Este texto foi publicado no Jus no endereço https://jus.com.br/artigos/67916
Para ver outras publicações como esta, acesse https://jus.com.br

Princípio da intervenção penal mínima e a privação da liberdade de menores de idade no Brasil.

Das violações ao papel do Sistema Interamericano de Direitos Humanos

Princípio da intervenção penal mínima e a privação da liberdade de menores de idade no Brasil. Das violações ao papel do Sistema Interamericano de Direitos Humanos

Publicado em . Elaborado em .

Os órgãos responsáveis pela administração da justiça em matéria de crimes perpetuados por menores de idade no Brasil, desrespeitam, de maneira explícita, o princípio de intervenção penal mínima.

INTRODUÇÃO

O alto protagonismo judicial em matéria de proteção e garantia dos direitos humanos no Brasil, assim como no contexto regional da América Latina, faz-se, ao menos no recorte histórico-social do tempo presente, necessário e fundamental, pois “[a] região ainda convive com as reminiscências do legado dos regimes autoritários ditatoriais, com uma cultura de violência e de impunidade, com a baixa densidade de Estados de Direito e com a precária tradição de respeito aos direitos humanos [...]” (PIOVESAN, 2017, p.143). Assim sendo, a atuação de mecanismos judiciais regionais de proteção dos direitos humanos, como o interamericano, revela-se importante na construção de uma consciência regional acerca da importância da adequação das normas e das práticas do direito interno às recomendações advindas das instituições de direito internacional, que objetivam a contemplação integral dos direitos civis, políticos, econômicos, sociais, culturais, ambientais dentre outros, no âmbito dos países que, de boa-fé, aceitaram e prometeram acatar as decisões jurisprudenciais de seus órgãos, em matéria consultiva e contenciosa.

No entanto, apesar dos notáveis avanços jurisprudenciais que o sistema interamericano de proteção dos direitos humanos tem alcançado, desde sua expansão, a partir da formalização da Convenção Americana de Direitos Humanos, em 1969 (PIOVESAN, 2015), o sistema tem falhado em corresponder com certas demandas jurídicas acerca da tutela de determinados direitos, nos quais têm sido violados constantemente, principalmente no  âmbito da sociedade brasileira contemporânea, como por exemplo, as violações que o Brasil tem perpetrado em desrespeito ao princípio da intervenção penal mínima no tratamento das condutas criminosas de menores de idade[1], o princípio da intervenção mínima fora internacionalmente reconhecido principalmente, conforme afirma Roig (2017), a partir dos Princípios Básicos da ONU (Organização das Nações Unidas) para o Tratamento dos Reclusos, que estabelece em seu sétimo princípio, que esforços devem ser perseguidos para abolir ou restringir o regime de isolamento enquanto medida punitiva e nacionalmente protegido por meio da Lei nº 7.210, a Lei de Execução Penal (LEP), de 1984.

Não obstante, quando se fala do tratamento das condutas de menores em conflito com a Lei no Brasil, é necessário levar em conta que o país possui (no plano nacional) uma legislação geral, a Constituição Federal (CF) de 1988 e outra específica, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), de 1990, responsáveis por guiar as diretrizes elaboradas pelos poderes públicos acerca deste tema. De acordo com a Associação Nacional dos Centros de Defesa da Criança e do Adolescente (ANCED) (2007), o principal avanço do ECA foi introduzir ao direito interno brasileiro a ideia de que a criança e o adolescente são sujeitos de direito e que não devem ser considerados enquanto pessoas incompletas, mas enquanto ‘pessoas em condição peculiar de desenvolvimento’. E, no plano internacional, o Brasil é signatário da Convenção Internacional sobre os Direitos da Criança e das Regras Mínimas das Nações para Administração da Justiça Juvenil - Regras de Beijing e Regras Mínimas das Nações Unidas para a Proteção dos Jovens privados de Liberdade (ANCED, 2007).

