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Da política ao antidireito

A história de quem não-pode ser

Da política ao antidireito. A história de quem não-pode ser

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Estamos numa fase de autismo social, na qual se pode eliminar o outro como se alisa um gato – ou brincar com um cão, do mesmo modo que não se aproxima da criança que está na rua.

Resumo desta ópera ou via de mão dupla: Nosso objetivo se resume no dizer que o ódio de classes é uma obviedade ululante no bojo da sociedade dividida em classes sociais. As palavras-chave são: ser ou não-ser. Então, essa é a nossa questão.

Nossa premissa é bíblica e popular: "Não se pode servir a dois senhores ao mesmo tempo". Na verdade, é uma dupla premissa. Por inação ou ação de todo tipo, ideológica, política, cultural, ditatorial, em Golpe de Estado, manu militari, cesarismo em retrocesso regressivo e repressivo, e recessivo economicamente, acredita-se que é certo “Dar a César, o que é de César” e ao povo, os brioches. Com o que discordamos.

O resultado esperado é preservar os dedos, ainda que isso custe alguns anéis. A metodologia utilizada provém do uso sistemático do realismo político. Afinal, quando se trata de opressão ou de emancipação, não há neutralidade. As coincidências são apenas semelhanças. Inclusive ou especialmente se a história vai se repetindo ora como farsa, ora como tragédia (anunciada, é claro).Introdução ou aviso ao leitor.

Este é um texto de Ciência Política – também poderia ser de antidireito. Muitos dirão que não é, e, para mostrar que é, demandaria escrever um livro. O que não convém, quando não se quer justificar o óbvio habitante, nunca exitante, (ab ovo) na história do poder da fome.

Argumento inicial – justificativa. A luta de classes traz a história da opressão – e também da liberdade. Jurisprudência. 

Todo poder emana do povo. Em seu nome será exercido, para o bem ou para o seu mal, se e quando o legislador é seu emissário. O clássico “rouba, mas faz” é o jeitinho que se espera para o brasileiro – do homem médio em sua vida comum, ao magistrado acima desse “homem comum” –, para o direito e ao Estado. Votos conscientes (“mas quem não rouba”?) ou dormentes, na bitola estreita ou larga da visão turva, certificam o processo da democracia liberal/representativa (sic).

Fundamento jurídico: “Lei, ora lei”. Dura lex sed lex. A lei dura deve ceder à interpretação e à intervenção federal. Segue-se o Princípio da Lateralidade, obedecendo-se aos quadriláteros da Razão de Estado. A discricionariedade é verossimilhança da Lei Maior da oportunidade. O Estado é governo. A exceção é a regra. Donde há formação de livre convicção dos doutos e dos jurisconsultos: “quem deseja conhecer uma pessoa, ainda mais os julgadores, deve dar poder às personagens (persona) da arena pública”.

Excorso histórico desta epistemologia política. Patrícios e plebeus, escravos e senhores, servos e dignitários: a história é repleta de luta de classes e da Luta Política pelo Direito. Já tivemos o homo sacer e o “homem-lobo” (literalmente jogado aos lobos pelo direito germânico), ambos muito abaixo do capital investido no escravo, e o saint culottes que depois conheceu a guilhotina. Ainda temos o trabalhador explorado e morto de exaustão – análogo à condição de escravo – e o lumpem, gerador do 18 Brumário, que nem para isso era (ou é) convocado. Hoje há fascismos e presos políticos.

Tivemos e temos o extraditado, o sitiado, o isolado no cerco político das jaulas de crianças ou em campos de concentração para refugiados, e também o Estrangeiro: em sua própria casa. Temos de sobra o Mesmo (que deveria ser o Outro) e o Estranho: este muito bem plugado e controlado – de perto ou remotamente.

Em breve teremos castas de plutocratas comportados, pensantes, residentes – se é que deixamos de ter algum dia –, e um bando de inimpregáveis (a exemplo do tipo penal da vadiagem do passado resiliente); esses logo serão chamados (de novo) de inúteis, imprestáveis de toda sorte que só conhecem o giroflex da polícia. Daí vem a ideia de bucha de canhão, na “nova” militarização social. 

Como impagáveis, dado que a tecnologia (inteligência artificial) fará tudo no lugar deles (no nosso), também serão apelidados (na bala ou pelo algoritmo) de “irrelevantes”. Enfim, trata-se dos inviáveis de todo gênero. Já eram invisíveis mesmo.

Portanto, não é preciso que surja um Unabomber (já surgiu) para que se vejam os extremos e os extremistas, os jihadistas e todas as seitas crentes no capital. Já temos uma “nova” Ética Protestante, mas em protesto pelo consumo da Política. Por sua vez, Ned Lud e os neoluditas marcaram muito bem a sintonia do ódio na luta de classes.

