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Aspectos da iniciativa popular brasileira e o seu papel como instrumento de efetivação da democracia participativa

Aspectos da iniciativa popular brasileira e o seu papel como instrumento de efetivação da democracia participativa

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Antes mesmo de discutir a efetividade da iniciativa popular no Brasil, tendo em vista os seus requisitos rígidos, ou os poucos exemplos que temos na história de utilização desse instrumento, é preciso reconhecer que qualquer facilitação de seu uso é benéfica, à medida em que tem-se uma aproximação maior com exercício da soberania popular.

INTRODUÇÃO 

A iniciativa popular é forma de exercício direto do poder pelo povo, inaugurada com o advento da Constituição Federal de 1988. A partir de então, torna-se possível a deflagração de um processo legislativo sem a figura de um representante no Congresso Nacional.

Esse mecanismo se desenvolve como forma de concretização da soberania popular, requisito deveras importante em uma democracia dita participativa.

A legislação que rege a matéria, bem como as próprias disposições constitucionais, preceituam requisitos que desafiam a ampla utilização do instituto. Ademais, a doutrina pátria vem desenvolvendo debates que polemizam o alcance do dispositivo.

Apesar das referidas discussões, o tema tem ganhado cada vez mais relevância na realidade brasileira, o que demonstra a perspectiva de crescimento da sua utilização pela sociedade, ante o sentimento de ausência de representatividade em relação ao legislativo pátrio, o que se deve aos inúmeros escândalos de corrupção noticiados atualmente.

Nesse contexto, o presente trabalho tem como objeto a análise desse instrumento de democracia participativa e envolve questionamentos imprescindíveis à apreciação do assunto.


1. NOÇÕES GERAIS SOBRE DEMOCRACIA 

A palavra democracia é uma palavra de origem grega, que possui em sua etimologia os vocábulos: governo (kratos) e povo (demo). Nesse sentido, a clássica afirmação de Abraham Lincoln, em que democracia seria um governo “do povo, pelo povo e para o povo”.

De qualquer forma, diversas foram as concepções formuladas sobre o tema no decorrer da História. Originalmente, em Atenas, os cidadãos eram instigados a participar da vida política de sua pólis. Entretanto, a noção de cidadania era restrita, de forma que poucos exerciam, de fato, sua “democracia” diretamente. Nesse sentido, ficavam excluídas as mulheres, os escravos e os estrangeiros.

Durante o Estado Liberal, emerge a ideia de uma democracia representativa, como represália aos preceitos absolutistas. Nessa concepção moderna, há uma expansão da possibilidade de participação popular no governo (em relação à democracia desenvolvida na Grécia antiga). Além disso, ocorre uma vinculação direta entre democracia e soberania popular.

Hoje, a representatividade se impõe diante da inviabilidade da concretização de uma democracia direta nos complexos Estados atuais. Sobre o tema, leciona Celso Ribeiro Bastos( 2001, p.281):

A democracia grega, que se realizava através da participação dos cidadãos diretamente nos negócios do Estado, hoje, é praticamente impossível em virtude do número enorme de pessoas, bem como pelo próprio tamanho do Estado Moderno (a exceção são alguns cantões suíços). Realizar reuniões onde todos pudessem participar seria o caos.. Por estas e outras razões, o sistema adotado a partir do século XVIII foi o representativo, onde os cidadãos  se fazem presentes indiretamente na elaboração das normas e na administração da coisa pública através de delegados eleitos para esta função.

A partir de então, pode-se identificar a didática separação entre a democracia direta e a democracia indireta, ou representativa. Nesse sentido, citando Carl Schimitt, preleciona Menelick de Carvalho Neto(2001, p.217):

Carl Schimitt dizia que, na verdade, se nos voltarmos para a história, poderemos ver claramente que a democracia é um regime político e uma ideia de origem grega e que, na sua essência, configura-se precisamente como o regime que vivencia ou a ideia que afirma a identidade entre governante e governado, aquilo que hoje denominamos democracia direta. O governo representativo, ao contrário, é uma invenção burguesa bem mais recente, que encontra suas origens nas assembleias medievais das castas, os denominados Estados Gerais.

