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A teoria finalista da ação

A teoria finalista da ação

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I - INTRODUÇÃO

            Para ter uma exata noção da revolução causada pelo advento da teoria finalista da ação, fundamental é que, ao menos de passagem, deitem-se os olhos pelo histórico da evolução do conceito de tipicidade (1), do final do século passado até os dias de hoje, tendo-se em vista o fato de incidirem, precisamente sobre este aspecto, as principais modificações oriundas das idéias em apreço.

            O presente estudo, limitado por sua própria proposta de concisão, tem em vista uma análise da evolução dos conceitos que nortearam as modificações ocorridas nesse primeiro fator de constatação do fato punível (a tipicidade (2)); ainda que perfunctoriamente, e, apenas no que diga respeito ao tema abordado, expor-se-á considerações sobre as diferenças entre essa e a ilicitude; e, finalmente, tecer-se-á breves palavras acerca das modificações havidas no campo da culpabilidade: o eventual juízo de censura, quanto a possuir ou não o agente, por ocasião do cometimento do injusto, a consciência da ilicitude em potência; e o dolo e a culpa fixando-se no tipo penal.


2 - A TIPICIDADE

            O conceito de tipicidade evoluiu desde o início desde século por várias etapas (cinco). Todas as teorias que trataram do tema são conseqüência do princípio da reserva legal dos crimes, ou da legalidade - que tem antecedentes em Montesquieu e Beccaria -, posteriormente consagrado por Feuerbach (3), e erigido no Brasil à condição de dogma constitucional ( art. 5º XXXIX da CF): "não há crime sem lei anterior que o defina, não há pena sem prévia definição legal".

            No final do século passado não tinham os juristas, quanto à definição de crime, a preocupação de dissecar conceitos - sequer de produzir eventual divisão analítica dos mesmos. Assim, por exemplo, na Universidade de Messina, na Itália, o professor Fernando Púglia, inspirado em Carrara, ensinava: "É doutrina universalmente ensinada que para haver crime é preciso o concurso de dois elementos, um chamado moral (causa segundo alguns, força moral subjectiva segundo outros), ou elemento psyquico, digamos nós para maior exatidão, o outro chamado material (effeito segundo alguns, força physica subjectiva e objectiva segundo outros), ou elemento physico, segundo nós. Estes dois elementos devem estar em íntima relação entre si, em relação de causa a effeito, tanto que o segundo elemento não deve ser senão a apparição do primeiro no mundo da realidade." (4)

            E Garofalo, expoente da chamada escola positivista, ao citar Vaccaro, asseverava: "...o criminalista positivo não pode conceber o delito senão como acção prohibida sob a ameaça de uma pena." (5) Depois completava: "Do mesmo modo que a explosão de uma arma obedece a certas leis de physica, de chimica e de mechanica, assim o poder constituido, prohibindo ou não este ou aquelle acto, obedece a certas leis naturaes da sociedade. D’aqui a conclusão de que todo o acto prohibido com a ameaça de pena pelo poder constituido é um delicto natural ou antes que o único delicto natural que existe é precisamente aquelle que as leis consideram como tal." (6)

            Depois, em 1942, diante da evolução da teoria do delito, e em razão da sistematização dos conceitos que a informam, Luis Jimenez de Asua dizia: "Desde este punto de vista, he definido el delito, com fines docentes e de aplicacion forense del derecho, diciendo que es el acto típico, antijuridico, imputable, culpable, sancionado com una pena y conforme a las condiciones objetivas de punibilidad." (7) Mais adiante:"Conforme se desprende de la definición dada, los caraceres del delito son: actividad, tipicidad, antijuridicidad, imputabilidad, culpabilidad, condicionalidad objectiva y punibilidad." (8)

            O primeiro estudioso a tratar do assunto, buscando enquadrar em termos jurídicos o princípio político da reserva legal, foi Ernest Beling, em 1906. (9)

            Assim, ao formular a sua teoria da tipicidade, esse emérito jurista alemão foi o pioneiro a dizer que dentre os elementos componentes da estrutura analítica do crime estariam a tipicidade, a ilicitude e a culpabilidade. Em Beling o crime passa a ser a ação típica, ilícita e culpável. Antes dele o delito era apenas um fato ilícito e culpável, ao qual se seguia uma sanção penal. Disse mais: a tipicidade, que agora deveria ser acrescentada ao conceito analítico, não se confundia com o crime, era tão-somente um de seus elementos. O termo por ele usado tinha origem numa expressão contida no Código Penal Alemão: tatbestand - tipo penal (na Itália o termo usado era fattispecie). A palavra tatbestand era então tomada como sinônimo de delito (em sua integralidade); Beling realizou a correção: na verdade, o vocábulo significava espécie de fato, na sua tradução literal.

