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Políticas públicas, ativismo judicial e proteção à saúde: breves considerações

Políticas públicas, ativismo judicial e proteção à saúde: breves considerações

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Em breves linhas, o artigo traça parâmetros e indica justificativas para o ativismo judicial como meio de democrático para concretização de políticas públicas, principalmente ao direito à saúde.

1 – POLÍTICAS PÚBLICAS E DIREITO ADMINISTRATIVO. 

Tema relevante no Direito Administrativo é a possibilidade de determinação do cumprimento de políticas públicas por decisão judicial. Com efeito, a política aplicada está intimamente relacionada com o posicionamento político primário adotado pelo grupo que foi legitimamente eleito.

A democracia e o sistema representativo fazem com que a soberania popular seja exercida principalmente através de representes eleitos. A eleição, no entanto, expõe a escolha, pela maioria, de políticas que serão aplicadas no próximo mandato. A atuação da Administração Pública, apesar de ser legalmente impessoal, leva o posicionamento de grupos de poder. Tais grupos estão divididos nas mais diversas áreas, podendo ser econômicos, políticos, religiosos e sociais. 

Essa pressão é legítima e até mesmo essencial, pois não se vive em comunidade sem política. Mas é preciso ter em mente que a democracia em seu sentido contemporâneo não se limita a ser um governo da maioria para a maioria, exigindo o respeito aos direitos fundamentais das minorias. Pensar-se ao contrário significa querer instaurar uma ditadura da maioria, o que, por certo, não pode ser levado adiante de acordo com o neoconstitucionalismo. Este movimento tem dominado nos últimos anos o cenário jurídico ocidental.

Como o Executivo e o Legislativo não possuem a imparcialidade necessária, principalmente por conta dos grupos políticos que exercem os mandatos eletivos, ganha importância o Poder Judiciário, no exercício do chamado ativismo judicial. 


2 – SOCIEDADE E LINGUAGEM.

O homem é um animal social. A sua principal ferramenta é a linguagem. No entanto, o ser humano desenvolveu uma capacidade sem igual no reino animal. A da imaginação. Assim, ao longo do tempo, diversos institutos foram simplesmente criados através da imaginação humana, formando crenças que permitiram a manutenção de um grupo cada vez maior. Isso fez surgir a sociedade e o Estado, ambos institutos próprios da criação da espécie humana.

A linguagem desenvolve papel social essencial ao permitir a comunicação e o aprendizado em diversas áreas, formando sempre uma construção em desenvolvimento. As ideias que surgem aparecem de outras já traçadas e assim sucessivamente de forma a que o conhecimento humano adquirido ao longo do tempo esteja sempre preservado. 

Da necessidade da união dos seres humanos em sociedades, surge o próprio Direito e, com ele, uma série de normas jurídicas necessárias para a uniformização de comportamentos e harmonização das condutas, tornando possível a vida em comum. É lógico que essas regras inicialmente foram postas e aplicadas de forma descentralizada, em que cada pequeno grupamento ou tribo se utilizava de suas próprias regras, com as sanções tradicionalmente postas. Em grupamentos primitivos, isso surge com o animismo e, portanto, com a atribuição de personalidades a todos os seres vivos. 

Com o tempo surgem as religiões e também as normas postas mudam. Mas a lógica da descentralização de normas é mantida. Para a pessoa dessa época, a ideia que os demais membros da comunidade mantinham sobre ela era essencial. A penalidade mais grave, muitas vezes, era a expulsão daquele bando, o que significa muitas vezes a morte, pela dificuldade da possoa sozinha, manter-se viva em diversas regiões, seja pelos perigos naturais ou trazidos por outros grupamentos humanos. Daí a ideia de banimento, ainda mantido viva em diversas sociedades atualmente. 

