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Ação civil pública visando suspender as obras do BRT em Salvador

Ação civil pública visando suspender as obras do BRT em Salvador

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As obras do BRT em Salvador, iniciadas sem estudo prévio de impacto de vizinhança e outras preocupações regulamentares, foi alvo de ação civil pública proposta mediante litisconsórcio ativo entre Ministério Público Federal e Estadual (MPF e MP/BA).

EXCELENTÍSSIMO(A) SENHOR(A) DOUTOR(A) JUIZ(A) FEDERAL DA ______ VARA DA SEÇÃO JUDICIÁRIA DO ESTADO DA BAHIA

URGENTE

Ref.: Notícia de Fato nº 1.14.000.000681/2018-01

Inquérito Civil nº 1.14.000.002854/2016-55 (MPF)

IDEA 003.0209622/2016 (MPBA)

O MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL, com fundamento no artigo 129, III, da Constituição Federal, bem como no artigo 5º, incisos I, “h”, III, “e” e V, “a” e no artigo 6º, VII, “a” e “d”, todos da Lei Complementar nº 75/93, e o MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DA BAHIA, por intermédio dos presentantes legais que subscrevem, propõem a presente AÇÃO CIVIL PÚBLICA com PEDIDO DE TUTELA DE URGÊNCIA em face da

UNIÃO, pessoa jurídica de direito público interno(...0

CAIXA ECONÔMICA FEDERAL (CEF), empresa pública federal(...)

MUNICÍPIO DE SALVADOR,(...)

CONSÓRCIO BRT SALVADOR,(...)

INEMA – INSTITUTO DO MEIO AMBIENTE E RECURSOS HÍDRICOS(...)

pelos fatos e fundamentos jurídicos a seguir aduzidos.


I. DOS FATOS

Em 04 de novembro de 2016, foi instaurado no Ministério Público Federal o Inquérito Civil tombado sob o nº 1.14.000.002854/2016-55, após notícia de fato apresentada pelo Sr. Álvaro de Sousa e Almeida, narrando supostas irregularidades na licitação e no financiamento público do projeto de mobilidade urbana BRT/SALVADOR, em execução pela Prefeitura Municipal de Salvador e pelo Consórcio BRT SALVADOR, financiado com recursos federais.

Com o mesmo objeto, também questionando a licitude do supramencionado empreendimento, foi instaurado na 12ª Promotoria de Justiça de Assistência/GEPAM do Ministério Público do Estado da Bahia, o procedimento tombado sob o IDEA nº. 003.0.209622/2016.

Em 11 de abril de 2017, foi instaurado, na 2a Promotoria de Justiça Ambiental do Ministério Público do Estado da Bahia, o Inquérito Civil tombado sob o nº 003.9.53794/2018, após notícia de fato apresentada contra o projeto de mobilidade urbana BRT/SALVADOR, em execução pela Prefeitura Municipal de Salvador e pelo Consórcio BRT SALVADOR, financiado com recursos federais.

Os noticiantes afirmam a existência de petição pública com 69.383 assinaturas denunciando que a obra será danosa para o município pelas razões seguintes: a) alto impacto visual e ambiental, pois importará na supressão de 579 árvores, as quais serão substituídas por concreto; b) altíssimo custo; c) desnecessidade, pois repete o percurso já coberto pelo Metrô, pois visa apenas atender os interesses dos empresários de ônibus que são financiadores de campanhas políticas e; d) desvalorização dos imóveis próximos aos viadutos, uma vez que o problema poderia ser resolvido simplesmente com a utilização de faixas exclusivas para os ônibus.

A obra do BRT (Bus Rapid Transit) SALVADOR, segundo informações oficiais da própria Prefeitura Municipal de Salvador, já conta com mais de R$ 800 milhões em recursos aprovados pelo Governo Federal para a implantação dos dois primeiros trechos do empreendimento, que vão ligar o Shopping da Bahia ao Loteamento Cidade Jardim (obras já iniciadas) e o Loteamento Cidade Jardim à Estação da Lapa1.

O primeiro trecho do empreendimento, com extensão de 2,9 km, tem previsão para ser concluído em 28 (vinte e oito) meses, sendo obra civil a cargo do Consórcio BRT SALVADOR, com um custo estimado entre R$ 68,3 milhões e R$ 117 milhões por quilômetro (km) construído, estimativa que torna a obra do BRT Salvador a mais cara dentre as capitais brasileiras que já instalaram ou estão instalando este modal. De acordo com dados do Ministério das Cidades fornecidos para o movimento Salvador Sobre Trilhos, em comparação com Rio de Janeiro (RJ), Belém (PA), Recife (PE), Brasília (DF), Fortaleza (CE), Florianópolis (SC), Goiânia (GO), entre outras, o valor por quilômetro implantado na capital da Bahia chega a custar o triplo das demais2.

A intervenção conta com rejeição de parcela significativa da população, preocupada com aspectos urbanísticos e ambientais, tendo motivado um abaixo-assinado na internet que conta com mais de 71 mil assinaturas, que argumenta, em síntese, que: a) haverá derrubada de árvores; b) acarretará prejuízo à paisagem urbanística; c) é um trecho desnecessário, pois já atendido pelo metrô; d) envolverá o tamponamento de 02 (dois) rios3.

A rejeição popular possui como uma de suas fontes a praticamente inexistente participação da população no processo de elaboração do projeto, que contou com apenas uma audiência pública promovida pela Prefeitura Municipal de Salvador, em 30 de maio de 2014, para que fosse apresentado o Estudo de Impacto Ambiental (EIA) e o Relatório de Impacto Ambiental (RIMA), e, também, fossem discutidas as bases e a motivação da intervenção, bem como a escolha do modal e de seu traçado, através de convocação publicada no Diário Oficial do Município em 19 de maio de 2014, ou seja, publicação ocorrida apenas 11 (onze) dias antes da audiência pública.

Observe-se, desde já, que a Prefeitura Municipal de Salvador desrespeitou o interregno mínimo de 45 dias entre a publicação do aviso à população e a efetiva realização desta única audiência pública, exigência constante do art. 2º, § 1º, da Resolução CONAMA n° 009/1987.

Ainda de acordo com a determinação legal constante do art. 2º, § 3º da Resolução CONAMA n° 009/1987, a audiência pública deverá ocorrer em local acessível aos interessados, e ser amplamente divulgada à sociedade, através da imprensa local, o que também não ocorreu. Isto porque, ao que se tem notícia, não houve outras formas de convocação da população, como mensagens em jornais de grande circulação dentre outras iniciativas que assegurassem uma efetiva ciência e ampla participação da população no encontro, que não serviu para nenhuma modificação do projeto. O encontro se prestou apenas para comunicar os detalhes do projeto à pequena parcela dos interessados presentes, não servindo como uma oportunidade de real debate sobre a escolha do modal ou dos traçados, o que não reflete a exigência da lei, qual seja, a significativa participação da população na gestão democrática dos centros urbanos, como deseja o Estatuto da Cidade.

Todos os encontros públicos que aconteceram posteriormente sobre o empreendimento do BRT/SALVADOR ocorreram após o início do processo licitatório, como o encontro promovido pelo Ministério Público do Estado da Bahia, em 22 de fevereiro de 2017, pela Assembleia Legislativa da Bahia em 26 de abril de 2017, ou mesmo após o início das obras, como o encontro promovido pela OAB/BA em 11 de maio de 2018 ou a sessão promovida pelo Ministério Público do Estado da Bahia em 22 de maio de 2018, ou seja, em nenhuma destas ocasiões havia a possibilidade real de envolvimento da população nas decisões relativas à escolha do modal e seus traçados.

Oficiada para apresentar informações sobre a licença ambiental, estudos de mobilidade e outros documentos (fls. 13 do IC nº 1.14.000.002854/2016-55 do MPF), a Prefeitura Municipal de Salvador se manifestou através do Sr. Luiz Carreira, Chefe da Casa Civil (fls. 18/31), enviando em 20/12/2016, o EIA/RIMA, a Licença Prévia do BRT SALVADOR e informando ainda que, resumidamente, verbis:

O projeto Corredores de Transporte Público Integrado de Salvador – BRT foi selecionado (enquadrado) pelo Ministério das Cidades e incluído no Programa de Aceleração do Crescimento - PAC Mobilidade por meio da Portaria 222 de 24 de abril de 2014, estando apto a receber recursos do Orçamento Geral da União - OGU, o que até o momento não aconteceu devido a não disponibilidade de recursos no orçamento Federal (OGU). Assim sendo, a Prefeitura Municipal do Salvador optou pela alternativa de dividir o Projeto em dois trechos, sendo o "Trecho 1" aquele que compreende o percurso do Parque da Cidade ao Iguatemi, que será executado com recursos financiados pelo Município junto à Caixa Econômica Federal, e o "Trecho 2", que compreende o percurso da Estação da Lapa ao Parque da Cidade e que será executado com recursos do OGU”. (fl. 18) (…) Ademais, insta sublinhar que todas as decisões tomadas estiveram lastreadas em estudo técnicos apurados, os quais, por sua vez, analisaram detidamente os problemas existentes na poligonal, encontrando, para tanto, a solução que, sem dúvida, se harmoniza com o interesse público, seja do ponto de vista da mobilidade seja na perspectiva da eficiência econômico-financeira.

Entretanto, não foram encaminhados ao MPF o projeto executivo e o orçamento do empreendimento, tendo em vista o fato do projeto executivo, segundo a Prefeitura Municipal de Salvador, ser de encargo da empresa a ser contratada para execução da obra civil, como aludido no ofício encaminhado a esta PR/BA (fls. 30/31 do IC nº 1.14.000.002854/2016-55).

Da análise do Empreendimento BRT/SALVADOR, com obras iniciadas no dia 29 de março de 2018 (data da comemoração de aniversário de Salvador), nota-se que o mesmo descumpre inúmeras exigências legais para este tipo de empreendimento, dentre as quais podem ser mencionados:

a) ausência de Estudo de Impacto de Vizinhança (EIV);

b) ausência de Estudo de Viabilidade Técnica, Econômica e Ambiental (EVTEA);

c) ausência de projeto de mobilidade;

d) ausência de significativa participação da população e das associações representativas dos vários segmentos da comunidade, de modo a garantir o pleno exercício da cidadania, como determina a gestão democrática estabelecida no Estatuto da Cidade;

e) ausência de ampla publicidade de todo o procedimento licitatório, mediante veiculação no sítio eletrônico oficial;

g) ausência de fundamentação para a adoção do Regime de Contratação Integrada;

h) inexistência de Plano de Mobilidade, instrumento de efetivação da Política Nacional de Mobilidade Urbana, obrigatório para municípios com mais de 20.000 (vinte mil) habitantes, que deveria ser precedente ao empreendimento guerreado;

i) inexistência das outorgas para uso do corpo hídrico, dentre outros ilícitos.

j) não foram coletados dados claros acerca do problema a ser resolvido (índices de congestionamento, estatísticas de acidentes e de eventos de risco, etc);4

k) não foram apontadas fontes de custeio, previsão de custos ou documentos equivalentes a fim de determinar a viabilidade operacional, técnica, econômica, financeira e tarifária do empreendimento;5

l) não foram realizadas análises para determinar se as alternativas de custos e prazos condizem com as especificações;6

Em relação ao item “i” supramencionado, como a obra envolve o tamponamento (encapsulamento) de parte de 02 (dois) rios urbanos, Rio Camarajipe e Rio Lucaia, tais outorgas de uso conferidas pelo INEMA são fundamentais para que se inicie a obra. Ademais, os impactos de tais encapsulamentos só poderiam ser dimensionados com o projeto executivo da obra, do qual não se tem conhecimento e nem foi encaminhado ao Parquet pela Prefeitura Municipal de Salvador, apesar dos tamponamentos já estarem contratados de modo expresso no edital. Ou seja, contratou-se sem ao menos saber quais as consequências urbanísticas e ambientais do que se estava contratando e as obras se iniciaram sem a autorização necessária para se alterar a dinâmica dos cursos d´água.

Verifica-se, portanto, que a obra foi contratada e iniciada pelo Município de Salvador sem que houvesse um real e significativo estudo acerca do seu impacto ambiental, sobretudo quando se observa que a área do projeto está localizada em grande parte da Bacia Hidrográfica do Rio Lucaia (responsável pela drenagem de extensa área da cidade) e trecho do Rio Camarajipe. Nesta seara, o tamponamento de rios e a supressão de significativa área verde da cidade, com a derrubada de árvores de grande porte, trazem impactos secundários que precisam ser efetivamente (e não apenas formalmente) considerados. Como se observa do documento constante à fl. 79 do IC nº 1.14.000.002854/2016-55:

(…) O impacto gerado no trecho 2, correspondente à Av. Juracy Magalhães, será de maior significância, pois este trecho possui uma grande quantidade de área verde com árvores de grande porte, que serão retiradas durante a implantação. Outro fator relevante é a intervenção que existirá com o recobrimento de grande parte do canal do Rio Lucaia para implantação do projeto BRT.

Impactos secundários são causados após a redução das áreas verdes, como: alterações no microclima, elevação de temperatura, alterações no regime de chuvas, alagamentos devido à falta de superfícies permeáveis e outros que competem à qualidade de vida e à saúde pública. Assim, a remoção de biomassa vegetal, que inclui o corte de árvores, é um impacto que provocará alterações locais na composição, estrutura e dinâmica da comunidade e caracteriza-se como um impacto permanente (…).

