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Anotações jusfilosóficas contemporâneas sobre a guerra

Anotações jusfilosóficas contemporâneas sobre a guerra

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No atual cenário mundial em que a paz aparece extremamente fragilizada, a contribuição da filosofia política e da filosofia do direito é fundamental para se repensarem algumas práticas.

INTRODUÇÃO

“(...)  a guerra precede o Estado, a diplomacia e a estratégia por vários milênios. A guerra é quase tão antiga quanto o próprio homem e atinge os lugares mais secretos do coração humano, lugares em que o ego dissolve os propósitos racionais, onde reina o orgulho, onde a emoção é suprema, onde o instinto é rei”, afirma John Keegan, professor da Real Academia Militar, Sandhurst, na Inglaterra (1995, p. 19). Para Keegan (p. 399), a própria história escrita do mundo é maculada pelas guerras, visto que muitos Estados nacionais nasceram de “guerras, conquistas, guerras civis ou lutas pela independência”.

Afinal, o que é guerra? Preliminarmente, utilizar-se-á o conceito insculpido no livro “Da Guerra”, cuja resposta do general prussiano Carl von Clausewitz (1996, p. 7) é a seguinte: “A guerra é pois um ato de violência destinado a forçar o adversário a submeter-se à nossa vontade. Para defrontar a violência, a violência mune-se com as invenções das artes e das ciências.” Michael Walzer (2003, p. 3), em “Guerras Justas e Injustas”, complementa: “A guerra situa-se numa outra realidade, na qual é reduzida a suas formas elementares e prevalecem o interesse pessoal e a necessidade.”

Grandes estadistas eram pessoas que compreendiam a possibilidade de usar a violência, colocando-a em prática para atingir seus fins, fossem, ou não guerreiros, gerando conflitos bélicos que deixaram marcas em povos inteiros, frustrando as expectativas de que, um dia, seus filhos e netos não sofreriam das intempéries que os mesmos passaram, explica Keegan (p. 399). “Nessas circunstâncias, homens e mulheres fazem o que precisam fazer para salvar a si mesmos e a suas comunidades; e não há lugar nem para a moral nem para a lei”, completa Walzer (2003, p. 4).

A noção de urbanidade cotidiana, a gentileza, entre outros traços característicos da civilidade, torna o espírito de cooperação na mola mestra do movimento de rotação do mundo, de tal maneira  que as pessoas, segundo Keegan (p, 399), na maior parte das vezes, tentem evitar a discórdia e as divergências. A urbanidade tem ambiente fértil quando há restrições impostas pela lei e a coerção por meio do policiamento.

Em nossa aceitação do policiamento, admitimos silenciosamente que o homem tem um lado negro em sua natureza que deve ser reprimido pelo medo de uma força superior. A punição é a sanção contra os que não são reprimidos e a força superior é seu instrumento. Todavia, apesar da potencialidade para a violência, temos também uma capacidade para limitar seus efeitos, mesmo quando não há força superior pronta para nos poupar do pior que somos capazes. (...) Devido ao fato de que as guerras deste século assumiram uma forma tão extrema e desumana, tornou-se fácil demais para o homem moderno aceitar a suposição de que a tendência aos extremos da guerra é inevitável. A guerra moderna deu má fama à moderação ou auto-restrição; os intervalos ou mediações humanitárias são vistos cinicamente como um meio pelo qual o tolerável é mitigado ou disfarçado. (KEEGAN, 1995, p. 400)

A guerra contemporânea – recheada de armas de destruição em massa, tropas de elite[1] (assassinos institucionais, ou não, altamente especializados), falta de senso ou direção – fez com que os Estados nacionais pensassem restrições ou mesmo formulações daquilo que poderia ser concebido como emprego justo da violência. Denuncia Zygmunt Bauman (2011, p. 260):

O que aprendemos naquele século (XX) é que a modernidade não consiste apenas em produzir mais e viajar mais rápido, ficar cada vez mais rico e se mover mais livremente. Consiste – tem consistido – também no morticínio rápido e eficiente, no genocídio cientificamente concebido e administrado. À medida que a história humana prossegue, a crueldade e o assassinato em massa já não são mais novidade, e a modernidade pode ser absolvida por não ter tido muito sucesso, no curto espaço de tempo de apenas 300 anos, em erradicar ódios e agressões com razões milenares e em dominar as paixões precipitadas por milhões de anos de evolução das espécies.

