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A teoria do planejamento tributário e a mudança da jurisprudência na Receita Federal

A teoria do planejamento tributário e a mudança da jurisprudência na Receita Federal

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Analisa-se o histórico da jurisprudência do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais(CARF) com relação aos limites do planejamento tributário, tendo em vista que o tema gera vultuosa insegurança jurídica ao contribuinte.

RESUMO: O presente artigo introduz os conceitos envolvidos no planejamento tributário, apresentando algumas controversas opiniões doutrinárias sobre o tema, com o objetivo de analisar a evolução e tendência atual da jurisprudência do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (CARF) e Conselho Superior de Recursos Fiscais (CSRF) do Ministério da Fazenda. A conclusão é que os tribunais administrativos vêm ampliando o conceito de simulação, considerando não eficazes perante o Fisco negócios jurídicos atípicos realizados sem propósito econômico ou negocial, com finalidade exclusivamente fiscal.

Palavras-chave: Planejamento tributário; evolução; jurisprudência; CARF, CSRF.


1 INTRODUÇÃO

O processo de positivação do Direito Tributário tem por finalidade a arrecadação de tributos aos cofres públicos para o custeio de toda máquina estatal e das infinitas demandas sociais previstas no nosso ordenamento pátrio.

Destaca-se o pensamento de Cardoso(2014) sobre o tema

“O cumprimento desse dever está diretamente vinculado à possibilidade concreta de efetivação dos direitos fundamentais assegurados aos cidadãos brasileiros. Ao invés de uma dualidade direito versus dever, tem-se na verdade uma interface, em que o dever de contribuir de cada um corresponde a um direito dos demais. Trata-se de uma verdadeira responsabilidade social e não mais de simples dever em face do aparato estatal. Ao se sonegar tributos devidos, o contribuinte não está apenas descumprindo uma exigência legal exigível pelas autoridades fazendárias, mas também, e principalmente, quebrando o seu vínculo de responsabilidade com a sociedade.”

Por outro lado, o atual cenário econômico mundial influenciado pela acirrada concorrência e elevada carga tributária leva o sujeito passivo a procurar o meio mais eficiente para cumprir suas obrigações fiscais.

Ao mesmo tempo que é imprescindível para um Estado Democrático de Direito garantir os recursos necessários para concretização dos seus objetivos finalísticos, é também dever do Estado criar um sistema de modo a fornecer segurança jurídica aos seus cidadãos sem restringir o direito de livre iniciativa constitucionalmente positivado, intimamente ligado ao princípio da legalidade. Além disso, o tributo não pode tornar proibitivo o exercício de determinada atividade, garantindo o direito à liberdade, à propriedade e à dignidade.

A seguinte sentença atribuída a Rufus W. Peckham, resume de maneira didática este poder-dever da tributação.

“The power to tax is the one great power upon which the whole national fabric is based. It is as necessary to the existence and prosperity of a nation as is the air he breathes to the natural man. It is not only the power to destroy, but it is also the power to keep alive.”

Neste cenário, o planejamento tributário, que refere-se a maneira lícita de auto-organização para escolher a melhor alternativa fiscal, tem suscitado interessantes embates nos meios acadêmicos e administrativos.

A despeito da forte divergência doutrinaria a respeito da matéria, este artigo tem o propósito de analisar de forma objetiva o histórico da jurisprudência do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais(CARF) com relação aos limites do planejamento tributário, tendo em vista que o tema gera vultuosa insegurança jurídica ao contribuinte.


2 PLANEJAMENTO TRIBUTÁRIO

O conceito “lato sensu” de planejamento tributário, segundo Marins(2002) encontra-se relacionado com a análise do conjunto de atividades atuais ou dos projetos de atividades econômico-financeiras do contribuinte, em relação ao conjunto de obrigações fiscais com foco na organização de suas finanças, bens, negócios, rendas e demais atividades com repercussão tributária, de modo que venha a sofrer o menor ônus fiscal possível.