O BRT/Salvador, como observado em audiência pública ocorrida em 22/05/2018 no auditório do Ministério Público Estadual, também não conta com o Estudo de Viabilidade Técnica, Econômica e Ambiental (EVTEA), que deve anteceder ao projeto para posteriormente integrá-lo, comprovando que a solução adotada é a melhor alternativa para o local da obra, o tipo da obra e sua finalidade. Tal exigência consta como condicionante para o financiamento de projetos no âmbito do RDC, como no caso do BRT/SALVADOR, nos termos do art. 9º, § 2º da Lei nº 12.462/2011, e de acordo com o art. 74, caput e parágrafo 1º, do Decreto nº 7.581/2011, que regulamenta o RDC.

A ausência do EVTEA que, caso exista, jamais foi apresentado ou publicizado pela Prefeitura de Salvador, torna impossível a análise sobre a viabilidade técnica, econômica e ambiental do empreendimento em questão.

Ademais, como aduzido, a capital baiana ainda não conta com um Plano de Mobilidade Urbana, instrumento fundamental para a efetivação da Política Nacional de Mobilidade Urbana (Lei nº 12.587/2012) e que deve preceder às grandes ações de mobilidade, cujo prazo fatal para elaboração era até 2015. Entretanto, através da Medida Provisória nº 818/2018, o termo final foi postergado para abril de 2019.

Ocorre que a própria Lei nº 12.587/2012, em seu art. 24, § 6º, informa que os Municípios que descumprirem o prazo previsto para elaboração do Plano de Mobilidade Urbana ficarão impedidos de receber recursos federais destinados à mobilidade urbana até que seja elaborado o plano. Assim, enquanto o Plano de Mobilidade Urbana de Salvador não for efetivamente elaborado e entrar em vigor, o Ministério das Cidades não poderá fazer os repasses prometidos ao empreendimento do BRT/Salvador, através da CAIXA ECONÔMICA FEDERAL.

Registre-se que grande parte da obra civil é financiada com recursos da UNIÃO (Orçamento do PAC- PROGRAMA DE ACELERAÇÃO DO CRESCIMENTO e do FGTS), na seguinte forma:

Recursos de Financiamentos junto à Caixa Econômica Federal (CEF): 1. Operação de Crédito nº 440.163-75, da linha do Pró-Transporte - FGTS; 2. Operação de Crédito nº 446.938-64, do Programa de Financiamento das Contrapartidas do Programa de Aceleração do Crescimento – CPAC.

Recursos do Orçamento Municipal: 1. Lei de Diretrizes Orçamentárias – LDO nº 9.095, de 26/07/2016; 2. LOA nº 9.185, de 29/12/2016; 3. Projeto/Atividade: 15.451.004.100401 – Implantação do Corredor Iguatemi-Lapa da Secretaria Municipal de Mobilidade – SEMOB.


II. DA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA FEDERAL E DA LEGITIMIDADE DO MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL

A apreciação da presente demanda pela Justiça Federal se fundamenta justamente no fato da UNIÃO, via Ministério das Cidades, estar financiando, por intermédio do agente financeiro CAIXA ECONÔMICA FEDERAL, o empreendimento guerreado e as intervenções estarem em desacordo com as normas que autorizam o repasse de verbas federais, maculando as obrigações assumidas pela municipalidade frente aos entes federais.

O descumprimento das diretrizes impostas pelo órgão que fornece as verbas reflete diretamente no objeto do ajuste, o que justifica a suspensão da transferência de recursos pelo Ministério das Cidades e pela CAIXA ECONÔMICA FEDERAL, entes que possuem atribuição para fiscalizar a regular execução dos convênios em apreço.

Já a legitimidade do Ministério Público Federal na Bahia, por seu turno, para a propositura da presente ação civil pública, decorre da violação ao patrimônio público federal, encontrando fundamento no art. 129, III, da CF/1988, em conjunto com o art. 6º, inciso VII, b, e inciso XIV, f, da Lei Complementar nº 75/93.

Com efeito, de acordo com a Lei Complementar nº 75 de 1993, a qual institui o regime aplicável ao Ministério Público da União, tem-se que:

Art. 37. O Ministério Público Federal exercerá as suas funções:

I - nas causas de competência do Supremo Tribunal Federal, do Superior Tribunal de Justiça, dos Tribunais Regionais Federais e dos Juízes Federais, e dos Tribunais e Juízes Eleitorais;

II - nas causas de competência de quaisquer juízes e tribunais, para defesa de direitos e interesses dos índios e das populações indígenas, do meio ambiente, de bens e direitos de valor artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico, integrantes do patrimônio nacional;

(...)

Em jurisprudência consolidada, o Superior Tribunal de Justiça vem entendendo pela competência da Justiça Federal, em razão da presença do Ministério Público Federal no polo ativo da demanda, demonstrando reconhecer, destarte, o atrelamento da atuação do Parquet Federal à definição da competência, conforme se mostra na decisão abaixo que inaugurou o entendimento reiterado:

CONFLITO DE COMPETÊNCIA Nº 40.534 - RJ (2003/0185926-2)

RELATOR: MINISTRO TEORI ALBINO ZAVASCKI

AUTOR: MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO

RÉU: LOTERIA DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO - LOTERJ E OUTROS

AUTOR: MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL

RÉU: UNIÃO E OUTROS

SUSCITANTE: SORTEIO EMPREENDIMENTOS LTDA E OUTROS

ADVOGADO: CAMILO FERNANDES DA GRAÇA E OUTROS

SUSCITADO: TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO

SUSCITADO: TRIBUNAL REGIONAL FEDERAL DA 2A REGIÃO

EMENTA

CONFLITO POSITIVO DE COMPETÊNCIA. JUSTIÇA FEDERAL E JUSTIÇA ESTADUAL. AÇÕES CIVIS PÚBLICAS. EXPLORAÇÃO DE BINGO. CONTINÊNCIA. COMPETÊNCIA JURISDICIONAL DA JUSTIÇA FEDERAL.

(...)

2. A competência da Justiça Federal, prevista no art. 109, I, da Constituição, tem por base um critério subjetivo, levando em conta, não a natureza da relação jurídica litigiosa, e sim a identidade dos figurantes da relação processual. Presente, no processo, um dos entes ali relacionados, a competência será da Justiça Federal, a quem caberá decidir, se for o caso, a legitimidade para a causa.

(...)

4. Em ação proposta pelo Ministério Público Federal, órgão da União, somente a Justiça Federal está constitucionalmente habilitada a proferir sentença que vincule tal órgão, ainda que seja sentença negando a sua legitimação ativa. E enquanto a União figurar no pólo passivo, ainda que seja do seu interesse ver-se excluída, a causa é da competência da Justiça Federal, a quem cabe, se for o caso, decidir a respeito do interesse da demandada (súmula 150/STJ).

5. Conflito conhecido e declarada a competência do Juízo Federal.

Confiram-se ainda, na mesma linha, os seguintes julgados: STJ, CC 112.137/SP, Segunda Seção, Rel. Min. Paulo de Tarso Sanseverino, DJe 1o.12.2010; STJ, CC 86.632/PI, Primeira Seção, Min. Luiz Fux, DJe 10.11.2008; STJ, CC 90.722/BA, Primeira Seção, Rel. Min. José Delgado, Rel. p/ acórdão Teori Albino Zavascki, DJe 12.8.2008.

Ademais, o processamento de ações civis públicas em relação à implantação de BRTs, com recursos repassados pela União por intermédio da Caixa Econômica Federal como agente financeiro, já ocorreu em outras unidades da Federação, a exemplo do Tocantins, no município de Palmas, colhendo-se o entendimento nos autos da ação cautelar de n. 8316-13.2015, que:

22. A CAIXA ECONÔMICA FEDERAL deve figurar como litisconsorte passiva necessária porque é figura central na execução do contrato, tendo a incumbência, inclusive, de efetuar o desembolso dos recursos e receber a prestação de contas. Ademais, a pretensão de invalidar a avença atinge diretamente os interesses da empresa pública federal porque remunerada pelos serviços que presta à UNIÃO.

23. De consequência, mantenho a CAIXA ECONÔMICA FEDERAL como litisconsorte passiva.

Portanto, consoante se infere do disposto na Súmula 150 do Superior Tribunal de Justiça, sabe-se que compete à Justiça Federal decidir sobre a existência de interesse jurídico que justifique a presença, no processo, da União, suas autarquias ou empresas públicas, restando incontroversa a competência desse Juízo para exame e julgamento da presente ação civil pública proposta.

Ademais, urgem ser consideradas as seguintes irregularidades detectadas no Parecer Técnico nº. 159/2018, da lavra do CEAT/MEIO AMBIENTE, subscrito por arquiteto, urbanista e engenheiro civil do MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DA BAHIA (datado de 25 de maio de 2018), relacionadas ao orçamento estimativo e à demanda inicialmente prevista para o modal de transporte escolhido:

(…) Embora não tenha sido realizada análise quanto ao eventual sobrepreço do orçamento base estimado, foi observada falta de clareza quanto à metodologia e os referenciais utilizados pela Prefeitura Municipal de Salvador para a adoção do valor de R$ 377.257.180,83 (trezentos e setenta e sete milhões, duzentos e cinquenta e sete mil, cento e oitenta reais e oitenta e três centavos). O edital, no item 3.2.1, página 16, “do orçamento e preço de referência”, limita-se tão somente na adoção de texto semelhante ao disposto no Art. 9º, §2º, inciso II da Lei nº 12.462, já citado anteriormente, com a apresentação de diferentes metodologias aplicáveis. Caso tenha sido utilizado o método de estimativa com base nos valores pagos pela administração pública em serviços e obras similares é importante que seja esclarecido quais obras foram utilizadas como parâmetro para a justificativa do valor adotado(…). Existe consolidação na literatura acadêmica, reforçada em diversos estudos nacionais e internacionais, inclusive consta no Manual BRT 2008, que a definição do modal BRT tem como característica geral, o baixo custo de implantação aliado ao baixo impacto ambiental para intervenção viária/implantação e o baixo impacto visual das intervenções. No BRT em questão, a Prefeitura de Salvador não tem comprovado essas características/vantagens (página 10). Outra situação, também não apresentada, é o peso da viabilidade técnica e econômica na escolha da concepção de projeto para minimizar os custos com os ‘9 elevados’, inclusive na adoção de outras soluções técnicas, efetivando a economicidade, princípio obrigatório nas licitações públicas. A viabilidade técnica e econômica não pode estar dissociada do partido urbanístico a ser adotado. No caso em questão, a concepção dos elevados efetiva o alto custo das obras do BRT em Salvador (página 11). A prefeitura de Salvador não tem comprovado nos autos ministeriais ou mesmo disponibilizado no site do BRT, por meio de estudo específico de impacto de vizinhança (EIV), possíveis impactos negativos apresentados, e ações mitigadoras, a serem tomadas. O EIV é matéria técnica relevante pela intervenção proposta, e não é substituído pela elaboração e a aprovação do estudo prévio de impacto ambiental (EIA), conforme artigo 38 do Estatuto da Cidade. Lei federal 10.257 de 2001(….).

Além disso, o laudo técnico concluiu não ter sido possível avaliar as projeções futuras nos estudos de demanda para os cenários de 2019 até 2044, haja vista o fato de os estudos terem sido confeccionados em 2013. Isto porque, nesta época em que foram realizados tais estudos de demanda (2013), o Metrô de Salvador não estava em funcionamento, metrô este, que, ressalte-se, liga os mesmos destinos dos trechos iniciais do BRT/Salvador (LIP/LAPA), o que evidencia que a demanda existente à época para justificar o projeto, muito provavelmente, foi diminuída com o modal já existente e em pleno funcionamento. Deveriam ser elaborados novos estudos levando em consideração este novo cenário de mobilidade.

Para melhor demonstrar o acima exposto, utiliza-se a ilustração a seguir, que demonstra os trajetos de ambos os modais:

Disponível em: https://www.correio24horas.com.br/noticia/nid/viaduto-sera-construido-em-frente-ao-shopping-iguatemi-para-passagem-de-brt/

Com efeito, não se ignora a certeza de que a “escolha de uma modalidade de transporte coletivo em descompasso com a demanda de passageiros implicará onerosidade excessiva para o município que pagará o financiamento federal, custo esse que certamente será repassado para as tarifas pagas pelos usuários.”7

Assim, tendo em vista que, mesmo cientes das irregularidades em apreço, a CEF e, especialmente, a UNIÃO, não exerceram seus poderes administrativos, no sentido de impedir a aplicação das verbas no empreendimento em desacordo com as normas vigentes, estas devem ser compelidas judicialmente a suspenderem o repasse de recursos, que estão sendo utilizados para custear obra que não atende às exigências legais e às diretrizes do próprio Ministério das Cidades para o tipo de obra civil que se ajustou no objeto do pacto.

As flagrantes ilicitudes apontadas justificam a intervenção corretiva dos referidos entes federais, que repassam os recursos ao município, pois a regularidade ambiental e urbanística do empreendimento constituem exigências do órgão conveniado, quando da transferência da verba pública para o ente municipal.

Registre-se que não se está ajuizando a presente ação em face da UNIÃO e da CEF pelo simples fato destes entes estarem custeando o empreendimento irregular, mas sim em razão das suas omissões em fiscalizar e exigir o regular cumprimento das normas previstas no convênio que firmaram com o município de Salvador/BA e a observância dos demais aspectos jurídicos levantados.

A omissão ilícita da UNIÃO e da CEF, no caso concreto, as tornam corresponsáveis pelos atos ilícitos e eventuais danos ao meio ambiente, além de legitimar o provimento jurisdicional que as obrigue a exercer a ação fiscalizadora própria de órgãos custeadores do empreendimento.