Já no Século XIX, antes, portanto, das fatídicas duas grandes guerras mundiais, Clausewitz (p. 8) enunciava: “Ela (a guerra) é acompanhada de restrições ínfimas, que quase não vale a pena mencionar, e que impõe a si própria, sob o nome de leis dos direitos dos povos, mas que, na realidade, não diminuem em nada a sua força.” “A guerra arranca nossa indumentária civilizada e revela nossa nudez. Não é sem certo prazer que eles nos descrevem essa nudez: temerosa, egocêntrica, impetuosa assassina”, arremata Walzer (2003, p. 4).


GUERRA, UM CONCEITO JURÍDICO

A palavra guerra, na linguagem jurídica, tem um significado especial, atesta Yoram Dinstein (2004, p. 3). Há de se distinguir, na fixação do seu sentido, se a guerra ocorre no âmbito do Direito Interno de um Estado (guerra civil), ou no do Direito Internacional, o que é objeto do presente estudo. Não há, no entendimento de Dinstein, uma definição de constringente de guerra numa convenção internacional em vigor.[2] Existem várias definições de guerra em trabalhos acadêmicos, que resultam em ideias de extrema complexidade. “A guerra é uma ‘condição legal que confere igual permissão a dois ou mais grupos para realizar um conflito por meio da força armada”, exemplifica Walzer (2003, p. 70)

Não há necessidade de tamanhas divagações, daí, o acolhimento do conceito mínimo de guerra de L. Oppenheim (1953-1954): “A guerra é a contenda entre dois ou mais Estados por meio de suas forças armadas, com o propósito de sobrepor um ao outro e impor condições de paz aprazíveis ao vitorioso.” A partir desta definição, há quatro elementos constitutivos da guerra, interpreta Dinstein (2004,p. 6): “(a) deve haver uma contenda entre pelo menos dois Estados; (b) o uso das Forças Armadas desses Estados é essencial; (c) o propósito deve sobrepor o inimigo (bem como impor a paz sob as condições determinadas pelo vitorioso); e deve estar implícito, especialmente a partir da expressão ‘um ao outro’, que (d) ambas as partes devem ter objetivos simétricos e diametralmente opostos”.

Há necessidade, ademais, de se atualizar o significado de guerra, conforme o faz Dinstein (2004, p. 21):

Guerra é a interação hostil entre dois ou mais Estados, seja num sentido técnico ou material. A guerra no sentido técnico é o status formal produzido por uma declaração de guerra. A guerra no sentido material é gerada pelo uso de força armada, que deve ser extensiva e realizada por pelo menos uma das partes do conflito.

Para Celso D. de Albuquerque Mello (2004, v. II, p. 1498), o estágio mais grave nas relações internacionais é a guerra:

Podemos concluir que o conceito de guerra é um conceito legal e formal, visto que a existência de ‘luta’ não é suficiente para criar o estado de guerra, que produz efeitos jurídicos internacionais. (...) E mais, o comportamento político conduz não à paz, mas à guerra, vez que o Estado faz uma imagem que o mundo é inseguro. (...) a guerra é o meio que uma ‘cultura’ tem para ‘manejar determinada situação’. (...) A guerra é um estado jurídico.

Mello também realiza comparações entre guerra e conflitos armados internacionais (matéria de “Direito Humanitário”):

Os conflitos armados que não são guerras não obrigam os Estados ao estatuto de neutralidade, os tratados entre as partes em luta não são suspensos ou rompidos, nem há necessariamente o rompimento das relações diplomáticas. A guerra é um status jurídico que foi definido em uma evolução durante séculos. O conflito armado é uma noção humanitária que surge no século XX. Ele não rompe o status de paz. Conflito armado internacional é definido pelas Convenções de Genebra de 1949 como abrangendo a ‘guerra declarada’ ou ‘qualquer outro conflito armado’. O Protocolo I de 1977 acrescenta como sendo pertencendo a esta categoria ‘os conflitos armados em que os povos lutam contra a dominação colonial e a ocupação estrangeira e contra os regimes racistas, no exercício do direito dos povos à autodeterminação...

Hans Kelsen (1998b, p. 356), em “Teoria Pura do Direito”, diferencia represália da guerra:

 A diferença entre uma represália realizada com a força das armas e uma guerra é meramente quantitativa. A represália é uma agressão limitada à ofensa de determinados interesses, a guerra é uma agressão ilimitada à esfera de interesses de um outro Estado. Aqui deve entender-se por ‘guerra’ a ação, realizada por meio da força armada, que um Estado dirige contra outro, sem se atender ao fato de haver ou não reação contra aquele por meio de uma ação da mesma espécie, isto, é, por meio de uma contra-guerra.