Dessa forma, fala-se em democracia direta quando o povo exerce, por si, a vida política. Em contrapartida, no modelo indireto, o povo elege representantes que irão governar em seu nome. Há, ainda, a denominada democracia semidireta ou participativa, que une a representação com algumas possibilidades de participação direta pelo povo.

Em verdade, a ideia de uma democracia participativa surge diante de uma crise de representatividade na sociedade, onde os governantes afastavam-se, cada vez mais, dos ideais propagados pelos governados.

Nesse contexto, ressalta Menelick(2001, p.217) que “ na história constitucional, esses dois termos, democracia e governo representativo, não somente não se confundiam como eram mesmo antagônicos até o início do séc.XX”.

Em continuidade, o mesmo autor, ao citar Carl Schmitt, afirma sobre o sistema representativo de governo (2001, p.218):

Na verdade, segundo o autor, esse regime está fadado ao fracasso mais retumbante, porque ele seria uma contradição interna entre o princípio da identidade governante e governado, porque se há representação, precisamente o que não há é identidade entre governante e governado.

Isso porque, mesmo em um modelo representativo, há que se ter uma identidade entre o governo e o que aspiram os governados, o que passa por uma ideia lógica de legitimidade. Nesse ínterim, a participação popular no governo torna-se vital para dinamizar a política de uma sociedade. Paulo Bonavides, ao defender uma democracia participativa, preceitua( 1985, 509-510):

a participação é o lado dinâmico da democracia, a vontade atuante que, difusa ou organizada, conduz no pluralismo o processo político à racionalização, produz o consenso e permite concretizar, com legitimidade, uma política de superação e pacificação de conflitos.

Corrobora com o exposto, o entendimento de Hélcio Ribeiro (2007, p.15), que associa a participação com o resgate da soberania popular:

Os mecanismos da democracia semidireta contribuem, portanto, para o aperfeiçoamento da democracia representativa, ao mesmo tempo que propiciam um resgate do conceito de soberania popular como princípio fundador de uma sociedade democrática.

Ao tratar sobre democracia, a Constituição Federal de 1988 consolida os modelos representativo e participativo, dispondo em seu artigo 1º, parágrafo único que “todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição”.

Ainda, discorrendo sobre a participação direta do povo na política, a CRFB preceitua que esta será realizada por meio de plebiscito, referendo e iniciativa popular, nos termos do artigo 14, caput.

De acordo com o artigo 2º da lei nº 9.709 de 1998, que regulamenta o art.14 da Constituição Federal de 1998 acima citado, “plebiscito e referendo são consultas formuladas ao povo para que delibere sobre matéria de acentuada relevância, de natureza constitucional, legislativa ou administrativa”.

Ainda de acordo com o mesmo diploma legal, “o plebiscito é convocado com anterioridade a ato legislativo ou administrativo, cabendo ao povo, pelo voto, aprovar ou denegar o que lhe tenha sido submetido” enquanto que o referendo “é convocado com posterioridade a ato legislativo ou administrativo, cumprindo ao povo a respectiva ratificação ou rejeição”.

Quanto à iniciativa popular, esta inspira maiores comentários, uma vez que traduz um impacto maior, mais efetivo, concreto na vida política do seu país, conforme será desenvolvido e discutido no decorrer do presente trabalho.


2. INICIATIVA POPULAR: CONCEITO E PRESSUPOSTOS

Celso Ribeiro Bastos, em sua obra (2001, p.282), conceitua o instrumento como “o direito de uma parcela da população (um por cento do eleitorado) apresentar ao Poder Legislativo um projeto de lei que deverá ser examinado e votado”.

