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Da análise jurídica do desenquadramento pela Prefeitura Municipal de São Paulo do regime de ISS fixo das sociedades simples uniprofissionais de contabilidade

Da análise jurídica do desenquadramento pela Prefeitura Municipal de São Paulo do regime de ISS fixo das sociedades simples uniprofissionais de contabilidade

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O artigo versa sobre os aspectos jurídicos relativos ao desenquadramento dos escritórios de contabilidade do regime especial de tributação fixa do ISS, com efeito retroativo, que vem sendo praticado pela Prefeitura Municipal de São Paulo.

1. Introdução

Conforme é sabido, muitos contribuintes, para o exercício de profissão intelectual, como é o caso de contadores, utilizam-se de pessoa jurídica na consecução de seus objetivos, especialmente pela forma e constituição de sociedade uniprofissional, do tipo simples limitada, com objeto social exclusivo de exploração da atividade de prestação de serviços. Nestes casos, o instrumento societário, leia-se, contrato social, encontra-se arquivado no registro civil de pessoas jurídicas. Outrossim, vale dizer que nesta situação, o quadro de sócios conta tão somente com profissionais especializados devidamente inscritos no conselho regional de profissão regulamentada.

Os fiscos municipais, em razão de sua competência constitucional de tributar o Imposto Sobre os Serviços (ISS), vêm elegendo como foco, fiscalizando e excluindo do regime especial de tributação, as sociedades que prestam exploração de serviços intelectuais, sem se ater aos critérios jurídicos constitucionais e legais que envolvem a questão. Ressalte-se que tais fiscalizações e desenquadramentos são levados a cabo ainda que tais sociedades possuam como sócios apenas profissionais especializados, que detém inscrições em seus respectivos conselhos de profissão regulamentada, tais como contadores.

Tal fato pode ser comprovado pelos diversos acórdãos que vem sendo proferidos pelo órgão administrativo competente para julgamento de recursos referentes às controvérsias relativas aos tributos municipais (como é o caso do ISS), qual seja, o Conselho Municipal de Tributos – que balizam a postura do Município de São Paulo no trato deste tema.

O presente trabalho visa realizar o devido enquadramento jurídico sobre a matéria, sempre à luz do primado constitucional e seu exercício sobre o sistema jurídico tributário brasileiro, avaliando a postura adotada pelo Município de São Paulo, especialmente para verificar se o trato do tema respeita o princípio da legalidade e suas derivações, desafio que se impõe à realidade, notadamente, à municipal.

A pesquisa caminhará pela lei e pela jurisprudência buscando avaliar a prática jurídica, seus desenhos e limites. Ao final, apresentaremos as conclusões sobre o tema, identificando ao longo do trabalho, se houve alguma violação capaz de macular a postura fiscal.


2. Do histórico da legislação e postura da Municipalidade de São Paulo balizador dos desenquadramentos do Regime Especial de Recolhimento do ISS.

O Regime Especial de Recolhimento do ISS, regime especial foi previsto primitivamente no § 3º do artigo 9º, do Decreto-Lei nº 406/68, que dispunha:

Art 9º A base de cálculo do imposto é o preço do serviço.

[...]

§ 3° Quando os serviços a que se referem os itens 1, 4, 8, 25, 52, 88, 89, 90, 91 e 92 da lista anexa forem prestados por sociedades, estas ficarão sujeitas ao imposto na forma do § 1°, calculado em relação a cada profissional habilitado, sócio, empregado ou não, que preste serviços em nome da sociedade, embora assumindo responsabilidade pessoal, nos termos da lei aplicável.

Além do Decreto-Lei nº 406/68, o qual teve os dispositivos supratranscritos devidamente recepcionados pela Constituição Federal de 1988, o Imposto Sobre Serviços de Qualquer Natureza (ISSQN), atualmente, é também regulamentado em âmbito federal pela Lei Complementar 116/2003, a qual, destaque-se, não revogou o Art. 9º e parágrafos do referido Decreto-Lei.

Em âmbito Municipal, no caso do Município de São Paulo, a adoção do Regime Especial de Recolhimento de ISS por determinadas categorias profissionais é atualmente regulamentada pelo Art. 15 da Lei nº 13.701/2003.

Segundo o inciso II, do referido Art. 15, da acima lei citada, quando os serviços de Contabilidade, (inclusive serviços técnicos e auxiliares) forem prestados por sociedade constituída por profissionais (sócios, empregados ou não) habilitados ao exercício da mesma atividade que prestem serviços de forma pessoal, em nome da sociedade, assumindo responsabilidade pessoal, nos termos da legislação específica, tal sociedade faria jus ao enquadramento no Regime Especial de Recolhimento do ISS, sendo agraciada com recolhimento de valor fixo multiplicado pelo número de profissionais habilitados, bem como pela dispensa de obrigatoriedade de emissão e escrituração de documentos fiscais. Confira-se:

Art. 15. Adotar-se-á regime especial de recolhimento do Imposto :

[...]

II – quando os serviços descritos nos subitens 4.01, 4.02, 4.06, 4.08, 4.11, 4.12, 4.13, 4.14, 4.16, 5.01, 7.01 (exceto paisagismo), 17.13, 17.15, 17.18 da lista do "caput" do artigo 1º, bem como aqueles próprios de economistas, forem prestados por sociedade constituída na forma do parágrafo 1º deste artigo, estabelecendo-se como receita bruta mensal o valor de R$ 800,00 (oitocentos reais) multiplicado pelo número de profissionais habilitados.

§ 1º As sociedades de que trata o inciso II do "caput" deste artigo são aquelas cujos profissionais (sócios, empregados ou não) são habilitados ao exercício da mesma atividade e prestam serviços de forma pessoal, em nome da sociedade, assumindo responsabilidade pessoal, nos termos da legislação específica.

[...]

§ 3º Os prestadores de serviços de que tratam os incisos I e II do "caput" deste artigo ficam dispensados da emissão e escrituração de documentos fiscais.

Art. 1º O Imposto sobre Serviços de Qualquer Natureza - ISS tem como fato gerador a prestação de serviços constantes da seguinte lista, ainda que não constitua a atividade preponderante do prestador:

[...]

17 - Serviços de apoio técnico, administrativo, jurídico, contábil, comercial e congêneres.

[...]

 17.18 - Contabilidade, inclusive serviços técnicos e auxiliares. (grifamos)

Face à previsão contida no §1º, do inciso II, do art. 15 da Lei 13.701/2003, a Municipalidade passou a exigir que os Contribuintes que pretendessem permanecer ou ingressar no Regime Especial de Recolhimento do ISS, se posicionassem mediante requerimento endereçado à Autoridade Fazendária Municipal, a fim de que após a análise dos requerimentos e das características de cada contribuinte, fosse deliberado seu enquadramento ou desenquadramento na forma dos novos parâmetros estabelecidos (nova numeração de códigos de serviços).

Assim sendo, diversos contribuintes nesta situação foram submetidos ao crivo da Autoridade Fazendária Municipal a qual, mediante apreciação e deliberação acerca de novo requerimento de enquadramento no Regime Especial, ratificou ou não o enquadramento até então desfrutado pelo setor, sendo que à partir de 01.03.2004, passaram a ser categorizados junto ao Cadastro Municipal de Contribuintes, segundo os novos parâmetros de classificação, sob o Código de Serviço nº 03620 (Contador / Técnico em contabilidade sujeito a recolhimento de ISS em valor fixo, multiplicado pelo número de profissionais habilitados).

Frise-se que para análise do pedido de enquadramento é necessário, sob pena de indeferimento, que o contribuinte instrua o requerimento com os seguintes documentos: RG e CPF do signatário; Cópia da Ficha de Dados Cadastrais (FDC); Cópia do Instrumento de Constituição da Sociedade e Registro no Órgão de Classe fiscalizador para o caso de enquadramento no Regime Especial.