Porém, apesar da existência de um vasto aparato legal que institui a intervenção penal mínima enquanto princípio norteador das práticas de execução penal e regras mínimas acerca da proteção dos direitos dos menores de idade que perpetuaram condutas criminosas, “o Sistema de Justiça Juvenil Brasileiro tem uma formatação legal [...] e uma prática não formal que, na realidade, se contrapõe à legal” (ANCED, 2007, p.79), que na verdade se inclina à estabelecer um programa de controle social baseado em práticas que violam diretamente os direitos fundamentais elencados nas declarações de direito interno e nos mecanismos convencionais e extraconvencionais nos quais o Estado brasileiro é parte. Tal inclinação, em certos casos, se dá também por um caráter implícito nos documentos legais, como o ECA, que é pouco discutido, consoante à Martins (2011, p. 380-382):

O Estatuto é a primeira lei, em nosso país, voltada às crianças e adolescentes de maneira universal. Porém, por trás de um discurso universal há uma sociedade desigual. Sendo a lei supostamente igual para todos, mas tendo atrás de si uma complexa teia de estigmatização, seletividade e criminalização, a sua seção dedicada ao ato infracional não é universal, pois, em sua prática, é voltada a uma classe social [...] O que nos parece evidente é que a Justiça Juvenil nem é tão somente tutelar e nem é uma cópia penal. O que seria possível afirmar é que a Justiça Juvenil mantém uma característica que perpassa os dois modelos: é um instrumento de controle da população pobre e, infelizmente, não é eminentemente pedagógica.

Isso reflete no número de apreensão de menores, que tem aumentado de maneira súbita nos últimos anos no Brasil. De acordo com Coissi (2015), de 2008 a 2013, aumentou em 37,6% o número de menores privados de liberdade, sendo que o roubo e o tráfico de drogas foram as razões principais, durante este período, para o cerceamento da liberdade destes sujeitos. Sem embargo, em números recolhidos pelo G1 do Cadastro Nacional de Adolescentes em Conflito com a Lei (disponível apenas para magistrados), no ano de 2016 existiam 189 mil adolescentes cumprindo medidas socioeducativas no país, e, do total das medidas aplicadas, 29.794 são de internação sem atividades externas (REIS, 2016), representando um número alto de casos em que o isolamento completo é adotado enquanto medida “socioeducativa”.

Assim sendo, reconhece-se que o Brasil, claramente, viola as normativas tanto nacionais, quanto internacionais, acerca do tratamento das condutas de menores de idade em conflito com a Lei, o que é facilmente visto a partir das estatísticas supracitadas, a partir do aumento brusco na apreensão de menores e na aplicação de penas privativas de liberdade a estes, pois como reitera Roig (2017, p.67) “[...] a intervenção penal e o próprio encarceramento se reservam tão somente aos casos de extrema necessidade [...] também o isolamento disciplinar – se não acertadamente abolido como forma de sanção – deve ao menos ser considerado a ultima ratio da execução penal”.

Portanto, este artigo tem por objetivos identificar como se dão as violações ao princípio da intervenção penal mínima nos casos de cerceamento de liberdade de menores de idade e de que maneira o Brasil pode ser responsabilizado frente ao sistema interamericano devido a essas violações, o método utilizado fora o descritivo-explicativo e o marco teórico em que o estudo se baseia transpassa a doutrina do direito internacional público, dos direitos humanos e da criminologia crítica aplicados à execução penal, em uma abordagem essencialmente interdisciplinar,  tendo como mecanismos de pesquisa a pesquisa bibliográfica e documental.


1. O PRINCÍPIO DA INTERVENÇÃO PENAL MÍNIMA E O ISOLAMENTO/INTERNAÇÃO DE MENORES DE IDADE NO BRASIL:

Esta seção tem por objetivo identificar o posicionamento e importância do princípio de intervenção penal mínima dentro do ordenamento jurídico e da sociedade brasileira contemporânea, assim como identificar suas possíveis violações no que tange as restrições à liberdade impostas a pessoas menores de idade em conflito com a Lei no Brasil, identificando não apenas o posicionamento dos teóricos (principalmente aqueles que possuem uma visão crítica acerca da criminologia e da execução penal) mas também os próprios mecanismos legais elaborados pelos poderes constituintes originário e derivado mas também as convenções das quais o Estado brasileiro é parte e as normas de cunho extraconvencional, que dissertam acerca da execução penal e seus procedimentos.