Com o tempo, surge a figura do Estado e com esse a transferência das decisões sobre os comportamentos que seriam aceitáveis. Assim, passa a existir uma centralização da aplicação do Direito. Ocorre que as sociedades passaram a crescer de forma muito rápida e com esse crescimento, em virtude também de outros fatores, como as políticas migratórias, houve uma cada vez maior heterogeneidade. Assim, diversos grupos surgem e passam a lutar por seus direitos, cada vez mais diversificados.

Com o advento da lógica dos direitos humanos, tais situações precisam ser protegidas. Os direitos humanos dominam os ordenamentos constitucionais modernos, principalmente no ocidente.


3 - DIREITOS HUMANOS E SUA EFETIVAÇÃO.

Esses direitos fundamentais possuem algumas características. Dentre elas, a centralidade. Ora, isso faz com que os Poderes Públicos estejam vinculados ao conteúdo desses direitos. Como forma ensina André Ramos Carvalho (p. 99):

Com base na interpretação conforme aos direitos humanos, estes influem em todo o Direito e nos atos dos agentes públicos e privados, concretizando seu efeito irradiante que os transformam no centro dos valores de um ordenamento.

Essa centralidade é percebida no preâmbulo da Constituição Federal brasileira, em que se afirma:

Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembléia Nacional Constituinte para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias, promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL.

É evidente que o preâmbulo da Constituição não possui natureza normativa, mas isso não significa que ele não tenha função alguma. Ele serve como norte hermenêutico e deôntico, orientando os Poderes constituídos em relação aos valores fundamentais postos na lógica constitucional. Nesse sentido, já decidiu o Supremo Tribunal Federal:

Devem ser postos em relevo os valores que norteiam a Constituição e que devem servir de orientação para a correta interpretação e aplicação das normas constitucionais e apreciação da subsunção, ou não, da Lei 8.899/1994 a elas. Vale, assim, uma palavra, ainda que brevíssima, ao Preâmbulo da Constituição, no qual se contém a explicitação dos valores que dominam a obra constitucional de 1988 (...). Não apenas o Estado haverá de ser convocado para formular as políticas públicas que podem conduzir ao bem-estar, à igualdade e à justiça, mas a sociedade haverá de se organizar segundo aqueles valores, a fim de que se firme como uma comunidade fraterna, pluralista e sem preconceitos (...). E, referindo-se, expressamente, ao Preâmbulo da Constituição brasileira de 1988, escolia José Afonso da Silva que "O Estado Democrático de Direito destina-se a assegurar o exercício de determinados valores supremos. ‘Assegurar’, tem, no contexto, função de garantia dogmático-constitucional; não, porém, de garantia dos valores abstratamente considerados, mas do seu ‘exercício’. Este signo desempenha, aí, função pragmática, porque, com o objetivo de ‘assegurar’, tem o efeito imediato de prescrever ao Estado uma ação em favor da efetiva realização dos ditos valores em direção (função diretiva) de destinatários das normas constitucionais que dão a esses valores conteúdo específico" (...). Na esteira destes valores supremos explicitados no Preâmbulo da Constituição brasileira de 1988 é que se afirma, nas normas constitucionais vigentes, o princípio jurídico da solidariedade.

[ADI 2.649, voto da rel. min. Cármen Lúcia, j. 8-5-2008, P, DJE de 17-10-2008.]

Fica evidente que não basta a instituição de direitos fundamentais, mas é essencial que haja efetividade.