Desse modo, verifica-se que é dado conhecimento documental a Autoridade Fazendária acerca de todas as informações e características essenciais das sociedades, a fim de que a Autoridade possa deliberar pelo deferimento ou não do enquadramento na forma da Lei, tratando-se, portanto, a decisão de enquadramento da sociedade no Regime Especial de Recolhimento de ISS de ato administrativo discricionário da Autoridade Fazendária.

Ocorre, porém, que em 22/07/2015, foi promulgada a Lei Municipal 16.240/2015 que instituía o Programa de Regularização de Débitos (PRD) para empresas que estivessem cadastradas no Regime Especial de Recolhimento de ISS das Sociedades Uniprofissionais (SUPs), mas que por novos critérios do Município não mais se enquadrariam nesse regime e que teriam, portanto, segundo a referida Lei, condições vantajosas para quitação do saldo devedor de ISS.

Em breve síntese, a Prefeitura Municipal de São Paulo publicou em seu Portal na Internet (http://www.capital.sp.gov.br/portal/noticia/5977) os motivos e os procedimentos abarcados pelo PRD, conforme reproduzimos a seguir:

A Prefeitura de São Paulo regulamentou no fim da última semana, o Programa de Regularização de Débitos (PRD), que visa promover o pagamento dos débitos relativos ao Imposto Sobre Serviços de Qualquer Natureza (ISS) dos contribuintes desenquadrados da condição de Sociedades Uniprofissionais (SUPs), com menor custo financeiro, relativamente ao período em que estiveram enquadradas indevidamente como SUPs. A regulamentação foi feita por meio do decreto 56.378/2015, publicado no Diário Oficial da Cidade (DOC) de sábado (29)e que altera o Regulamento do ISS no município.

Para incentivar a regularização dessas empresas, em caráter excepcional, os débitos relativos ao período em que o contribuinte esteve enquadrado indevidamente como SUP serão remitidos e as infrações a eles relacionadas serão anistiadas até o limite de R$ 1milhão. Os valores que excederem um milhão de reais poderão ser parcelados em até dez anos, com desconto de 80% nos juros e na multa. Para os contribuintes que optarem pelo pagamento em parcela única, o desconto será de 100% nos juros e na multa. O PRD foi instituído pela Lei nº 16.240, de 22 de julho de 2015 e beneficia, entre outras categorias, médicos e arquitetos.

A partir deste ano, visando regularizar sua situação cadastral referente ao regime especial das sociedades uniprofissionais, os contribuintes atualmente enquadrados como SUP, cerca de 30 mil, deverão preencher e enviar a Declaração Eletrônica das Sociedades Uniprofissionais (D-SUP). A D-SUP é um formulário eletrônico obrigatório, onde as sociedades prestarão informações sobre a empresa e suas atividades.

De acordo com os parâmetros estabelecidos previamente, o sistema informará se o contribuinte permanecerá enquadrado ou se será desenquadrado do regime especial. Na sequência, dentro do próprio sistema, se o contribuinte for desenquadrado, o mesmo irá preencher as informações requisitadas para a apuração do ISS devido, desde a data de seu desenquadramento, respeitado o período decadencial. Dessa forma, o contribuinte poderá regularizar sua situação, aderindo ao PRD, com o benefício da espontaneidade.

Todo o processo será realizado de forma eletrônica, via Internet, sem necessidade de comparecimento aos postos de atendimento da Secretaria Municipal de Finanças e Desenvolvimento Econômico. O acesso ao sistema D-SUP estará disponível a partir do dia 21. De acordo com a lei que criou o PRD, a não apresentação da D-SUP implicará no desenquadramento de ofício do regime especial de recolhimento das Sociedades de Profissionais (SUPs) e na perda dos benefícios do Programa de Regularização de Débitos. Em caso de dúvidas, o contribuinte poderá enviar e-mail para a Secretaria de Finanças. Os contribuintes que já foram desenquadrados e que possuam débitos de ISS relativos ao período em que estiveram indevidamente enquadrados como SUP também poderão aderir ao PRD, também no site da Pasta.

(grifamos)

Ressalte-se que a Lei 16.240/2015 não elencava quais as hipóteses de desenquadramento, sendo certo que conforme o § 6º, do Art. 1º, caberia à Secretaria Municipal de Finanças e Desenvolvimento Econômico identificar os sujeitos passivos sujeitos ao desenquadramento, o que, conforme noticiado no comunicado supra reproduzido seria realizado através do sistema eletrônico (Aplicativo) destinado a esta finalidade pela Secretaria de Finanças do Município.

Para regulamentação do procedimento de desenquadramento através de sistema eletrônico foi, então, publicada em 19/09/2015 a Instrução Normativa SF/SUREM nº 13, a qual aprovou a Declaração Eletrônica das Sociedades de Profissionais (D-SUP) através da qual o sistema verificaria a regularidade do enquadramento e promoveria automaticamente as devidas alterações cadastrais, ou seja, o desenquadramento do contribuinte do Regime Especial de Recolhimento do ISS.

Instrução Normativa SF/SUREM nº 13

Art. 4º. Uma vez entregue a D-SUP, o sistema fará a verificação da regularidade do enquadramento do Declarante no Regime Especial previsto no Art. 15 da Lei nº 13.701/2003 e, se for o caso, promoverá automaticamente as devidas alterações cadastrais.

Ainda, o Art. 6º da referida Instrução Normativa dispõe que a eventual não entrega da D-SUP nos prazos previstos implicará no desenquadramento do contribuinte do regime especial previsto no artigo 15 da Lei nº 13.701, de 2003, a partir de 1º de janeiro do exercício subsequente àquele em que a declaração deveria ter sido entregue.

Art. 6º A não entrega da D-SUP nos prazos previstos no artigo anterior implicará o desenquadramento do contribuinte do regime especial previsto no artigo 15 da Lei nº 13.701, de 2003, a partir de 1º de janeiro do exercício subsequente àquele em que a declaração deveria ter sido entregue.

§ 1º A hipótese de desenquadramento de que trata este artigo não impede a verificação da regularidade fiscal e cadastral do contribuinte, através de operação fiscal.

§ 2º O contribuinte poderá recorrer do desenquadramento de que trata o caput deste artigo, no prazo de 30 (trinta) dias, mediante o protocolo de processo administrativo na Praça de Atendimento da Secretaria Municipal de Finanças e Desenvolvimento Econômico.

Em caso de desenquadramento, a formalização do pedido de ingresso no PRD deveria ser efetuada pelo contribuinte até o dia 30/12/2015, conforme previsto no § 6º, do Art. 2º, do Decreto nº 56.378/2015 de autoria do Prefeito Municipal, a seguir transcrito:

Art. 2º O ingresso no PRD será efetuado por solicitação do sujeito passivo, mediante a utilização de aplicativo específico disponibilizado no endereço eletrônico da Secretaria Municipal de Finanças e Desenvolvimento Econômico na internet.

[...]

§ 6º Ressalvado o disposto no § 7º deste artigo, a formalização do pedido de ingresso no PRD deverá ser efetuada até o dia 30 de dezembro de 2015.

Seguindo estritamente a orientação normativa municipal os contribuintes se viram obrigados a preencher adequadamente sua D-SUP/2015 no prazo previsto na legislação específica, inclusive preenchendo o “Questionário de Hipóteses de Desenquadramento”, pelo qual através das respostas dadas pelo contribuinte a um rol de perguntas, o sistema eletrônico definiria, automaticamente, se aquele contribuinte faria jus a permanecer no enquadramento ou se deveria ser desenquadrado pelo não preenchimento dos requisitos.

Relativamente a D-SUP/2015 e “Questionário de Hipóteses de Desenquadramento” entregue, em muitos dos casos, não houve qualquer óbice ao enquadramento dos escritórios de contabildade na condição de beneficiário do Regime Especial de Recolhimento de ISS, ratificando mais uma vez esta condição.