Destacando a importância desse instituto, Aurélia Carla Queiroga da Silva(2013, p.53) ressalta em brilhante dissertação de mestrado sobre o tema:

A iniciativa popular enseja ao povo a oportunidade de apresentar ao Poder Legislativo um projeto normativo de interesse coletivo, o qual, após discussão parlamentar e respeitados os requisitos do processo legislativo, pode se transformar em lei. Permite aos cidadãos exercitarem uma verdadeira orientação governamental, consubstanciada na participação  efetiva na tomada de decisões de poder, corrigindo, assim, os vícios da representação política e, sobretudo, contribuindo para o legítimo exercício do direito fundamental à democracia(...)

Portanto, parte-se da premissa de que o povo possui um instrumento que o permite interferir diretamente no poder, sem o intermédio de qualquer representante.

Crucial destacar o fato de que esta atividade popular é inaugurada apenas na Carta Magna de 1988, sendo decorrente de intensa pressão da sociedade brasileira, que clamava por medidas participativas na nova ordem constitucional que seria inaugurada. Aurélia Carla Queiroga da Silva (2013, p.61) destaca que essa mobilização popular na constituinte de deu em três fases, e explica:

A primeira fase, que vai de 1984 até novembro de 1985, caracterizada pela defesa de uma Assembléia Nacional Constituinte exclusiva, sendo, contudo, obstada em razão do Congresso Nacional ter aprovado a Emenda Constitucional oriunda do Poder Executivo, que previa a investidura do próprio Congresso em poder constituinte originário. Já a segunda fase avultada pela formulação de propostas advindas da sociedade civil para o projeto da vigente Constituição, além da mobilização no sentido da eleição de candidatos sensíveis às propostas populares e a terceira e última fase, considerada a mais relevante, demarcada pela adoção do Instituto da Iniciativa Popular, sob a chancela de uma emenda popular, que ancorada no regimento interno da constituinte, resultou em um verdadeiro instrumento de participação social, através do qual os cidadãos brasileiros puderam apresentar propostas de Emenda ao novel projeto de Constituição, ainda, em construção redacional. Em decorrência disso, a característica mais marcante da Constituição de 1988 será certamente o alto nível de participação da sociedade na sua elaboração.

De qualquer forma, tendo passado pelo processo de redemocratização do país e, apesar da resistência oferecida pelo parlamento e por camadas conservadoras da sociedade civil, o instituto encontra-se, hoje, na Constituição Federal de 1988, que também enumera os requisitos necessários à realização da medida, conforme se extrai da leitura do seu art.61, § 2º, in verbis:

A iniciativa popular pode ser exercida pela apresentação à Câmara dos Deputados de projeto de lei subscrito por, no mínimo, um por cento do eleitorado nacional, distribuído pelo menos por cinco Estados, com não menos de três décimos por cento dos eleitores de cada um deles.

Ainda, regulamentando a matéria, a lei 9709/1998 dispõe, em seu art.13, que o projeto de lei de iniciativa popular deverá circunscrever-se a um só assunto, sem que possa ser rejeitado por vício de forma, cabendo à Câmara dos Deputados, por seu órgão competente, providenciar a correção de eventuais impropriedades de técnica legislativa ou de redação.

Os regimentos internos da Câmara dos Deputados e do Senado Federal também fixam outros requisitos, tais como: a assinatura de cada eleitor deverá ser acompanhada de seu nome completo e legível, endereço e dados identificadores de seu título eleitoral; as listas de assinatura serão organizadas por Município e por Estado, Território e Distrito Federal, em formulário padronizado pela Mesa da Câmara; e a necessidade do projeto ser instruído com documento hábil da Justiça Eleitoral quanto ao contingente de eleitores alistados em cada Unidade da Federação, dentre outros pressupostos.

Nesse contexto, da leitura dos dispositivos supracitados, podem ser estabelecidas algumas reflexões.

Primeiramente, há se atentar para o fato de que instrumento apenas deflagra o processo legislativo, de forma que a análise do projeto ainda será feita pelas casas do Congresso Nacional, inicialmente pela Câmara dos Deputados e, após, no Senado Federal, a casa revisora. Portanto, como resultado dessa apreciação, o projeto de lei pode ser rejeitado, fazendo cair por terra todos os esforços empreendidos pela população.