Devido a estas conceituações, usar-se-á, pelo menos para fins deste texto, somente a palavra guerra, visto que esta, juridicamente, rompe o estado de paz, que assim é definido por Norberto Bobbio (2000, p. 516):

Ao lado desse significado geral de ‘paz’, que indica um estado nas relações internacionais antitético ao estado de guerra, e com frequência definido  negativamente, o termo ‘paz’ tem também um significado específico, e neste caso positivo, quando é usado para indicar o fim ou a conclusão de uma determinada guerra, como nas expressões ‘paz de Nícias’, ‘paz de Augusta’, ‘paz de Basiléia’. Nesta particular acepção, ‘paz’ é definida positivamente como o conjunto de acordos com os quais os grupos políticos, ao término das hostilidades, delimitam as consequências da guerra e regulam suas relações futuras.


CULTURA, RECIPROCIDADE E REALIDADE MORAL DA GUERRA

Inegavelmente, o ser humano é um animal cultural, e isso lhe permite aceitar o seu potencial para cometer atos de violência, que, ao mesmo tempo, são tidos também como aberrações culturais, analisa Keegan (1995, p.20), tanto que foram criadas restrições a essa potencialidade de violência. Na vida cotidiana, os Direitos Nacionais classificam essas condutas violentas como crimes, porém, quando utilizadas pelas instituições estatais, são alçadas à condição de “guerra civilizada”. “Nossa cultura busca compromissos, e o compromisso ao qual chegou sobre a questão da violência pública é desaprovar sua manifestação, mas legitimar o seu uso”, aponta Keegan (1995, p. 21).

Para Michael Walzer (2003, p. 61), a guerra, de certa maneira, ainda é regida por normas, constituído de proibições, mandamentos ou permissões, num mundo moral em pleno inferno. A noção de reciprocidade, faz com que se vislumbre a ideia de que o soldado do lado oposto é tão isento de culpa como o indivíduo que partilha defende a mesma bandeira que a sua. A guerra, em si, é uma relação entre entidades políticas e seus instrumentos humanos, analisa Walzer (p. 61), porém, o soldado do lado contrário só é inimigo se ele estiver armado, não sendo inimigo em sentido específico algum.

Esses instrumentos humanos não são companheiros de armas, no estilo antigo, membros da confraria dos guerreiros. São ‘pobres coitados, iguais a mim’ apanhados numa guerra que não criaram. Encontro neles meus iguais em termos morais. Isso não quer dizer simplesmente que eu reconheça sua humanidade, pois não é o reconhecimento do próximo que explica as normas de guerra. Os criminosos também são seres humanos. É exatamente o reconhecimento de homens que não são criminosos. Eles podem tentar me matar, e eu posso tentar matá-los. Entretanto, é errado degolar seus feridos ou abatê-los a tiros quando tentam se entregar. (WALZER, 2003, p. 61)

Os que criam as guerras não tem a permissão, mas os soldados a tem, independentemente de qual lado defendam. O primeiro e mais importante dos seus direitos de guerra, avalia Walzer (2003, p. 61), é a permissão para matar, “não qualquer pessoa, mas homens que sabemos serem vítimas”. Aliás, há um reconhecimento recíproco que os soldados que defendem outra bandeira são tão vítimas quanto a si mesmo.

Há entre os soldados respeito e reconhecimento mútuos, com base num código militar consuetudinário alimentado pela honra, para atender aos guerreiros aristocratas. Isso distinguia o fidalgo guerreiro de meros criminosos, ou de camponeses em armas que empunhavam armas por obrigação de vassalagem. De certa maneira, acredita Walzer (p. 57), que a honra militar ainda sirva de credo ao soldado contemporâneo, mas, contudo, a paixão popular substituiu a honra aristocrática, porém, não eliminando o julgamento moral. O foco não é mais a da liberdade aristocrática, mas o da servidão militar.

“Falsa consciência” é o como os marxistas denominam a condenação instantânea dos homens contra os quais se luta, em vez da classe dominante do país inimigo ou do seu próprio país visto que os soldados tendem a culpar alguém por tanta dor e sofrimento, analisa Walzer (p. 60).