Ocorre, porém, que um fato novo se mostrou relevante e, provavelmente, o grande responsável pela origem de numerosos autos de infração lavrados contra o setor. Trata-se da criação do “Questionário de Hipóteses de Desenquadramento” contido na D-SUP/2016, cujo vencimento de entrega ocorreu no dia 31/10/2016. Tratou-se da inclusão, no dia 05/09/2016 – após o encerramento do prazo para adesão ao PRD (30/12/2015) e às vésperas da data de vencimento para entrega da D-SUP/2016 (31/10/2016) – da seguinte questão no “Questionário de Hipóteses de Desenquadramento”

Esta sociedade adota o modelo de responsabilidade limitada, constando em seu nome empresarial a expressão “Limitada” ou “LTDA”?

Caso a resposta conferida a essa questão fosse positiva (“SIM”), o sistema retornava a seguinte informação impeditiva do enquadramento na sociedade no Regime Especial de Recolhimento do ISS:

FATORES IMPEDITIVOS

Listagem dos fatores impeditivos ao enquadramento no regime especial de recolhimento das sociedades uniprofissionais – SUP declarados:

Foi declarado que desde a data 11/11/2003, a sociedade incorre em impedimento ao enquadramento no regime especial de recolhimento das sociedades uniprofissionais – SUP, conforme resposta afirmativa à pergunta “Esta sociedade adota o modelo de responsabilidade limitada, constando em seu nome empresarial a expressão “Limitada” ou “LTDA”?. 

Diante da reposta afirmativa a tal questão, o sistema da Secretaria de Finanças automaticamente identificava a sociedade como limitada, e procedia ao seu desenquadramento do regime especial de tributação do ISS previsto para as sociedades uniprofissionias, com efeitos retroativos até a data informada, abrangendo os últimos cinco anos.

Obviamente que tal “armadilha fiscal”, foi arrebatadora para milhares de sociedades uniprofissionais que adotavam o modelo de sociedade simples uniprofissional, do tipo limitada, nos exatos moldes previstos pelo Código Civil. Contudo, fulcral ressaltar o fato de uma Sociedade Simples adotar o tipo Limitada, não a transforma, por óbvio, em Sociedade Empresarial Limitada e não pode ser a razão para a exclusão do regime de Sociedades Uniprofissionais com a imposição de uma arbitrária fiscalização retroativa. Inclusive, ressalte-se, tal condição sempre foi aceita pela Municipalidade.

Para melhor compreensão dos fatos e do direito, passemos a explorar com mais detalhes cada uma das ilegalidades apuradas na postura municipal, implicando em milhares de casos que vêm lotando tanto os órgãos julgadores administrativos como os judiciais  que tratam do desenquadramento da sociedade do regime especial de apuração das sociedades uniprofisisonais. 

3. Da ofensa ao Decreto-Lei nº 406/68 – status de lei complementar – ilicitude de inserção de novos critérios jurídicos pelo ente municipal por meio de súmula jurisprudencial.

Conforme consta de diversos julgamentos do Conselho Municipal de Tributos (CMT) de São Paulo  a Súmula Administrativa n.º 4 é invocada como fundamentação jurídica para o desenquadramento Regime Especial de Recolhimento do ISS e para a imposição tributária, cujo teor é o seguinte:

4 - As sociedades civis por quota de responsabilidade não gozam do tratamento tributário de regime especial de recolhimento do ISS, previsto no parágrafo terceiro, do artigo 9º, do Decreto 406/68 e artigo 15, parágrafo primeiro, lei 13.701/03.

Não obstante o anseio fiscal, a famigerada súmula deu origem a critérios que não estão previstos na legislação vigente, o que viola frontalmente a hierarquia das normas e o princípio da legalidade.

Como se sabe, o artigo 97 do Código Tributário Nacional esmiúça o princípio constitucional da legalidade tributária ao afirmar que somente a lei pode estabelecer a instituição, extinção, majoração e a definição do fato gerador da obrigação tributária. Como bem pontua Hugo de Brito:

criar o tributo não é apenas dizer que ele está criado. Criar o tributo é estabelecer todos os elementos necessários à determinação da expressão monetária e do sujeito passivo da respectiva obrigação. 

Desta feita, o princípio da legalidade tributária não significa tão somente a autorização concedida pelo Poder Legislativo para a cobrança de tributos: envolve a necessidade de uma observância de se “definir in abstracto todos os aspectos relevantes para que in concreto, se possa determinar quem terá de pagar, quanto, a que, à vista de que fatos ou circunstâncias”.

Como bem observado por Soares de Melo, o princípio da legalidade: 

[...] implica o princípio da tipicidade, que tem como caracteres a observância de numerus clausus (vedando a utilização de analogia e a criação de novas situações tributáveis), taxatividade (enumeração exaustiva dos elementos necessários à tributação), exclusivismo (elementos suficientes) e determinação (conteúdo da decisão rigorosamente prevista em lei) [...] A tipicidade cerrada funda-se na premissa de que o legislador contempla todos os elementos da hipótese de incidência tributária relativos à obrigação principal (credor, devedor, materialidade, base de cálculo, alíquota, momento e local da ocorrência do denominado fato gerador), e aos deveres instrumentais (notas e livros fiscais, informações). Significa a completude do sistema jurídico, prestigiando-se os princípios da segurança e certeza do direito.

A importância do princípio da legalidade tributária alcança um nível de constitucionalização ímpar em nosso sistema. Sua magnitude deve ser observada por todos os poderes constituídos bem como por todos os contribuintes que possuem o direito de combater quaisquer relativizações a tal princípio.

Como sabemos, nosso sistema é hierarquizado, com a Constituição ocupando o ápice da cadeia normativa. O próprio artigo 59  da Constituição elenca um rol de espécies normativas que compreendem o processo legislativo. A primeira categoria, as Emendas Constitucionais, tem a função de efetuar modificações naquela, sempre com um processo legislativo constitucional mais restrito e dificultoso. Após as Emendas, o texto Constitucional traz à baila as Leis Complementares, com a função de complementar a disciplina de determinadas matérias da Constituição Federal mediante um quórum de aprovação mais específico que o das Leis Ordinárias. Nas palavras de Luciano Amaro, as Leis Complementares:

[...] não têm a rigidez das normas constitucionais, nem a flexibilidade das leis ordinárias. Isso lhes dá estabilidade maior que a das leis comuns, evitando que se sujeitem a modificações ao sabor das maiorias ocasionais do Congresso Nacional. 

Ao realizarmos a leitura do artigo 146 de nossa CF/88, percebemos que ele esmiúça as matérias tributárias específicas que só poderão ser tratadas por meio de Lei Complementar:

Art. 146. Cabe à lei complementar:

I - dispor sobre conflitos de competência, em matéria tributária, entre a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios;

II - regular as limitações constitucionais ao poder de tributar;

III - estabelecer normas gerais em matéria de legislação tributária, especialmente sobre:

a) definição de tributos e de suas espécies, bem como, em relação aos impostos discriminados nesta Constituição, a dos respectivos fatos geradores, bases de cálculo e contribuintes;

b) obrigação, lançamento, crédito, prescrição e decadência tributários; [...] (grifamos)

Com relação ao papel geral da Lei Complementar tributária, Luciano Amaro esclarece:

Em rigor, a disciplina ‘geral’ do sistema tributário já está na Constituição; o que faz a lei complementar é, obedecido o quadro constitucional, aumentar o grau de detalhamento dos modelos de tributação criados pela Constituição Federal. Dir-se-ia que a constituição desenha o perfil dos tributos (no que respeita à identificação de cada tipo tributário, aos limites do poder de tributar etc.) e a lei complementar adensa os traços gerais dos tributos preparando o esboço que, finalmente será utilizado pela lei ordinária, à qual compete instituir o tributo, na definição exaustiva de todos os traços que permitam identificá-lo na sua exata dimensão, ainda abstrata, obviamente, pois a dimensão concreta dependerá da ocorrência do fato gerador que, refletindo a imagem minudentemente desenhada na lei, dará nascimento à obrigação tributária. 