Ainda, o projeto de lei poderá ser emendado pelos parlamentares, sem que estas modificações retornem ao crivo do povo. Nesse contexto, tem-se que a intenção popular pode ser facilmente desnaturada.

Além disso, os próprios requisitos necessários à obtenção da medida dificultam a sua utilização em larga escala. Aliás, justamente por conta destes empecilhos, em toda a história constitucional deste instituto, apenas quatro projetos de lei de iniciativa popular foram aprovados no Brasil, conforme será analisado a seguir.

2.1 PROJETOS DE LEI DECORRENTES DE INICIATIVA POPULAR NO BRASIL

Consoante destacado anteriormente neste trabalho, existem somente quatro projetos de lei aprovados no Brasil mediante deflagração popular. O primeiro deles, mais conhecido como Projeto de Iniciativa Popular Glória Perez (foi decorrente do homicídio da filha da autora), reuniu mais de 1(um) milhão e 300(trezentas) mil assinaturas e culminou com a lei nº 8.930/94, alterando as disposições anteriores que tratavam sobre os crimes hediondos.

A matéria foi enviada ao Congresso pelo presidente da época, Itamar Franco, que já teria atribuições constitucionais para deflagrar o processo legislativo de forma singular, sem qualquer apoio popular. Nesse contexto, Pedro Lenza(2014, p.630) ressalta que na Câmara dos Deputados, o referido projeto aparece como sendo de coautoria do poder executivo e da iniciativa popular.

O segundo, culminou com a lei nº 9.840/99, que possui o objetivo de dar mais condições para que a Justiça Eleitoral possa coibir com mais eficácia o crime da compra de votos de eleitores. À época, foi apresentado ao Congresso Nacional como Iniciativa Popular de Lei, sob o patrocínio da Comissão Brasileira Justiça e Paz- CBJ, com o apoio da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil- CNBB. A medida foi apoiada, ainda, por mais de sessenta entidades de todo o Brasil.

Tendo em vista a enorme pressão popular, conforme se extrai da lição de Pedro Lenza (2014, p.630), o projeto foi subscrito pelo deputado Albérico Cordeiro e outros 59(cinquenta e nove) parlamentares, antes mesmo de obter a quantidade de assinaturas populares necessárias, sendo aprovado, também, em tempo recorde.

Em seguida, tem-se o projeto que culminou com a lei 11.124/2005, que dispõe sobre o Sistema Nacional de Habitação de Interesse Social- SNHIS e cria o Fundo Nacional de Habitação de Interesse Social- FNHIS e o seu Conselho Gestor. O Movimento Popular de Moradia foi o principal apoiador da causa.

Conforme ensina Pedro Lenza (2014, p.631), este foi o primeiro projeto de iniciativa popular da história brasileira apresentado à Câmara dos Deputados, tendo tramitado por mais de treze anos até ser finalmente aprovado e sancionado.

Apesar disso, durante a sua tramitação, chegou a ser levantado possível vício formal de iniciativa, uma vez que a medida dispunha sobre matérias reservadas à iniciativa exclusiva do Presidente da República, nos moldes do art.61, § 1º, II, “a” e “e”. De qualquer forma, a matéria desta discussão ainda não foi apreciada pelo Supremo Tribunal Federal.

Por fim, o quarto projeto culminou com a Lei Complementar nº135/2010, popularmente conhecida como Lei da “Ficha Limpa”, que altera a Lei Complementar nº 64/1990, para incluir hipóteses de inelegibilidade que visam proteger a probidade administrativa e a moralidade no exercício do mandato.

Conforme se extrai dos ensinamentos de Pedro Lenza (2014, p.632), a medida foi apoiada com mais de 1(um) milhão e 700(setecentas) mil assinaturas, tendo ampla aceitação por parte da sociedade brasileira. Em decorrência disso, o projeto foi encaminhado por diversos Deputados Federais.