Assim, como principais entes financiadores do empreendimento irregular, a UNIÃO e a CEF devem zelar, ainda que não sejam licenciadores ou executores da obra, pelo respeito ao correto licenciamento e observância das diretrizes nacionais do Governo Federal para a efetivação de projetos de mobilidade urbana, como no caso em tela do BRT/SALVADOR, sendo patente o interesse federal.

Nesse contexto, faz-se oportuno ressaltar que, por disposição legal (art. 3º, IV, da Lei 6.938/81), o agente causador do dano ambiental não é somente aquele que age diretamente para sua ocorrência, como também aquele que tem o dever de agir para evitá-lo e não o faz, ou o faz sem eficiência, considerando-se este último como responsável indireto.

Entretanto, em que pese o afirmado, em virtude de, basicamente, a conduta da União e da CEF aperfeiçoarem-se em ato omissivo, podendo ser minoradas as consequências perpetradas com a imediata atuação daquele ente público, o MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL e o MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DA BAHIA requerem, desde já, sejam a UNIÃO e a CAIXA ECONÔMICA FEDERAL, assim que citadas, cientificadas da possibilidade, de integrar o polo ativo da demanda, por aplicação analógica do dispositivo inserto no artigo 6º, §3º da Lei nº. 4.717/65 (Lei de Ação Popular).

Oportuno mencionar, ainda, que o Ministério Público do Estado da Bahia expediu Recomendação, em 27 de abril de 2018, dirigida ao Superintendente de Conservação e Obras Públicas de Salvador (SUCOP), Sr. Orlando Cezar da Costa Castro, para que fosse imediatamente suspensa a obra civil, que já estava suprimindo vegetação no entorno da Av. ACM e Av. Juracy Magalhães, até a conclusão do Laudo Pericial de Impacto Ambiental do CEAT do Parquet Estadual (fls. 117 do IC nº. 1.14.000.002854/2016-55), Recomendação, até então, não atendida.

Considerando os entraves orçamentários e a relevância dos aspectos ambientais da obra, que culminaram na forte repercussão social observada na cidade, como manifestações, passeatas e atos em defesa do meio ambiente e pela responsabilidade na gestão dos recursos públicos, necessária se faz a busca do provimento jurisdicional, em caráter de urgência, para proteger estes importantíssimos interesses difusos, devendo o empreendimento de mobilidade, tão importante para a capital baiana, ser executado a partir de uma efetiva e significativa participação popular e em harmonia com o atual estado da arte, resguardando-se assim o meio ambiente ameaçado de danos irreparáveis, os quais ainda podem ser evitados.

Destarte, torna-se imperioso que o empreendimento BRT/SALVADOR seja imediatamente paralisado, pelos fatos brevemente narrados e pelos fundamentos jurídicos a seguir explanados.


III. DOS FUNDAMENTOS JURÍDICOS

III. 1 DA AUSÊNCIA DE OUTORGA DE USO DO CORPO HÍDRICO

A Política Estadual de Recursos Hídricos no Estado da Bahia é regulamentada pelo CONSELHO ESTADUAL DE RECURSOS HÍDRICOS - CONERH, que, no uso das atribuições que lhe foram legalmente conferidas, especialmente a prevista no art. 46, IX, da Lei Estadual nº 11.612/2009, publicou a Resolução Nº 96, de 25 de fevereiro de 2014, estabelecendo diretrizes e critérios gerais para a outorga do direito de uso dos recursos hídricos de domínio do Estado da Bahia.

A mencionada resolução, em seu art. 5º, determina:

Art. 5º. São sujeitas à outorga de direito de uso de recursos hídricos e à outorga preventiva de uso de recursos hídricos do Instituto do Meio Ambiente e Recursos Hídricos - INEMA as atividades ou empreendimentos previstos no art. 18 da Lei no 11.612/2009.

Por sua vez, a Lei Estadual nº 11.612/2009, em seu art. 18, caput e II, preceitua:

Art. 18. Ficam sujeitos à outorga de direito de uso de recursos hídricos ou manifestação prévia do órgão gestor e executor da Politica Estadual de Recursos Hídricos, conforme regulamento: (...)

II - as atividades, ações ou intervenções que possam alterar a quantidade, a qualidade ou o regime das águas superficiais ou subterrâneas, ou que alterem canais, álveos, margens, terrenos marginais, correntes de águas, nascentes, açudes, aquíferos, lençóis freáticos, lagos e barragens. (destacou-se)

Deste modo, o órgão gestor e executor da Política Estadual de Recursos Hídricos no Estado da Bahia, o INEMA, é o responsável para autorizar qualquer obra civil em cursos d’água que potencialmente pode alterar a sua vazão.

Como aduzido, no empreendimento BRT/Salvador há a previsão de tamponamento de trechos de 02 (dois) rios urbanos, são eles, o Rio Lucaia e o Rio Camarajipe, sendo intervenção que representa a impermeabilização do solo, alterando a absorção dos excessos pluviométricos nos cursos dos rios tamponados. Tal intervenção tem o escopo justamente de modificar o regime de vazão da água e, por este motivo, necessita de autorização prévia do INEMA a ser concedida após a análise do projeto solicitante e dos estudos que indiquem quais serão os reais níveis de alteração do regime hídrico.

Segundo informações do arquiteto e urbanista Carl Manfred Otto Rudolf Von Oheimb Hauenschild, que esteve presente na sessão promovida pelo MPE/BA para discutir o empreendimento, em 22 de maio de 2018, do valor total a ser gasto no BRT/SALVADOR, 59,3% será destinado a atender e melhorar o transporte INDIVIDUAL; 32,9% atenderá o transporte PÚBLICO e 7,8% será destinado para MACRODRENAGEM, ou seja, quase oito por cento dos recursos serão destinados a intervenções que visam justamente alterar o uso do corpo hídrico dos dois rios mencionados.

Apesar da exigência legal, as obras do BRT/Salvador tiveram início sem que o INEMA concedesse a outorga necessária, o que já torna o início das obras, por este motivo, ato nulo.

Ad Cautelam, não é possível se admitir a alegação de que a obra do BRT/SALVADOR, por ser de interesse social e utilidade pública, seria intervenção que prescindiria de outorga do direito de uso dos recursos hídricos, com base no art. 16 da Resolução nº 96/2014 do CONERH, pois tal dispositivo dispensa a outorga de uso quando as atividades empreendidas não são capazes de interferir no regime, na disponibilidade ou na qualidade da água existente no corpo hídrico. Vejamos a literalidade da mencionada norma:

Art. 16. Independem de outorga, por não se enquadrarem nas hipóteses previstas no art. 18 da Lei nº. 11.612/2009, as seguintes atividades:

I – pontes, passarelas, passagens molhadas, travessias aéreas, subaquáticas e subterrâneas e demais obras de travessia de corpos de água que não interfiram na quantidade, qualidade ou regime das águas;

II – serviços de limpeza e conservação de margens, incluindo dragagem, canalização, retificação e desvio de leito do curso de água, desde que não alterem o regime, a disponibilidade ou qualidade da água existente no corpo de água. (destacou-se)

Entretanto, a canalização em concreto e o tamponamento dos rios para que sirvam de plataforma de ocupação urbana, além de grave erro de planejamento urbanístico, segundo especialistas, aumenta a impermeabilização do solo, altera os meandros naturais e consequentemente a vazão hídrica atual natural, modificando a resiliência, o padrão de escoamento e a dinâmica de absorção dos excessos pluviométricos nos cursos dos rios, além de impossibilitar posteriores e prudentes ações de limpeza e desobstrução dos leitos.

Como informado, tal intervenção de macrodrenagem e tamponamento, baseada no conceito chamado de “eficiência hidráulica”, tem o escopo justamente de alterar o regime de vazão da água, que passa a escoar em maior volume e velocidade à jusante (em direção ao mar).

Estranhamente, o INEMA emitiu, em 31/01/2018, o “CERTIFICADO DE INEXIGIBILIDADE DE OUTORGA” nº 2018.001.000008, certificando ao CONSÓRCIO BRT/SALVADOR, sem fundamentação razoável e através de um simples parágrafo generalista, verbis:

“que a atividade de Drenagem e/ou captação de águas pluviais a ser realizada no município de Salvador/BA é inexigível quanto ao procedimento de autorização de outorga de uso de recursos hídricos, dada a especificidade do empreendimento, uma vez que a outorga de direito de uso de recursos hídricos, regulamentada pela Lei Estadual nº 11.612, de 08/10/2009, que dispõe sobre a Política Estadual de Recursos Hídricos, e pela Resolução CONERH nº 96, de 25/02/2014, a qual estabelece as diretrizes e critérios gerais para a outorga do direito de uso dos recursos hídricos de domínio do Estado da Bahia, não contempla as intervenções realizadas para fins de (drenagem e lançamento de águas pluviais).”

Entretanto, como já transcrito acima, a mencionada Lei Estadual nº 11.612/2009, em seu art. 18, II, preceitua que ficam sujeitos à outorga de direito de uso de recursos hídricos as atividades, ações ou intervenções que possam alterar a quantidade, a qualidade ou o regime das águas superficiais ou subterrâneas, ou que alterem canais.

Sendo que 7,8% do total a ser gasto com o primeiro trecho do BRT/SALVADOR será destinado para macrodrenagem (alargamento e canalização em concreto de marges dos rios) e tamponamento de trechos dos rios Lucaia e Camarajipe, intervenções que visam justamente alterar os canais e o regime das águas, como o INEMA pode fornecer tal certificado de dispensa de uso de corpo hídrico, sem levar em consideração os detalhes do projeto e afirmando, genericamente, “que a atividade de Drenagem e/ou captação de águas pluviais a ser realizada no município de Salvador/BA é inexigível quanto ao procedimento de autorização de outorga de uso de recursos hídricos, dada as especificidades do empreendimento, uma vez que a outorga de direito de uso de recursos hídricos (…) não contempla as intervenções realizadas para fins de drenagem” ?

Tal dispensa carece completamente de fundamentação razoável que evidencie o motivo pelo qual a intervenção de macrodrenagem do BRT SALVADOR não serviria para alterar o regime hídrico dos mencionados rios, sendo este, contraditoriamente, o escopo de qualquer intervenção de macrodrenagem.

Por esta razão é que o INEMA figura no polo ativo desta demanda.

Neste aspecto, a Câmara Municipal de Salvador encaminhou em 02/04/2018, ofício à Secretaria de Mobilidade de Salvador solicitando a Outorga do Direito de Uso dos Recursos Hídricos, considerando que a obra de macrodrenagem constante no edital implicaria no tamponamento dos rios Camarajibe e Lucaia, no trecho da Avenida ACM (fl. 124 do IC nº 1.14.000.002854/2016-55). Entretanto, não consta nos autos notícia de que o referido documento foi concedido pelo INEMA e nem apresentado pela Prefeitura Municipal de Salvador.

Importante destacar também que o próprio MINISTÉRIO DAS CIDADES8, desde 2009, determina que obras convencionais de galerias de águas pluviais e de canalização (macrodrenagem e tamponamento), que aceleram o escoamento, serão admitidas somente nos casos onde os impactos gerados pela intervenção serão de baixa magnitude e mitigados.

Entretanto, a intervenção de macrodrenagem e tamponamento de trechos dos rios Lucaia e Camarijipe jamais poderia ser considerada como uma intervenção de “baixa magnitude” e a falta dos estudos, que deveriam avaliar quais os reais impactos desta intervenção, não permitiu um levantamento do efetivo dano ambiental que será causado, muito menos os meios para sua mitigação.

Por estes motivos, para a concessão da outorga de uso do corpo hídrico, o INEMA precisa se manifestar fundamentadamente sobre a possibilidade, utilidade e consequências da macrodrenagem e tamponamento de tais rios em regiões que já sofrem historicamente com alagamentos, através de estudos sérios que avaliem as reais consequências de tais intervenções.

III.2 DA AUSÊNCIA DE ESTUDO DE IMPACTO DE VIZINHANÇA (EIV) E DA AUSÊNCIA DO ESTUDO DE VIABILIDADE TÉCNICA, ECONÔMICA E AMBIENTAL (EVTEA)

O Estudo de Impacto de Vizinhança (EIV) é um dos instrumentos de política urbana, previsto na Lei Federal nº 10.257, de 10 de julho de 2001, denominada de Estatuto da Cidade, que regulamenta os arts. 182 e 183 da Constituição Federal, estabelecendo diretrizes gerais e instrumentos da política urbana, tais como a gestão democrática das cidades e o plano diretor.

Com efeito, sabe-se que lei municipal definirá os empreendimentos e atividades privados ou públicos em área urbana que dependerão de elaboração de estudo prévio de impacto de vizinhança (EIV) para obter as licenças ou autorizações de construção, ampliação ou funcionamento a cargo do Poder Público municipal (art. 36 do Estatuto da Cidade).

É dever, insculpido em lei (art. 37, parágrafo único, do Estatuto da Cidade), dar-se publicidade aos documentos integrantes do EIV, que devem ficar disponíveis para consulta, no órgão competente do Poder Público municipal, por qualquer interessado, assim como deve ser fornecida cópia do Estudo de Impacto de Vizinhança gratuitamente, quando solicitada pelos moradores da área afetada ou suas organizações representativas.

O órgão público responsável pelo exame do Estudo de Impacto de Vizinhança deverá realizar audiências públicas, antes da decisão sobre o projeto, sempre que sugerida, na forma da lei, pelos moradores da área afetada ou suas organizações representativas, como forma de garantir o pleno alcance do interesse coletivo. Assim, com base no EIV, o poder público poderá aprovar o empreendimento ou atividade, estabelecendo condições ou contrapartidas para sua implantação ou funcionamento, ou descartar sua realização. No caso concreto, o EIV consta como uma das condicionantes da licença prévia precariamente concedida (doc. anexo – CD pg. 32 – licença prévia).