Tais atividades comportam desde a utilização de um regime tributário mais benéfico, incentivos fiscais, repetição de tributos indevidamente recolhidos, discussão administrativa ou judicial do crédito tributário, parcelamentos e até a utilização de meios mais agressivos como negócios jurídicos atípicos com a finalidade de evitar ou diminuir a incidência tributária.

Destaca-se que o planejamento tributário deriva do direito de auto-organização do empresário, próprio do princípio da livre iniciativa, bem como do dever de gerir os negócios de forma mais eficiente possível, conceitos expressos na Constituição Federal e na Lei 6406/76. Neste sentido, segundo Godoi(2012), o sujeito passivo pode-se valer da organização de suas atividades de modo que a incidência tributária seja menos gravosa, direito garantido que não é objeto de controvérsia nem na doutrina nem na jurisprudência. Entretanto, a polêmica é inevitável quanto à definição dos limites deste planejamento, uma vez que se baseiam em conceitos jurídicos indeterminados que só se tornam menos nebulosos na aplicação aos casos concretos dos critérios que separam o planejamento lícito e eficaz(elisão fiscal)do campo do planejamento ilícito e ineficaz(evasão, elusão).


3.ELISÃO, EVASÃO E ELUSÃO FISCAL

O pressuposto fundamental do planejamento tributário é a completa licitude dos atos praticados, além disso, os negócios jurídicos precisam ser eficazes perante o Fisco, afinal, veremos neste artigo que nem todos os atos lícitos são eficazes.

O ponto de partida para discussão dos limites dos atos existentes é a diferenciação dos mecanismos da elisão, evasão e elusão fiscal. Não há consenso doutrinário a respeito destas figuras e a interpretação de cada uma dependerá das premissas adotadas.

Segundo Moreira(2003)

“A elisão fiscal corresponde à prática de atos lícitos, anteriores à incidência tributária, de modo a obter-se legítima economia de tributos, seja impedindo-se o acontecimento do fato gerador, seja excluindo-se o contribuinte do âmbito de abrangência da norma ou simplesmente reduzindo-se o montante de tributo a pagar.”

Ressalta-se que o elemento temporal por si só não é suficiente para demarcar a eficácia da elisão. Deve-se analisar adicionalmente se o ato se enquadra dentro do nosso ordenamento jurídico sem se caracterizar como fraude.

Por outro lado, a evasão fiscal caracteriza-se por atos de economia de tributos por meio de negócios jurídicos simulados, abusivos ou fraudulentos que tem por objetivo acobertar um fato gerador ocorrido ou futuro.

Nas palavras deste mesmo autor, Moreira(2003)

Evasão fiscal constitui a prática, concomitante ou posterior à incidência tributária, na qual são utilizados meios ilícitos (fraude, sonegação, simulação) para escapar ao pagamento de tributos.”

Destaca-se que o simples não pagamento de tributos no prazo previsto é uma ilicitude meramente administrativa e não constitui evasão fiscal, culminando ao contribuinte uma penalidade pecuniária, como a multa de mora. Neste aspecto, somente a fraudes como, por exemplo, a omissão de fatos geradores, falsificação de documentos e adulteração de dados contábeis, ensejam punição de natureza criminal.

Se a ação fiscal identificar situações de crime contra ordem tributária, previsto na Lei 8.137 de 1990 (Lei dos crimes contra a ordem tributária, econômica e contra as relações de consumo), os auditores-fiscais da Receita federal encaminharão ao Ministério Publico Federal(titular da ação penal) uma Representação Fiscal para Fins Penais(RFFP) assim que o lançamento for considerado definitivamente constituído na esfera administrativa. No ano de 2017, foram elaborados 2887 RFFP relativamente a 25,42% dos procedimentos de fiscalização encerrados. Além disso, todas as condutas tipificadas na Lei nº 8.137/90[17] pressupõem supressão ou redução de tributo e são crimes de natureza material em que se exige o resultado naturalístico, não somente a mera conduta.