4 - SISTEMAS POLÍTICO E JURÍDICO

Como já afirmado, a sociedade depende da política. E a política traz um jogo estruturado de poder em que há dois códigos básicos: o governo e a oposição. Por outro lado, o sistema jurídico é traduzido pelos códigos legal e ilegal. Essa é a teoria luhminana, para a qual cada sistema é identificado por códigos que os diferencia de outros sistemas. É lógico que em muitas situações, esses sistemas se entrelaçam criando uma espécie de acoplamento estrutural. Para que não haja qualquer desnaturação dos sistemas em acoplamento, é necessário que se tenha a conservação de seus códigos básicos. Como ensina Celso Campilongo (p. 60):

Na relação entre os sistemas político e jurídico a Constituição e os Tribunais exercem peculiar função de permitir o “acoplamento estrutural” entre esses sistemas. Cada sistema mantém sua integridade, sua clausura operacional, e continua a operar com base em seus mecanismos específicos ou auto referenciais. Entretanto, os sistemas estruturalmente acoplados estão abertos a influências recíprocas, que permitem uma multiplicação das chances de aprendizagem na comunicação intersistêmica. 

Nesse acoplamento estrutural entre os sistemas político e jurídico, surge a problemática das políticas públicas. Isso porque, se é verdade que os grupos sociais que dominam o governo e o legislativo eleito têm suas preferências no desenvolvimento das políticas públicas, também é verdade que os valores trazidos pela Constituição Federal devem ser respeitados. 

Nos últimos tempos tem-se percebido no direito brasileiro uma amplitude na atuação tanto do Executivo quanto do legislativo. São inúmeros os atos do Executivo, inclusive através de medidas provisórias, na maioria das vezes sem a urgência necessária para a sua edição. Também, é crescente o número de normas aprovadas pelo Poder Legislativo. Ora, a tripartição de poderes pressupõe que a importância entre os órgãos de poder seja repartida. Com o crescimento dos órgãos vinculados às funções legislativa e de governo, é necessário também apresentar um Judiciário que seja superlativo um big judiciary.

Se é verdade que o tanto o Executivo como o Legislativo não atuam com imparcialidade, porque influenciados diretamente pelo grupo social vencedor do processo eleitoral, só se admite um Judiciário imparcial. É o que Mauro Cappelletti denomina de virtudes passivas ou limites processuais do Judiciário. Essas são características fundamentais da atividade jurisdicional. Assim, para o citado mestre italiano (p. 74):

O bom juiz pode ser criativo, dinâmico e ativista e como tal manifestar-se; no entanto, apenas o juiz rui agiria com as formas e modalidades do legislador, pois, a meu entender, se assim agisse deixaria simplesmente de ser juiz.

A atividade do juiz na interpretação das normas e de sua subsunção ao caso concreto também é uma atividade criadora. Mas é evidente que ela não é livre, pois se encontra adstrita ao Ordenamento Constitucional. O fato de o juiz ter uma posição mais ativa na aplicação das normas pertinentes não significa que se possa afastar a imparcialidade própria da atividade jurisdicional e que também forma essas virtudes passivas do magistrado.

Certamente, aqueles não compreendidos no grupo social que forma a maioria eleitoral têm no Judiciário a mais lídima expressão da democracia e do respeito aos direitos fundamentais. Como a interpretação realizada pelos órgãos judiciais também é ato criativo, parece evidente que as próprias decisões judiciais devem ser tidas como normas jurídicas individuais. 

Essas normas jurídicas individuais prolatadas pelo Poder Judiciário e que se tornam imutáveis com o trânsito em julgado são essenciais para o cumprimento da Constituição, pois se apresentam como estágio de concretização de suas normas. Esse evento foi muito bem captado por Hans Kelsen ao lecionar (P. 263):

Do ponto de vista de uma consideração centrada sobre a dinâmica do Direito, o estabelecimento da norma individual pelo tribunal representa um estádio intermediário do processo que começa com a elaboração da Constituição e segue, através da legislação e do costume, até a decisão judicial e desta até a execução da sanção. Este processo, no qual o Direito como que se recria em cada momento, parte do geral (ou abstrato) para o individual (ou concreto). É um processo de individualização ou concretização sempre crescente. 


5 - INTERPRETAÇÃO COMO CRIAÇÃO DO DIREITO.