Neste curso histórico e nomológico, também surgiram Spartacus, a Comuna de Paris, a Constituição Mexicana, a Revolução de 1917, a Desobediência Civil, a Declaração de 1948, o feminismo, a luta por direitos civis e contra o racismo escravagista. Na ficção existe o “V” da Vingança. A vitória é sua maior vingança. Então, libertários e opressores, eis o que somos.

Corpus Teórico. Ou seja, tanto viramos as ideologias e as visões de mundo para o lado da interpretação do ódio de classes, e a necessária estratégia de ações libertárias, quanto enviesamos para o seu pragmatismo, rentismo, fisiologismo. Note-se que os coronéis da Ciência Política já abandonaram o texto – se é que teriam começado.

Sob o neoliberalismo ou neopragmatismo – o que é neo, novo? – não se perde tempo com ironia: devem dizer que a dialética da ironia (a contrapelo) não tem “vocação”, racionalidade, sistematicidade. A organicidade do capital fica para outro dia: para a “numerologia” dessa mesma Ciência Política de Hollywood ou dos meninos de Chicago.

Qual é a nossa história?

Uma parte de nossa história é contada, outra esquecida, boa parte é mentida e a que sobra quase nunca é remetida para os livros escolares. Com o intuito de esclarecer, ainda que sem a cisma ou a crispa carrancuda dos velhos acadêmicos, contaremos uma parte esquecida e outra sempre mentida. Por isso, utilizaremos a paródia que acompanha a epistemologia do melhor método político: cigano/anarquista.

Para uma melhor fixação desta epistemologia política, é preciso que se diga ao leitor que este retrato é descrito pela escola chamada “História Cadavérica”, em ressonância à escola jurídica que escolta o direito famélico.

1ª Parte: Não há como amar a luta de classes

Neste curso, alguns (os “oportunistas”) se aproveitam e liberam todo o ódio que a luta de classes pode reprimir. Outros procuram uma análise realista, para melhor combater – de um lado ou de outro. Muitos adoram seu resultado. Outros milhões caem vencidos, fulminados, eliminados.

Entretanto, não amam a luta de classes, pelo fato de que não há amor no ódio de classes. Também porque a luta de classes não é um juízo de valor, uma escolha racional, é um fenômeno da história contada através (entrecortada) da divisão em classes sociais.

O ódio de classes inerente à luta de classes, no capitalismo desenvolvido, tem um comportamento; no capitalismo de barbárie é violência pura e brutal. Seu soberano, isto parece ser um dado comum a ambos, só é ameaçado por hackers e pelos “irmãos” do crime – que se organizam à medida que o status político se desorganiza.

Por isso entendemos melhor do que os outros quando se diz que "a política é violência" e “não perdoa derrotas”. Bem atuantes são seus milicianos e “inimigos combatentes”. Será que há inimigo que não combate?

Alguns chamam a luta de classe (ou clamam) de guerras irregulares, Guerras Híbridas (calculadas, injetadas além-mar) ou assimétricas (com medo da Guerra Civil). Outros lamentam ter que falar disso, tudo de novo.

No entanto, em realidades diferentes da nossa, em outros momentos ou estruturas sociais, do fim da 2a Grande Guerra ao Estado de bem estar, por exemplo, a luta de classes teve o "ódio de classes" em estado de latência. Ou iminência, durante a Guerra Fria. Da Coreia à Ilha de Granada, com outras granadas antipopulares.

Em crises acentuadas e sem fim, como agora, o ódio de classes (quase sempre “descendo para a pista”) jorra como a lava a jato de um vulcão em erupção. Como força irradiada, irascível (irada), incontrolável, o joio e o trigo derretem o que antes tivera alguma valia.

2ª Parte: da mais-valia (quando valia a pena) aos super egos

De todo modo, o ódio de classes é irremediável nas sociedades divididas em classes sociais. Porque há muitos super egos; porém, nenhum Superego.Este ódio de classes pode ser acomodado. Mas negar sua presença/atuante é o que fazemos de pior.

Tratando dos efeitos, e raramente até mesmo dos efeitos colaterais, sequer entendemos o funcionamento da crise de ódio – quanto mais as origens, o metabolismo e as condições das lavas a jato da violência. Assim, cortar o mal pela raiz significa arrancar as mais profundas raízes do capitalismo, da distopia, da entropia em forma de ficção que quer acabar com a humanidade.

Nossa inteligência artificial, com escusas ao real, segue sem consciência. E muitos ainda insistem que a ciência não pode ser crítica. A Escola não pode ter Partido, isto é, ninguém que tome o partido da educação. Se fosse verdade, estaríamos na Idade Lascada da Alquimia. E aqui o problema não são, exatamente, os robôs (porque eles são consequências), mas sim os robotizados.