            Afirmava ser o tatbestand apenas uma descrição abstrata de uma conduta passível de ser punida; não seria um agir humano, mas mera imagem reguladora, à qual dever-se-ia ajustar a ação para tornar-se típica; a tipicidade seria, portanto, puramente descritiva, estritamente objetiva e valorativamente neutra. Não deveriam, pois, os tipos penais, que denominava "puros", conter elementos subjetivos/valorativos. Somente dessa forma, segundo aquele gênio tedesco, poder-se-ia prestigiar o princípio da reserva legal (10). Afirmava que os tipos que assim não se constituíssem seriam anômalos.

            A tipicidade era o ponto de partida de sua teoria dogmatico-jurídica, que definia da seguinte maneira (11): "qualidade do fato, em virtude da qual este se pode enquadrar dentro de alguma das figuras de crime descritas pelo legislador mediante um processo de abstração de uma série de fatos da vida real".

            Posteriormente (1915) o também penalista germânico Max E. Mayer (12) formulou o conceito que melhor se firmou acerca da tipicidade. Foi a teoria mais tradicional de sua época. Mayer introduziu modificações no conceito formulado por Beling: não concordava que a tipicidade fosse meramente descritiva, valorativamente neutra e puramente objetiva. Argumentava que, se fosse verdadeira a afirmação de que seriam "tipos puros" somente os que encerrassem essas três características, haveria em todo o Código Penal pouquíssimos tipos que tais. Segundo ele, ao observar-se o CP Alemão, toda a parte inicial conteria quatro ou cinco tipos assim formados: 1% do total ; 99% seriam tipos anômalos, com elementos subjetivos e normativos. Asseverava ser praticamente impossível descrever a conduta sem recorrer aos elementos subjetivos e normativos: seriam, portanto, raríssimos os "tipos puros". Aquilo que Beling dava como sendo a regra - "tipos puros" - era, na verdade, a exceção. Afirmava que a tipicidade não poderia ser "meramente descritiva e valorativamente neutra", porque na tipicidade já se inferiria um juízo de valor, ainda que preliminar. Em princípio, a tipicidade seria descritiva, mas já implicaria num juízo de ilicitude. Dessarte, se o fato fosse típico, já haveria uma presunção de ilicitude; usou a expressão latina "ratio cognoscendi". A tipicidade seria, pois, a razão de se conhecer da ilicitude. Haveria, inicialmente ao menos, uma ilicitude formal - logo a ação não poderia ser "valorativamente neutra": a conduta seria passível de ser punida, em havendo a ilicitude material e culpabilidade do autor.

            Em 1926 Edmund Mezger (13), mais um expoente da brilhante escola alemã, entra em choque frontal com Beling e parcial com Mayer.

            Suas idéias, embora não tenham sido acompanhadas pela maioria dos estudiosos de seu tempo, tiveram alguns seguidores na Alemanha. Mezger substituiu a expressão "ratio cognoscendi", de Mayer, pela expressão "ratio essendi" (razão de ser). A tipicidade seria, assim, a razão de ser da ilicitude, não mera presunção desta.

            Dizia Mezger que o fato típico já seria ilícito, modificando, desta forma, o próprio conceito de crime. Afirmava ser o crime, uma ação tipicamente ilícita e culpável: não haveria, assim, tipicidade sem ilicitude. Segundo seu pensamento, também não se confundiam os conceitos de tipicidade e ilicitude - que eram diferentes, ainda que estritamente ligados. Por isso, falava em conduta humana tipicamente ilicíta: entendia poder existir ilicitude sem tipicidade (extrapenal), mas não tipicidade sem ilicitude. E a ilicitude, para ter conseqüência penal, teria, necessariamente, de possuir o atributo da tipicidade: a ilicitude penal seria, portanto, descontínua (só interessava no tipo); a extrapenal, ao contrário, seria contínua, uma vez que não havia a necessidade de que se vinculasse a uma conduta anteriormente descrita pela lei incriminadora.