Nem sempre a interpretação foi entendida como meio de criação de normas. Henry Black, famoso estudioso americano do século XIX, diferenciava interpretação de construção. Aquela se limitava a estabelecer o alcance da norma, enquanto essa supria lacunas e resolvia antinomias. No entanto, essa diferença, com o desenvolvimento da própria ciência jurídica deixou de existir. 

A norma jurídica para ser de fato aplicada ao caso concreto precisa passar por interpretação. Todos são intérpretes das normas, mas compete aos órgãos descritos na Constituição dar-lhes o alcance necessário, a partir dos atos estatais emanados dos órgãos e agentes públicos. Essa interpretação pode ser denominada de legítima. Quando emanada do judiciário, ela recebe a proteção da coisa julga e, portanto, é tornada imutável na forma da Lei. Ricardo Marcondes Martins ensina que (p.319):

Apesar disso, o Poder Judiciário, em relação à interpretação, possui, de fato, uma particularidade. Os juízes os são agentes públicos encarregados de dar a ultima palavra sobre a interpretação jurídica. Com efeito, a jurisdição, como a própria etimologia da palavra revela, “diz o direito”. Quando não couber mais recurso, a questão torna-se, par ao caso concreto, definitiva, faz coisa julgada.

Essa decisão assim forma uma norma jurídica que traz o direito a ser aplicado emoldurado pelo caso concreto e é de obediência compulsória pelas partes. Por isso é que ao criar o direito, na forma da interpretação dada, o judiciário se torna ator e protetor do Ordenamento Jurídico, fazendo com que as normas previstas na Constituição, principalmente as que tragam direitos fundamentais sejam respeitadas.

O respeito às normas fundamentais tem uma característica ativa. Ou seja, esse respeito significa fazer prevalecer a eficácia de tais normas permitindo que de fato o Ordenamento Constitucional seja respeitado. Aliás, Rudolf Von Jhering já asseverava (p. 40) que a essência do direito é a sua realização prática. Ou seja, sem que de fato ocorra a sua realização, em nada se terá respeitado os direitos humanos. 

Isso deve ser observado principalmente em relação à Administração Pública. O fato de existir uma discricionariedade, ou seja, uma certa margem de liberdade para a atuação do Estado não significa dar-lhe liberdade absoluta. Recentemente, a Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro foi modificada pela Lei 13.655/2018. Essa norma passou a trazer importante balizamento para a concretização e eficácia dos direitos previstos. Nesse sentido, o art. 20, segundo o qual:

Art. 20.  Nas esferas administrativa, controladora e judicial, não se decidirá com base em valores jurídicos abstratos sem que sejam consideradas as consequências práticas da decisão. 

Por isso, o julgador e a autoridade competente devem se ater não apenas às teses jurídicas lançadas, mas principalmente aos efeitos práticos do ato. Isso também deve ser levado ao âmbito das políticas públicas.


6 - NORMAS JURÍDICAS: REGRAS E PRINCÍPIOS

Deve-se compreender que as normas jurídicas são divididas entre regras e princípios. Aquelas são aplicadas em um sentido de tudo ou nada. Assim, havendo algum choque entre as regras, apenas uma deverá prevalecer de acordo com o critério de interpretação a ser aplicado.

Em relação aos princípios, a aplicação é realizada de acordo com a ponderação, se houver dois princípios em rota de coalização. Nesses termos, Robert Alexy assevera que (p. 117):

Princípios são mandamentos de otimização em face das possibilidades jurídicas e fáticas. A máxima da proporcionalidade em sentido estrito, ou seja, exigência de sopesamento, decorre da relativização em face das possibilidades jurídicas. Quando uma norma de direito fundamental com caráter de principio colide com um princípio antagônico, a possibilidade jurídica para a realização dessa norma depende do princípio antagônico. Para se chegar a uma decisão é necessário um sopesamento nos termos da lei de colisão. 