Não é possível discorrer acerca da minimização do protagonismo penal enquanto mecanismo de controle social, sem falar dos estudos relativos à criminologia crítica. Assim como afirmou Lopes (2002), a criminologia crítica representa um turning point no estudo das ciências penais, ela veio para romper com o paradigma dominante da criminologia liberal-positivista que reproduzia a construção de rótulos acerca da figura do “criminoso” (o famoso labelling approach), denunciando que a promoção de tal perspectiva servia para algo e para alguém, neste caso, para a aceleração dos processos de criminalização das classes subalternas.

A criminologia crítica possui bases claramente marxistas, assim como a teoria crítica no geral (aquela que busca denunciar de forma abrangente a crise nas ciências humanas e sociais, principalmente a partir dos teóricos da Escola de Frankfurt, que tomou impulso no início da década de 1920). Os estudos críticos acerca da criminologia têm por objeto de análise “[...] o conjunto de relações sociais, compreendendo as estruturas econômicas e jurídico-políticas do controle social” (LOPES, 2002, p.71), tendo como um de seus principais expoentes o filósofo, sociólogo e jurista italiano Alessandro Baratta, que, por meio de sua principal obra: “Criminologia critica e critica del diritto penale: introduzione alla sociologia giuridico-penale”, de 1982, marca uma virada no pensamento criminológico ocidental da época.

Em sua obra, Baratta defende que esta nova criminologia voltaria sua atenção sobre os processos de criminalização, denunciando as relações sociais de desigualdade próprias da sociedade capitalista e buscando expandir a crítica do direito penal enquanto campo desigual, elaborando uma teoria materialista (econômico-política) dos desvios (de conduta), e dos comportamentos socialmente negativos e também da censura, traçando as linhas de uma política criminal alternativa, principalmente para o que ele chamada de classes subalternas (BARATTA, 2014).

Não obstante, o autor chama atenção para a ideia de que, qualquer um que pretenda utilizar a criminologia crítica enquanto lente teórica de análise para os fenômenos sociais, nos quais o direito penal é utilizado enquanto mecanismo de controle social, deve tomar cuidado para não utilizar apenas a descrição, pois ela é importante, à medida que penetra na lógica das contradições que a realidade social apresenta, no entanto, é necessário “subir mais um degrau”, em busca de uma explicação para tais fenômenos e possíveis superações para estas contradições (BARATTA, 2014). Assim sendo, é de maneira célebre que o autor irá, no último capítulo de sua principal obra (já citada), denominado “Criminologia crítica e política criminal alternativa”, discorrer acerca das alternativas às políticas criminais vigentes.

É a partir deste plano de fundo teórico que torna-se possível pensar em formas alternativas à pena de prisão, mais especificamente, da restrição parcial ou total da liberdade do indivíduo enquanto política penal, abrindo espaço para a introdução do princípio da intervenção penal mínima nas práticas de execução penal realizadas pelo Estado e por seus órgãos competentes. Roig (2017, p.65), entende que:

Na essência, o princípio da intervenção mínima estabelece que a punição criminal, em virtude de seus efeitos nefastos e estigmatizantes, deve ser reservada apenas aos casos de extrema necessidade, quando a defesa de certo interesse ou valor não pode ser viabilizada por instrumentos não penais (sanção civil, administrativa etc.). A “solução” penal é, portanto, a ultima ratio (última razão) do direito, somente devendo ser aplicada em virtude de graves violações aos interesses ou valores mais relevantes.

No plano internacional, o princípio fora incorporado pelas Regras Mínimas das Nações Unidas para o Tratamento de Presos, popularmente conhecidas como “Regras de Mandela”, segundo o ministro e ex-presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), Ricardo Lewandowski (2016), o Governo Brasileiro participou ativamente das negociações para a elaboração das Regras Mínimas e sua aprovação na Assembleia Geral das Nações Unidas, em 2015, mostrando a necessidade da sociedade civil organizada e dos entes estatais em estimularem a aplicação destas regras nas práticas que envolvem o sistema penitenciário brasileiro. Não obstante, como pode ser observado na regra de número 3:

 O encarceramento e outras medidas que excluam uma pessoa do convívio com o mundo externo são aflitivas pelo próprio fato de ser retirado destas pessoas o direito à autodeterminação ao serem privadas de sua liberdade. Portanto, o sistema prisional não deverá agravar o sofrimento inerente a tal situação, exceto em casos incidentais, em que a separação seja justificável, ou nos casos de manutenção da disciplina (CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA, 2016, p. 19).