Por fim, a elusão fiscal, a despeito de certa divergência doutrinaria acerca do termo, revela a prática de atos jurídicos, com a intenção de economia fiscal, considerados lícitos, no entanto, atípicos ou abusivos para alcançar os objetivos propostos. Tôrres(2001) a conceitua como uma figura no meio termo entre a evasão e elisão fiscal. Estes atos, apesar de aparentar lisura, possuem vícios jurídicos ou formas anômalas que vão de encontro aos princípios fundamentais do Direito. Nesta linha, parte da doutrina denomina a elusão como uma “elisão ineficaz”.

Com efeito, o limite que separa a elisão da elusão fiscal é exatamente onde mora a controvérsia que permeia o assunto. É impossível adentrar ao tema planejamento tributário sem abordar as três figuras que podem gerar vícios jurídicos na elisão fiscal: a simulação, abuso de direito e a fraude à lei.


4. SIMULAÇÃO, ABUSO DE DIRETO E FRAUDE À LEI

Segundo o civilista Monteiro(1968), a simulação caracteriza-se “pelo intencional desacordo entre a vontade interna e declarada, no sentido de criar, aparentemente, um ato jurídico que, de fato, não existe, ou então oculta, sob determinada aparência, o ato realmente querido”.

Esta figura seria o primeiro obstáculo à liberdade de auto-organização dos indivíduos no planejamento tributário. Destaca-se que o instituto da simulação está previsto no ordenamento jurídico pátrio no artigo 167 do atual Código Civil(CC):

Art. 167. É nulo o negócio jurídico simulado, mas subsistirá o que se dissimulou, se válido for na substância e na forma.

§ 1o Haverá simulação nos negócios jurídicos quando:

I – aparentarem conferir ou transmitir direitos a pessoas diversas daquelas às quais realmente se conferem, ou transmitem;

II – contiverem declaração, confissão, condição ou cláusula não verdadeira;

III – os instrumentos particulares forem antedatados, ou pós-datados.

§ 2o Ressalvam-se os direitos de terceiros de boa-fé em face dos contraentes do negócio jurídico simulado.

A doutrina também diferencia a simulação absoluta e a relativa. A simulação absoluta exprime ato jurídico inexistente ou que não corresponde à realidade, correspondendo a uma declaração de vontade falsa. Já se diz relativa, se atrás do negócio simulado existe outro dissimulado. Assim, enquanto na simulação absoluta existe apenas um negócio jurídico correspondente à vontade declarada, na simulação relativa existem dois negócios jurídicos, o simulado, correspondente à “vontade falsa” e o dissimulado, correspondente à vontade real.

O próximo ato ilícito, o abuso de direito, é definida por Nader(2004) da seguinte forma:

“Abuso de direito é espécie de ato ilícito, que pressupõe a violação de direito alheio mediante conduta intencional que exorbita o regular exercício de direito subjetivo”.

Esta figura encontra-se positivado no art. 187 do Código Civil (CC) nos seguintes termos:

Art. 187. Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes.

A teoria do abuso do direito é matéria das mais controversas, exatamente por encontrar-se numa linha muito tênue entre o exercício regular e abusivo deste mesmo direito. Por ser uma questão quase somente moral, a sua medida e quantificação é uma tarefa das mais difíceis.

A terceira figura que limita o planejamento tributário é a fraude à lei, prevista no art. 166, VI do Código Civil(CC):

Art. 166. É nulo o negócio jurídico quando:

VI — tiver por objetivo fraudar lei imperativa;

Segundo Greco(2008), a fraude à lei pressupõe a existência de uma norma de cobertura e uma norma fraudada

“Na fraude à lei o contribuinte monta determinada estrutura negocial que se enquadre na norma de contorno para, desta forma, numa expressão coloquial, driblar a norma contornada. Com isto pretende fazer com que a situação concreta seja regulada pela norma de contorno, com o que ficaria afastada a aplicação da norma de tributação (ou de tributação mais onerosa) .“

Pode-se dizer que a fraude à lei se distancia da simulação, seja esta absoluta ou relativa. Isso porque, na simulação, há um descompasso entre a vontade real e a declarada. Por sua vez, na fraude à lei, ao se praticar o ato em tese permitido, as partes pretendem os efeitos deste, embora tenham, para esse fim, escapado da incidência de uma norma imperativa.