Os direitos fundamentais têm uma natureza principiológica e assim devem ser aplicados. Isso significa que é preciso fazer uma ponderação na aplicação dos direitos fundamentais, permitindo, assim, a sua mais ampla eficácia. Esse caráter principiológico faz com que se limite a esfera da discricionariedade administrativa. Ë preciso, assim, na atuação estatal buscar harmonia das normas jurídicas, principalmente no sopesamento dos princípios aplicados. 

Os direitos fundamentais devem ser concretizados através de políticas públicas adequadas. É importante ter em mente que nem todas as políticas públicas produzidas pelo Estado estão ligadas a direitos fundamentais. Essas políticas, por exemplo, podem ser apenas uma proteção ou prerrogativa de grupos sociais que se encontram no comando de determinado país. As políticas públicas citadas no presente trabalho são consideradas apenas aquelas que tenham como finalidade a efetivação de direitos fundamentais. Faz-se, dessa forma, um recorte epistemológico para adequação nos limites do artigo cientifico ora apresentado.


7 - BALIZAMENTO NA APLICAÇÃO DOS PRINCÍPIOS

A proteção do Estado aos direitos fundamentais precisa ser efetiva. Daí a lógica do Princípio da vedação da proteção deficitária. Como explica Felipe de Melo Fonte (p. 345):

O princípio da vedação de proteção deficitária consiste na projeção da teoria dos deveres de proteção. Segundo esta construção, cabe ao Estado não apenas a postura de abstenção em relação aos direitos fundamentais, mas também o dever de promovê-los e assegurá-los, sob pena de censura jurisdicional quando isto não for feito de maneira suficiente. Para o controle com base neste parâmetro, sugeriu-se que o magistrado utilize os planos público, inclusive as metas orçamentárias, e as leis que estabelecem patamares mínimos de qualidade aos prestadores de serviços. 

Assim, o Estado deve afastar-se apenas do conceito meramente liberal de direitos fundamentais, em que há uma limitação ao Poder Estatal, em proteção a valores caríssimos da sociedade como a liberdade, mas é necessário, sem deixar para traz esses direitos constitucionais de primeira dimensão, exigir da Administração Pública uma política eficaz para os direitos fundamentais. 

Tal papel cabe também ao judiciário, como já visto, principalmente em torno do desinteresse do Estado no compromisso com esses valores traçados pelo Ordenamento. Mas é preciso que haja certos balizamentos. Ao atuar, o juiz, em caso de omissão da Administração, vai determinar a realização dos direitos fundamentais, sendo necessário o total respeito à harmonia do Ordenamento. Há que se observar diversos fatores como a possibilidade fática e orçamentária do cumprimento da medida. 

Não adianta, por óbvio, determinar o respeito aos direitos fundamentais de uma pessoa ou classe, para deixar outras pessoas ou classes desassistidas. Incongruente, portanto, é decisão judicial que determina a internação de determinada pessoa em um hospital público, quando todos os leitos estão ocupados por doentes graves. É preciso que seja feita a ponderação dos valores envolvidos e que a decisão seja concretamente eficaz, como a internação, no caso citado, daquele cidadão em hospital particular, às custas do Poder Público.

Aliás, um dos direitos fundamentais mais discutidos é o acesso à saúde. Com efeito, dispõe o art. 196 da Constituição Federal: 

A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação. 

Como dever do Estado, é necessário que a política de saúde seja efetivamente cumprida. Caso o contrário, a norma constitucional restará desrespeitada. O STF sobre tal direito fundamental asseverou, em tema de repercussão geral que:

Direito à saúde. Tratamento médico. Responsabilidade solidária dos entes federados. Repercussão geral reconhecida. Reafirmação de jurisprudência. O tratamento médico adequado aos necessitados se insere no rol dos deveres do Estado, porquanto responsabilidade solidária dos entes federados. O polo passivo pode ser composto por qualquer um deles, isoladamente ou conjuntamente. [RE 855.178 RG, rel. min. Luiz Fux, j. 5-3-2015, P, DJE de 16-3-2015, Tema 793.]