Não obstante, conjuntamente com as regras gerais acerca do tratamento de reclusos, podem ser identificados outros instrumentos extraconvencionais que tratam de maneira específica do objeto de estudo desta pesquisa: a aplicação de medidas punitivas à menores de idade. Entre estes instrumentos, o mais importante no que cerne à administração da justiça de menores talvez sejam as “Regras de Pequim”, intituladas “Regras Mínimas das Nações Unidas para a Administração da Justiça de Menores”, de 1985. Que reforçam, no seu ponto 18.1, a necessidade de os países assumirem o compromisso internacional de estimular a utilização de sanções alternativas no tratamento das “condutas desviantes” daqueles menores em conflito com a Lei, de maneira a que o isolamento seja a última opção:

A autoridade competente pode assegurar a execução do julgamento sob formas muito diversas, usando de uma grande maleabilidade a fim de evitar, tanto quanto possível, o internamento numa instituição. Tais medidas, algumas das quais podem ser aplicadas cumulativamente, incluem: a) Medidas de proteção, orientação e vigilância; b) Regime de prova; c) Medidas de prestação de serviços à comunidade; d) Multas, indenização e restituição; e) Tratamento intermédio e outras medidas de tratamento; f) Participação em grupos de "counselling" e outras atividades semelhantes; g) Colocação em família idônea, em centro comunitário ou outro estabelecimento; h) Outras medidas relevantes (CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA, 2016).

A doutrina reconhece também a necessidade de enxergar a pena privativa de liberdade com outros olhos, desmistificando a esperança otimista e maniqueísta, que tem berço na criminologia positivista do século XIX, de que o cerceamento da liberdade, por si só, é capaz de “ressocializar” e reinserir o indivíduo no meio social do qual que fora retirado, necessita-se:

“aperfeiçoar a pena privativa de liberdade, quando necessária, e substituí-la, quando possível e recomendável. Todas as reformas de nossos dias deixam patente o descrédito depositado [...] na pena de prisão, como forma quase que exclusiva de controle social formalizado” (BITENCOURT, 1995, p. 14-15).

 O processo que deve ser seguido é aquele que Baratta (2014) chama de “despenalização”, ou seja, “a substituição das sanções penais por formas de controle não estigmatizantes (sanções administrativas ou civis), e, mais ainda, o encaminhamento de processos alternativos de socialização do controle do desvio [...]” (BARATTA, 2014, p. 202). E, além disso, esforços devem ser despendidos para sanar as próprias condições que empurram os indivíduos, neste caso, os menores de idade, para a criminalidade, fatores sociais muito mais profundos que necessitam da atenção que a eles é negada, preferindo o Poder Público brasileiro adotar medidas que maquiem os problemas ao invés de verdadeiramente solucioná-los, pois como afirmou Beccaria (1996, p. 125):

É melhor prevenir os crimes do que ter de puni-los; e todo legislador sábio deve procurar antes impedir o mal do que repará-lo, pois uma boa legislação não é se não a arte de proporcionar aos homens o maior bem-estar possível e preservá-los de todos os sofrimentos que se lhes possam causar, segundo o cálculo dos bens e dos males desta vida.

Segundo dados do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) (2012), retirados do Programa Justiça ao Jovem, que entrevistou 1.898 adolescentes em cumprimento de medida de privação de liberdade em todas as regiões do país, na maior parte das regiões do Brasil, os atos infracionais cometidos pela maioria dos entrevistados foram crimes contra o patrimônio (roubo, furto, entre outros). Sendo que, neste ano (2012), a população menor de idade isolada em detrimento de cumprimento de sentença era de cerca de 20 mil. Em 2013 (COISSI, 2015), o número de menores privados de liberdade era de pouco mais de 23 mil, e em 2016, esse número beirava a casa dos 30 mil (REIS, 2016). O que mostra que, as medidas de isolamento têm sido aplicadas de maneira discricionária, sem considerar alternativas à pena de restrição da liberdade, pois como afirma Martins (2011, p.388):

[...] Sendo a internação uma modalidade de privação à liberdade, deve ter caráter excepcional e, por isso, como já preconizado na Constituição e delimitado no ECA, sua aplicação deve obedecer a três princípios: brevidade, excepcionalidade e respeito à condição peculiar de pessoa em desenvolvimento, conforme dispõe o artigo 121. A medida de privação de liberdade deve ser a última opção, lógica inversa da que ainda prevalece no âmbito penal [...].