Em outros termos, a Lei Complementar tem o condão de hierarquizar determinadas matérias, reservadas a ser manejadas apenas por meio deste veículo normativo específico. A ideia é que o sistema se torna escalonado e hierarquizado para privilegiar as garantias do cidadão contribuinte.

Contudo, no presente caso, uma súmula de jurisprudência é utilizada para inserir critérios que não constam na Legislação Complementar balizadora do ISSQN. Para piorar ainda mais o cenário, a mesma súmula é invocada para desconstituir toda uma situação já consolidada e reger a imposição de multas e lançamentos retroativos.

Conforme inicialmente delineado, os contribuintes da categoria de contador sempre se revestiram do tipo societário “Ltda.” (limitada) desde o início de suas atividades, sendo devidamente enquadrada, sob código 02852, no Regime Especial de Recolhimento do ISS, regime especial esse previsto primitivamente no § 3º do artigo 9º, do Decreto-Lei nº 406/68, que dispunha:

Art 9º A base de cálculo do imposto é o preço do serviço.

[...]

§ 1º Quando se tratar de prestação de serviços sob a forma de trabalho pessoal do próprio contribuinte, o impôsto será calculado, por meio de alíquotas fixas ou variáveis, em função da natureza do serviço ou de outros fatores pertinentes, nestes não compreendida a importância paga a título de remuneração do próprio trabalho.

[...]

§ 3° Quando os serviços a que se referem os itens 1, 4, 8, 25, 52, 88, 89, 90, 91 e 92 da lista anexa forem prestados por sociedades, estas ficarão sujeitas ao imposto na forma do § 1°, calculado em relação a cada profissional habilitado, sócio, empregado ou não, que preste serviços em nome da sociedade, embora assumindo responsabilidade pessoal, nos termos da lei aplicável.

Além do Decreto-Lei nº 406/68, que teve os dispositivos supratranscritos devidamente recepcionados pela Constituição Federal de 1988, o Imposto Sobre Serviços de Qualquer Natureza (ISSQN) é também regulamentado, atualmente, em âmbito federal, pela Lei Complementar 116/2003, a qual não revogou o Art. 9º e parágrafos do referido Decreto-Lei.

Como se depreende da leitura dos parágrafos acima elencados, a legislação federal prevê, no § 1º, duas espécies distintas de alíquotas para prestação de serviços sob a forma de trabalho pessoal do próprio contribuinte – fixas ou variáveis em função da natureza do serviço. Quando o serviço é prestado pelo próprio contribuinte, de forma pessoal, temos alíquotas fixas, ao passo que, quando prestado por empresas, se sujeitam às alíquotas variáveis.

Contudo, de leitura indissociável, o §3º define as sociedades de profissionais liberais que, por também prestarem os serviços de forma “pessoal” (e não por meio de sociedade empresária – não pessoal), se sujeitam a alíquotas fixas. São exemplos corriqueiros desta realidade: as sociedades simples de advogados, médicos, dentistas, enfermeiros, arquitetos, psicólogos e, como é o presente caso, de contadores. Todas profissões liberais regulamentadas por seus respectivos órgãos de classe. 

A razão finalística da norma em questão, o §3º do citado Decreto-Lei, é garantir a tributação privilegiada de todos os profissionais liberais que, individualmente ou em forma de sociedade, prestam, por força de lei, seus serviços de forma e responsabilidade pessoal. A opção ou a necessidade pela prestação do serviço por meio de sociedades, se justifica apenas pela necessidade de seus sócios conjugarem esforços para melhor atingirem os fins visados, que, individualmente, não lhes seria possível de forma eficiente.

Contudo, vale sempre ressaltar, no caso das sociedades simples, são sempre os próprios profissionais que prestam e assumem a responsabilidade pelos serviços. De modo totalmente diverso, nas sociedades do tipo “empresarial”, é de pequena importância a pessoa dos sócios, que, particularmente, nenhum serviço prestam e nenhuma responsabilidade pessoal assumem perante o usuário.

Para fins tributários, e para a incidência da norma de tributação privilegiada, encontrada no §3º do Decreto-Lei 406/68, o crucial é a prestação dos serviços pelos sócios que integram a sociedade simples de contadores – sociedade uniprofissional. Seus clientes procuram a sociedade pelo serviço prestado de forma pessoal pelos seus integrantes. Obviamente que a responsabilidade destes será sempre pessoal, independentemente do tipo societário adotado.

Tanto é assim que o próprio artigo 1.177 do Código Civil, ao tratar do Contabilista, estabelece:

Seção III

Do Contabilista e outros Auxiliares

Art. 1.177. Os assentos lançados nos livros ou fichas do preponente, por qualquer dos prepostos encarregados de sua escrituração, produzem, salvo se houver procedido de má-fé, os mesmos efeitos como se o fossem por aquele.

Parágrafo único. No exercício de suas funções, os prepostos são pessoalmente responsáveis, perante os preponentes, pelos atos culposos; e, perante terceiros, solidariamente com o preponente, pelos atos dolosos.

Contudo, a atual postura municipal de São Paulo de desenquadrar os escritórios de contabilidade, leia-se, sociedade uniprofissional de contadores, do regime especial de tributação previsto na legislação federal, a fim de ser adotada a mesma base de cálculo das sociedades empresárias, fundamentando juridicamente com base na Súmula de Jurisprudência Administrativa nº 4. Fica nítido que os critérios para o desenquadramento são contrários ao disposto no Decreto Lei 406/68 e na Lei Municipal no 13.701/2003. Confira-se as decisões do CMT:

Processo Administrativo nº 6017.2018/0017407-0 – 4ª Câmara Julgadora do Conselho Municipal de Tributos

RECURSO ORDINÁRIO. NULIDADE POR VIOLAÇÃO AO ART.148 DO CTN. INEXISTÊNCIA. ALEGADA NULIDADE POR VIOLAÇÃO AO DEVIDO PROCESSO LEGAL E POR CERCEAMENTO DE DEFESA DO CONTRIBUINTE. INOCORRÊNCIA. HOMOLOGAÇÃO TÁCITA NÃO CONFIGURADA. OS PAGAMENTOS REALIZADOS SOB A FORMA DE SUP NÃO GUARDAM RELAÇÃO COM A MATERIALIDADE DOS FATOS GERADOS ABARCADOS PELO LANÇAMENTO, QUE SE REFEREM A SERVIÇOS PRESTADOS DE FORMA EMPRESARIAL. OBSERVÂNCIA AO DISPOSTO DO ART. 1º DA INSTRUÇÃO NORMATIVA SF/SUREM Nº 4/2016, CUJA INTERPRETAÇÃO NÃO PODE SER AFASTADA PELO CMT EM FACE DO DISPOSTO NO PARÁGRAFO ÚNICO DO ART.53 DA LEI Nº 14.107/2005. DESENQUADRAMENTO DO REGIME DE RECOLHIMENTO DE SUP DEVIDAMENTE MOTIVADO. AUSÊNCIA DOS REQUISITOS PARA MANUTENÇÃO COMO SOCIEDADE UNIPROFISSIONAL, DEVIDO À MANUTENÇÃO DE SÓCIO E ATIVIDADES FORA DO ESCOPO DA PROFISSÃO REGULAMENTADA, ALÉM DA ADOÇÃO DA FORMA DE SOCIEDADE LIMITADA. APLICAÇÃO DA SÚMULA DE JURISPRUDÊNCIA ADMINISTRATIVA Nº 4/2010. INDEVIDA APROPRIAÇÃO PRO RATA DA RECEITA CONTÁBIL EM FACE DA EXISTÊNCIA DE INFORMAÇÕES CONTÁBEIS MENSALMENTE DETALHADAS. NECESSÁRIOS AJUSTES NA BASE DE CÁLCULO PARA O PERÍODO DE JANEIRO DE 2012 A JANEIRO DE 2013, E NA BASE DE CÁLCULO DA MULTA POR FALTA DE EMISSÃO DE DOCUMENTOS FISCAIS NO MÊS DE JANEIRO DE 2013. INEXISTÊNCIA DE EMBARAÇO À FISCALIZAÇÃO. NECESSÁRIA ANULAÇÃO DO RESPECTIVO AUTO DE INFRAÇÃO. RECURSO ORDINÁRIO CONHECIDO E PARCIALMENTE PROVIDO. (destacamos)