3. MATÉRIAS QUE PODEM SER OBJETO DE INICIATIVA POPULAR 

A Constituição Federal de 1988, ao tratar sobre iniciativa popular também o faz para os Estados e Municípios (art.27, §4º e art.29, XIII da CF/88). Em nível estadual, as matérias serão tratadas conforme previsão local, enquanto que em âmbito municipal, as regras são fixadas pela própria CF/88, mas com requisitos diferentes dos que são previstos para a esfera federal.

Além dessa previsão, existem discussões sobre as espécies normativas que podem ser objeto de deflagração popular, conforme será demonstrado nos próximos tópicos do presente trabalho.

3.1 INICIATIVA POPULAR EM LEIS DELEGADAS, MEDIDAS PROVISÓRIAS, DECRETOS LEGISLATIVOS E RESOLUÇÕES

A Constituição Federal de 1988 expressamente admite projeto de lei de iniciativa popular para leis ordinárias e leis complementares, conforme previsão do art.61, § 2º. Entretanto, de acordo com a doutrina de Pedro Lenza (2014, p.635), em geral, não se admite a utilização do instrumento para matérias de iniciativa exclusiva ou reservada, as quais “a Constituição fixou determinado titular para deflagrar o processo legislativo”.

Corrobora com o exposto a lição de Aurélia Carla Queiroga da Silva (2013, p.79):

Assim, a Iniciativa Popular, tal como está disposta na Constituição Federal vigente e na legislação infraconstitucional, somente encontra arrimo para propositura das leis ordinárias e complementares, por tratar-se de uma iniciativa geral, restrita a determinadas matérias(...).

Nesse sentido, não há que se falar em projetos de iniciativa popular no que tange às leis delegadas, medidas provisórias, decretos legislativos e resoluções. Apesar disso, existem entendimentos doutrinários que consideram a possibilidade de deflagração de processo legislativo pelo povo quando a iniciativa é do Presidente da República, fazendo, para tanto, uso de uma interpretação sistemática da CF/88.

Pedro Lenza (2013, p.632), ao fazer uso desse entendimento, justifica-o “ especialmente diante do sentido maior de titularidade do poder pelo povo, que elege o Presidente da República(...)”.

3.2 INICIATIVA POPULAR EM PROJETO DE EMENDA À CONSTITUIÇÃO

Ao tratar sobre o instituto em comento, a Carta Magna nada falou sobre a possibilidade de exercê-la em relação a projeto de emenda à Constituição. Em decorrência disso, a doutrina se divide nesse ponto.

Os que argumentam pela impossibilidade, o fazem considerando o rol expressamente previsto no art. 60, I, II e III da CF/88 e o mandamento implícito de que ele não poderia ser alterado.

Por outro lado, uma grande parte da doutrina, a citar José Afonso da Silva, acredita na possibilidade de utilização popular desse instrumento, com base em normas gerais e princípios da Constituição, dentre eles, o art.14, III da CF/88, que atrela o exercício da iniciativa popular à ideia de soberania popular.

De fato, a deflagração popular para PEC é decorrência direta de uma democracia participativa, onde se escuta a vontade política da população. O povo é o titular do poder constituinte originário, portanto, nada mais óbvio que se permita a sua participação enquanto reformador de um diploma constitucional que ele mesmo construiu, aliás, de forma incondicionada e ilimitada.

Sobre o assunto, Aurélia Carla Queiroga da Silva (2013, p.79) discorre acertadamente:

Hodiernamente, não se concebe que o povo, fonte de onde emana todo o poder, incluindo-se o próprio poder constituinte originário, não tenha legitimidade para propor emenda à Constituição. O trato da questão pelo texto constitucional de 1988, restrita apenas às leis ordinárias e complementares, denuncia a timidez do instituto no cenário jurídico nacional, que diante do influxo democrático apregoado pela Nova Hermenêutica libertadora não mais se justifica exigindo-se mudança, em função da revisão do paradigma de valores institucionais ao qual a própria sociedade já se amolda, no sentido de pleitear uma maior participação nos assuntos públicos, com vistas à reinvindicação pela tutela efetiva de seus direitos.