Portanto, deve-se procurar mudar a direção na qual as instituições penais brasileiras caminham no que cerne à administração da justiça de menores de idade, pois os atuais caminhos perseguidos além de serem ineficientes também violam a dignidade da pessoa humana do menor, dignidade esta reconhecida pela CF/88, pelo ECA e pelos instrumentos convencionais e extraconvencionais do ordenamento jurídico da sociedade internacional. Para tanto, necessita-se que os mecanismos jurisprudenciais interamericanos sejam movimentados a condenar as violações por parte do Brasil ao princípio da intervenção penal mínima na condução das medidas punitivas aplicadas à menores de idade no país, tópico que fora explorado na sessão posterior.


2. O PAPEL DO SISTEMA REGIONAL INTERAMERICANO E A NECESSIDADE DE RESPONSABILIZAÇÃO DO ESTADO BRASILEIRO:

Já fora demonstrado, na sessão anterior, de que maneira o Brasil viola diretamente as regras e princípios internacionais e, também, seus documentos normativos internos, relativos à administração da justiça de menores em matéria de execução penal, pretende-se então, nesta divisão do presente trabalho, identificar o papel do sistema interamericano na região a ele incumbida de monitorar e demonstrar a necessidade e possibilidade de punição do Estado brasileiro perante ao sistema, em matéria contenciosa, pelos abusos por ele perpetrados.

Além do sistema global de proteção dos direitos humanos, que se vê representado principalmente por meio da ONU e de seus órgãos competentes, recentemente na história, pôde ser visto o nascimento e fortalecimento dos chamados sistemas regionais de proteção, que, aliados ao sistema global, objetivam responder as necessidades de monitoramento da proteção dos direitos humanos e garantia destes à nível regional, agindo, teoricamente, de maneira mais efetiva e legítima (MAZZUOLI, 2016). No entanto, vale reforçar que, como reitera Piovesan (2015), o sistema global e os regionais não são incompatíveis e dicotômicos, mas sim complementares, compondo um só instrumento universal de proteção dos direitos humanos.

Dentre os sistemas regionais atualmente existentes, o sistema interamericano é aquele no qual o Brasil se encontra inserido, geograficamente e jurisdicionalmente falando. O sistema tem sua origem histórica com a formalização da Carta da Organização dos Estados Americanos, em 1948, e, consolidou seu arcabouço jurídico a partir da elaboração da Convenção Americana de 1969 (MAZZUOLI, 2016), que entrou em vigor em 1978 e reconhece, primordialmente, um rol de direitos similares aqueles já elencados pelo Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos (PIOVESAN, 2015). Posteriormente, em 1988, o sistema também incorpora outras categorias de direitos a partir do Protocolo Adicional à Convenção Americana em Matéria de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (MAZZUOLI, 2016).

No entanto, deve-se levar em conta que o sistema regional interamericano, apesar de ter aparato jurídico próprio, está longe de ser uma unidade jurisprudencial estanque, como afirma Piovesan (2017),  o diálogo entre as Cortes Europeia e Interamericana de Direitos Humanos tem sido patrocinado por permeabilidades e aberturas recíprocas, e, a partir dos processos de interlocução e “empréstimos” jurisprudenciais, cada um destes sistemas adquire a possibilidade de refinar e alargar suas jurisprudências, fortalecendo a capacidade de responder de maneira mais efetiva às mais diferentes violações aos direitos humanos (PIOVESAN, 2017).

O Brasil, consoante à Ramos (2017), aderiu à Convenção Americana em 1992, aceitando também sua cláusula facultativa de jurisdição obrigatória referente à Corte Interamericana, e promulgou a Convenção por meio do Decreto nº 678, do mesmo ano. Deve-se reforçar que, a jurisprudência do sistema interamericano é complementar à do Brasil, e de forma alguma estabelece uma proteção supletória à do Direito interno, pois como salienta Mazzuoli, isso significa que:

[...] Não se retira dos Estados a competência primária para amparar e proteger os direitos das pessoas sujeitas à sua jurisdição, mas que nos casos de falta de amparo [...] pode o sistema interamericano atuar concorrendo para o objetivo comum de proteger determinado direito [...]” (MAZZUOLI, 2016, p. 975).