Mudar tudo isso, certamente, não é tarefa simples. Por exemplo, penso que não há a menor condição objetiva de se pegar em armas para derrotar quem tem o “monopólio (i)legítimo da força física”.

Em nosso caso, no bojo do capitalismo de barbárie, esse ódio de classes tem a mesma força – antagônica, insolvível, de puro derretimento – nos dois sentidos do poder: de cima para baixo e de baixo para cima. Do alto vem o cinismo, de baixo sobe a apatia à espera das compras. É a luta do psicopata contra o “cidadão do sofá”.

Do Estado Penal à afronta (individual) da lei mais elementar: o Estado costuma afrontar o bom senso antes de todos. E assim a “lei não pega” não cola em lugar nenhum. Aliás, a utopia (de algum-lugar) acabou como “lugar-algum”.

De todo modo, nesta dinâmica do capitalismo em crise ou na barbárie, tanto o terrorismo alcança qualquer país, qualquer pessoa, quanto por aqui, no dizer popular, "o sujeito atirou só pra ver o buraco e o tombo".

No reino do ódio de classes, a empatia e a interação não comovem o "Lobo Solitário". A causa de um único terrorista seria o ápice do egocentrismo, da regra de que "todo sagrado foi profanado"?

Disto resulta que as investidas contra a alternância, autonomia ou altercações não são mais miraculosas do que antigamente. Talvez mais nebulosas do que se via nos tempos da “iminência parda”. Simplesmente porque, quando não há coisa pública, “todos os gatos são pardos”. Quando o lobo vem de carneiro não se usa tanto dos métodos traumáticos.

3ª Parte: Não se recorre mais à lobotomia

Aliás, lobotomia não teria algo a ver com Lobos?

Enfim, quando alguém diz que "ama os gatos", quer dizer que sua dissociação social evoluiu: da empatia a um tipo de “autismo social” (que ainda não tem CID, só CEO), como ato consciente e consentâneo de tanto ver prosperar o "homem, lobo do homem".

A prova disto está nas heranças milionárias deixadas para animais e não-doadas para instituições de crianças órfãs. Em resumo, como o ser (dessocializado) não tem força (social) para ingressar no sistema, acaba por demonstrar sua (im)potência (em ira) no cano de uma arma ou na movimentação frenética de ações em bolsas de valores. Sem saberes, continua sem saber “onde estou, para onde vou”.

Tanto lá quanto cá, o ódio de classes (na sociedade de classes) banaliza o Mal. O Mal segue maiúsculo em seus saberes e afazeres. Daí que a oligarquia se comove com a pobreza, não sem antes odiar os pobres. E os detonados pelo sistema detonam quem estiver mais à mão.

Em outro exemplo oligárquico, e este é bem revelador em sua singeleza, nossa cultura do "homem de bem" é tão racista que foi capaz de criar uma praga ou chaga do "gato preto". Por que não há maldade no cara-pálida?

Enfim, qualquer um poderá dizer que nada de pior do que aconteceu foi pessoal...claro, tudo é impessoal, especialmente para as “pessoas de bem”. De bem para quem? Suas vidas estão no presente, e cheias de presentes.

Nesta “nova” ideologia, para nosso pesadelo, sonhamos com os sonhos dos outros. De todo modo, seguimos felizes, por pensarmos que somos muito criativos na arte de ver e de esconder.

Estamos numa fase (autismo social) em que se pode eliminar o Outro como se alisa um gato – ou brincar com um cão, do mesmo modo que não se aproxima da criança que está na rua.

O medo e a distância – é passado o tempo do “medo à distância social” – provam que a criança é da rua, brotou por ali, e o cão foi só abandonado.

 A bibliografia está nas entrelinhas. Está em cada linha. Como o objetivo é que cada um leia como quiser, de nossa parte não haverá livro.


Autor

  • Vinício Carrilho Martinez

    Pós-Doutor em Ciência Política e em Direito. Coordenador do Curso de Licenciatura em Pedagogia, da UFSCar. Professor Associado II da Universidade Federal de São Carlos – UFSCar. Departamento de Educação- Ded/CECH. Programa de Pós-Graduação em Ciência, Tecnologia e Sociedade/PPGCTS/UFSCar Head of BRaS Research Group – Constitucional Studies and BRaS Academic Committee Member. Advogado (OAB/108390).

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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MARTINEZ, Vinício Carrilho. Da política ao antidireito. A história de quem não-pode ser. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 23, n. 5584, 15 out. 2018. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/68754. Acesso em: 28 mar. 2024.