Convém também diferenciar o negócio indireto da simulação, conforme Guerreiro(1998)

“Negócio indireto é, então, aquele ao qual as partes recorrem e a cuja forma e disciplina se submetem com o objetivo de alcançar, consciente e consensualmente, finalidades lícitas outras das que lhe são típicas, e que se caracteriza por ser: verdadeiramente querido pelas partes, utilizado para alcançar um fim diverso daquele que é típico do negócio adotado, realizado segundo a forma e a disciplina jurídicas próprias do negócio adotado, às quais se sujeitam as partes, suportando todos os seus efeitos.”

Portanto, o negócio jurídico indireto não envolve simulação fiscal, uma vez que a vontade das partes corresponde ao ato praticado, à declaração.

Repise-se que com a vigência do Código Civil(CC) de 2002, tanto o negócio jurídico simulado quanto o realizado com objetivo de fraudar a lei imperativa são nulos, nos termos dos artigos 166, IV e 167.


5. PARÁGRAFO ÚNICO DO ARTIGO 116 DO CTN

Em 2001, A Lei Complementar 104/2001 acrescentou ao artigo 116 do CTN o seguinte dispositivo:

Parágrafo único. A autoridade administrativa poderá desconsiderar atos ou negócios jurídicos praticados com a finalidade de dissimular a ocorrência do fato gerador do tributo ou a natureza dos elementos constitutivos da obrigação tributária, observados os procedimentos a serem estabelecidos em lei ordinária.

Pela simples leitura do dispositivo, constata-se a criação de uma norma de eficácia limitada, carecendo de regulamentação por lei. A Medida Provisória número 66 de 2002 tentou regulamentá-la, no entanto parte do texto original referente à matéria não foi convertida em lei, perdendo a eficácia.

Neste contexto, a norma em questão, a princípio, foi recebida pelo meio político com uma norma anti-elisão, que permitiria ao Fisco desconsiderar atos praticados pelo contribuinte com a finalidade de dissimular a ocorrência de uma fato gerador de um tributo.

Entretanto, esta possibilidade é rechaçada pela maioria da doutrina, baseado nos princípios da legalidade e da tipicidade fechada, entende a maior parte deles que a norma do parágrafo 116 somente funciona como um dispositivo anti-simulação, autorizado de forma expressa no artigo 149 do Código Tributário Nacional(CTN), ou seja, tem-se somente uma norma anti-evasiva.

Art. 149. O lançamento é efetuado e revisto de ofício pela autoridade administrativa nos seguintes casos:

VII — quando se comprove que o sujeito passivo, ou terceiro em benefício daquele, agiu com dolo, fraude ou simulação;

Cite-se Godoi e Ferraz(2012) sobre o tema:

“Quanto ao ordenamento jurídico brasileiro, a doutrina se divide em duas posições. Para a posição tradicional e majoritária, somente em caso de simulação – tal como conceituada pelo direito civil – o fisco pode desconsiderar atos e negócios praticados com a finalidade de evitar ou reduzir a incidência tributária; não havendo simulação nem qualquer outro tipo de dolo ou fraude (sonegação), considera-se que o contribuinte pratica elisão tributária plenamente legítima e eficaz, que somente pode ser combatida por normas específicas que pouco a pouco vão preenchendo as lacunas da lei exploradas pelo planejamento tributário.”

Ressalta-se que nomes de peso da doutrina Nacional são enfaticamente contrários a aplicação do parágrafo único do artigo 116 do jeito que se encontra inserido no regime pátrio e ainda apontam a referida norma de sérias suspeitas de inconstitucionalidade.