Entretanto, apesar de o BRT/SALVADOR ser empreendimento que deveria ser precedido de tal estudo, o mesmo se iniciou sem que tenha sido elaborado o EIV, contrariando frontalmente a lei de regência.

O Município de Salvador também não apresentou e/ou disponibilizou o Estudo de Viabilidade Técnica, Econômica e Ambiental (EVTEA) das obras relativas ao BRT.

Em reunião realizada no dia 02/05/2018 na sede desta Procuradoria da República, foi aduzido por representantes da sociedade que a Secretaria de Mobilidade ainda não havia apresentado estudos essenciais para o início da execução da obra (fl. 147 do IC nº 1.14.000.002854/2016-55). Posteriormente, em nova REUNIÃO ocorrida no dia 08/05/2018, foi aduzido que o EVTEA inexistia ou estaria sob sigilo, já que não foi fornecido pela Prefeitura de Salvador (fls. 138/139 do IC nº 1.14.000.002854/2016-55).

Da mesma forma, em audiência pública ocorrida no auditório do Ministério Público Estadual em 22/05/2018, o referido documento foi cobrado por representantes da comunidade que estavam presentes, sem qualquer resposta por parte da Prefeitura de Salvador. Verifica-se, portanto, que até o momento atual não foram fornecidos os parâmetros para atestar a viabilidade econômica, técnica e ambiental da obra, sendo que as questões relacionadas à mobilidade urbana deveriam constar do referido documento.

Sobre os prejuízos causados pela ausência de EVTEA numa obra complexa, colaciona-se trecho de texto publicado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA)9, que relaciona a falta de EVTEA ao fracasso na execução do projeto, já que deixam de ser avaliadas questões fundamentais como análise de benefícios e custos para a sociedade embasada em viabilidade técnica robusta, impactos ambientais significativos etc., in verbis:

(…) A dificuldade de coordenação governamental entre as etapas de avaliação, planejamento e análises de viabilidade técnica, econômica e ambiental amplia as incertezas e tem impactos significativos sobre a execução dos projetos. Boa parte dos problemas encontrados na fase de implementação dos projetos tem apontado falhas no planejamento como causas principais. De fato, diversos atrasos nos licenciamentos ambientais ocorrem por estudos ambientais incompletos, superficiais, ou mesmo omissão de impactos ambientais relevantes. (…) Dois problemas, particularmente, têm ocorrido quanto a isso: i) alguns projetos são iniciados sem um Evtea (…) Como esses fatores podem afetar a escolha da alternativa de solução para o problema em questão, é fundamental que a elaboração dos Evteas os considere em mais detalhes. Falta de detalhamento e estimativas superficiais também são observadas nas fases posteriores, de projetos de engenharia, estudos de impacto ambiental, de desapropriação, etc. O efeito é conhecido, como atrasos nos licenciamentos, sobre custos na fase de construção, paralisações por órgãos de controle e pelas demandas judiciais, entre outros. (grifei)

Logo, mostra-se inviável o início de uma obra sem os estudos técnicos e ambientais necessários para embasá-la.

A alocação dos recursos financeiros para determinada obra deveriam acompanhar a aprovação do projeto em suas etapas essenciais, já que a falta de planejamento a longo prazo e a baixa qualidade técnica dos projetos, dentre outros fatores, terminam por colaborar com a probabilidade de insucesso do empreendimento.

Ainda sobre este ponto, corroborando o quanto aduzido, o engenheiro e professor de engenharia ambiental da UFBA, Dr. Severino Soares Agra Filho, em nota técnica apresentada, informa que, in verbis:

(…) Como se pode depreender das referidas determinações, o EIA e o EIV são estudos indispensáveis para as instâncias de decisão. Entretanto, como se pode observar na resolução COMAM nº. 03/2014, foram estabelecidas diversas condicionantes que deveriam ser consideradas previamente como requisitos da apreciação do Colegiado, tais como: o EIV; autorização da supressão de vegetação; as intervenções no sistema de drenagens e suas implicações nos recursos hídricos, possibilitando inclusive o encapsulamento sem conhecimento prévio dos métodos construtivos, locais e autorização (outorga) etc. O cunho reativo dessas condicionantes, além de comprometer o princípio de prevenção da gestão ambiental, pode se tornar irreversíveis ameaças aos propósitos de qualidade ambiental preconizados pela política ambiental municipal. Em relação à legitimidade social, segundo se observa, a proposta foi submetida a uma audiência pública e à apreciação do COMAM. Caberia observar que, conforme consta da ata anexa do COMAM, foi uma reunião bastante polêmica com apresentação de vários questionamentos, revelando a necessidade de ajuste no projeto e a manifestação do dirigente do LA da Prefeitura afirmando que a licença será expedida “após análise de todas as considerações apresentadas pelos conselheiros revisores”, como também destacamos que se menciona que é um projeto conceitual que deve ser detalhado em fase posterior. Contudo, esse procedimento adotado não está respaldado na legislação vigente do Município, definindo o mérito de cada licença. A prática e normatização vigente considera eventualmente os procedimentos do órgão estadual que adota para o mérito da Licença prévia, fase de concepção e de localização, um projeto básico. As decisões registradas na ATA, além de simplificar as questões suscitadas sem a devida aprovação e assinatura dos participantes, sugere que houve uma apreciação preliminar delegando ao licenciador as definições de atribuição do Colegiado. Diante das considerações expostas, fica constatado que os procedimentos previstos do LA para subsidiar as decisões públicas foram comprometidos no seu papel preventivo e na sua capacidade de proposta de legitimar as decisões tomadas (…) (grifei)

Ao contrário do que determina nosso ordenamento, repita-se, a obra do BRT em Salvador foi iniciada sem os devidos Estudo de Impacto de Vizinhança (EIV) e Estudo de Viabilidade Técnica, Econômica e Ambiental (EVTEA), cobrados exaustivamente em sucessivas reuniões ocorridas na sede da PR/BA, bem como reivindicados em audiência pública ocorrida em 22/05/2018 no auditório do Ministério Público Estadual, sem que os documentos fossem apresentados até o momento pelo Município de Salvador, razão pela qual torna-se urgente a suspensão imediata das obras já iniciadas.

III. 3 DA GESTÃO DEMOCRÁTICA DAS CIDADES

Conte-me e eu esquecerei. Mostre-me e eu me lembrarei. Envolva-me e eu entenderei. Confúcio, filósofo, 551–479 a.C.

As normas jurídicas são um gênero que comporta duas espécies, quais sejam: regras e princípios normativos, que permitem que os valores passam do plano ético para o mundo jurídico.

As regras são detentoras de um valor, ou seja, a segurança jurídica, pois é a partir delas que o Direito torna-se mais objetivo, mais previsível, realizando melhor assim o valor da segurança jurídica.

Os princípios, todavia, devem servir de referencial para o intérprete, e por possuírem o conteúdo aberto, eles permitem a atuação integrativa e construtiva do intérprete, facilitando a produção de uma melhor solução para o caso em análise.

Nos termos do artigo 1º, II, da Constituição Federal/88, o Brasil é uma República Democrática que tem como um de seus fundamentos a cidadania, e segundo o seu artigo 225, caput, é dever do poder público e da coletividade a proteção do meio ambiente, de modo que dever de todos, ou seja, as organizações não-governamentais, os sindicatos, as indústrias, os comerciantes, os agricultores, cidadãos brasileiros e estrangeiros residentes no país e o poder público, uma vez que o meio ambiente é um bem e um dever de todos.

A declaração do Rio, de 1992, tratou expressamente, em seu princípio 10, do princípio da participação quando afirmou que:

A melhor maneira de tratar questões ambientais é assegurar a participação, no nível apropriado, de todos os cidadãos interessados. No nível nacional, cada indivíduo deve ter acesso adequado a informações relativas ao meio ambiente de que disponham as autoridades públicas, inclusive informações sobre materiais e atividades perigosas em suas comunidades, bem como a oportunidade de participar em processos de tomada de decisões. Os Estados devem facilitar e estimular a conscientização e a participação pública, colocando a informação à disposição de todos. Deve ser propiciado acesso efetivo a mecanismos judiciais e administrativos, inclusive no que diz respeito à compensação e reparação de danos. (SILVA, Geraldo, 2002, p. 330)

A Agenda 21 também abarcou o princípio da participação com a noção de gestão participativa, pois, no seu dizer, um projeto deve abranger planejamento e ações, buscando incessantemente o desenvolvimento sustentável, social, ambiental e econômico, com ampla discussão e gestão participativa.

A Lei 6.938/81, da Política Nacional do Meio Ambiente, desde a sua promulgação, no artigo 2°, inciso X já tratava do princípio da participação, quando afirmou que, através da educação ambiental, em todos os seus níveis, levaria efetivamente o cidadão a participar das decisões que envolvem o meio ambiente. A participação é novamente recomendada pela Lei 6.938/81, quando se analisa a composição do Conselho Nacional do Meio Ambiente (CONAMA), do qual são membros integrantes o poder público, a sociedade civil organizada, os órgãos de classe e as organizações não-governamentais. É oportuno destacar que a referida lei foi precursora na adoção do princípio da participação nos processos de decisões que envolvem o meio ambiente, que a sua promulgação ocorreu durante o governo militar, período em que a liberdade de expressão, participação e as igualdades foram totalmente ceifadas.

O Brasil é uma República Democrática que tem como um de seus fundamentos a cidadania (artigo 1º, II, da Constituição Federal/88).

O exercício da cidadania pressupõe, por sua vez, políticas de desenvolvimento urbano, de usos e ocupações dos espaços das cidades, de moradia digna, de saneamento, de transporte e mobilidade urbana, compondo o chamado direito difuso a cidades sustentáveis e socialmente justas, exercido através de políticas de desenvolvimento urbano que devem ser formuladas e geridas de maneira planejada e participativa.

Inúmeros dispositivos normativos podem ser mencionados para lastrear as afirmações acima: o art. 48 e parágrafos da Lei Complementar nº 101, de 04 de maio de 2000 (Lei de Responsabilidade Fiscal), o artigo 19, V, da Lei 11.445/2007 (Lei de Diretrizes da Política Nacional de Saneamento), e o artigo 21 da Lei 12.587/2012 (Lei de Diretrizes da Política Nacional de Mobilidade Urbana) determinam que a gestão das cidades deve garantir mecanismos e procedimentos para a avaliação sistemática da eficiência e eficácia das ações programadas, permitindo a transparência e a participação popular no planejamento estratégico dos centros urbanos.

Em especial, o Estatuto da Cidade (Lei nº 10.257/2001), em seus artigos 2°, II, IV, 4º, I, II e III, f; 40, I, II e III; 43, II, III e 44, também aborda a necessidade da gestão democrática das cidades. Dentre os dispositivos mencionados, destacam-se:

Art. 2º A política urbana tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e da propriedade urbana, mediante as seguintes diretrizes gerais: (...)

II – gestão democrática por meio da participação da população e de associações representativas dos vários segmentos da comunidade na formulação, execução e acompanhamento de planos, programas e projetos de desenvolvimento urbano;

Art. 43. Para garantir a gestão democrática da cidade, deverão ser utilizados, entre outros, os seguintes instrumentos: (...)

II – debates, audiências e consultas públicas;

III – conferências sobre assuntos de interesse urbano, nos níveis nacional, estadual e municipal;

Art. 45. Os organismos gestores das regiões metropolitanas e aglomerações urbanas incluirão obrigatória e significativa participação da população e de associações representativas dos vários segmentos da comunidade, de modo a garantir o controle direto de suas atividades e o pleno exercício da cidadania. (grifei)

Portanto, audiências públicas, debates com a participação da população e de associações representativas dos vários segmentos da comunidade, publicidade e acessibilidade a qualquer interessado dos documentos e informações produzidas são requisitos essenciais à validade e a legitimidade do processo de construção e implementação das políticas públicas relacionadas ao direito à cidade.

O fomento da cultura de gestão participativa das grandes cidades é imprescindível para se conseguir efetivar uma política urbana que garanta melhores condições de vida da população e que, de fato, promova um desenvolvimento sustentável e inclusivo, voltado para a redução das desigualdades sociais.

Em relação ao BRT/SALVADOR, como informado, tem-se notícia da realização de uma única audiência pública no dia 30 de maio de 201410, promovida pela Prefeitura de Salvador. Os demais encontros sobre o empreendimento não foram promovidos pela PMS, mas sim, por outras entidades interessadas no projeto, como a que ocorreu em 22 de fevereiro de 2017, no MPE/BA, em 26 de abril de 2017, promovida pela Assembleia Legislativa da Bahia, quando o projeto já estava em fase de licitação ou em execução, e a ocorrida no auditório do Ministério Público Estadual em 22 de maio de 2018, com a obra já em curso.

Entretanto, o único encontro promovido pelo executor do projeto não serviu para que a população usuária do sistema pudesse trazer ideias para construir, em conjunto com o poder público, o formato ideal de intervenção na mobilidade. Não houve efetivo e significativo envolvimento da população em relação ao projeto, que foi apenas comunicado aos cidadãos.

Para se garantir a ampla participação da população em um projeto desta envergadura, seria necessário ter realizado, no mínimo, três audiências públicas, comunicadas, com um prazo mínimo, de 45 dias de antecedência, para a apresentação e discussão do projeto, contemplando as seguintes etapas, que devem ser discutidas nas fases de projeto conceitual e projeto básico, antes do seu processo licitatório, conforme estabelecido no “Manual de BRT – Guia de Planejamento”: a) análise de demandas; b) planejamento operacional; c) serviço ao usuário; d) infraestrutura; e) integração modal; f) tecnologia veicular e tecnologia de cobrança; g) custeio, financiamento, avaliação, planejamento de construção e contratação.