No entanto, quando o Estado falha em garantir e proteger determinado direito, é competência expressa dos órgãos responsáveis, neste caso o sistema interamericano, em cobrar ações das entidades estatais para com a instituição do direito lesado e posterior reparação das vítimas. Atualmente, de acordo com Cretella Neto (2013), o sistema regional interamericano conta com dois órgãos responsáveis pelo monitoramento e implementação das normativas relativas aos direitos humanos nas Américas: a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIADH), de 1960, e a Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), de 1979[2].

Assim sendo, reconhece-se que, no momento em que o Estado brasileiro depositou seu comprometimento - a partir da ratificação da Convenção Americana e aceitação da cláusula facultativa de jurisdição obrigatória da CIDH - para com o respeito e promoção dos direitos humanos em seu território, o país se vê sujeito às recomendações e decisões do sistema interamericano, sendo este responsável pelo incentivo ao controle de convencionalidade das leis (no ordenamento jurídico interno) e por não se limitar apenas à observação dos direitos elencados pela Convenção, mas também devendo respeito aos princípios e normas gerais de direitos humanos no plano do direito internacional, pois como enuncia Piovesan (2017, p. 158), “[...] a Corte não efetua uma interpretação estática dos direitos humanos enunciados na Convenção Americana, mas, tal como a Corte Europeia, realiza interpretação dinâmica e evolutiva, considerando o contexto temporal e as transformações sociais, o que permite a expansão de direitos”.

Porém, críticas podem surgir, alegando o falso pretexto de que o Brasil só pode ser punido pela violação de tratados por ele acordados no cenário internacional, e que, normas de cunho não-vinculativas, ou extraconvencionais, como as Regras de Mandela e as Regras de Pequim não seriam, por si próprias capazes de invocar a responsabilidade internacional do Brasil perante uma corte internacional. No entanto, há vários exemplos de invocação de normas extraconvencionais na aplicação da proteção internacional dos direitos humanos em julgados do próprio Supremo Tribunal Federal (STF) e de outros órgãos jurisprudenciais internos:

[...] na ADIn 3.741, Rel. Min. Ricardo Lewandowski (Declaração Universal de Direitos do Homem); HC 81.158-2, Rel. Min. Ellen Gracie (Declaração Universal dos Direitos da Criança – 1959); HC 82.424-RS, Relator para o Acórdão Min. Maurício Corrêa (Declaração Universal dos Direitos Humanos); RE 86.297, Rel. Min. Thompson Flores (menção à Declaração Universal dos Direitos do Homem); ADIn 3.510, Rel. Min. Carlos Britto (no voto do Min. Ricardo Lewandowski menção à Declaração Universal sobre Bioética) [...] Chega-se ao ponto de existirem exemplos de invocação, como vinculantes, de diplomas internacionais da soft law, que, em tese, não vinculariam o Brasil [...] (RAMOS, 2016, p.236).

Ou seja, a própria jurisprudência nacional brasileira reconhece a obrigação do Brasil em observar as normas e princípios gerais acerca dos direitos humanos, sendo estas normas e princípios alocados ou não em instrumentos convencionais, abrindo espaço para a concretização efetiva das normas mais favoráveis à implementação da dignidade humana em níveis regionais e internacionais.

Não obstante, outra objeção possível contra a admissibilidade do caso, é a de que, conforme o artigo 46 da Convenção Americana, uma petição acerca da violação de direitos humanos só pode ser julgada como procedente caso tenham sido interpostos e esgotados todos os recursos da jurisdição interna, e, reconhece-se que no Brasil, ainda não há trâmite processual em curso acerca das violações aqui dispostas.