Processo Administrativo nº 6017.2018/0005584-5 – 2ª Câmara Julgadora do Conselho Municipal de Tributos

ISS – DESENQUADRAMENTO DO REGIME DAS SOCIEDADES UNIPROFISSIONAIS PRELIMINARES: INOCORRÊNCIA DE DECADÊNCIA PARA ANULAÇÃO DO ATO DE ENQUADRAMENTO – AUSÊNCIA DE DIREITO ADQUIRIDO AO GOZO DO REGIME ESPECIAL – AUSÊNCIA DE VIOLAÇÃO AO CONTRADITÓRIO E À AMPLA DEFESA – INOCORRÊNCIA DA DECADÊNCIA PARA LANÇAMENTO DO TRIBUTO E DAS MULTAS PELO DESCUMPRIMENTO DE DEVERES INSTRUMENTAIS (EMISSÃO DE NOTAS COM DADOS INCORRETOS). APLICAÇÃO DO PRAZO PREVISTO NO ART. 173, I, DO CTN. MÉRITO: CONFIRMADO O DESCUMPRIMENTO DAS CONDIÇÕES ESTIPULADAS NA LEI MUNICIPAL Nº 13.701/03 PARA GOZO DO REGIME ESPECIAL – COMPROVAÇÃO DA PRESTAÇÃO DE SERVIÇO INCOMPATÍVEL COM O REGIME DE SUP - CARACTERIZAÇÃO COMO SOCIEDADE EMPRESÁRIA, ADOTANDO, INCLUSIVE, O MODELO DE SOCIEDADE LIMITADA. – INEXISTÊNCIA DE ALTERAÇÃO DE CRITÉRIOS JURÍDICOS – POSSIBILIDADE DE APLICAÇÃO DE MULTA, JUROS E CORREÇÃO MONETÁRIA. INCONSTITUCIONALIDADE DA MULTA: MULTA APLICADA NOS TERMOS DA LEGISLAÇÃO – IMPOSSIBILIDADE DE CONHECIMENTO DO RECURSO NESTE PONTO. RECURSO CONHECIDO PARCIALMENTE E IMPROVIDO POR UNANIMIDADE (destacamos)

Contudo, não se pode alterar a Legislação Complementar a respeito do tema para inserir critérios completamente distintos da legislação basiladora, ainda mais por meio de uma súmula administrativa. Em outros termos, com a adoção do entendimento estabelecido em sua Súmula n.º 04, foi criado um critério de exigência não previsto em lei, contrariando frontalmente o artigo 9º §3º do Decreto-lei n.º 406/68, o qual detém status de Lei Complementar e que disciplina, em nível nacional, a base de cálculo do ISSQN.

Ou seja, se em hipótese alguma poderia uma mera lei municipal trazer entendimento diverso do previsto no Decreto-Lei n.º 406/68 para exigência do ISSQN das sociedades uniprofissionais, com mais rigor deve ser rechaçada a adoção de súmula em sistema eletrônico, para desenquadrar os escritórios de contabilidade do regime especial de tributação e fundamentar cobranças retroativas.

Atualmente no Supremo Tribunal Federal no Recurso Extraordinário n.º 940.769/RS, com Repercussão Geral, discute-se a constitucionalidade de lei municipal poder alterar ou criar barreiras em relação à lei federal, no caso específico o Decreto-lei 406/68, que confere os requisitos para o gozo do regime especial. Se não cabe à legislação local criar embaraços que visam restringir as disposições da lei federal, muito menos súmulas poderiam criar interpretações restritivas e fundamentar cobranças.

Neste sentido, as palavras do Ministro Edson Fachin, ao receber o feito acima citado:

Ademais, a jurisprudência do STF se firmou no sentido da recepção do DL 406/1968 pela ordem constitucional vigente, assim como pela prevalência do cálculo do imposto por meio de alíquotas fixas, com base na natureza do serviço, não compreendendo a importância paga a título de remuneração do próprio labor. Assim, tem-se entendido que lei municipal que se insere na competência de lei complementar de índole nacional, alterando-lhes dispositivos e legislando sobre matéria que só a esta compete, ostenta o vício de inconstitucionalidade.

No mesmo sentido, destacamos julgamento do Superior Tribunal de Justiça, no RESP nº 34.326-8/MG:

EMENTA TRIBUTÁRIO. IMPOSTO SOBRE SERVIÇOS. SOCIEDADES PROFISSIONAIS. DEC.LEI Nº 406, ART. 9º, § 3º. Sociedades civis integradas por médicos para ministrar serviço especializado, com responsabilidade pessoal destes, e sem caráter empresarial, têm direito ao privilégio contido no § 3º, do art. 9º, do Decreto-Lei nº 406/68. Recurso conhecido, mas desprovido.

Portanto, mostra-se juridicamente inadmissível que uma súmula que disponha sobre o imposto, venha impor restrições, limites ou exigências em conflito com os termos estabelecidos pelo art. 9°, § 3° do Decreto-lei n° 406/68, razão pela qual sua aplicação pelo Município de São Paulo mostra-se “contra legem” e inconstitucional.

Diante do acima exposto, até aqui, parece-nos totalmente ilegal e arbitrária o entendimento do fisco do Município de São Paulo, o que enseja, por si só, a revisão dos atos de desenquadramento da sociedade do regime especial de recolhimento das sociedades uniprofissionais de contadores.


4. Da não aplicação do regime empresarial para sociedade simples – artigos 982, 983 e 966 do Código Civil – Da ilegalidade do afastamento do Regime Especial de Recolhimento do ISS (D-SUP)

A organização do profissional de contabilidade na forma de sociedade simples uniprofissional, formada exclusivamente por contadores, que prestam serviços em nome da sociedade de forma pessoal é comumente aceita e prevista na legislação pátria. Ressalte-se, o serviços em sua maioria são prestados pelos próprios sócios, de forma pessoal.

Conforme estabelecem os artigos 982 e 983 do Código Civil:

Art. 982. Salvo as exceções expressas, considera-se empresária a sociedade que tem por objeto o exercício de atividade própria de empresário sujeito a registro (art. 967); e, simples, as demais.

Parágrafo único. Independentemente de seu objeto, considera-se empresária a sociedade por ações; e, simples, a cooperativa.

Art. 983. A sociedade empresária deve constituir-se segundo um dos tipos regulados nos arts. 1.039 a 1.092; a sociedade simples pode constituir-se de conformidade com um desses tipos, e, não o fazendo, subordina-se às normas que lhe são próprias.

[...] (grifamos)

Também, o artigo 966, parágrafo único do Código Civil estabelece:

Art. 966. Considera-se empresário quem exerce profissionalmente atividade econômica organizada para a produção ou a circulação de bens ou de serviços.

Parágrafo único. Não se considera empresário quem exerce profissão intelectual, de natureza científica, literária ou artística, ainda com o concurso de auxiliares ou colaboradores, salvo se o exercício da profissão constituir elemento de empresa. (grifamos)

Por não serem considerados empresários, os profissionais das sociedades uniprofissionais, por exercerem pessoalmente suas atividades de profissões regulamentadas de modo pessoal, com responsabilidade ilimitada, não podem ser classificados como sociedades empresariais somente pelo fato da expressão “Limitada” em sua razão social. Vale ressaltar que seus documentos são registrados no competente órgão de classe e não na Junta Comercial do Estado.

