coisa é o fim a que ela naturalmente tende, o seu telos; por sua vez, o fim a que ela tende, o seu telos, é a realização da sua essência (cfe. Giovanni Reale, Introduzione a Aristotele, 12ª ed., Laterza, 2002, p. 46).

            38 Segundo esta tradição de pensamento, o homem deve conscientemente dirigir-se aos bens, que são os fins das suas inclinações naturais (McInerny, "El conocimiento de la ley natural", in El iusnaturalismo actual, Buenos Aires, Abeledo-Perrot, 1996, p. 244). Conhecendo estas inclinações podemos discernir os bens que são a dimensão da perfeição humana, e assim compreender o conteúdo dos preceitos éticos fundamentais que ordenam o homem no sentido dessa perfeição, ou seja, os preceitos da lei natural (Massini-Correas, El derecho natural y sus dimensiones actuales, Buenos Aires, Ábaco, 1999, pp. 187/188).

            39 MacIntyre, "La privatización...", op. cit., pp. 216/217.

            40 Idem, ibidem, pp. 217/218.

            41 Idem, ibidem, p. 224.

            42 Idem, ibidem, pp. 222/223.

            43 MacIntyre, After virtue, 2ª ed., Notre Dame, University of Notre Dame Press, 2003, pp. 11/12.

            44 MacIntyre, Justiça de quem? Qual racionalidade?, tradução de Marcelo Pimenta Marques, São Paulo, Loyola, 1991, p. 363.

            45 Idem, ibidem, pp. 368/369.

            46 Num dos seus notáveis ensaios, Luis Fernando Barzotto chamou a atenção para o fator de longa estabilidade da antiga jurisprudência romana: "Com efeito — constatou —, deve haver um vínculo entre o tratamento dado a casos semelhantes, sob pena de a insegurança jurídica se alastrar. A jurisprudência romana, mesmo sem transcender o horizonte do caso concreto, encontrou no respeito à tradição esse vínculo que dá coerência e organicidade às soluções particulares" ("Prudência e jurisprudência – Uma reflexão epistemológica sobre a jurisprudentia romana a partir de Aristóteles", in Anuário do Programa de Pós-Graduação em Direito – Mestrado e Doutorado, 1998 – 1999, São Leopoldo, UNISINOS, 1999, p. 185). Este mesmo tipo de vínculo tradicional, baseado na autoridade dos antepassados, tornou possível o coerente desenvolvimento casuístico da common law, que ao longo dos séculos não sofreu rupturas. Já na Europa continental, o jusracionalismo moderno ergueu-se contra os costumes e as autoridades que não se encontrassem em consonância com a razão, libertando a ciência jurídica da sua submissão de princípio às fontes romanas e às antigas autoridades (cfe. Wieacker, História do direito privado moderno, tradução de A. M. Botelho Hespanha, 2ª ed, Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 1993, p. 309). O que talvez explique por que a nossa é uma cultura jurídica de ruptura, ao contrário da anglo-saxã.

            47 Ovídio A. Baptista da Silva, "A função dos tribunais superiores", in Sentença e coisa julgada (ensaios e pareceres), 4ª. ed., Rio de Janeiro, Forense, 2003.

            48 Calamandrei, op. cit., pp. 29 a 32.

            49 Thomas Hobbes, Leviatã, tradução de João Paulo Monteiro, Maria Beatriz N. da Silva e Cláudia Berliner, São Paulo, Martins Fontes, 2003, p. 236.

            50 Calamandrei, op. cit., pp. 32/33.

            51 A expressão é de Calamandrei, op. cit., p. 19.

            52 Calamandrei, op. cit., p. 34.

            53 Idem, ibidem, p. 35.

            54 Idem, ibidem, p. 20.

            55 Trata-se do sentido político-jurídico tradicional do princípio da independência judicial (cfe. Castanheira Neves, op. cit., pp. 102/103).

            56 Nestes termos, serve de exemplo aos magistrados de nossos tribunais superiores a defesa da independência de cada juiz, no exercício das suas faculdades, pela Juíza Sandra Day O’Connor, da Suprema Corte dos Estados Unidos: uma judicatura independente — discursou a magistrada — requer a independência de cada juiz no exercício das suas faculdades ("La importancia de la independencia judicial", disponível em http://usinfo.state.gov/journals/itdhr/0304/ijds/oconnor.htm).

            57 Castanheira Neves, op. cit., p. 110.

            58 Idem, ibidem, pp. 104/105.

            59 Idem, ibidem, pp. 116/117.

            60 Idem, ibidem, pp. 117.

            61 Idem, ibidem, p. 16/17.

            62 Merryman, The civil law tradition, op. cit., p. 07.

            63 Norberto Bobbio, O positivismo jurídico, tradução de Márcio Pugliese, Edson Bini e Carlos E. Rodrigues, São Paulo, Ícone, 1995, p. 81.

            64 Castanheira Neves, op. cit., pp. 07/08.


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MACHADO, Fábio Cardoso. Da uniformização jurídico-decisória por vinculação às súmulas de jurisprudência. Objeções de ordem metodológica, sócio-cultural e político-jurídica. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 10, n. 674, 10 maio 2005. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/6686. Acesso em: 29 mar. 2024.