O direito fundamental à saúde dos portadores de transtornos mentais encontra arrimo não somente nos arts. 5º, 6º, 196 e 197 da Carta da República, como também nos arts. 2º, § 1º, e 6º, I, d, da Lei 8.080/1990, na Portaria 3.916/1998 do Ministério da Saúde, além dos arts. 2º, 3º e 12 da Lei 10.216/2001, que, conforme visto, redireciona o modelo assistencial em saúde mental no Brasil. A linha de argumentação desenvolvida pelo Estado requerido quanto à insuficiência orçamentária é inconsistente, porquanto comprovado que os recursos existem e que foram repassados pela União, não se podendo opor escusas relacionadas com a deficiência de caixa. Comprovação nos autos de que não se assegurou o direito à saúde dos portadores de transtornos mentais no Estado do Pará, seja da perspectiva do fornecimento de medicamentos essenciais ao seu tratamento, seja no que diz respeito à estrutura física e organizacional necessárias à consecução dos objetivos previstos pelo legislador constitucional e também pelo ordinário ao editar a Lei 10.216/2001. A hipótese dos autos não cuida de implementação direta de políticas públicas, mas, sim, de cobrança realizada diretamente pela União, com fundamento na competência constitucional concorrente, para que os requeridos cumpram a sua parcela de responsabilidade no atendimento da política nacional de assistência aos pacientes com transtornos mentais. A omissão dos réus em oferecer condições de saúde dignas aos portadores de transtornos mentais exigiu a intervenção do Judiciário, tal como solicitado pela União para que, pelo menos, o núcleo essencial da dignidade da pessoa humana lhes seja assegurada, não havendo margem para qualquer discricionariedade por parte das autoridades locais no tocante a esse tema, ainda mais quando demonstrados os repasses do Executivo federal para a concessão desse mister. Os usuários dos serviços de saúde, no caso, possuem direito de exigir de um, de alguns ou de todos os entes estatais o cumprimento da referida obrigação e, na hipótese, a União demonstrou que fez a sua parte, com o que se credenciou a cobrar dos requeridos a observância de suas obrigações. Os argumentos lançados nos agravos não são inéditos e já foram devidamente sopesados. A própria dedução de pedido alternativo de simples dilação de prazo para o adimplemento das medidas impostas indica que o recurso apresentado não deve prosperar. Ademais, ficaram bem divisadas as esferas de responsabilidade da União e da parte ré no atendimento aos portadores de transtornos mentais. Análise exaustiva do acervo probatório, tanto da perspectiva da falta de medicamentos, quanto no que se refere a instalações físicas, passando, ainda, pela reiteração de comportamento omisso por parte dos réus em oferecer condições de saúde dignas aos portadores de transtornos mentais. Assim, contrariamente ao sustentado pelas agravantes, in casu, o Judiciário está plenamente legitimado a agir, sobretudo em benefício dos portadores de transtornos mentais, pessoas vulneráveis que necessitam do amparo do Estado. Prazo razoável fixado para a adoção de medidas de extrema importância para o atendimento dos portadores de deficiência mental e a multa bem aplicada em patamar proporcional para estimular o cumprimento da obrigação, sem prejudicar a prestação pela parte ré de outras políticas públicas. [ACO 1.472 AgR-segundo, rel. min. Ricardo Lewandowski, j. 1º-9-2017, P, DJE de 18-9-2017.]