Logicamente, para sobreviver no competitivo mercado de prestadores de serviços contábeis, a Sociedade Simples tem adequar seu corpo técnico de funcionários à realidade de mercado. Necessita possuir, obviamente, empregados que lhe fornecem apoio secundário para consecução de seus fins, tais como, TI (tecnologia da informação), atividades administrativas em geral, limpeza, atendimento e segurança, entre outros. Em outras palavras, são meras atividades-meio, que por si só, não desnaturam a natureza jurídica de sociedade simples uniprofisssional e não tem o condão de oferecer uma estrutura empresarial à sociedade.

Neste sentido, equivocado o entendimento do Município de São Paulo ao fazer suscitar questões como porte ou estrutura. Ora, ressaltamos, tal discrimen não consta da lei e não pode ser invocado para fundamentar cobrança, vez que o serviço, na sua essencialidade, é prestado de forma pessoal pelos sócios contadores.

Com relação à adoção do tipo societário Limitada, ainda mais óbvio que tal regime se aplica para suas atividades secundárias, tais como empréstimos em bancos e demais operações administrativas, mas nunca com relação à prestação de serviço de contabilidade, pois esta, por expressa determinação legal, será sempre pessoal e ilimitada – conforme já destacado no item acima – art. 1.177 parágrafo único do Código Civil. Tanto é verdade que em muitos dos casos os contribuintes são signatários de contratos de seguro de responsabilidade. É o que comumente se chama de diferenciar o negócio nuclear “core business” das atividades complementares – que qualquer sociedade simples que almeja o sucesso deve possuir.

Além da súmula não poder criar restrições ou interpretações previstas em Lei, ainda que fosse remotamente admitida essa possibilidade, o simples fato de ter a expressão “Limitada” ou “LTDA” não seria suficiente para impossibilitar o enquadramento como SUP pois se trata de sociedade simples uniprofissional.

Com a finalidade de esclarecer a ilegalidade que vem sendo perpetrada pela Municipalidade de São Paulo é importante trazer à tona que a responsabilidade pessoal do profissional contabilista no desempenho da atividade, a qual demanda o enquadramento no regime especial de tributação, não se confunde com a sua responsabilidade perante a sociedade; se ela é limitada ou ilimitada. Ou seja, existe uma confusão de conceitos nos desenquadramentos perpetrados pelo Município de São Paulo do Regime Especial de Tributação com a lavratura de autos de infração, especialmente por não se observar a correta natureza da atividade exercida, bem como a responsabilidade pessoal do profissional contador. A responsabilidade limitada do sócio perante a sociedade, não se confunde com a sua responsabilidade profissional, na qual se baseia o regime especial de tributação.

Assim, não é pelo fato de possuir a expressão “Limitada” que os escritórios de contabilidade passam automaticamente a serem sociedade empresária. Conforme reproduzido nos artigos 982 e 983 acima, tanto as sociedades simples quanto as sociedades empresárias podem ter sua forma societária como “sociedade limitada”. Para se verificar a diferença entre sociedade simples limitada e sociedade empresária, e a diferenciação entre sociedade de pessoas e sociedade de capital, devem ser destacados dois critérios: 1) grau de dependência da sociedade em relação a qualidades subjetivas dos sócios e 2) responsabilidade dos sócios nas suas obrigações.

Pelo primeiro critério, temos que na sociedade de capital a contribuição financeira, o investimento é muito mais importante do que o conhecimento técnico dos sócios, ou seja, o cunho econômico para o investimento é muito maior do que o conhecimento técnico para o exercício do objeto a ser prestado. Também, como segundo critério, a responsabilidade dos sócios diferencia as Sociedades Simples das Empresárias.

Em suma, o porte, a organização, a intensidade da produção, não são essenciais para a diferenciação. O elemento fundamental da diferenciação é a atividade intelectual. Nas palavras da doutrina:

[...] Em contrapartida, a sociedade que tem por objeto o exercício de atividade intelectual pura, mesmo organizada, não será empresária, por maior que seja sua organização, por mais intensa que seja sua produção, eis que a atividade intelectual (literária, artística ou científica) não se inclui entre as atividades próprias do empresário.

Estando isso claro, torna-se fácil compreender que a natureza empresarial de uma sociedade não é aferida pela sua esmerada organização, por sua estrutura nem pela intensidade com que desenvolve seu empreendimento. Uma sociedade de profissionais liberais, voltada, exclusivamente, para dar apoio ao exercício da atividade que motivou sua criação, na área médica ou da advocacia, por exemplo, é e sempre será́ uma sociedade simples. Aliás, fosse inserido o critério da estrutura ou da intensidade dos negócios na identificação de uma sociedade, ter-se-ia de admitir que, com a só́ expansão dos negócios, uma sociedade simples, em um determinado momento histórico, ver-se-ia obrigada a migrar de um regime para outro, isto é, cancelar seu registro no Oficio de Registro de Pessoas Jurídicas e abrir outro no Registro Público de Empresas Mercantis – uma situação de fato que levaria à absoluta insegurança jurídica.

Será́ empresária, porém, a sociedade que tiver por objeto, além do exercício de uma profissão intelectual, outra atividade organizada de produção ou circulação de bens ou de serviços, porquanto a atividade intelectual em tal caso caracteriza-se como elemento (parte integrante) da outra que a absorve, recaindo, por isso, na ressalva da parte final do art. 966, parágrafo único, do Código Civil. No exemplo dado, se a sociedade for constituída para o exercício da medicina combinado com hospedagem (spa, hospital etc.), a atividade médica passa a figurar como elemento do objeto social, que é mais amplo e a ela não se limita. Nessa sociedade não há o exercício exclusivo da medicina (da profissão intelectual), mas de um conjunto de atividades, que contam com o seu concurso . (grifamos).

Importante trazer à baila que, na Iª, III, IV e Vª Jornada de Direito Civil, foram aprovados os enunciados 57, 193, 194,195, 382 e 474, que se aplicam integralmente ao presente caso, com o seguinte teor:

Enunciado 57: Art. 983: A opção pelo tipo empresarial não afasta a natureza simples da sociedade.

Enunciado 193: Art. 966: O exercício das atividades de natureza exclusivamente intelectual está excluído do conceito de empresa.

Enunciado 194: Art. 966: Os profissionais liberais não são considerados empresários, salvo se a organização dos fatores da produção for mais importante que a atividade pessoal desenvolvida.

Enunciado 195: Art. 966: A expressão “elemento de empresa” demanda interpretação econômica, devendo ser analisada sob a égide da absorção da atividade intelectual, de natureza científica, literária ou artística, como um dos fatores da organização empresarial.

Enunciado 382: Nas sociedades, o registro observa a natureza da atividade (empresarial ou não - art. 966); as demais questões seguem as normas pertinentes ao tipo societário adotado (art. 983). São exceções as sociedades por ações e as cooperativas (art. 982, parágrafo único).

Enunciado 474:

Art. 983: Os profissionais liberais podem organizar-se sob a forma de sociedade simples, convencionando a responsabilidade limitada dos sócios por dívidas da sociedade, a despeito da responsabilidade ilimitada por atos praticados no exercício da profissão.

O tipo societário pode ser Limitada, mesmo para as sociedades de natureza Simples, observando o artigo 983, combinado com o artigo 982, parágrafo único, do Código Civil já acima destacados. Não há de se confundir limitação de responsabilidade do tipo societário com a ilimitada responsabilidade dos sócios na prestação dos serviços objeto da sociedade. Esta é o que, precipuamente, caracteriza a sociedade uniprofissional, e não é excluída pelo tipo societário utilizado na composição da sociedade. Inclusive, a competência para legislar sobre “direito das empresas” é exclusivamente federal, não cabendo ao município a interpretação divergente do que está estabelecido na lei, conforme exposto acima.