            A tipicidade, dessa forma, encerraria, já, neste primeiro momento, um juízo de valor e traria no seu bojo o atributo da ilicitude. Por isso se praticasse o agente um fato subsumido em uma conduta incriminada justificadamente, excluída estaria não somente a ilicitude da ação, mas a própria tipicidade.

            Posteriormente Beling (14) vem a reformular seu pensamento.

            Pouca repercussão no mundo jurídico teve, entretanto, essa resposta às críticas que foram direcionadas à sua teoria da tipicidade. Basicamente o jurista vai distinguir entre o tatbestand (tipo penal) e o chamado delitstypus (figura delitiva). O tatbestand seria pura abstração, uma imagem reguladora, que nem sequer entraria no conceito de crime e, como tal, deveria ser meramente descritiva, valorativamente neutra e puramente objetiva. Seria a idéia do que seja o fato criminoso, não o crime. O delitstypus é a abstração concretizada numa ação humana; este tem seus componentes subjetivos, normativos, e envolvem um juízo de censura. Dizia Beling: há um tatbestand básico, puramente objetivo (atingir a vida de alguém, p. ex.), dele originar-se-iam inúmeras figuras delitivas: infanticídio, homicídio, aborto; estes seriam delitstypos.

            Finalmente, na década de 30, também na Alemanha, sobressaiu a idéia do penalista Hanz Welzel (15), o qual, conforme se verá com mais vagar no próximo capítulo, insurgiu-se contra o modo como até então os conceitos de ação humana e resultado incidiam na tipicidade. Assim, contrapondo-se à teoria clássica, formulou a teoria finalista da ação.

            O tipo finalista, como queria o insigne mestre alemão, no sentir de Juarez Tavares (16), seria "representado como ação tipificada, ou melhor, como a formalização jurídico-penal dos componentes da ação, acrescidos de elementos caracterizadores de cada delito em espécie e constituindo, por conseqüência, a matéria da proibição."

            Para ele, a tipicidade comportava duas faces ou duas tipicidades: uma objetiva - externa (o que está descrito no código) - e outra subjetiva - interna -, que lhe está implícita (17).

            Como conseqüência direta da concepção finalista, a ação humana passou, então, a ser vista como um todo indivisível, no seu aspecto interno e externo. O dolo, agora, passa a ser o tipo penal subjetivo. Daí a conseqüência: o fato pode ser objetivamente típico e subjetivamente atípico. Um exemplo é o erro de tipo (18), em que falta tipicidade subjetiva. O contrário também pode ocorrer, como é o caso do crime impossível, em que o fato será objetivamente atípico e subjetivamente típico (tais exemplos serão vistos mais detidamente no próximo capítulo).

            Ao analisar o conceito de delito à luz da ação final, assim asseverou Ronaldo Tanus Madeira (19): "Ao se afastar das propostas positivistas e naturalistas, o finalismo tenta reconstruir o conceito de ação como ‘exercício de atividade final’. A vontade na ação não deve ser considerada, apenas, como voluntariedade, causadora de uma modificação no mundo exterior. O finalismo procura acentuar e fundamentar o seu conceito de ação no conteúdo final da vontade da ação. E, como parcela do ser real, parte do ser real pertence a uma categoria existencial não afetada pelo processo causalista. (Ponto de vista ontológico em contraposição ao ponto de vista lógico-formal da concepção clássica e neo-clássica da ação.) A ação é considerada na sua fase pré-jurídica, e, mesmo neste momento anti-normativo, ela está carregada de sentido final. Vontade e finalidade passaram a ser uma só coisa."


3 - A TEORIA FINALISTA DA AÇÃO

            O primeiro aspecto que deve ser levando em conta para que se tenha uma perfeita compreensão do monumental avanço introduzido pelo advento da teoria finalista da ação - que inspirou a reforma penal brasileira de 1984 e a conseqüente alteração da Parte Geral do Código Penal -, é no que concerne à observação do fato natural e do fato típico.