Entre eles, Xavier (2001) defende que a regra antielisiva não seria possível no ordenamento jurídico pátrio por várias razões, entre elas, o direito à livre iniciativa, à propriedade e à liberdade econômica constitucionalmente previstos.

Xavier adota como fundamento a denominação de “negócio jurídico menos oneroso” para qualificar os atos jurídicos praticados pelos particulares como propósito de pagar menos impostos. Para o autor, somente normas expressamente proibitivas podem ensejar situações de fraude à lei, não havendo espaço para a “interpretação econômica” ou da expressão da capacidade contributiva na norma de incidência tributária.

Para o aclamado doutrinador, o efeito desta norma somente permite ao fisco desconsiderar o ato simulado sem ter que previamente demandar a nulidade do ato ao poder judiciário.

A Confederação Nacional do Comércio ajuizou uma ação direta de inconstitucionalidade(ADI) contra o parágrafo único do Artigo 116 do CTN que aguarda julgamento no Supremo Tribunal Federal desde 2001.

Por outro lado, há quem defenda a sua constitucionalidade e que o dispositivo trata-se verdadeiramente de uma norma anti-elisiva. Essa corrente minoritária é liderada por Marco Aurélio Greco(2008) que na sua brilhante obra tutela a consideração de outras figuras, além da simulação, para interpretar os limites do planejamento tributário, quais sejam, o abuso de direito e a fraude à lei.

Em suas palavras:

Em suma, a meu ver, a aplicação das figuras do abuso do direito e da fraude à lei em matéria tributária, no ordenamento positivo brasileiro, pode ocorrer independente de lei expressa que as autorize, pois elas são decorrência da legalidade e da imperatividade do ordenamento. Ainda que fosse indispensável uma lei autorizando a aplicação de tais categorias, este requisito estaria atendido pelo parágrafo único do artigo 116 aqui comentado.

Greco preceitua que direito de auto-organização será condicionado pelos valores de igualdade, solidariedade e justiça. Sob esta justificativa, conclui que será abusivo o exercício do direito de livre iniciativa quando seu uso ou o seu resultado deixar de atender a esses novos valores sociais trazidos pela Carta Magna de 1988.Para o autor, o fenômeno tributário não deve mais ser visto como simples agressão ao patrimônio individual, mas como instrumento ligado ao princípio da solidariedade social.

De acordo com Greco(2008):

Tributo justo não será mais apenas aquele que resultar da aplicação da lei a todos os fatos geradores aos quais se referir. Ao contrário, a legalidade pode se transformar em instrumento de dominação. Tributo justo será também aquele que, efetivamente, captar a capacidade contributiva demonstrada pelos fatos geradores escolhidos pelo legislador ou que atender aos princípios da solidariedade e da isonomia, e assim por diante.”

Esta situação demonstra claramente o embate doutrinário entre a legalidade estrita, os princípios da reserva absoluta de lei em sentido formal, da tipicidade fechada e da proibição de tributação mediante analogia defendida por Xavier contra a teoria do tributo como instrumento de justiça social embasada na capacidade contributiva tutelada por Greco.


6. JURISPRUDÊNCIA ADMINISTRATIVA

Considerando as poucas manifestações do Poder Judiciário sobre o tema, somada à falta de regulamentação normativa sobre o assunto, as decisões do CARF e CSRF (representando tribunal administrativo de segunda e última instância) ganham importância para o planejamento tributário e podem delinear o comportamento do contribuinte, uma vez que passa a ser um das poucas produções sobre o tema.

Nesta linha, parece importante a definição de critérios que permitam identificar quais operações têm a proteção do Fisco e quais não possuem tal benesse. Ressalte-se que estes critérios não trarão respostas prontas, mas servirão de instrumento para análise de cada caso específico na solução de divergências entre o Estado e o contribuinte.