Ademais, este seria um mecanismo bastante eficiente para se prevenir a existência de hiatos constitucionais, que provocam um distanciamento entre o texto político e a realidade social. A ampliação de uma iniciativa faz parte do próprio ideal democrático, uma vez que permite a defesa de direitos desejados por toda a sociedade. Nesse sentido, corrobora o entendimento de Ferreira Filho (1992, p.122):

Destarte o ideal democrático de auto-governo exige que a iniciativa seja estendida, para que todos possam, na medida de seu interesse e de sua capacidade, colaborar na gestão da coisa pública.

Justamente em virtude dessa vontade de participação política que cresce na população, dezesseis Estados no Brasil preveem, em suas Constituições, a iniciativa popular de PEC, a citar São Paulo, Santa Catarina, Espírito Santo, entre outros.

Aliás, este é um mecanismo experimentado em diversos países no mundo. As lições de Paulo Bonavides (2008, p.205) apontam a previsão na Constituição da Itália de 1948, que exige a proposta formulada por no mínimo 50.000( cinquenta mil) eleitores. No mesmo sentido, a Constituição Federal da Suíça, que em seu art.120 também confere ao povo a iniciativa de reforma.

Imperioso destacar, ainda, que o anteprojeto da CF/88 apresentado por Pinto Ferreira previa a iniciativa popular de PEC. Nesse sentido, preleciona Aurélia Carla Queiroga da Silva (2013, p.62):

Na sequência do processo histórico- evolutivo pátrio, foi proposto o Anteprojeto Pinto Ferreira, que apresentava como princípio basilar do Estado Brasileiro a participação direta e organizada da sociedade civil, através do Princípio da Democracia Participativa, consoante disposto no art. 1º do texto que propunha para discussão. O grande mérito deste anteprojeto é conferir à Iniciativa Popular a prerrogativa de propositura tanto de Leis, quanto de Emendas à Constituição, necessitando para tanto, tão somente de um projeto articulado, subscrito por no mínimo 50.000( cinquenta mil) eleitores. Resta claro, que o jurista pernambucano pretendia facilitar e estimular a efetiva participação dos cidadãos nos processos de elaboração das leis, de forma a romper com o paradigma de simples representação política, trazendo à baila os contornos do ideário da Democracia Participativa, como opção sistêmica para o país.

Percebe-se, portanto, que o anseio da sociedade em permitir o alargamento da iniciativa popular como forma de aumentar a sua participação política já era premente na constituinte de 1988. Atualmente, e principalmente em virtude do cenário político em que se acham imersos os brasileiros, a luta pela utilização e fortificação desse instituto é cada vez mais crescente, como será trabalhado a seguir.


4. PERSPECTIVAS DA INICIATIVA POPULAR NO CENÁRIO ATUAL BRASILEIRO

Atualmente, diante dos inúmeros escândalos de corrupção noticiados em nosso país, o povo se vê diante de uma crise de representatividade, onde os governantes não correspondem aos anseios do verdadeiro titular do poder, ao contrário, geram extrema insatisfação na sociedade.

O povo clama pela democracia participativa, já comentada anteriormente nesse trabalho. Assim como no momento da constituinte de 1988, percebe-se uma mobilização da sociedade e das instituições democráticas para aumentarem o seu poder de participação na política do país. Da mesma forma, o instituto da iniciativa popular, enquanto instrumento da democracia participativa, vem recebendo um crescente destaque no cenário brasileiro.

Em decorrência disto, tem-se a tramitação, por exemplo, da PEC 286/13, de autoria do senador Rodrigo Rollemberg (PSB-DF), que tem como objetivo facilitar a apresentação de projetos de iniciativa popular pela população. Nesse ponto, a PEC propõe importantes mudanças.

Primeiro, diminui o número de assinaturas necessárias a apresentação para 0,5% do eleitorado nacional, distribuídas por, pelo menos, cinco estados, com não menos de 0,1% dos eleitores de cada um deles.