            E isso porque, na análise do enquadramento típico, do ponto de vista do nexo causal e do resultado, a grande diferença entre os enfoques dados por aquela e pela teoria clássica (20), diz respeito com a tônica: enquanto, sob a ótica causal-naturalista, esta se estabelece no resultado, à luz do finalismo, se fixa na ação. Esta, sob o enfoque causal, definia-se como movimento corpóreo ou ausência dele, dominado ou não pelo querer, causando, ou não impedindo, uma alteração no mundo exterior. Os dois requisitos fundamentais eram o desejo e a sua manifestação externada. A volição atuaria apenas como um impulso. Aquilo que determinara o movimento corpóreo ou a sua ausência seria meramente a vontade como força propulsora. Na ausência da voluntariedade estariam presentes as excludentes da ação, que são os atos reflexos, os praticados em estado de inconsciência e a coação física absoluta.

            Na concepção dita tradicional, a vontade entraria na definição de ação, como já dito, somente como força motriz; quer dizer, não haveria a necessidade de se analisar o aspecto da finalidade a que se dirigia essa intenção: o agente atuaria ou se omitiria, através de um movimento corpóreo. Não interessava ao conceito de ação, segundo os clássicos, o motivo da conduta. Não se estaria, destarte, frente a matéria de tipicidade, mas em nível de culpabilidade. Nesse caso, se o núcleo do querer do agente fosse o de obter determinado resultado típico, seria culpado a título de dolo. Sendo este, entretanto, extratípico, e o bem jurídico tutelado atingido por imprudência, imperícia ou negligência, seria culpado a título de culpa. O conteúdo da vontade não integrava o conceito de ação e nem de fato típico. Para que houvesse ação e que fosse ela adaptada ao fato típico, bastaria o seu impulso. Sob este enfoque, seria suficiente para a configuração da tipicidade que este ato tivesse sido dominado pela vontade: o núcleo não interessava, seria matéria de culpabilidade.

            Foi contra essa visão, como já afirmamos, que, na década de 30, insurgiu-se Welzel, o responsável pelos conceitos que desaguaram no chamado Finalismo.

            Dizia que a ação humana seria composta de movimento corpóreo ou ausência deste, dominado ou não pela vontade, sempre dirigida a uma finalidade; não se poderia, portanto, tirar desse agir o seu objetivo. Já no primeiro momento a conduta do homem seria indivisível - como interpreta Walter Coelho (21) - e deveria ser levada em conta na sua integralidade - em seu aspecto interno e externo. Era, portanto, indiscutível que a ação humana fosse o exercício de uma atividade finalística (22). Seria um comportamento consciente, sempre dirigido a um fim almejado pelo agente.

            O professor Luiz Luisi, em obra magistral (23), assim interpretou, a nosso ver de maneira insuperável, a justificativa do criador do finalismo: "Ao apreender a essência dos atos do querer e do conhecimento do homem - postos como objetivas realidades, na posição de objetos do conhecimento - verifica-se que o conhecer e o querer humanos se voltam sempre para uma meta; visam um objetivo. O conhecimento é conhecimento de algo, posto ante o sujeito. O querer é querer algo posto como fim pelo sujeito. A característica ontológica, portanto, do conhecer e do querer humanos está nesta ‘intencionalidade’, isto é, nesta ‘finalidade’, que é sempre, por força da normação ôntica, visada pelo agente. A ação, portanto, como decorrência desta estrutura ontológica, é sempre, enquanto autenticamente humana, ‘exercício de atividade final’. "

            Miguel Reali Jr. afirma, também, que a ação humana é ontologicamente finalista, integrando-a a intencionalidade, por força de sua própria estrutura. Diz mais, o mestre paulista: "Além do caráter finalístico da ação, se impõe, também, a causalidade como uma exigência do real". (24)

            Assim, pode-se dizer que, segundo o finalismo, o fato natural é a ação finalisticamente direcionada a uma vontade (típica ou extratípica). A finalidade da ação, o conteúdo do querer, nada tem a ver com a culpabilidade: integra a própria ação. Por isso que nessa concepção dolo e culpa nada têm a ver com culpabilidade, estão no fato típico, na ação típica.

            Passa-se, dessarte, a ter uma concepção normativa pura: é que não se indaga mais acerca de culpabilidade na análise do conteúdo da vontade. A ação é dirigida a um resultado no mundo exterior (não em sentido jurídico, mas em sentido naturalístico).