Este mesmo manual informa, quanto aos Processos de Participação Pública11, o seguinte:

que as comunicações não são apenas importantes em termos de obtenção de aprovação pública do projeto, mas também para trazer ideias para o projeto das pessoas que usarão o sistema. Informações vindas do público sobre os prováveis corredores e serviços alimentadores podem ser inestimáveis. A incorporação das visões do público nas feições do projeto e do serviço ao usuário também ajuda a assegurar que o sistema seja mais amplamente aceito e utilizado pelo público. Planejadores profissionais e engenheiros obviamente têm um papel central no projeto do sistema, mas, muitas vezes, tais profissionais não usam frequentemente sistemas de transporte público e assim não possuem algumas ideias de projeto que o público em geral tem.

Gerenciar e encorajar amplo envolvimento público pode ser um desafio para agências e departamentos desacostumados a processos públicos participativos. Organizações não governamentais algumas vezes estão mais bem preparadas para gerenciar tais processos.

Mesmo que a participação pública possa, às vezes, parecer uma abordagem superficial que terá pouco efeito no sucesso do projeto, ela é um elemento central no longo prazo. Por exemplo, se as preocupações das pessoas não são tratadas adequadamente ou um grupo em particular não está satisfeito com o processo, pode haver efeitos negativos como vandalismo, manifestações ou medidas legais tomadas contra o sistema e seu desenvolvimento. O processo de comunicações é um passo em direção a esse objetivo, mas há outras atividades permanentes do gerenciamento do projeto que podem assegurar uma abordagem mais integradora ao planejamento e desenvolvimento do sistema. (grifei)

Nota-se que o Manual de BRT descreveu, há dez anos, exatamente a situação que se experimenta hoje na capital baiana, uma espécie de prenúncio dos problemas atuais, por conta da ausência da participação da população no projeto.

Ademais, a ausência de efetiva transparência e ampla publicidade de todas as fases e procedimentos do processo de licitação, em sítio eletrônico, fere também as diretrizes da Lei do RDC, em especial, o art. 4º, VI, da Lei nº 12.462/2011.

Percebe-se, deste modo, como a efetiva e significativa participação da população em empreendimentos de grande porte e impacto são fundamentais para a compreensão, aceitação e, se necessário, a reformulação do projeto, levando-se em consideração os anseios populares, fato descrito e alertado pelo próprio MINISTÉRIO DAS CIDADES, mas não observado no caso do BRT/SALVADOR, contrariando portanto o Estatuto da Cidade e as diretrizes do próprio ente financiador da obra civil.

Em um cenário de real diálogo e de significativa participação da sociedade, ainda a ser buscado, a população, uma vez ciente de todos os reais custos sociais, urbanísticos e ambientais, em parceria com os poderes públicos, poderá, enfim, escolher o modal de transporte e traçado que seja a melhor expressão de seus anseios, representando o que melhor se entende por justa aplicação dos recursos da própria população.

Em linha com a identificada ausência de participação popular, necessária para conferir maior legitimidade representativa à atuação do Poder Público, colhe-se no Parecer Técnico de n. 159/2018 do CEAT do MPE/BA que:

Dentro do Procedimento Ministerial não foi evidenciada a existência do instrumento “consultas públicas” por parte da Prefeitura Municipal de Salvador, conforme previsto na Lei Federal nº 12.587, art. 15, inciso III. (grifei)

III. 4 DAS IRREGULARIDADES NA ADOÇÃO DO REGIME DE CONTRATAÇÃO INTEGRADA

Do quanto apurado nas audiências públicas realizadas, no EDITAL DE LICITAÇÃO – RDC Nº 001/2017 e no PROCESSO SUCOP N.º 079/2017, o empreendimento do BRT SALVADOR apresenta outras irregularidades.

Contrariando o quanto disposto no art. 9º, incisos I, II, III, da Lei 12.462/1011 (Lei do RDC), não consta fundamentação no Termo de Referência, nem no Edital sobre a necessidade do RDC. Sem esta fundamentação, é irregular o uso do regime de contratação integrada, que possibilita a contratação do Projeto Básico, do Projeto Executivo e Execução da obra conjuntamente, num mesmo certame. Vejamos o mencionado dispositivo legal:

Art. 9º – Nas licitações de obras e serviços de engenharia, no âmbito do RDC, poderá ser utilizada a contratação integrada, desde que técnica e economicamente justificada e cujo objeto envolva, pelo menos, uma das seguintes condições:

I – inovação tecnológica ou técnica;

II – possibilidade de execução com diferentes metodologias; ou

III – possibilidade de execução com tecnologias de domínio restrito no mercado. (grifei)

Iluminando a temática, o Tribunal de Contas da União, em decisão lavrada no Acórdão 1.388/2016/TCU-Plenário, assentou que:

a opção pelo regime de contratação integrada com base no inciso II do art. 9º da Lei 12.462/2011 deve ser fundamentada em estudos objetivos que a justifiquem técnica e economicamente e considerem a expectativa de vantagens quanto a competitividade, prazo, preço e qualidade em relação a outros regimes de execução, especialmente a empreitada por preço global, e, entre outros aspectos e quando possível, a prática internacional para o mesmo tipo de obra, sendo vedadas justificativas genéricas, aplicáveis a qualquer empreendimento. Observe-se que, por mandamento legal, a fiscalização da aplicação dos recursos financeiros para o caso concreto também é de competência do Ministério das Cidades. Nesse contexto, o Ministério das Cidades tinha o poder-dever de fiscalizar o empreendimento, incluindo os estudos de viabilidade; pois, por mandamentos legais, técnicos e jurisprudenciais, fazem parte do processo licitatório, conforme explorado no relatório de auditoria (peça 38, p. 12-23), em instrução anterior (peça 45, p. 17-18) e também nesta instrução, na análise da manifestação da Secretaria Municipal de Acessibilidade, Mobilidade, Trânsito e Transporte de Palmas/TO. Além disso, sem a garantia de viabilidade do empreendimento, não está resguardada a regularidade da aplicação dos recursos financeiros federais transferidos (...).

Ademais, a Lei do RDC também exige como diretriz nas licitações e contratos firmados e executados no regime diferenciado, o parcelamento do objeto contratado, visando à ampla participação de licitantes, sem perda de economia de escala. Destarte, a ausência de justificativa fundamentada para o não parcelamento do objeto representa restrição indevida à ampla participação dos licitantes, ferindo o quanto disposto no art. 4º, VI, da Lei nº. 12.462/2011.

III. 5 DAS “AUDIÊNCIAS PÚBLICAS” COM A OBRA JÁ EM CURSO

A expressão “audiências públicas” está entre aspas no título deste tópico pois este diz respeito às sessões organizadas para se debater sobre o tema do BRT/SALVADOR mas não no sentido estrito da expressão, que propugna o Estatuto da Cidade, em seu art. 43, II.

Na inteligência da Lei nº. 10.257 de 10 de julho de 2001 (Estatuto da Cidade), audiências públicas são encontros precedentes à execução das intervenções públicas, que devem fazer parte da etapa de elaboração e discussão do projeto.

Encontros realizados após o início do procedimento licitatório ou mesmo após o início da execução do empreendimento não se prestam a modificar, complementar e envolver a população na intervenção, como já aduzido, escapando, portanto, do conceito de “audiência pública” determinado em lei para a real gestão democrática das cidades.

Em que pese esta ponderação, mencionaremos a seguir importantes trechos de “audiências públicas”, realizadas após o início das obras do BRT/SALVADOR, mas que foram de grande valia para que fossem levantados inúmeros questionamentos relativos ao mencionado empreendimento, importantes para a presente lide e para os quais os prepostos da Prefeitura Municipal de Salvador, então presentes nessas sessões, não apresentaram respostas satisfatórias.

No dia 11 de maio de 2018, às 14:30 h, na sede da OAB/BA, foi realizada sessão organizada pela Comissão de Defesa do Meio Ambiente da OAB/BA para discutir aspectos jurídicos da obra do BRT/Salvador. Esteve presente nesta sessão o Sr. Samir Abdala, gerente de licenciamento ambiental da SEDUR – SECRETARIA MUNICIPAL DE DESENVOLVIMENTO URBANO de Salvador, que explicou o projeto para os presentes, defendendo a utilidade do projeto para a mobilidade urbana e informando que a obra foi precedida de EIA/RIMA.

Nesta ocasião, também manifestou-se sobre o BRT de Salvador o arquiteto e urbanista Carl Von Hauenschild, representante do CAU/BR – Conselho de Arquitetura e Urbanismo do Brasil, que traçou um panorama histórico da ideia de implantação do BRT em Salvador, informando que, em 2009, surgiram as primeiras sugestões de traçados do BRT para facilitar o sistema de transporte viário em Salvador, tendo em vista que o projeto do Metrô de Salvador, àquela época, estava parado. Das 5 (cinco) sugestões iniciais de traçado do BRT restaram duas propostas de corredores de transporte: o traçado Ligação Iguatemi-Paralela (LIP) até a Lapa e o traçado Pituba até o Aeroporto. Destes dois traçados, o projeto em curso fará a ligação LIP/Lapa.

Ressaltou o arquiteto e urbanista que, em 2009, o BRT era de fato uma alternativa moderna, com exemplos positivos em Curitiba, Bogotá etc. Entretanto informou que, atualmente, as mesmas cidades estão planejando ou executando modificações nos sistemas de BRT existentes para outras tecnologias de transporte coletivo que deveriam ser preferencialmente implementadas em Salvador, a exemplo do BHLS (Bus with High Level of Service) e do BRS (Bus Rapid System), que envolvem faixas exclusivas de ônibus mas sem a necessidade de construção de novas vias elevadas em concreto, opções que causam menos impacto ambiental e são mais baratas e eficientes. Citou o exemplo de Niterói e Londrina que já mudaram o projeto de BRT para BHLS.

Ponderou ainda o arquiteto e urbanista ser contrário também à qualquer intervenção de obra civil que envolva o tamponamento de rios urbanos, como será o caso do BRT LIP/Lapa onde 2 rios serão tamponados, informando que vários passivos ambientais são experimentados e as inundações nos rios que já foram anteriormente tamponados em Salvador, como na Av. Centenário e no Imbuí, só aumentaram depois do tamponamento. Argumentou que o tamponamento de rios para possibilitar a ocupação urbana, como no caso do BRT, servindo de plataforma de circulação de pessoas, é uma grave falha de estratégia de planejamento urbano, que, ao invés da intervenção proposta, deveriam ser projetados os efeitos do empreendimento a médio e longo prazo (15 ou 20 anos) visando a recuperação da balneabilidade e a reintegração dos rios ao convívio social, a exemplo de outras cidades como Chicago, Munique e Londres.

Ainda sobre o BRT/Salvador, Carl Von Hauenschild afirmou que o projeto atual foi dividido em duas etapas: o 1º trecho do Iguatemi até o Parque da Cidade e o 2º trecho do Parque da Cidade até a Lapa, sendo que apenas o primeiro trecho “se pagaria” do ponto de vista financeiro. Afirmou que se o BRT fosse alterado para BHLS custaria cerca de 40% do valor atual do empreendimento no formato BRT, prestando o mesmo serviço só que com muito menos concreto e impacto ambiental muito menor.

Já no dia 22 de maio de 2018, às 14:30 h, no auditório do MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DA BAHIA, Nazaré/Salvador, foi outra “audiência pública” sobre o BRT/Salvador. Aberta a sessão pelo Promotor de Justiça Dr. Heron Gordilho, o representante da Secretaria de Mobilidade Urbana (Semob), Roberto Mussalem, explicou o projeto para os presentes, através de apresentação em projetor, defendendo a utilidade do projeto para a mobilidade urbana e informando que já havia iniciado o primeiro trecho da obra do BRT SALVADOR, que compreenderá a ligação da LIP (Ligação Iguatemi Paralela) até a entrada do Parque da Cidade. Após a apresentação do projeto para os presentes, iniciou-se uma rodada de perguntas e respostas do preposto da Prefeitura Municipal de Salvador.

O primeiro a fazer as perguntas foi o Promotor de Justiça Dr. Heron Gordilho, que solicitou ao preposto da Prefeitura de Salvador acesso ao estudo que a empresa ENGMIND CONSULTORES elaborou sobre a definição conceitual do BRT SALVADOR, com extensão da Av. Garibaldi até a Pituba, envolvendo duas vertentes: a) estudo de demanda de passageiros para o novo sistema de BRT e b) estudo de inserção viária do corredor do BRT na rede viária existente. Informou que tais estudos são mencionados no próprio site da Prefeitura de Salvador mas que não estão acessíveis à população. O segundo questionamento de Dr. Heron Gordilho foi se haveria a possibilidade de se trocar a frota de ônibus convencionais por ônibus elétricos, afirmando que o Prefeito de Salvador havia se comprometido pessoalmente em incluir esta ideia no projeto.