Além disso, prevê a possibilidade de iniciativa popular para PEC, porém, com requisitos diferentes. Nesse caso, seria exigida a assinatura de 1% do eleitorado, também distribuído por cinco estados, com pelo menos 0,3% dos eleitores de cada um deles.

Ainda como inovações importantes, esta PEC prevê a aposição de assinaturas pelo povo através de meios eletrônicos, o que seria mais conveniente e ágil. Por fim, a PEC 286 estabelece, também, preferência na ordem de tramitação para as propostas populares que obtiverem o apoio de, pelo menos, um partido político.

Também está em tramitação na Câmara dos Deputados o PL 7005/2013, de autoria do Senador Serys Slhessarenko (PT/MT), que acrescenta os §§ 3º e 4º na Lei nº 9.709, de 18 de novembro de 1998, para estabelecer a possibilidade de subscrição eletrônica para apresentação de projeto de lei de iniciativa popular. Além disso, os projetos que não alcançarem o número mínimo de assinaturas tramitarão na forma de sugestões legislativas. Ainda, pode-se citar também o PL 7.003/2010, que indica a utilização de urnas eletrônicas para este fim.

Estes são exemplos de resultados das pressões populares que visam expandir o uso do mecanismo da iniciativa popular no país, de forma a permitir uma maior participação do povo na vida política.

Aliás, demonstra esse crescimento de “vontade de participação” brasileira, a criação, tanto na Câmara, como no Senado de “Comissões Participativas”, como indica Pedro Lenza (2014, p.632-633) em sua obra intitulada “Direito Constitucional Esquematizado”. Nesse contexto, a “ Comissão de Legislação Participativa”, prevista no art.32, XII do RICD, bem como a “ Comissão de Direitos Humanos e Legislação Participativa, mencionada no art. 102-E do RISF.

Convém destacar que presenciamos, hoje, um movimento formulado e amplamente apoiado pelo Ministério Público Federal que bem demonstra a vontade política da população brasileira e de suas instituições democráticas. A ação pretende colher assinaturas para apresentar ao Congresso um projeto de lei de iniciativa popular que promova alterações estruturais e sistêmicas necessárias para prevenir e reprimir a corrupção de modo adequado.

No próprio site do Ministério Público Federal, temos um apanhado histórico dos escândalos de corrupção que assolaram o Brasil, o que demonstra que os instrumentos utilizados até então para combatê-la não estão sendo eficazes. Como exemplo, tem-se o escândalo do mensalão, a operação Anaconda, e o atual escândalo intitulado “lava jato”.

Como medidas previstas pelo movimento, pode-se citar: o aumento das penas conferidas a esta espécie de crime e a classificação em crime hediondo para corrupção de altos valores; uma maior celeridade nas ações de improbidade administrativa; a reforma da prescrição penal para os crimes de corrupção; a responsabilização dos partidos políticos e a criminalização da prática do “caixa 02”; além da recuperação de todo o lucro obtido com o crime, uma vez que todo o montante ganho ilicitamente será confiscado, culminando com a prisão preventiva caso haja o ocultamento desse valor.

Dessa forma, tendo em vista a ampla aceitação dessas medidas pela população, nos encaminhamos para o quinto projeto de iniciativa popular empenhado pela sociedade brasileira, tendo sido os outros quatro já apresentados em momento anterior neste trabalho.

 As mudanças no instituto na iniciativa popular que tramitam no parlamento prometem uma maior utilização do mecanismo pelo povo, o que, com certeza, contribui positivamente em termos de perspectiva para a construção de uma democracia efetivamente participativa do país.


CONSIDERAÇÕES FINAIS

Após todo o exposto, importante ressaltar que além dos mecanismos de participação direta presentes no art.14, I, II e III da CF/88, já comentados anteriormente neste trabalho, existem muitos outros instrumentos previstos em nosso ordenamento que contribuem para a construção de uma efetiva democracia participativa no país, tais como a ação popular, as audiências públicas que provocam uma discussão com a população acerca de proposições legislativas, dentre outras formas, que fogem ao objeto do presente artigo.