Porém, conforme bem pontuou Mazzuoli (2016), no parágrafo segundo do mesmo artigo (46) da Convenção, reconhece-se que a regra de esgotamento prévio da jurisdição interna não se aplica aos casos de: não existir na legislação interna o devido processo legal para a proteção do direito que alegue-se ter sido violado (grifo nosso); não se houver permitido o acesso aos recursos da jurisdição interna ou houver demora injustificada na decisão acerca dos recursos peticionados. Ou seja, reconhece que, o Estado brasileiro ao não oferecer as vias jurisprudenciais necessárias para a responsabilização do país pelas violações por ele cometidas em matéria de execução penal de medidas punitivas a menores de idade em conflito com a Lei, abre espaço para a atuação necessária do sistema interamericano para com a restituição dos direitos lesados na questão em análise. Assim sendo, entende-se que a responsabilidade internacional do Estado não depende exclusivamente do esgotamento dos recursos internos, como afirmara Trindade (2017, p. 280-281):

[...] O parecer de que o surgimento da responsabilidade internacional (distinto de sua implementação) não depende do esgotamento dos recursos internos – a teoria processual – foi em diversas ocasiões expressamente endossado por um número considerável de publicistas influentes.

 Resta agora, o sistema interamericano movimentar seus mecanismos em busca da responsabilização do Estado brasileiro frente às violações ao princípio da intervenção penal mínima, reconhecido internacionalmente, no que tange à aplicação de medidas punitivas a menores de idade no país, buscando a adequação dos processos de administração da justiça brasileira às normas internacionais de direitos humanos.


CONSIDERAÇÕES FINAIS

Esta pesquisa teve por objetivos identificar como se dão as violações ao princípio da intervenção penal mínima nos casos de cerceamento de liberdade de menores de idade e de que maneira o Brasil pode ser responsabilizado frente ao sistema interamericano devido a essas violações.

Não obstante, foi possível reconhecer que os órgãos responsáveis pela administração da justiça em matéria de crimes perpetuados por menores de idade no Brasil, desrespeitam, de maneira explícita, o princípio de intervenção penal mínima, ignorando o fato de que a pena privativa de liberdade deve ser utilizada apenas em casos de extrema necessidade, o que mostra a inclinação das instituições penais brasileiras em direção ao controle social da pobreza, impedindo que medidas alternativas ao cerceamento da liberdade possam ser aplicadas ao tratamento das condutas de menores em conflito com a Lei no Brasil, de maneira a que o número de punições que comportam o isolamento/internação só tem aumentando no país nos últimos anos.

Fora identificado também que, ao violar os princípios supracitados, que se encontram em ambas as Regras de Pequim e de Mandela, o Brasil pode sim ser responsabilizado por seus atos, mesmo sendo estas regras de caráter extraconvencional, no entanto, o que pode se observar, é uma completa negligência ou inobservância jurisprudencial do sistema regional interamericano acerca da matéria em análise, tendo este dispendido poucos esforços em investigar as violações cometidas pelo Estado brasileiro na elaboração de medidas punitivas impostas à menores de idade em conflito com a Lei no país, o que traz à tona a necessidade da sociedade civil organizada, assim como de outros Estados-membros da OEA, em acionar a jurisdição da CIADH e da CIDH, para que possam analisar o caso aqui apresentado e, acertadamente, julgá-lo como sendo precedente.


REFERÊNCIAS

ANCED. SISTEMA DE JUSTIÇA JUVENIL: O MODELO BRASILEIRO. In: TRENTIN, Melisanda; CEDECA, Luciano Mendes D. (Org.). Justiça Juvenil: a visão da ANCED sobre seus conceitos e práticas, na perspectiva dos Direitos Humanos. São Paulo: ANCED, 2007. p. 77-87. Disponível em: <http://www.anced.org.br/wp-content/uploads/2014/05/Justica-Juvenil.pdf>. Acesso em: 11 dez. 2017.

BARATTA, Alessandro. Criminologia Crítica e Crítica do Direito Penal: introdução à sociologia do direito penal. Rio de Janeiro: Revan, 2014.

BECCARIA, Cesare. Dos delitos e das penas. Rio de Janeiro: Ediouro, 1996.

BITENCOURT, Cezar Roberto. Juizados especiais criminais e alternativas à pena de prisão. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1995.

BRASIL. Lei nº 7.210, de 11 de julho de 1984. Institui a Lei de Execução Penal. Brasília, 13 jul. 1984. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L7210compilado.htm>. Acesso em: 14 dez. 2017.

COISSI, Juliana. Apreensão de menores cresce 38% em 5 anos: número chega a 23 mil. 2015. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2015/04/1616282-apreensao-de-menores-cresce-38-em-5-anos-numero-chega-a-23-mil.shtml>. Acesso em: 11 dez. 2017.

CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Panorama Nacional: A Execução das Medidas Socioeducativas de Internação. 2012. Disponível em: <http://www.cnj.jus.br/images/programas/justica-ao jovem/panorama_nacional_justica_ao_jovem.pdf>. Acesso em: 14 dez. 2017.

CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Regras de Mandela: Regras Mínimas das Nações Unidas para o Tratamento de Presos. Brasília: CNJ, 2016. Disponível em: <http://carceraria.org.br/wp-content/uploads/2016/06/Regras-de-Mandela-1.pdf>. Acesso em: 13 dez. 2017.

CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Regras de Pequim: regras mínimas das Nações Unidas para a administração da justiça de menores. Brasília: CNJ, 2016. Disponível em: <http://www.cnj.jus.br/files/conteudo/arquivo/2016/09/2166fd6e650e326d77608a013a6081f6.pdf>. Acesso em: 13 dez. 2017.

CRETELLA NETO, José. Teoria geral das organizações internacionais. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2013.

LEWANDOWSKI, Ricardo. Apresentação. In: CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Regras de Mandela: Regras Mínimas das Nações Unidas para o Tratamento de Presos. Brasília: CNJ, 2016. p. 9-10. Disponível em: <http://carceraria.org.br/wp-content/uploads/2016/06/Regras-de-Mandela-1.pdf>. Acesso em: 13 dez. 2017.

LOPES, Luciano Santos. A contribuição de Alessandro Baratta para a criminologia crítica. De jure: revista jurídica do Ministério Público do Estado de Minas Gerais, n.11, p.69-80, jul./dez., 2008. Disponível em: <https://aplicacao.mpmg.mp.br/xmlui/bitstream/handle/123456789/97/contribuiçao%20de%20Alessandro_Lopes.pdf?sequence=1> Acesso em: 13 dez. 2017.

MARTINS, Carla Benitez. O (DES)CONTROLE SOCIAL DO CAPITAL: contribuições para uma análise dialética da criminalização da juventude popular brasileira. 2011. 471 f. Dissertação (Mestrado) - Curso de Direito, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2011.

MAZZUOLI, Valério de Oliveira. Curso de Direito Internacional Público. 10. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016.

PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e Justiça Internacional. 7. ed. São Paulo: Saraiva, 2017.

PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional. 15. ed. São Paulo: Saraiva, 2015.

RAMOS, André de Carvalho. Curso de direitos humanos. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2017.

RAMOS, André de Carvalho. Teoria geral dos direitos humanos na ordem internacional. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2016.

REIS, Thiago. Em 1 ano, dobra nº de menores cumprindo medidas no país, diz CNJ. 2016. Disponível em: <http://g1.globo.com/politica/noticia/2016/11/em-1-ano-dobra-n-de-menores-cumprindo-medidas-no-pais-diz-cnj.html>. Acesso em: 11 dez. 2017.

ROIG, Rodrigo Duque Estrada. Execução penal: teoria crítica. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2017.

TRINDADE, Antônio Augusto Cançado. Princípios do direito internacional contemporâneo. 2. ed. Brasília: FUNAG, 2017.


Notas

[1] Menor é qualquer criança ou jovem que, em relação ao sistema jurídico considerado, pode ser punido por um delito, de forma diferente da de um adulto. No Brasil, são considerados menores aquelas e aqueles com menos de 18 anos de idade.

[2] Segundo Mazzuoli (2016), a CIADH, tem como principais objetivos estimular a consciência dos direitos humanos nos povos da América; formular recomendações aos Estados-membros da OEA; solicitar informações junto aos governos acerca das medidas adotadas em matéria de direitos humanos, assim como preparar estudos e relatórios convenientes ao desempenho de suas funções. Enquanto a CIDH é o órgão jurisdicional de competência consultiva e contenciosa, responsável pela resolução dos casos de violação de direitos humanos perpetradas pelos Estados-membros da OEA.


Autor


Informações sobre o texto

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SCHERF, Erick da Luz. Princípio da intervenção penal mínima e a privação da liberdade de menores de idade no Brasil. Das violações ao papel do Sistema Interamericano de Direitos Humanos. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 24, n. 5790, 9 maio 2019. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/67916. Acesso em: 29 mar. 2024.