Todas estas conclusões impactam profundamente no diálogo com o Direito Tributário, vez que, a adoção do tipo societário, nos moldes exigidos pelo art. 983 do Código Civil, não tem o condão de desnaturar a norma de privilégio tributário das sociedades simples uniprofissionais.

Assim, os artigos 109 e 110 do Código Tributário Nacional estabelecem:

Art. 109. Os princípios gerais de direito privado utilizam-se para pesquisa da definição, do conteúdo e do alcance de seus institutos, conceitos e formas, mas não para definição dos respectivos efeitos tributários.

Art. 110. A lei tributária não pode alterar a definição, o conteúdo e o alcance de institutos, conceitos e formas de direito privado, utilizados, expressa ou implicitamente, pela Constituição Federal, pelas Constituições dos Estados, ou pelas Leis Orgânicas do Distrito Federal ou dos Municípios, para definir ou limitar competências tributárias.

Os artigos acima identificados não permitem que institutos, princípios e normas de direito civil sejam alterados pela legislação tributária. Os contribuintes são registrados nos Registros de Sociedades Civis – e não na Junta Comercial –, mas, conforme a lei civil, e responde perante o Conselho Regional de Contabilidade, o legítimo fiscalizador da atividade de contabilidade.

Nestes termos, a doutrina tributária especializada esclarece:

a adoção de forma societária não é discrímen a ser considerado apto para autorizar o legislador e a autoridade fazendária a dispensar tratamentos tributários diferenciados para os profissionais autônomos e para os profissionais liberais constituídos em sociedade. A forma societária tem o único e exclusivo intuito de união de esforços para a consecução de um bem comum, sem que tal circunstância possa caracterizar como de natureza empresária” .

Também a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça:

TRIBUTÁRIO. ISS. SOCIEDADE SIMPLES LIMITADA. CARÁTER EMPRESARIAL AFASTADO NA ORIGEM. SÚMULA 7/STJ. RECOLHIMENTO POR ALÍQUOTA FIXA. POSSIBILIDADE

1. A orientação da Primeira Seção do STJ firmou-se no sentido de que o tratamento privilegiado previsto no art. 9º, §§ 1º e 3º, do Decreto-Lei 406/68 somente é aplicável às sociedades uniprofissionais que tenham por objeto a prestação de serviço especializado, com responsabilidade pessoal dos sócios e sem caráter empresarial.

2. A forma societária limitada não é o elemento axial ou decisivo para se definir o sistema de tributação do ISS, porquanto, na verdade, o ponto nodal para esta definição é a circunstância, acolhida no acórdão, que os profissionais […] exercem direta e pessoalmente a prestação dos serviços”. (AgRg no AREsp 519.194/AM, Rel. p/ Acórdão Ministra REGINA HELENA COSTA, DJe 13/08/2015.)

3. No caso dos autos, não obstante a agravante ser uma sociedade limitada, o Tribunal de origem assentou que se ela dedica, precipuamente, à exploração do ofício intelectual de seus sócios, de forma pessoal, sem caráter empresarial, razão pela qual é cabível o benefício da tributação por alíquota fixa do Imposto sobre Serviços de Qualquer Natureza (ISSQN).

Agravo regimental provido.”

AgRg no AREsp 792878 / SP – Rel. Min. Humberto Martins – DJ 14/12/2015

Vale transcrever parte do voto do Ministro Relator:

O EXMO. SR. MINISTRO HUMBERTO MARTINS (Relator): Prospera a pretensão recursal de reforma da decisão prolatada. Consoante fixado no decisum ora agravado, a orientação da Primeira Seção do STJ firmou-se no sentido de que o tratamento privilegiado previsto no art. 9º, §§ 1º e 3º, do Decreto-Lei n. 406/68 somente é aplicável às sociedades uniprofissionais que tenham por objeto a prestação de serviço especializado, com responsabilidade pessoal dos sócios e sem caráter empresarial. Com efeito, a jurisprudência desta Corte chegou a afirmar que o benefício não se estende à sociedade limitada porque, nessa espécie societária, a responsabilidade do sócio é limitada ao capital social. Todavia, o entendimento foi reformulado no recente julgamento do Recurso Especial n. 1.512.652/RS, Rel. Min. Napoleão Maia, que tratou da aplicação da alíquota fixa do ISS à sociedade simples, que estava sendo enquadrada como empresária pelo mero fato de existir a responsabilização limitada dos sócios conforme sua cota social.

Na oportunidade ressaltou-se que “o requisito da organização dos fatores de produção é essencial para a configuração da sociedade empresária e não o mero fato de existir a repartição de responsabilidade interna concernente ao capital social”; isto é, “a forma societária limitada não é o elemento axial ou decisivo para se definir o sistema de tributação do ISS, porquanto, na verdade, o ponto nodal para esta definição é a circunstância, acolhida no acórdão, que as profissionais odontólogas exercem direta e pessoalmente a prestação dos serviços”. (grifamos)

Por todo o exposto, parece-nos claro que a adoção do termo LTDA. não tem o condão de afastar a sua natureza jurídica de sociedade simples uniprofissional e muito menos afastar o regime de recolhimento especial com a imposição retroativa de apurações tributárias.


5. Da Impossibilidade de revisão do ato administrativo – art. 24 da A Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro – Violação ao Princípio da Segurança Jurídica – Princípio da Vinculação do Atos Administrativos – Princípio Da Irretroatividade da Lei Tributária

O objetivo da municipalidade é claro – a Municipalidade e a Autoridade Fiscal buscam uma ilegal revisão de ato administrativos praticados, revisão essa que objetiva adequação do ato administrativo outrora praticado à lei ou a uma conveniência da própria Administração Pública, o que, em si, a ela não é vedado praticar, desde que respeitado o direito adquirido por terceiro de boa-fé, não sendo isso que se verifica na análise do tema.

Conforme estabelece o artigo 5º, inciso XXXVI, da Constituição Federal: “a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a cousa julgada”. A razão finalística da norma é preservar as relações que já ocorreram e se estabilizaram no passado, para que não haja insegurança, incerteza ou debate em relação a algo que já está sedimentado. Busca conceder valor ao princípio da segurança jurídica e da vinculação da administração aos atos administrativos.

Nas palavras de Pietro :

A segurança jurídica tem muita relação com a ideia de respeito à boa-fé. Se a Administração adotou determinada interpretação corno a correta e a aplicou a casos concretos, não pode depois vir a anular atos anteriores, sob o pretexto de que os mesmos foram praticados com base em errônea interpretação. Se o administrado teve reconhecido determinado direito com base em interpretação adotada em caráter uniforme para toda a Administração, é evidente que a sua boa-fé deve ser respeitada. Se a lei deve respeitar o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada, por respeito ao princípio da segurança jurídica, não é admissível que o administrado tenha seus direitos flutuando ao sabor de interpretações jurídicas variáveis no tempo.

Isto não significa que a interpretação da lei não possa mudar; ela frequentemente muda corno decorrência e imposição da própria evolução do direito. O que não é possível é fazê-la retroagir a casos já decididos com base em interpretação anterior, considerada válida diante das circunstâncias do momento em que foi adotada. (grifo nosso).

Ademais o Princípio da Vinculação da Administração Pública a seus próprios atos impede que a condição de SUP seja revista, ainda mais gerando efeitos retroativos. O ato administrativo, praticado por agente competente, goza de presunção de legalidade e legitimidade. A partir do momento em que o agente administrativo competente concluiu que o contribuinte se enquadrava como SUP, passou a produzir efeitos jurídicos desde então, vinculando a Administração Pública àquele ato.