Em seguida, manifestou-se sobre o BRT de Salvador o arquiteto e urbanista Carl Von Hauenschild, que esteve presente também neste encontro, informando que a Construtora PRADO VALADARES foi contratada pela Prefeitura de Salvador para desenvolver o projeto do BRT SALVADOR no trecho que se está iniciando a obra (Lapa/Iguatemi); que a ENGEMIND CONSULTORES foi contratada para pesquisar o BRT SALVADOR também especificamente no mesmo trecho, sendo que traçado atual do BRT foi definido sem ter havido o EVTEA (Estudo de Viabilidade Técnica, Econômica e Ambiental) e sem avaliar se o sistema é adequado; que todo o Edital do projeto foi feito sem mencionar alternativas locacionais, exigidas neste tipo de projeto. Afirmou que a falta do EVTEA impossibilita um estudo comparativo entre as diferentes possibilidades de traçados e de sistemas de modais. Alegou que, na grande maioria dos projetos de BRT pelo mundo não há tanta presença de elevados como no projeto do BRT/SALVADOR. Informou que, do valor total a ser gasto no BRT/SALVADOR, 59,3% será destinado a atender e melhorar o transporte INDIVIDUAL; 32,9% atenderá o transporte PÚBLICO e 7,8 % será destinado para MACRODRENAGEM, questionando a discrepância entre tais percentuais, uma vez que a verba do empreendimento deveria ter sua maior parte destinada a melhorar o transporte PÚBLICO, sendo estranho à fonte de financiamento público do MINISTÉRIO DS CIDADES (PAC/FGTS, Programa 2048, Ação 10SS), que é especialmente destinado para transporte coletivo urbano público.

Em seguida, se manifestou a Professora de Engenharia de Tráfico da UFBA, Ilce Marilia Dantas Pinto, abordando aspectos técnicos. Afirmou que ninguém, tecnicamente, pode ser contra o modal “BRT” em si, ou contra qualquer outro modal (VLT, Metrô etc), mas sim avaliar, caso a caso, qual é o mais justo socialmente. Afirmou que o BRT deve atender a população mais carente, o transporte público e o projeto atual não atenderá bem a região metropolitana como um todo. Outros trechos deveriam ser priorizados. Aduziu que serão 8 faixas para o transporte individual, mas que os investimentos deveriam ser destinados para faixas de transporte público e sua melhoria; que as outras opções, VLT, BHLS deveriam ter sido cogitadas na fase do projeto, o que não foi feito; que o projeto atual está sendo elaborado para os veículos, não para as pessoas, quando deveria ter sido feito para as pessoas e não para os veículos. Explicou ainda a necessidade de atender a maior demanda de passageiros, que não está sendo respeitada no caso, sendo apenas um dos critérios para o financiamento de tais projetos, que devem levar em consideração também outras questões, como as socioambientais.

Depois, manifestou-se a Promotora de Justiça Dra. Hortênsia Gomes Pinho, solicitando a apresentação por parte da Prefeitura de Salvador dos dados técnicos do projeto de BRT/Salvador, para que pudesse ser avaliado com maior rigor se o projeto está ou não em desacordo com a Lei de Política Nacional de Mobilidade. Informou que já solicitou à PMS inúmeros documentos e dados operacionais sobre o BRT, que ficou de dar uma resposta em 11 de junho; solicitou também informações sobre as linhas que vão alimentar o sistema, os pontos de conexão e principalmente o estudo sobre a demanda, uma vez que o estudo técnico existente e disponibilizado pela prefeitura é de 2014 – portanto antes do Metrô entrar em operação atendendo os mesmos destinose estabelece que o trecho LIP/LAPA tem uma demanda de 6.000 passageiros/hora no horário de pico, sendo que para a implantação do BRT seria necessária uma demanda de 12.000 a 30.000 passageiros/hora. Aduziu que o Plano de Mobilidade Urbana, que deve preceder este tipo de empreendimento, ainda não foi finalizado, tendo sido estabelecido de forma impositiva a necessidade do BRT; que o projeto atual do BRT terá vários “elevados”, será “mumificado”, diferentemente do que ocorre em outros locais, o que impossibilitará que o projeto do BRT/SALVADOR seja reaproveitado posteriormente para implantação de um outro modal no futuro; que a ausência de estudos atualizados de integração espacial e operacional compromete a análise da demanda de passageiros, fundamental para a análise do próprio empreendimento como um todo. Quanto aos aspectos jurídicos, Dra. Hortênsia Gomes Pinho informou que para um correto licenciamento ambiental é necessária a apresentação de documentação que permita a precisa avaliação do projeto; que o EIA/RIMA existente se baseou em informações de 2014, sem o projeto básico do empreendimento, mas apenas com o projeto conceitual que não levou em consideração o funcionamento do Metrô, o que, para a Promotora, não parece juridicamente aceitável, diante de uma obra civil de alto impacto.

Em resposta aos questionamentos efetuados até este momento, o Secretário Roberto Mussalem informou que a Prefeitura Municipal de Salvador já respondeu a vários ofícios do Ministério Público Estadual que abrangem aos questionamentos feitos.

De tudo quanto informado nos mencionados encontros, percebe-se quantos pertinentes questionamentos urgem ser debatidos entre a população, especialistas e o poder público municipal para que a melhor solução de mobilidade seja implementada.


IV. A NECESSIDADE DE CONCESSÃO DE TUTELA DE URGÊNCIA LIMINARMENTE

A magistratura ocupa uma função singular nessa nova engenharia institucional. Além de suas funções usuais, cabe ao Judiciário controlar a constitucionalidade e o caráter democrático das regulações sociais. Mais ainda: o juiz passa a integrar o circuito de negociação política. Garantir as políticas públicas, impedir o desvirtuamento privatista das ações estatais, enfrentar o processo de desinstitucionalização dos conflitos – apenas para arrolar algumas hipóteses de trabalho – significa atribuir ao magistrado uma função ativa no processo de afirmação da cidadania e da justiça substantiva. (FARIA, José Eduardo. Direitos Humanos, Direitos Sociais e Justiça. 1ª ed., 4ª tiragem, Malheiros Editores, 2005, pág. 49)

A Lei nº 7.347/85 previu, em seus artigos 11 e 12, a possibilidade de deferimento de pedido liminar em sede de ação civil pública para garantir a efetividade da própria decisão final, que, em face do tempo do processo, pode restar comprometida em sua inteireza, de maneira a prejudicar o direito material tutelado.

A presente lide é a típica demanda em que a tutela de urgência se une de modo indissociável ao próprio pedido principal, sendo que aquela visa o não agravamento dos danos ambientais já ocorridos ao passo que este visa a reparação dos danos já experimentados.

A defesa do direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado exige uma rápida e efetiva atuação do poder público, de modo a prevenir (e reparar) os danos ambientais, ainda que potenciais, conforme orientam os princípios da precaução, prevenção e do desenvolvimento sustentável.

Os documentos constantes nos autos da Notícia de Fato nº 1.14.000.000681/2018-01 e do Inquérito Civil nº 1.14.000.002854/2016-55, além de outros documentos acostados à presente ACP, comprovam os fatos narrados e evidenciam a probabilidade do direito e o perigo da ocorrência de dano, ou seu agravamento, ao meio ambiente.

No caso concreto esboçado nos autos, verifica-se que as obras relativas ao trecho 1 do BRT/SALVADOR já foram iniciadas, com a supressão de inúmeras árvores, mesmo após 02 (duas) recomendações expedidas pelo Ministério Público Estadual para a paralisação destas.

Como pode ser observado nos autos do IC nº 1.14.000.002854/2016-55 (fls. 21/22 do arquivo, 122/123 do IC), em 20/04/2018 o MPE recomendou à Gerência de Obras do Consórcio BRT que suspendesse a obra; em 27/04/2018 o MPE recomendou à SUCOP a SUSPENSÃO IMEDIATA da execução do Projeto BRT, até a conclusão do laudo pericial de impacto ambiental do CEAT, a fim de instruir o procedimento preparatório nº 00.3.953794/2018.

Em resposta datada de 23/04/2018, o Consórcio BRT Salvador informou por meio do Ofício BRT/CT/EXT/2018/0027 (fl. 20 do arquivo), que “(…) a execução do projeto BRT é objeto do Contrato nº 029/2017, celebrado com a Superintendência de Obras Públicas de Salvador (SUCOP), o qual estabelece diversas penalidades ao Consórcio no caso de atraso ou paralisação dos serviços, sem prévia aprovação do Contratante(...)”, de forma que “(…) não possui prerrogativa de suspensão das obras conforme solicitado no ofício em referência”.

Logo, não resta outra medida a ser adotada exceto a judicialização do feito, a fim de que, por decisão liminar, seja determinado ao CONSÓRCIO BRT e o ao MUNICÍPIO DE SALVADOR a suspensão/paralisação imediata das obras iniciadas, e à CAIXA ECONÔMICA FEDERAL e à UNIÃO (Ministério das Cidades) a proibição de efetuar repasses financeiros para a execução do empreendimento.

O fundado receio de dano irreparável ou de difícil reparação surge da necessidade de impedir o avanço das obras, com a supressão de inúmeras árvores e demais atos concretos prejudiciais ao meio ambiente, sem que exista um embasamento técnico suficiente para a sua continuidade. Necessária, portanto, a paralisação imediata dos serviços decorrentes do avanço da obra do BRT/SALVADOR, a fim de evitar um prejuízo ainda maior à área já afetada.

É notório que o avanço das obras implicará em drástica redução de área verde ainda existente na cidade, gerando inúmeros efeitos secundários na região, como alterações no microclima, elevação de temperatura, alterações no regime de chuvas, alagamentos devido à falta de superfícies permeáveis e outros que competem à qualidade de vida e à saúde pública.

Tais impactos não podem ser desconsiderados, já que podem provocar alterações na composição, estrutura e dinâmica da comunidade, caracterizando-se como um impacto permanente. Não restam dúvidas de que torna-se mais eficaz impedir/evitar o dano ambiental, avaliando-o e controlando-o do que atuar posteriormente, de modo compensatório.

Sobre o tema, vejamos a jurisprudência pátria:

CONSTITUCIONAL, AMBIENTAL E PROCESSUAL CIVIL. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. DEGRADAÇÃO AMBIENTAL EM ÁREA SITUADA NA AMAZÔNIA LEGAL. LANÇAMENTO DE CRÉDITOS VIRTUAIS NO SISTEMA DOF/IBAMA. ESTORNO OPORTUNO. AUSÊNCIA DE UTILIZAÇÃO. DANO AMBIENTAL NÃO CONSUMADO. I – "Na ótica vigilante da Suprema Corte, "a incolumidade do meio ambiente não pode ser comprometida por interesses empresariais nem ficar dependente de motivações de índole meramente econômica, ainda mais se se tiver presente que a atividade econômica, considerada a disciplina constitucional que a rege, está subordinada, dentre outros princípios gerais, àquele que privilegia a "defesa do meio ambiente" (CF, art. 170, VI), que traduz conceito amplo e abrangente das noções de meio ambiente natural, de meio ambiente cultural, de meio ambiente artificial (espaço urbano) e de meio ambiente laboral (…). O princípio do desenvolvimento sustentável, além de impregnado de caráter eminentemente constitucional, encontra suporte legitimador em compromissos internacionais assumidos pelo Estado brasileiro e representa fator de obtenção do justo equilíbrio entre as exigências da economia e as da ecologia, subordinada, no entanto, a invocação desse postulado, quando ocorrente situação de conflito entre valores constitucionais relevantes, a uma condição inafastável, cuja observância não comprometa nem esvazie o conteúdo essencial de um dos mais significativos direitos fundamentais: o direito à preservação do meio ambiente, que traduz bem de uso comum da generalidade das pessoas, a ser resguardado em favor das presentes e futuras gerações" (ADI-MC nº 3540/DF - Rel. Min. Celso de Mello - DJU de 03/02/2006). Nesta visão de uma sociedade sustentável e global, baseada no respeito pela natureza, nos direitos humanos universais, na justiça econômica e numa cultura de paz, com responsabilidades pela grande comunidade da vida, numa perspectiva intergeracional, promulgou-se a Carta Ambiental da França (02.03.2005), estabelecendo que "o futuro e a própria existência da humanidade são indissociáveis de seu meio natural e, por isso, o meio ambiente é considerado um patrimônio comum dos seres humanos, devendo sua preservação ser buscada, sob o mesmo título que os demais interesses fundamentais da nação, pois a diversidade biológica, o desenvolvimento da pessoa humana e o progresso das sociedades estão sendo afetados por certas modalidades de produção e consumo e pela exploração excessiva dos recursos naturais, a se exigir das autoridades públicas a aplicação do princípio da precaução nos limites de suas atribuições, em busca de um desenvolvimento durável. A tutela constitucional, que impõe ao Poder Público e a toda coletividade o dever de defender e preservar, para as presentes e futuras gerações, o meio ambiente ecologicamente equilibrado, essencial à sadia qualidade de vida, como direito difuso e fundamental, feito bem de uso comum do povo (CF, art. 225, caput), já instrumentaliza, em seus comandos normativos, o princípio da precaução (quando houver dúvida sobre o potencial deletério de uma determinada ação sobre o ambiente, toma-se a decisão mais conservadora, evitando-se a ação) e a conseqüente prevenção (pois uma vez que se possa prever que uma certa atividade possa ser danosa, ela deve ser evitada - CF, art. 225, § 1º, IV)" (AC 0002667-39.2006.4.01.3700/MA, Rel. DESEMBARGADOR FEDERAL SOUZA PRUDENTE, QUINTA TURMA, e-DJF1 p.172 de 12/06/2012). (...) (TRF-1ª Região, 5ª Turma, Apelação 00114096420084013900, Rel. Souza Prudente, DJF1 23/03/2018).