Por um período longo as decisões administrativas, apesar da ausência de padrão na sua fundamentação, pautaram, na sua maioria, pela legalidade estrita, por meio do qual somente as hipóteses expressamente positivadas na lei estariam sujeitas à tributação. A liberdade de auto-organização do contribuinte era maior e somente atos ilícitos (dolo, fraude e simulação) eram invalidados pelas autoridades administrativas.

Abaixo, destaca-se a transcrição de alguns acórdãos do tribunal administrativo:

Acórdão nº 106-09.343 – 1997 IRPF – GANHO DE CAPITAL – SIMULAÇÃO. Para que se possa caracterizar a simulação, em atos jurídicos, é indispensável que os atos praticados não pudessem ser realizados, fosse por vedação legal ou por qualquer outra razão. Se não existia impedimento para a realização de aumento de capital, a efetivação de incorporação e de cisões, tal como realizadas e cada um dos atos praticados não é de natureza diversa daquele que de fato aparenta, não há como qualificar-se a operação como simulada. Os objetivos visados com a prática dos atos não interferem na qualificação dos atos praticados, portanto, se os atos praticados eram lícitos, as eventuais consequências contrárias ao fisco devem ser qualificadas como elisão fiscal e não evasão ilícita.

Acórdão n°.:101-94.127-2003(IRPJ — SIMULAÇÃO NA INCORPORAÇÃO)

Para que se possa materializar, é indispensável que o ato praticado não pudesse ser realizado, fosse por vedação legal ou por qualquer outra razão. Se não existia impedimento para a realização da incorporação tal como realizada e o ato praticado não é de natureza diversa daquela que de fato aparenta, não há como qualificar-se a operação de simulada. Os objetivos visados com a prática do ato não interferem na qualificação do ato praticado. Portanto, se o ato praticado era lícito, as eventuais consequências contrárias ao fisco devem ser qualificadas como casos de elisão fiscal e não de “evasão ilícita.” (Ac. CSRF/01— 01.874/94). IRPJ— INCORPORAÇÃO ATÍPICA— A incorporação de empresa superavitária por outra deficitária, embora atípica, não é vedada por lei, representando negócio jurídico indireto.

Acórdão nº 106-14.483 – 2005 (Doação / antecipação de legitima) GANHO DE CAPITAL. SIMULAÇÃO. PROVA. A ação do contribuinte de procurar reduzir a carga tributária por meio de procedimentos lícitos, legítimos e admitidos por lei releva o planejamento tributário. Para a invalidação dos atos ou negócios jurídicos realizados, cabe à autoridade fiscal a ocorrência do fato gerador ou que o contribuinte tenha usado de estratagema para revesti-lo de outra forma. Não havendo impedimento legal para a realização das doações, ainda que delas tenha resultado a redução de ganho de capital produzido pela alienação das ações recebidas, não há como qualificar a operação de simulada. A reduzida permanência das ações no patrimônio dos donatários/doadores e doadores/donatários, por si só, não autoriza a conclusão de que os atos e negócios jurídicos foram simulados. No ano-calendário de 1997 não havia a incidência de imposto sobre ganho de capital produzido pela diferença entre o custo de aquisição pelo qual o bem foi doado e o valor de mercado atribuído no retorno do mesmo bem.

Nos acórdãos acima nota-se a prevalência do critério da licitude do ato, da temporalidade na ocorrência do fato gerador e da estrita legalidade formal. Além disso, havia uma polarização entre elisão e evasão fiscal, sem uma padronização, com um conceito de simulação mais restrito do que aquele observado atualmente.

Entretanto, com o surgimento de novas teorias acerca do planejamento tributário, que vão além do positivismo e da legalidade estrita, nota-se uma mudança na análise dos defeitos do negócio jurídico, inserindo-se elementos novos aos já citados.