Ora, se por meio de seu órgão competente, a Administração Pública concluiu, após examinados os dados e a atividade dos contribuintes, que os mesmos faziam jus ao regime de tributação especial, como é possível, agora, contrariar aquele ato com efeito retroativo, mudando o seu posicionamento com relação a período já anteriormente fiscalizado? Fato é que a Administração fica vinculada a seus atos, até mesmo em erro, o que se justifica em razão do princípio da segurança jurídica, uma vez que o contribuinte não pode ser penalizado por eventual erro cometido pela Administração.

Indubitavelmente, o novo ato de desenquadramento do regime especial, resulta, de reinterpretação dos mesmos fatos à luz de critério ilegal – a famigerada súmula administrativa como visto acima, ferindo a Segurança Jurídica, a Vinculação da Administração a seus próprios atos administrativos e à irretoratividade da lei.

Mas não é só, a nova postura do Município de São Paulo fere contundentemente o artigo 24 da Lei 13.655/18, que estabelece:

Art. 24. A revisão, nas esferas administrativa, controladora ou judicial, quanto à validade de ato, contrato, ajuste, processo ou norma administrativa cuja produção já se houver completado levará em conta as orientações gerais da época, sendo vedado que, com base em mudança posterior de orientação geral, se declarem inválidas situações plenamente constituídas.

Parágrafo único. Consideram-se orientações gerais as interpretações e especificações contidas em atos públicos de caráter geral ou em jurisprudência judicial ou administrativa majoritária, e ainda as adotadas por prática administrativa reiterada e de amplo conhecimento público. (grifamos). 

Também, afronta de forma violenta o Princípio da Irretroatividade Tributária, estampado no artigo 150, III, a, da Constituição Federal:

Art. 150. Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios:

III - cobrar tributos:

a) em relação a fatos geradores ocorridos antes do início da vigência da lei que os houver instituído ou aumentado; [...]

Outrossim, vale mencionar a Súmula 227 do antigo TFR, que já na década de oitenta esclarecia:

Tributário. Revisão do lançamento. Inadmissibilidade. Mudança no critério jurídico. “A mudança de critério jurídico adotado pelo fisco não autoriza a revisão de lançamento”.

As únicas hipóteses de retroatividade da lei tributária, podem ser encontradas no artigo 106, II, do Código Tributário Nacional, sendo que, o caso em tela não se encaixa em nenhuma delas. Estabelece a comentada norma:

Art. 106. A lei aplica-se a ato ou fato pretérito:

[...]

II - tratando-se de ato não definitivamente julgado:

a) quando deixe de defini-lo como infração;

b) quando deixe de tratá-lo como contrário a qualquer exigência de ação ou omissão, desde que não tenha sido fraudulento e não tenha implicado em falta de pagamento de tributo;

c) quando lhe comine penalidade menos severa que a prevista na lei vigente ao tempo da sua prática.

Por todo o exposto neste tópico, é de se concluir que o termo de desenquadramento desrespeita importantes princípios e regras do ordenamento positivo, sobretudo a segurança jurídica e a irretroatividade da lei tributária. Agrava ainda mais a situação, o ente fiscal exigir o tributo fora do regime especial objetivando desconstituir o passado dos contribuintes com a imposição de toda uma exigência tributária, com altas penalidades, única e exclusivamente com base em mudanças de critérios a que a própria Administração deu causa.


5. Conclusão

Nestes termos, a lição que se pode extrair do presente trabalho é que não se sustenta a postura que vem sendo adotada pelo Município de São Paulo, notadamente ao correto enquadramento jurídico-legal aplicável à matéria, vez que o desenquadramento das sociedades uniprofissionais do regime especial de tributação do ISS nos moldes que vem sendo perpetrado encontra-se eivado de diversas ilegalidades.

Como se verifica, a pretensão em desenquadrar os escritórios de contabilidade do regime especial de recolhimento do ISS das sociedades uniprofissionais com base em súmula administrativa, qual seja, a Súmula de Jurisprudência Administrativa nº 4, demonstra claramente o desrespeito ao princípio da legalidade, princípio este reconhecido como fundamental dentro do estado democrático de direito brasileiro, configurando apenas um mera voracidade arrecadatória, e pior, “contra legem”, em desrespeito ao disposto no Decreto Lei 406/68 e na Lei Municipal no 13.701/2003.

Soma-se ao acima reconhecido, a impossibilidade de se considerar as sociedades uniprofissionais de contabilidade como sociedades empresárias somente pelo fato da possuírem expressão “limitada” em sua razão social, eis que pelas características essenciais exercerem suas atividades de profissões regulamentadas de modo pessoal, com responsabilidade ilimitada, restando certo que neste caso o que importa é a essência, não a forma.

Ainda, a legislação tributária determina que institutos, princípios e normas de direito civil não podem ser alterados especialmente para fins arrecadatórios tributários, sendo certo que nos termos da lei civil, os escritórios de contabilidade são fiscalizados pelos conselhos regionais de contabilidade bem como são registrados nos Registros de Sociedades Civis.

E não é só. O ato de desenquadramento não merece prevalecer considerando a vedação legal de reinterpretação de fatos já analisados, nos termos da lei, pois se admitido confronta com a segurança jurídica, a vinculação da Administração a seus próprios atos administrativos, como também e vedação à irretroatividade da lei.

Neste sentido, pois por mais nobres que sejam os propósitos do fisco no trabalho de arrecadação em atenção aos interesses financeiros do Estado, no caso, o Munícipio de São Paulo, é certo que deve ser recebida com redobrada cautela e espírito crítico a adoção de mecanismos que possam desrespeitar o Direito, e ainda inviabilizar o normal desenvolvimento da vida civil ou das atividades comerciais dos agentes privados.


Bibliografia

MACHADO, Hugo de Brito. Teoria geral do direito tributário. 2015, p. 83.

AMARO, Luciano. Direito tributário brasileiro. 18. ed. São Paulo: Saraiva, 2012; Capítulo IV, item 3 (livro digital).

SOARES DE MELO, José Eduardo. Curso de direito tributário. 10. ed. São Paulo: Dialética, 2012, p. 19.

AMARO, Luciano. Direito tributário brasileiro. 2006, p. 168.

NETO, Alfredo Assis Gonçalves. Direito de Empresa. São Paulo: RT. 2017. Comentário ao artigo 982 (livro digital).

GRUPENMACHER, Betina Treiger, O ISS e a LC 116, ed. Dialética, p. 48, são Paulo, 2003.

DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. São Paulo: Atlas. 2013, p.86


Autores

  • Luiz Felipe de Toledo Pieroni

    Mestre em Direito Constitucional e Processual Tributário - PUC-SP. Especialista em Direito Tributário – IBET. Especialista em Direito Internacional Tributário – IBDT. Advogado em São Paulo e sócio da BSPLAW advogados.

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    Pós-Doutorando - PUC-SP; Doutor em Direito Tributário – PUC-SP, como aluno bolsista CNPQ – modalidade integral; Visiting Researcher convidado da IBFD - Amsterdã; Mestre em Direito Tributário – PUC-SP; Especialista em Direito Tributário – IBET; Especialista em Direito Processual Civil – PUC-SP; Tecnólogo em Gestão Pública – UNISUL; MBA em Legal Administration – EPD; Membro do Instituto Brasileiro de Direito Tributário; Membro da Associação Brasileira de Direito Financeiro; Membro da International Fiscal Association; Advogado OAB/SP 218.396; Professor e Palestrante em diversas instituições pelo país como PUC, USP, São Judas, LFG, OAB, etc; Autor de livros na área tributária; Sócio fundador do BSPLAW advogados. Parceiro oficial da firma Suíça Caputo & Partners no Brasil

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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

PIERONI, Luiz Felipe de Toledo; SIMÕES, Bata. Da análise jurídica do desenquadramento pela Prefeitura Municipal de São Paulo do regime de ISS fixo das sociedades simples uniprofissionais de contabilidade. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 23, n. 5640, 10 dez. 2018. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/69563. Acesso em: 28 mar. 2024.