Mas também é preciso se analisar com proporcionalidade a aplicação de tais princípios ao caso concreto. A Suprema Corte, entendendo o acesso à saúde como direito fundamental, ponderou que é necessário que que os medicamentos ministrados na rede pública de saúde devem ter o registro nos órgãos competentes. Nesses termos:

Observem a organicidade do Direito e o âmbito da Lei 13.269/2016, autorizadora da comercialização de substância química não submetida previamente a testes clínicos em seres humanos. Ao suspender exigibilidade de registro sanitário da fosfoetanolamina sintética, o ato atacado discrepa das balizas constitucionais concernentes ao dever estatal de reduzir o risco de doença e outros agravos à saúde dos cidadãos – art. 196 da CF. (...) Ao dever de fornecer medicamentos à população contrapõe-se a responsabilidade constitucional de zelar pela qualidade e segurança dos produtos em circulação no território nacional, ou seja, a atuação proibitiva do poder público, no sentido de impedir o acesso a determinadas substâncias. A esperança depositada pela sociedade nos medicamentos, especialmente naqueles destinados ao tratamento de doenças como o câncer, não pode se distanciar da ciência. Foi-se o tempo da busca desenfreada pela cura sem o correspondente cuidado com a segurança e eficácia das substâncias. O direito à saúde não será plenamente concretizado sem que o Estado cumpra a obrigação de assegurar a qualidade das drogas distribuídas aos indivíduos mediante rigoroso crivo científico, apto a afastar desenganos, charlatanismos e efeitos prejudiciais ao ser humano. (...) Na elaboração do ato impugnado, o Congresso Nacional, ao permitir a distribuição de remédio sem o controle prévio de viabilidade sanitária, não cumpriu com o dever constitucional de tutela da saúde da população. (...) A aprovação do produto no órgão do Ministério da Saúde é condição para industrialização, comercialização e importação com fins comerciais, segundo o art. 12 da Lei 6.360/1976. O registro ou cadastro mostra-se condição para o monitoramento, pela agência fiscalizadora, da segurança, eficácia e qualidade terapêutica do produto. Ante a ausência do registro, a inadequação é presumida. No caso, a lei suprime, casuisticamente, a exigência do registro da fosfoetanolamina sintética como requisito para comercialização, evidenciando que o legislador deixou em segundo plano o dever constitucional de implementar políticas públicas voltadas à garantia da saúde da população. O fornecimento de medicamentos, embora essencial à concretização do Estado Social de Direito, não pode ser conduzido com o atropelo dos requisitos mínimos de segurança para o consumo da população, sob pena de esvaziar-se, por via transversa, o próprio conteúdo do direito fundamental à saúde. (...) É no mínimo temerária – e potencialmente danosa – a liberação genérica do medicamento sem a realização dos estudos clínicos correspondentes, em razão da ausência, até o momento, de elementos técnicos assertivos da viabilidade da substância para o bem-estar do organismo humano. Salta aos olhos, portanto, a presença dos requisitos para o implemento da medida acauteladora. Ante o quadro, defiro a liminar pleiteada para suspender a eficácia da Lei 13.269/2016, até o julgamento definitivo desta ação direta de inconstitucionalidade. [ADI 5.501 MC, voto do rel. min. Marco Aurélio, j. 19-5-2016, P, DJE de 1º-8-2017.]

O Superior Tribunal de Justiça entende que é necessário oferecer medicamento para aqueles que necessitam da atuação do Estado para proteção à saúde, mas com certos condicionamentos. Assim: 