            Por isso, o fato natural será típico, desde que a ação dirigida a um objetivo que o motive, o seu produto e o seu nexo de causalidade se ajustem a um tipo penal. Por conseguinte, sendo a finalidade inseparável da ação, já, no primeiro momento, ter-se-á configurada não apenas uma ação típica, mas uma ação dolosa ou culposa. A ação - que é inseparável de sua finalidade - entrará, dessa forma, em um tipo penal com a sua finalidade. Assim, se a finalidade for a de concretizar um tipo penal, como se disse, será uma ação dolosa. Se esta ação, contudo - com o seu objetivo -, não incorre na previsão legal, o conteúdo da vontade será extratípico; e se o resultado lesivo for causado por imprudência, imperícia ou negligência, o agente terá incorrido em um tipo culposo, (não quis, mas descumpriu a norma de ser atento): é que dolo e culpa passam a ser matéria de tipicidade e os tipos passam a ser dolosos e culposos. Conseqüentemente os elementos subjetivo e normativo saem da culpabilidade: a finalidade está no fato natural; dolo e culpa, no fato típico.

            Por isso é que o dolo passa a ser o elemento subjetivo de todos os tipos penais: é a vontade consciente de realizar a conduta típica. E a cada tipo penal objetivo - aquele descrito na lei - corresponde, sempre e necessariamente, um tipo penal subjetivo que lhe é congruente. A face externa de um homicídio, por exemplo, é matar um ser humano (tipo objetivo); e o tipo penal subjetivo é querer matar ou assumir o risco desse resultado. O tipo subjetivo está implícito em todos os tipos objetivamente considerados.

            Nos crimes culposos, entretanto, não sendo o conteúdo finalístico a vontade de concretizar o tipo penal, mas o de praticar uma ação extratípica, diz-se que não há elemento subjetivo (se houvesse, seria dolo), mas elemento normativo de um tipo penal aberto (a conduta não está descrita), que se vai configurar toda vez que for descumprida uma norma de ser atendo, cuidadoso e diligente. Nesse caso, não basta o resultado: o agente tem de ter-lhe dado causa ofendendo o bem penalmente protegido, porque descumpriu a norma de atenção, cuidado ou diligência, isto é, em razão de um elemento normativo do tipo.

            Mezger, ao formular essa noção, afirmou: "actua dolosa o culposamente el que se encuentra em tales referencias anímicas com respecto a sua acción que ésta aparece como expressión jurídicamente desaprobada de su personalidad". (25)

            E, sendo o dolo a vontade consciente de realizar os elementos do tipo penal, recepcionando a teoria finalista da ação, não mais faz referência o Código Penal ao chamado erro de fato, mas, em seu artigo 20, refere-se a o erro de tipo.

            Por isso, se o agente, por erro, incidir nos elementos do tipo, não sendo esta a sua vontade, será afastado o dolo: o erro de tipo vai afastar o tipo penal subjetivo. Estar-se-á frente a um fato objetivamente típico e subjetivamente atípico.

            Segundo Welzel, " exclui-se o dolo se o autor desconhece ou se encontra em erro acerca de uma circunstância objetiva do fato que deva ser abarcada pelo dolo e pertença ao tipo legal." (26)

            É que atua dolosamente, segundo Graf zu Dohna (27), numa definição singela, embora precisa, "quem sabe o que faz".

            A grande criação do finalismo, como antes referido, foi a de que, a partir de então, existem duas tipicidades: a objetiva e a subjetiva.

            Pode também acontecer o contrário, como no crime impossível, caso em que existirá atipicidade objetiva e tipicidade subjetiva. Assim, se o agente dispara tiros no cadáver de um desafeto, pensando matá-lo, a atipicidade é em concreto, pois existe o tipo penal de homicídio, apenas não se configurou o molde por ausência de objeto jurídico. Logo, o crime impossível é o oposto do erro de tipo.

            Prestando-se a esta mesma análise, porém com resultado diverso, traz-se o exemplo do crime putativo. Este se dá quando, por equívoco, pense alguém estar com a sua ação incidindo em um tipo penal. Desse modo, se o agente praticar, por exemplo, um incesto, com pessoa maior e capaz - figurando estar agindo de forma proibida -, haverá atipicidade subjetiva e objetiva. É que quer ele concretizar uma conduta que não é criminosa, ainda que pense o agente estar ofendendo a lei penal (o dolo é a vontade de incidir nos elementos do tipo penal!). Tem-se, no caso, duas atipicidades: objetiva, porque a conduta não é prevista na lei penal incriminadora; e subjetiva, porque tipicidade subjetiva é querer causar os elementos de um tipo, que, na situação em tela, não existe.