Percebe-se que a obra de Marco Aurélio Greco(2008) foi preponderante para a mudança de paradigma administrativa, uma vez que foi uma das precursoras da teoria do “propósito negocial” na análise da incidência tributária pátria, defendendo a possibilidade de cobrar o tributo quando o contribuinte não tiver outra justificativa para praticar o negócio além da questão fiscal.

Nesta linha, a ausência de motivação extratributária tem sem tornado questão central nas decisões mais recentes do CARF, entretanto, segundo Greco(2008) para tal conclusão a operação deve ser vista como um todo e não como um ato isolado.

Dentro desta cadeia de atos a presença de elementos relevantes como: economia de tributos; negócio jurídico indireto; reversão dos negócios praticados; operações invertidas; operações entre partes relacionadas; curto período de tempo; o uso de pessoas jurídicas “laranjas”; operações estruturadas em sequência, em que uma etapa não tem sentido a não ser quando vista do conjunto de etapas além da falta de propósito negocial podem indicar a existência de um negócio não eficaz perante o Fisco.

No processo de análise dos acórdãos abaixo, percebe-se que o elemento falta de propósito negocial precede as demais motivações, deslocando-se para uma fase posterior o enquadramento o negócio jurídico como ilícito ou atípico(simulação, fraude, abuso de direito, abuso de forma).

Acórdão CSRF nº 9101-002.429 – 2016 (Venda de Imóveis / Estoque) Normas Gerais de Direito Tributário Ano-calendário: 2006, 2008 OPERAÇÕES DE REORGANIZAÇÃO SOCIETÁRIA. PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS E LEGAIS. FALTA DE PROPÓSITO NEGOCIAL. INADMISSIBILIDADE. Não se pode admitir, à luz dos princípios constitucionais e legais – entre eles os da função social da propriedade e do contrato e da conformidade da ordem econômica aos ditames da justiça social –, que, a prática de operações de reorganização societária, seja aceita para fins tributários, pelo só fato de que há, do ponto de vista formal, lisura per se dos atos quando analisados individualmente, ainda que sem propósito negocial. GANHO DE CAPITAL. CONSTITUIÇÃO DE SOCIEDADE SEM PROPÓSITO NEGOCIAL. PLANEJAMENTO TRIBUTÁRIO ABUSIVO. O sólido e convergente acervo probatório produzido nos autos demonstra que o contribuinte valeu-se da criação de uma sociedade, para a alienação de bens classificados em seu ativo permanente, evadindo-se da devida apuração do respectivo ganho de capital, por meio de simulação, que é reforçada pela ausência propósito negocial para sua realização. MULTA DE OFÍCIO QUALIFICADA. SIMULAÇÃO. Comprovadas a simulação e o intuito fraudulento, caracterizado pelo dolo específico, impõe-se a aplicação da multa de 150%. Recurso Especial do Contribuinte Negado.

Acórdão CSRF nº 9101-002.397 – 2016 (Segregação de PJs) Normas Gerais de Direito Tributário Ano-calendário: 2005 SIMULAÇÃO. DESCONSIDERAÇÃO DE SEGREGAÇÃO DE PESSOAS JURÍDICAS SIMULADA. DOLO DE EVASÃO FISCAL. Demonstrada a simulação da segregação de fontes de rendimentos em diversas pessoas jurídicas, é legítima a desconsideração da reestruturação societária simulada para a tributação concentrada da única entidade realmente existente (CTN, art. 149). MULTA QUALIFICADA. DEMONSTRAÇÃO DE DOLO PARA A EVASÃO DE TRIBUTOS. Demonstrada a simulação da segregação de fontes de rendimentos, com o dolo de evadir tributos, é legítima a qualificação da multa de ofício. MULTA AGRAVADA. NÃO CABIMENTO. Não há o preenchimento da hipótese de incidência do agravamento da multa se ?houve resposta a todas as intimações feitas pela fiscalização e a apresentação dos arquivos magnéticos em questão em nada alteraria o lançamento afinal efetuado, que se operou sob a forma do lucro arbitrado.