Inicialmente cumpre ressaltar que a questão de fornecimento de medicamentos já possui ampla jurisprudência nesta Corte Superior de Justiça e do Supremo Tribunal Federal, que tem entendido que o inciso I do art. 19-M da Lei n. 8.080/1991, incluído pela Lei n. 12.401/2011, permite que seja deferido o fornecimento de medicamento não incorporado em atos normativos do SUS. Dos julgados existentes é possível extrair alguns requisitos necessários para que o pleito seja deferido. O primeiro requisito consiste na demonstração da imprescindibilidade ou necessidade do medicamento no tratamento, por meio de laudo médico circunstanciado e fundamentado, devidamente expedido por médico que assiste o paciente, da imprescindibilidade ou necessidade do medicamento, assim como da ineficácia, para o tratamento da moléstia, dos fármacos fornecidos pelo SUS. Quanto à questão, consta das Jornadas de Direito da Saúde, realizadas pelo Conselho Nacional de Justiça - CNJ, algumas diretrizes sobre a comprovação da imprescindibilidade do medicamento, sendo que no enunciado n. 15 da I Jornada de Direito da Saúde asseverou-se que o laudo médico deve conter, pelo menos, as seguintes informações: "o medicamento indicado, contendo a sua Denominação Comum Brasileira (DCB) ou, na sua falta, a Denominação Comum Internacional (DCI); o seu princípio ativo, seguido, quando pertinente, do nome de referência da substância; posologia; modo de administração; e período de tempo do tratamento; e, em caso de prescrição diversa daquela expressamente informada por seu fabricante, a justificativa técnica". O segundo requisito consiste na devida comprovação da hipossuficiência daquele que requer o medicamento, ou seja, que a sua aquisição implique o comprometimento da sua própria subsistência e/ou de seu grupo familiar. Não se exige, pois, comprovação de pobreza ou miserabilidade, mas, tão somente, a demonstração da incapacidade de arcar com os custos referentes à aquisição do medicamento prescrito. Por fim, o terceiro requisito a ser considerado é que o medicamento pretendido já tenha sido aprovado pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária - ANVISA. Esta exigência decorre de imposição legal, tendo em vista o artigo 19-T, inciso II, da Lei n. 8.080/1991, o qual dispõe que são vedados, em todas as esferas de gestão do SUS a dispensação, o pagamento, o ressarcimento ou o reembolso de medicamento e produto, nacional ou importado, sem registro na Anvisa. (REsp 1.657.156-RJ, Rel. Min. Benedito Gonçalves, Primeira Seção, por unanimidade, julgado em 25/04/2018, DJe 04/05/2018 (Tema 106) 

Assim, o balizamento lançado pelo STJ para determinar a Administração para fornecer o medicamento é bem claro. São estabelecidos os seguintes requisitos: a) comprovação, por meio de laudo medico fundamentado e circunstanciado expedido por medico que assiste o paciente, da imprescindibilidade ou necessidade do medicamento, assim como da ineficácia, para o tratamento da moléstia, dos fármacos fornecidos pelo SUS; b) incapacidade financeira de arcar com o custo do medicamento prescrito; c) existência de registro na ANVISA do medicamento. Essa é expressão do mais claro ativismo judicial, pois ao interpretar as normas jurídicas e sopesar os princípios, efetivamente criou direito ao prever quais são as condições para que a Administração seja obrigada ao fornecimento de medicamentos. 


8 - CONCLUSÃO

O ativismo judicial é elemento essencial de viés democrático para que o Estado seja obrigado a garantir a efetivação dos direitos fundamentais. Essa determinação, no entanto, deve observar os balizamentos necessários para a eficácia prática da ordem, permitindo, assim, que a Constituição Federal seja respeitada, estando o magistrado limitado pela harmonia do sistema jurídico e as incidências no caso prático, inclusive quanto ao orçamento e a outros direitos fundamentais que não podem ser desassistidos.

Assim, a ponderação dos valores envolvidos através da proporcionalidade na aplicação dos princípios faz com que todas as circunstâncias sejam analisadas e que com a interpretação lançada pelo magistrado leve a criação de uma norma jurídica, integrando o direito para sua melhor aplicação. Isso deve ocorrer, por óbvio, na proteção à saúde, nos termos previstos na Constituição e que precisam ser efetivados pelas políticas públicas aplicadas pela Administração. Caso haja omissão, o Judiciário deverá atuar como forma de concretizar tais direitos. 


9 – REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Informações sobre o texto

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

OLIVEIRA, João Paulo. Políticas públicas, ativismo judicial e proteção à saúde: breves considerações. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 23, n. 5581, 12 out. 2018. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/68123. Acesso em: 7 maio 2024.