            Diametralmente oposto é o caso do erro de proibição (art. 21 do CP), a contemplar situações em que exista congruência, isto é, estejam presentes ambas as formas de tipicidade: objetiva e subjetiva. Verificado o erro quanto à ilicitude do fato - a incidir na antijuridicidade, podendo afastar a culpabilidade, uma vez superada a questão da tipicidade (sob pena de não se chegar aos segundo e terceiro momentos da análise, sob o prisma tripartite) -, concluir-se-á que o agente, por erro incidiu em conduta injusta. É que, ao sentir de Walter Coelho, a ilicitude - o segundo atributo da conduta punível - é, como a tipicidade, de fundamental importância para a caracterização do crime. Segundo o eminente professor gaúcho: "Assim como a ‘ação’ é o ‘núcleo’, a ‘tipicidade’, o ‘elemento descritivo’, a ‘ilicitude’ é a própria ‘essência’ da conduta delituosa (28).

            Importante se frise: o dolo que passou a ser o tipo penal subjetivo em todos os crimes, não é aquele da concepção causal, psicológico-normativo - consciência do fato e de sua potencial ilicitude e, mesmo assim, a vontade de praticá-lo. Esse elemento, agora, diz apenas com a parte interna da conduta - não se leva em conta a consciência da ilicitude do fato. Trata-se, somente, do dolo psicológico - "dolus naturalis". Não há, neste momento, a análise de elemento normativo (agiu certo ou errado?); interessa somente possuir o agente o conhecimento do evento e a vontade praticá-lo.

            Carlos Fontán Balestra (29) diz que o dolo, como elemento subjetivo, desenvolve-se num sentido tríplice. Segundo o autor argentino: " 1) De la exigencia de la intención, primitivamente requerida, se pasa a la voluntad del resultado. Por último, existiendo voluntad para la causa, resulta suficiente com la aceptación del resultado o asentimiento en el.

            2) Se advierte la diferencia entre los conceptos previsibilidad y previsión, requiriéndose este último para la existencia de dolo.

            3) No es preciso que el resultado sea previsto como cierto; es suficiente la previsón de la posibilidad, si ella no detiene al autor en su acción. Los resultados así acarreados se cargan al autor a titulo de dolo condicionado o eventual."

            Em conclusão, teremos na concepção causal-naturalista (causalidade-mecanicista), como elementos do fato típico: a ação ou omissão; o resultado e nexo causal - formadores do fato natural -, e a tipicidade.

            Na visão finalista (causalidade psicológica ou dirigida), o fato natural será composto de uma ação ou omissão dirigida a uma finalidade, resultado e nexo causal. O fato típico, por seu turno, consistirá em tipicidade, uma ação dolosa (tipo doloso) ou culposa (tipo culposo), resultado e nexo causal. Não existiria a necessidade de listar-se a tipicidade como um dos elementos do fato típico doloso: como já visto, o dolo não está na ação, mas na ação típica. Tal raciocínio, entretanto não pode ser aplicado ao fato típico culposo. Explica-se: pode haver culpa fora dos tipos penais (culpa civil).

            Por fim, embora novas visões já tendam a superar a teoria em apreço, como é o caso do sistema funcionalista, ou teleológico-racional, desenvolvido pelo grande Roxin (30), é de se afirmar ter se constituído o finalismo em um inegável avanço à teoria do delito. Sobre tal assertiva, assim se pronunciou o eminente Professor Juarez Tavares: "E, dogmaticamente, a colocação do dolo no tipo, que hoje é aceita até mesmo por não finalistas, trouxe enormes facilidades na construção do delito. Primeiramente, equacionou o problema da separação assistemática dos elementos subjetivos, que informam o ilícito, do dolo, para juntá-las num mesmo bloco. Tudo que é, assim, naturalisticamente subjetivo deve ser encarado de uma mesma forma. Depois, pôde-se obter um melhor enquadramento técnico da tentativa e do crime consumado, da autoria e da participação, do erro de tipo e do erro de proibição, como também, dosar-se adequadamente o caráter indiciário do tipo com relação à antijuridicidade." (31)


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Notas

            1 Mir Puig, Santiago. Introducion a las bases del derecho penal. 2ª ed. Editoria IB de F. Montevideo – Buenos Aires. Pg. 200.