AGRAVO DE INSTRUMENTO. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. ANTECIPAÇÃO DOS EFEITOS DA TUTELA. FERROVIA TRANSNORDESTINA. SUPOSTA ÁREA DE VALOR ARQUEOLÓGICO CULTURAL. IGREJA E ADJACÊNCIAS. COMUNIDADE DOS QUILOMBOLAS. PLEITO DO MPF DE SUSPENSÃO TOTAL DAS OBRAS NO TRECHO. TUTELA PARCIALMENTE PROVIDA PELO MAGISTRADO DE PRIMEIRO GRAU. OBRIGAÇÃO IMPOSTA À CONCESSIONÁRIA DE MANUTENÇÃO E CONSERVAÇÃO DO CONJUNTO ARQUITETÔNICO. MEDIDA MITIGADORA/COMPENSATÓRIA CABÍVEL. PRINCÍPIO DA PRECAUÇÃO. RECURSO DESPROVIDO. 1 - Recurso conexo ao Agravo de Instrumento n.º 127.825-PE, trazido à apreciação deste Colegiado para apreciação simultânea nesta sessão de julgamento, no qual figura como parte ativa o MPF, almejando a suspensão total das obras de engenharia. 2 - A TRANSNORDESTINA LOGÍSTICA S/A interpõe agravo de instrumento contra decisão proferida na Ação Civil Pública n.º 0000494-20.2011.4.05.8303, em relação à obrigação de fazer imposta pela tutela antecipada parcialmente deferida para o Parquet: "b) Elaborar um projeto de recuperação e manutenção da Igreja São Luiz Gonzaga, no prazo de 90 (noventa) dias, considerando a possível influência das vibrações ao longo do tempo, como medida compensatória, cujo cumprimento operacional se iniciará com a instalação da linha férrea na área adjacente à Capela e perdurará durante toda a exploração comercial da Ferrovia Transnordestina, obrigações essas que deverão ser transmitidas a eventuais sucessores da TLSA". 3 - O impacto da construção da Ferrovia Transnordestina nas imediações da Igreja São Luiz Gonzaga, Sítio Carvalho, Município de Custódia, Pernambuco, exige uma proteção especial e profunda investigação técnica, com amplo debate na seara probatória. 4 - O princípio do livre convencimento do julgador lhe autoriza requerer a elaboração de perícias e estudos, além daquelas já apresentadas no início da demanda, notadamente na seara da ação civil pública e em reverência ao princípio da precaução. 5 - No tangente à obrigação imposta à TRANSNORDESTINA LOGÍSTICA S/A de elaborar um plano lhe atribuindo a missão de zelar pela conservação e manutenção do imóvel tombado, enquanto durar a exploração do empreendimento, mister este a ser exercido inclusive por eventuais sucessores empresariais, ela deve ser mantida como salutar medida mitigadora/compensatória para evitar possíveis danos estruturais graves ao conjunto arquitetônico. 6 - Não merece acolhida a tese de competir exclusivamente à União o papel de preservá-lo: a) primeiro porque não se está transmitindo essa obrigação à concessionária indefinidamente, mas apenas durante a exploração comercial da obra; b) segundo, na seara ambiental a imposição desse tipo de obrigação é perfeitamente cabível. Agravo de instrumento desprovido (TRF-5 Região, 1ª Turma, AG - 128244, DJE 25/01/2013).

PROCESSUAL CIVIL E AMBIENTAL. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. ÁREA DE PRESERVAÇÃO PERMANENTE. OCUPAÇÃO IRREGULAR. DETERMINAÇÃO DE ABSTENÇÃO DE NOVAS CONSTRUÇÕES NA LOCALIDADE E DE CONCESSÃO DE LICENÇA AMBIENTAL PARA NOVAS EDIFICAÇÕES ATÉ REALIZAÇÃO DE PERÍCIA JUDICIAL PARA AFERIR A ESPECIALIDADE DE PROTEÇÃO DA ÁREA. RAZOABILIDADE. TUTELA DO MEIO AMBIENTE. PRINCÍPIO DA PRECAUÇÃO DETERMINAÇÃO DE DELIMITAÇÃO DOS BENS SOB DOMINIALIDADE DA UNIÃO NA REGIÃO. REFORMA DO PROVIMENTO MONOCRÁTICO. 1. Agravo de instrumento manejado pelo Ministério Público Federal contra decisão que, nos autos de ação civil pública, indeferiu o pedido liminar, através do qual objetivava que a ULTRAPAR-ULTRADATA PARTICIPAÇÕES LTDA fosse impedida de promover qualquer alteração na área compreendida pelos 18 lotes da quadra 11 do Loteamento Jardim Fortaleza até a realização de perícia judicial, que o Município de Fortaleza se abstivesse de conceder licença ambiental ou de construção nesses limites e que a União delimitasse os bens sob sua dominialidade compreendidos na referida localidade. 2. O comando inserto no art. 23 da Constituição da República preconiza que se insere na competência comum administrativa da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios o dever de proteger o meio ambiente e combater a poluição em qualquer de suas formas. 3. O Parquet Federal comprovou a verossimilhança de suas alegações respeitantes à caracterização dos 18 lotes da quadra 11 do Loteamento Jardim Fortaleza, no Município de Fortaleza/CE, como área de proteção permanente, através da juntada de dois laudos periciais, sendo um produzido pelos técnicos do IBAMA e outro elaborado pela Associação Técnico-Científica Engenheiro Paulo de Frotin - ASTEF, nos quais se atesta que a região apontada se encontra inserida no interior da poligonal que delimita área de interesse social para fins de desapropriação para a criação e ampliação do Parque Ecológico do Cocó, conforme determinado pelos Decretos Estaduais nº 20.253/89 e nº 22.587/93. 4. Temática versada nos autos que já recebeu os contornos por esta Corte quando do julgamento do Agravo de Instrumento nº 0000281-91.2011.4.05.0000, determinando que o Município de Fortaleza, por meio da Secretaria Municipal de Meio Ambiente e Controle Urbano (SEMAM), se abstenha de outorgar quaisquer novas licenças ambientais para qualquer obra ou atividade localizada na região do referido parque. 5. Em vista da relevância do bem que se pretende tutelar - meio ambiente – e da aplicação ao caso do princípio da precaução, reputa-se pertinente na espécie a abstenção de promoção de qualquer alteração na área litigiosa até a superveniência da perícia judicial, medida essa indispensável à proteção do bioma de especial proteção. 6. Caso em que se mostra igualmente adequado que a União proceda à delimitação dos bens de sua dominialidade que estariam insertos na dita área de proteção permanente. 7. Agravo de instrumento provido (TRF-5ª Região, 3ª Turma, AG-140963, Rel. Paulo Machaco Cordeiro, DJE 04/04/2016).

(grifos nossos)

Logo, presentes os requisitos autorizadores, mostra-se imprescindível a concessão de tutela de urgência a fim de se evitar e minimizar a ocorrência de impactos socioambientais resultantes do avanço das obras relativas ao trecho 1 do BRT/SALVADOR, bem como os danos ambientais destas decorrentes, os quais já se verificam, em razão do início da execução do contrato, conforme se demonstra na imagem abaixo, recebida por intermédio das redes sociais:

Trecho da Avenida Juracy Magalhães com retorno ao Parque da Cidade


V - DA AUSÊNCIA DE RISCO DO PERIGO DE DANO PARA OS COFRES PÚBLICOS:

Considerando que o Consórcio BRT será responsabilizado de forma solidária pelos danos ambientais causados, não haverá prejuízo à Municipalidade na respectiva suspensão da obra e do contrato, haja vista que eventuais prejuízos deverão ser suportados pelas pessoas jurídicas responsáveis pelo dano ambiental.

Por tais razões, não há que se falar em periculum in mora inverso, seja porque os riscos financeiros dos impactos do empreendimento devem ser repartidos solidariamente entre todos os “atores”, seja porque o intuito dos autores é o de eventualmente reajustar e adequar as obrigações fixadas em audiência de conciliação, sendo o pedido de anulação da licitação e das licenças ambientais apenas considerados em último caso, conforme tirocínio exposto no seguinte aresto:

APELAÇÕES EM AÇÃO CIVIL PÚBLICA. AMBIENTAL. RESPONSABILIDADE OBJETIVA. TEORIA DO RISCO INTEGRAL. DERRRAMAMENTO DE PRODUTO QUÍMICO. NITRATO DE 2-ETIL-HEXILO, N. ONU 3082, CLASSE 9 (MICET). ESTUÁRIO DE SANTOS/SP. ARTIGO 225 DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. ARTIGO 14 DA LEI 6.938/81. VALOR DA INDENIZAÇÃO. FÓRMULA DA CETESB. MONTANTE CALCULADO COM BASE NOS PRINCÍPIOS DA RAZOABILIDADE E DA PROPORCIONALIDADE. PECULIARIDADES DO CASO CONCRETO. PRECEDENTES. NEGADO PROVIMENTO ÀS APELAÇÕES DAS CORRÉS E DADO PROVIMENTO À APELAÇÃO DO MPF(...) 8. Responsabilidade solidária das rés, pois ambas concorreram para o dano ambiental. Precedentes. 9. In casu, verificado o dano ambiental (vazamento do produto químico), constatado o desempenho de atividade pelas corrés (transporte e armazenamento de contêineres) e comprovado, ainda, o nexo de causalidade entre o dano e a atividade, queda evidente a responsabilidade das corrés. Precedentes. 10. Na fixação do montante indenizatório, hão de ser considerados os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade, estipulando a condenação em uma soma que não seja nem irrisória nem exorbitante, com o intuito de desestimular o poluidor a praticar novas infrações ambientais. 11. No cálculo do valor da indenização, a metodologia da CETESB considera cinco aspectos: i) volume derramado; ii) grau de vulnerabilidade da área atingida; iii) toxicidade do produto; iv) persistência no meio ambiente; v) mortalidade dos organismos. 12. No caso em tela, em que foram derramados 2,67 metros cúbicos, portanto, deve ser imputado peso 0,2 ao volume derramado; quanto aos pesos conferidos aos demais critérios, corretamente atribuídos pela sentença e não impugnados pelo Parquet, não há que se falar em reforma da sentença. 13. Aplicando-se a fórmula da CETESB, que é calculada em dólares, e atribuindo-se peso 0,2 ao critério volume derramado, obtém-se o montante indenizatório de US$ 794.328,23 (setecentos e noventa e quatro mil trezentos e vinte e oito dólares e vinte e três centavos). 14. Não obstante o resultado da aplicação da fórmula da CETESB seja obtido em dólares, a fixação do valor final pode ser feita em moeda corrente nacional, como dispõe a legislação, haja vista que a conversão será necessária para que se possibilite o pagamento. 15. Negado provimento às apelações das rés e dado provimento à apelação do Ministério Público Federal (TRF-3ª Região, AP-1984037, Rel. Nelton dos Santos, DJF3 26/08/2016). (grifei)


VI. DOS PEDIDOS

VI.1 DOS PEDIDOS LIMINARES

Na presença de requisitos legais que apontem para a plausibilidade jurídica do direito alegado pela parte (fumus boni iuris12) e para a necessidade de provimento jurisdicional expedito, visando a evitar risco de lesão grave e de difícil reparação (periculum in mora13) ao meio ambiente e ao patrimônio público, faz-se imperiosa a concessão da medida liminar que, em cognição sumária, assegure o resultado útil do provimento final.

No caso em apreço, encontram-se inteiramente atendidos os mencionados requisitos da tutela de urgência, haja vista os fundamentos jurídicos apresentados e o risco de avanço das construções nas áreas que ainda remanescem preservadas. Como visto, os fundamentos jurídicos ora apresentados revelam clara e iminente possibilidade de irreversíveis danos ambientais.

A providência de urgência em casos dessa magnitude faz-se necessária não apenas como meio de assegurar a efetividade e instrumentalidade do processo na atuação do direito material, corolário do próprio direito de ação constitucionalmente garantido (art. 5º, XXXV, CF/88), mas também constitui forma de aplicação dos princípios da precaução e da prevenção e do princípio da supremacia do interesse público sobre o particular que recomendam cautela e adoção de medidas preventivas diante de situações de risco ao meio ambiente e ao patrimônio público, dado que a violação de tal espécie de interesse difuso comumente apresenta caráter de irreversibilidade e produz efeitos nocivos que se propagam por toda a sociedade, alcançando as presentes e futuras gerações.