A iniciativa popular, entretanto, ganha destaque entre essas formas, justamente por permitir uma interferência mais direta do povo na vida política do país. Aliás, os inúmeros projetos que tramitam no parlamento com o objetivo de facilitar a utilização desse macanismo, demonstram a consciência da sociedade quanto ao poder que a iniciativa popular tem, enquanto verdadeira arma de democracia.

A ignorância popular dá lugar à vontade política, à legitimidade cidadã dos brasileiros, o que se deve, em grande parte, aos inúmeros escândalos de corrupção noticiados no país, conforme comentado anteriormente neste trabalho. Como resultado, tem-se uma verdadeira crise de representatividade instaurada, que demonstra a insatisfação popular quanto a inexistência de identidade entre governantes e governados.

Nesse ponto, não se pretende defender uma ruptura com o modelo representativo de democracia, mas sim a coexistência deste com um modelo participativo da sociedade. Em verdade, essa tensão existente, como ressalta Habermas, na sua obra “Facticidade e Validade”(1929), é justamente o que mantém a legitimidade e a dinamicidade de um governo.

Acerca do tema, preleciona Menelick (2001, p.220):

O fato de vermos esses princípios contraditórios em permanente tensão impede que esse regime venha a se tornar uma res total, exigindo sempre contemporaneamente representação e identidade; o que importa uma revisão permanente dessa identidade do povo em relação aos próprios representantes, tornando essa representação sempre precária, requerente de revisões. É precisamente nesse sentido que podemos ver a dinâmica e a vitalidade da democracia, uma democracia capaz de permanente inclusão, ou seja, de reconhecer a exclusão quando tematizada, de realizar permanentemente a revisão do próprio conceito de povo, que há de ser sempre fragmentado e fragmentário em constante tensão.

De qualquer forma, tendo em vista as reflexões feitas no presente trabalho, percebe-se que a iniciativa popular é instrumento direto de formação de uma democracia participativa brasileira. Permitir ao povo a deflagração de processos legislativos de leis ordinárias, leis complementares, ou até mesmo PECs é reconhecer, antes de mais nada, a legitimidade do real titular do poder constituinte, a origem e o destinatário de um Estado Democrático de Direito.

Ressalta-se, portanto, a importância quanto à divulgação desse mecanismo, destacando-se também o papel das instituições democráticas nesse mister, a exemplo da excepcional campanha que vem cumprindo o Ministério Público Federal, conforme destacado anteriormente no presente artigo.

Antes mesmo de discutir a efetividade da iniciativa popular no Brasil, tendo em vista os seus requisitos rígidos, ou os poucos exemplos que temos na história de utilização desse instrumento, é preciso reconhecer que qualquer facilitação de seu uso é benéfica, à medida em que tem-se uma aproximação maior com exercício da soberania popular.

Não há que se falar em instituto “meramente decorativo” quando o povo sabe usar o que está em suas mãos. Ademais, o mecanismo serve, no mínimo, como instrumento de pressão para que o parlamento direcione sua atenção a matérias essenciais à sociedade, ou para lembrar aos governantes de que é preciso manter uma identidade com o verdadeiro titular do poder para que eles possam existir enquanto representantes. 


REFERÊNCIAS 

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BONFIM, Vinícius Silva. A função da sociedade civil e da esfera pública na legitimidade do processo legislativo à luz da teoria discursiva do direito e da democracia de Jürgen Habermas. 137f. Dissertação( Mestrado em Direito)- Universidade Católica de Minas Gerais. Belo Horizonte, 2013.

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______. Resolução nº93, de 1970. Dá nova redação ao Regimento Interno do Senado Federal. Disponível em:

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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

EVANGELISTA, Amanda Mendes; SIQUEIRA, Marina Felinto. Aspectos da iniciativa popular brasileira e o seu papel como instrumento de efetivação da democracia participativa. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 25, n. 6105, 19 mar. 2020. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/67400. Acesso em: 18 abr. 2024.