            2 Weinmann, Amadeu de Almeida. Princípios de direito penal. Rio de Janeiro. Ed. Rio. 2004. Pgs. 208 e ss.

            3Mir Puig, Santiago. Ob. cit. pg. 254.

            4 Puglia, Fernando; Da tentativa; Lisboa; Livraria Classica Editora; 1921, p. 12.

            5 Garofalo, R.; Criminologia; Lisboa; Livraria Classica Editora; 1916, p. 67.

            6 Obra citada, p. 68.

            7 Asua, Luis Jimenez de; El criminalista; Buenos Aires; Editora La Ley; 1942, p. 29.

            8 Obra citada, p. 30.

            9 Luisi, Luiz; O Tipo penal, a teoria finalista e a nova legislação penal; Porto Alegre; Fabris; 1987, pp., pp. 15 - 16.

            10 Fernadez, Gonzalo D. Culpabilidad y teoria del delito. Montevideo - Buenos Aires. Editorial IB de F. 1995. Pg 24.

            11 Hungria, Nelson; Comentários ao Código Penal; Rio de Janeiro; Companhia Editora Forense. 4ª Edição; 1958, p. 21.

            12Ver Luisi, Luiz; obra citada, p. 17.

            13 Idem, p. 19.

            14 Idem, p. 21 - 22.

            15 Sobre o tema, consultar Welzel, Hans; El nuevo sistema del derecho penal; una introducción a la doctrina de la acción finalista; Madrid;. tradução em espanhol de José Cerezo Mir; Ed. 1964, p. 25 e seguintes.

            16 Tavares, Juarez; Teorias do delito; variações e tendências; São Paulo; Editora Revista dos Tribunais; 1980, p.64.

            17 Ver também Welzel, Hans. Estudios de derecho penal. - Estúdios sobre el sistema de derecho penal. – Causalidad y accion. – Derecho penal y filosofia. Montevideo- Buenos Aires. Editorial IB de F. 2003.

            18 Sobre o assunto ver Gomes, Luiz Flávio; Erro de tipo e erro de proibição; 3ª Edição; São Paulo; Editora Revista dos Tribunais; 1996, p. 138 e seguintes.

            19 Madeira, Ronaldo Tanus; Dolo e culpabilidade; Rio de Janeiro; Editora Liber Juris Ltda; 1991, p. 4.

            20 Sobre o tema v. Noronha, E. Magalhães; Direito Penal; Vol. 1; São Paulo; Saraiva; 1982, p. 106.

            21 Coelho, Walter; Teoria geral do crime; Porto Alegre; Sete Mares Editora; 1991, p.32

            22 Welzel, Hanz. Obra citada, pp. 25 - 26- 27.

            23 Luisi, Luiz; O tipo penal, a teoria finalista e a nova legislação penal; Porto Alegre; Fabris; 1987, p. 39.

            24 Reale Jr. Miguel; Teoria do delito; São Paulo; Editora Revista dos Tribunais; 1998, p.32.

            25 Mezger, Edmundo; Tratado, t.II; Strafrecht ein Studiebubuch, t. I, p. 110, apud Balestra, Carlos Fontán; El elemento subjetivo del tipo; Buenos Aires; Roque Demalpa Editor; 1957, p.100.

            26 Welzel, Hans; Derecho penal aleman - parte general. Tradução de Juan Bustos Ramires e Sérgio Yáñes Pérez; 11ª Ed. 1970, p.112.

            27 Apud Balestra, Carlos Fontán, obra citada, p.101.

            28 Coelho, Walter; Teoria geral do crime; Porto Alegre; Sete Mares Editora; 1991, p. 34.

            29 Balestra, Carlos Fontán, obra citada, p. 106.

            30 Roxin, Claus, Política criminal e sistema jurídico-penal. Tradução: Luís Greco. Rio de Janeiro. Renovar, 2002.

            31 Tavares, Juarez, obra citada, p. 86.


Autor

  • César Peres

    César Peres

    Advogado criminalista em Porto Alegre (RS). Professor de Direito Penal e de Direito Processual Penal na ULBRA de Gravataí (RS). Especialista e Mestre em Direito. Presidente da Associação dos Criminalistas do Rio Grande do Sul (Acriergs).

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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

PERES, César. A teoria finalista da ação. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 10, n. 699, 4 jun. 2005. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/6797. Acesso em: 28 mar. 2024.