Acerca do imperativo da concessão da medida liminar em caso de iminente dano ao meio ambiente, já decidiu o ínclito Superior Tribunal de Justiça:

PROCESSUAL CIVIL. MEDIDA CAUTELAR PARA ATRIBUIR EFEITO SUSPENSIVO A ACÓRDÃO DE SEGUNDO GRAU. CONSTRUÇÃO DE IMÓVEL EM ORLA POSSUIDORA DE RECURSOS NATURAIS DE PROTEÇÃO AMBIENTAL. EXISTÊNCIA DOS PRESSUPOSTOS DO FUMUS BONI JURIS E DO PERICULUM IN MORA. 1. Medida Cautelar intentada com objetivo de atribuir efeito suspensivo ao v. Acórdão de Segundo grau. 2. O poder geral de cautela há que ser entendido com uma amplitude compatível com a sua finalidade primeira, que é assegurar a perfeita eficácia da função jurisdicional. Insere-se, aí, a garantia da efetividade da decisão a ser proferida. A adoção de medidas cautelares (inclusive as liminares inaudita altera pars) é fundamental para o próprio exercício da função jurisdicional, que não deve encontrar obstáculos, salvo no ordenamento jurídico. (…). Há, em favor do requerente, a fumaça do bom direito e é evidente o perigo da demora, tendo em vista que, tratando-se de bens ecológicos, a ausência de medidas acautelatórias pode resultar na irreversibilidade dos danos ambientais. A princípio, a área configura-se como sendo de preservação permanente e de Mata Atlântica, o que ensejaria, necessariamente, a oitiva do IBAMA e estudo de impacto ambiental, antes do início de qualquer obra. 6. A busca pela entrega da prestação jurisdicional deve ser prestigiada pelo magistrado, de modo que o cidadão tenha cada vez mais facilitada, com a contribuição do Poder Judiciário, a sua atuação em sociedade, quer nas relações jurídicas de direito privado, quer de direito público. 7. Medida Cautelar procedente. (MC 2.136/SC, Rel. MIN. JOSÉ DELGADO, PRIMEIRA TURMA, julgado em 22.05.2001, DJ 20.08.2001 p. 348)

Desse modo, considerando que os estudos do BRT Lapa-Iguatemi não contemplam a existência do Metrô no estudo de demanda; considerando o dano ambiental da derrubada de inúmeras árvores e o tamponamento de dois rios; considerando que o projeto do BRT Salvador Lapa/Iguatemi está em desacordo com o urbanismo moderno que prevê menos facilidade para o veículo particular e mais acesso para o veículo coletivo, ciclovias, e o transporte sobre trilhos; considerando que a Prefeitura de Salvador não fez estudos técnicos com o sistema de faixa exclusiva de ônibus como sistema BHLS, que tornaria o sistema satisfatório e com baixo custo, que preservaria a vegetação dos canteiros centrais das avenidas afetadas; considerando que a implementação do BRT Lapa/Iguatemi tornaria inviável a implementação posterior de sistema moderno e eficiente de transporte público baseado nos trilhos (Metrô, VLT, Monotrilho, etc); considerando as diversas manifestações públicas dos Professores e Técnicos em urbanismo demonstrando que o projeto do BRT Lapa/Iguatemi está defasado e não atende satisfatoriamente às necessidades da população; considerando a manifestação popular de mais de 63 mil pessoas contrárias ao projeto, conforme já mencionado e com amparo nos art. 5º, §4º, da Lei 4.717/65 c/c art. 300 do CPC, o MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL e o MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DA BAHIA pugnam pela concessão de tutela de urgência, com base nos Princípios da Prevenção, da Precaução e no Direito Intergeracional ao Meio Ambiente Ecologicamente Equilibrado (art. 225, CF), em função do perigo de dano irreversível, determinando-se:

1) Inaudita altera pars, nos termos do art. 12 da lei nº 7.347/85 e art. 300 do NCPC, a suspensão da execução do contrato firmado entre o CONSÓRCIO BRT SALVADOR e o MUNICÍPIO DE SALVADOR, determinando-lhes que suspendam imediatamente as obras do BRT/SALVADOR, de modo que se garanta a segurança dos cidadãos, retirando-se os tapumes instalados permitindo a reintegração das áreas ao convívio social, ordenando-se ainda a estas demandadas que se abstenham de promover ou permitir a realização de qualquer atividade que possa causar degradação ambiental, até que seja definido o mérito da presente ação;

2) à UNIÃO e à CAIXA ECONÔMICA FEDERAL que se abstenham de fazer novos repasses à Prefeitura Municipal de Salvador, para o empreendimento BRT/SALVADOR, até provimento final da presente demanda;

3) que a Prefeitura Municipal de Salvador, através de seus órgãos, se abstenham de emitir quaisquer novas licenças ou solicitar outorgas de uso do corpo hídrico para intervenções ou tamponamento dos rios abrangidos pela obra do BRT/SALVADOR, até a resolução final do mérito da presente demanda;

4) que sejam imediatamente suspensos todos os efeitos do “CERTIFICADO DE INEXIGIBILIDADE DE OUTORGA” nº 2018.001.000008, emitido pelo INEMA em 31/01/2018, e que esta autarquia se abstenha de fornecer qualquer nova dispensa de outorga ou outorga para macrodrenagem ou tamponamento dos rios Lucaia e Camarajipe para o BRT/SALVADOR, até o provimento final da presente demanda;

5) para a hipótese de descumprimento das obrigações de fazer e não fazer indicadas nos itens anteriores, que seja cominada multa diária no valor de R$ 100.000,00 (cem mil reais), no caso de descumprimento das obrigações acima impostas;

VI.2 DOS PEDIDOS FINAIS:

Por todo o exposto, com espeque nos dispositivos legais acima mencionados, o MPF e o MPE/BA requerem, ao final da presente demanda:

a) Em relação à UNIÃO e à CAIXA ECONÔMICA FEDERAL, que:

1) Sejam devidamente citadas para, querendo, apresentar contestação no prazo legal, devendo ser neste ato cientificadas da possibilidade de integrar o polo ativo da demanda, nos termos do acima disposto, em aplicação analógica do dispositivo inserto no artigo 6º, §3º da Lei 4.717/65 (Lei de Ação Popular).

2) Caso decidam contestar a presente ação, requer sejam a UNIÃO e a CAIXA ECONÔMICA FEDERAL condenadas:

2.1) à obrigação de proceder a fiscalização efetiva da execução dos convênios firmados para financiamento do BRT/SALVADOR, especialmente quanto ao respeito às normas ambientais, sob pena de responsabilização pessoal do fiscal/gestor do contrato administrativo;

2.2) em conjunto com os demais corréus, CONSÓRCIO BRT SALVADOR e o MUNICÍPIO DE SALVADOR, a recompor integralmente os danos ambientais perpetrados tratados na presente ação, consistente na adoção de todas as medidas necessárias para a reparação da degradação ambiental causada pelas obras do BRT/SALVADOR, devendo os demandados apresentarem, no prazo de 30 dias, plano de recuperação da área degradada (PRAD) ao órgão ambiental competente, para que se proceda a análise e, após sua aprovação, fiscalize todas as etapas de recuperação da área deteriorada;

2.3) ao pagamento de indenização quantificada em perícia ou por arbitramento deste Juízo Federal, correspondente aos danos ambientais que, no curso do processo, mostrarem-se técnica e absolutamente irrecuperáveis nas áreas de preservação permanente irregularmente utilizadas, acrescidas de juros e correção monetária, a ser recolhida ao Fundo a que se refere o artigo 13 da Lei n. 7.347/85 (Ação Civil Pública);

2.4) nos termos do artigo 3° e seguintes da Lei n° 7.347/85 (Lei da Ação Civil Pública), ao pagamento de indenização por danos morais coletivos em valor não inferior a R$ 10.000.000,00 (dez milhões de reais), a ser revertida ao Fundo Nacional dos Direitos Difusos previsto na LACP;

2.5) a acompanhar a execução do projeto in loco para verificar a observância das normas ambientais, antes de efetuar repasse de recursos;

2.6) a liberar recursos para a Prefeitura Municipal de Salvador para o BRT/SALVADOR, ou outro modal que venha a lhe suceder, somente a partir da realização de nova licitação.

b) Em relação à PREFEITURA MUNICIPAL DE SALVADOR e ao CONSÓRCIO BRT/SALVADOR:

1. A declaração de nulidade da Licença Prévia (Resolução Comam 03/2014) concedida à Prefeitura de Salvador para as obras do BRT (Estação Lapa-Iguatemi) e todas as outras que se seguirem referentes à obra BRT/Salvador;

2. Que procedam a reparação da degradação ambiental causada pelas obras já iniciadas, devendo os demandados apresentar, no prazo de 30 dias, plano de recuperação da área degradada (PRAD) ao órgão ambiental competente, para que se proceda a análise e, após sua aprovação, fiscalize todas as etapas de recuperação da área deteriorada;

3. Que sejam condenados a reparar in natura os danos materiais passíveis de restauração ecológica, causados nas áreas descritas (inclusive com a apresentação de um Plano de Recuperação de Área Degradada – PRAD, com acompanhamento técnico e anuência do órgão competente), promovendo sua recondução ao status quo ante, bem como a proceder à compensação ambiental dos danos remanescentes irrestauráveis; ou, sendo impossíveis tais restaurações e compensações, ao pagamento das perdas e danos correspondentes, valores a serem recolhidos ao Fundo a que se refere o artigo 13 da Lei n. 7.347/85 (Ação Civil Pública), tudo em prazo a ser fixado por este Juízo;

4. A declaração de nulidade do contrato firmado entre a PREFEITURA MUNICIPAL DE SALVADOR e o CONSÓRCIO BRT/SALVADOR;

5. A PREFEITURA MUNICIPAL DE SALVADOR realize ESTUDO DE IMPACTO DE VIZINHANÇA (EIV), ESTUDO DE VIABILIDADE TÉCNICA, ECONÔMICA E AMBIENTAL (EVTEA) e Estudo de Demanda de passageiros considerando o novo cenário em Salvador, com o funcionamento do Metrô ligando os mesmos destinos (LIP/LAPA);

6. A PREFEITURA MUNICIPAL DE SALVADOR realize, no mínimo, 3 (três) audiências públicas, divulgadas nos diários oficiais e, especialmente, em jornais de grande circulação ou mídias capazes de cientificar satisfatoriamente a população das audiências, respeitando-se o interregno mínimo de 45 (quarenta e cinco) dias da data das publicações para a realização dos encontros, para a apresentação e discussão do projeto, servindo como uma oportunidade de real debate sobre a escolha do modal e dos traçados, contemplando, notadamente, as seguintes etapas, que serão desenvolvidas nas fases de projeto conceitual e projeto básico, conforme estabelecido no “Manual de BRT – Guia de Planejamento”: a) análise de demandas; b) planejamento operacional; c) serviço ao usuário; d) infraestrutura; e) integração modal; f) tecnologia veicular e tecnologia de cobrança; g) custeio, financiamento, avaliação, planejamento de construção e contratação;

7. A PREFEITURA MUNICIPAL DE SALVADOR realize nova licitação, após a apresentação e discussão do projeto, adequando o projeto às necessidades técnicas exigíveis para o caso e observando-se o correto licenciamento ambiental;

8. A PREFEITURA MUNICIPAL DE SALVADOR estabeleça canais de efetiva comunicação entre a PMS e a população, disponibilizando, gratuitamente e em sítio eletrônico, todos os estudos supramencionados e demais atos relativos ao BRT/SALVADOR ou do modal que venha a ser escolhido em seu lugar, a fim de dar transparência às decisões técnicas e políticas, relativas às fases do projeto, implantação e instalação do BRT/SALVADOR ou do modal que venha a ser escolhido, as quais afetarão diretamente os usuários e, assim, dar os primeiros passos para uma cultura de utilização e preservação do modal;

Os autores requerem ainda a inversão do ônus da prova em favor dos demandantes e a condenação dos réus no ônus da sucumbência, não se opondo o Ministério Público à efetivação da prévia realização de audiência de conciliação (art. 334 do CPC).

Por fim, requer provar o alegado por todos os meios de prova em direito admitidos.

Dá-se a causa o valor de R$ 1.000.000,00 (um milhão de reais) para efeitos legais, tratando-se de direitos difusos e de valor inestimável.

Salvador, 11 de junho de 2018.

Leandro Bastos Nunes

Procurador da República

Heron José de Santana Gordilho

Promotor de Justiça

Bartira de Araújo Goés

Procuradora da República

Patrícia Kathy Azevêdo Medrado Alves Mendes

Promotora de Justiça


Notas

1 http://brt.salvador.ba.gov.br/?page_id=10/; acesso em 21 de maio de 2018. Após a licitação revisou-se o valor do empreendimento para R$ 625.443.805,57 (seiscentos e vinte e cinco milhões, quatrocentos e quarenta e três mil, oitocentos e cinco reais e cinquenta e sete centavos).

2 http://atarde.uol.com.br/bahia/salvador/noticias/1953108-obra-do-brt-salvador-tem-o-valor-mais-alto-entre-varias-capitais-do-pais; acesso em 21 de maio de 2018.

3 https://www.change.org/p/n%C3%A3o-%C3%A0-derrubada-de-579-%C3%A1rvores-pela-prefeitura-de-salvador?recruiter=783550978&utm_source=share_petition&utm_campaign=petition_show&utm_medium=whatsapp; acesso em 08 de junho de 2018.

4 Fonte: Controladoria Geral da União – CGU/ BRT Palmas/TO

5 Idem

6 Idem

7 Trecho da decisão na ACP n. 0008316-13.2015.4.01.4300, BRT Palmas/TO.

8 BRASIL. Ministério das Cidades. Manual para Apresentação de Propostas – 1138. Drenagem Urbana e Controle de Erosão Marítima e Fluvial. Brasília, DF, 2009 p. 10.

9 Condicionantes Institucionais ao Investimento em Infraestrutura: elaboração, avaliação e seleção de projetos. Autores: Rennaly Patricio Souza e Fabiano Mezadre Pompermayer. Disponível em: <http://repositorio.ipea.gov.br/bitstream/11058/7235/1/TD_2239.pdf> Acesso em 29/05/2018.

10 http://www.comunicacao.salvador.ba.gov.br/index.php/todas-as-noticias/44474-audiencia-publica-discute-impactos-ambientais-do-brt;

11 BRASIL, Ministério das Cidades. Manual de BRT - Bus Rapid Transit – Guia de Planejamento, dezembro de 2008 p. 227 e seguintes.

12 No dizer de Enrico Tulio Liebman, é "a provável existência do direito a ser tutelado" (Manual de Direito Processual Civil, vol. 5, p. 92).

13 "Demonstração de inocuidade da tutela jurisdicional principal face a sua não imediatidade" (autor e obra acima citados).


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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

NUNES, Leandro Bastos. Ação civil pública visando suspender as obras do BRT em Salvador. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 23, n. 5564, 25 set. 2018. Disponível em: https://jus.com.br/peticoes/67517. Acesso em: 25 abr. 2024.