Acórdão CSRF nº 1201-001.640 – 2017 (Venda de Participação via FIP) VENDA DE AÇÕES DE EMPRESA CONTROLADA. FUNDO DE INVESTIMENTO EM PARTICIPAÇÕES – FIP. ATO SIMULADO. SUJEITO PASSIVO. HOLDING CONTROLADORA. O sujeito passivo a ser tributado por ganho de capital na venda das ações de empresa controlada é a holding detentora e não o FIP constituído alguns dias antes da operação mediante a conferência das ações da empresa vendida, pois ato simulado não é oponível ao fisco, devendo receber o tratamento tributário que o verdadeiro ato dissimulado produz. FIP. AUSÊNCIA DE FINALIDADE NEGOCIAL. Desprovido de finalidade negocial o Fundo de Investimento em Participação - FIP, constituído por uma única investidora, com um único investimento ao qual não foi aportado qualquer investimento adicional ou ato de gestão visando seu crescimento/desenvolvimento ou saneamento e cuja permanência no FIP durou alguns dias. FIP. DESCONSIDERAÇÃO. LEGALIDADE. É desprovida de base a acusação de que a desconsideração do FIP afronta ao princípio da legalidade, dado que foi devidamente avaliado que a interposição do FIP no lugar da autuada tratou-se de manobra para evadir tributação de ganho de capital. MULTA QUALIFICADA. SONEGAÇÃO. SIMULAÇÃO. DOLO. Estando comprovada a prática deliberada de simulação, portanto, estando caracterizados o dolo e sonegação, cabe a qualificação da multa de ofício. [...].

Em que pese as calorosas críticas de parte da doutrina contra a possível interpretação econômica do Direito, segundo Greco(2008), a mudança de uma visão individualista protetiva do Direito Tributário para uma visão solidária modificadora baseado na capacidade contributiva e isonomia fiscal mostra uma tendência de ponderação entre limitações e princípios na produção, interpretação e aplicação da legislação tributária em um processo de reumanização do Direito.

Ao mesmo tempo, nota-se que ocorreu uma transformação no modo de compreensão do fenômeno jurídico, uma vez que, apesar da análise de conceitos e interesses continuarem sendo essenciais, o peso dos valores na relação jurídico-tributário aumentou significativamente.


7.CONCLUSÃO

Como demonstrado neste artigo, a despeito da posição majoritária não enxergar grande inovação em termos jurídicos no parágrafo único do artigo 116 do CTN, nota-se que a partir da LC 104/2001, responsável pela introdução deste parágrafo no ordenamento pátrio, as restrições ao planejamento tributário no âmbito administrativo recrudesceram significativamente.

Nota-se o surgimento de elementos não jurídicos como a “falta de propósito negocial”, ou seja, a ausência de motivação extrafiscal para realização do negócio jurídico, bastante influenciada pela interpretação econômica da tributação, abandonando a postura tradicional que só atacava a simulação/evasão.

Ressalte-se que a doutrina não é unânime em reconhecer a eficácia da capacidade contributiva como parte da relação jurídica tributária sem a expressa positivação em lei.

Destaca-se, nesta transformação a ampliação conceitual de simulação como elemento ilícito, a necessidade da individualização dos casos para aplicação desses conceitos indeterminados nos limites de planejamento, assim como um aumento de protagonismo do CSRF na manutenção dos Autos de Infração.

Neste diapasão, o Fisco visa à desqualificação das operações ditas elusivas que envolvem ilícitos como abuso de direito, fraude e simulação, entretanto, é preciso registrar que o direito de auto-organização e livre iniciativa deve ser garantido pelo Estado quando utilizados meios lícitos em consonância com a lei.


8.REFERÊNCIAS

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MARCIO, Vendramin. A teoria do planejamento tributário e a mudança da jurisprudência na Receita Federal. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 24, n. 5807, 26 maio 2019. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/67741. Acesso em: 24 abr. 2024.