O nível de ódio é elevado nas trincheiras. É por isso que inimigos feridos costumam ser abandonados para morrer e prisioneiros são mortos – como assassinos linchados por justiceiros – como se os soldados do outro lado fossem pessoalmente responsáveis pela guerra. Ao mesmo tempo, no entanto, sabemos que eles não são responsáveis. (WALZER, 2003, p. 60-61)

A igualdade do direito de matar associadas a dois grupos de proibições de matar espelha a reciprocidade no reconhecimento dos soldados. “O primeiro grupo especifica quando e como podem matar; o segundo, a quem matar”, explica Walzer (2003, p. 70). Só, quando se estipulam as restrições quanto ao alcance da batalha, que se consegue distinguir a guerra do assassinato e do massacre. O segundo grupo de proibições refere-se a quem não se pode matar. Geralmente, a proteção é dada a pessoas que não foram treinadas ou preparadas para guerrear, não lutam ou não podem lutar, como “mulheres e crianças, sacerdotes, idosos, membros de tribos, cidades ou estados neutros, soldados feridos ou capturados”, exemplifica Walzer (p. 73).

Dependendo de nossa perspectiva social ou cultural, matá-los pode parecer injustificável, desumano, desonroso, brutal ou assassino. Mas é muito provável que algum princípio geral esteja atuando em todos esses julgamentos, associando a imunidade ao ataque ao não-envolvimento militar. Qualquer explicação satisfatória da realidade moral da guerra deve especificar esse princípio e dizer algo a respeito da sua força. (WALZER, 2003, p. 73)

Contudo, sob o argumento de que o mais importante era salvar vidas – as dignas de serem salvas, outras, consideradas “indignas” são destruídas, antes mesmo que elas possam se defender, avalia Bauman (2011, p. 206): “Os generais e os divulgadores midiáticos de seus pensamentos repetiram, diante de ouvintes que acenavam em aprovação que o importante princípio estratégico era ‘salvar vidas’”.

Em tempos de guerra, a maioria deseja agir ou parecer agir de acordo com a moral, afirma Walzer (2003, p. 32), pois se sabe o que moral, em geral, significa. Determinadas decisões são complexas, pois estão estreitamente relacionadas com a complexidade do mundo contemporâneo, porém, a linguagem reflete e dá acesso ao mundo moral, possibilitando que haja julgamentos compartilhados, apregoa Walzer (p. 33). Aliás, são as opiniões da humanidade e não as atividades militares reais que fixam a realidade moral da guerra, salienta o autor (2003, p. 24): “Isso significa, em parte, que ela é fixada pela atividade dos filósofos, advogados, publicitários e divulgadores de todos os tipos. (...) e suas opiniões têm valor somente na medida em que dêem forma e estrutura àquela experiência de modo que seja plausível para todos nós.”


DA ADIAFORIZAÇÃO GENERALIZADA

A estrutura burocrático-técnico-científica encapuzou o mundo com um pretenso véu de neutralidade, imparcialidade, objetividade e independência. Zygmunt Bauman (2011, p. 202) alerta quanto ao problema da adiaforização: “tornar certas ações ou certos objetos de ação moralmente neutros ou irrelevantes – isentá-los da adequada categoria de fenômenos para a de avaliação moral”. Algumas pessoas, são, portanto, excluídas da esfera dos sujeitos morais, “ou pelo encobrimento da ligação entre a ação parcial e o efeito definitivo de efeitos coordenados, ou ainda pela entronização de disciplina procedural e lealdade pessoal no papel de critérios imperativos do desempenho moral”.

A burocracia auxiliada pela tecnologia ampliou o alcance e os efeitos da adiaforização. Nota-se, em escala planetária, a “insensibilização” frente ao sofrimento humano, que parece estar banalizado, pela exposição da crueldade em volume letárgico. Os meios de comunicação e entretenimento veiculam, diariamente, centenas de cenas de morte violenta e cadáveres nos noticiários, filmes, seriados e demais tipos de programas. “Hoje vivemos um constante carnaval de crueldade”, enuncia Bauman (2011, p. 203).

Devido ao efeito dramático dos meios de comunicação e entretenimento, que adiciona intensidade, emoção e carga dramática, a realidade – como realmente ocorreu – parece imperfeita e menos interessante. Então, analisa Bauman (2011, p. 204), a crueldade real parece para o consumidor midiático, como imperfeita em termos técnicos e desinteressante, inferior, portanto, à crueldade mutiladora e à matança sofisticada editadas em clima de high tech.

A realidade tende a ser avaliada de acordo com o grau de proximidade com que ela simula a criatividade dramática e a precisão de um crime com ou filme-catástrofe ou a produtividade de um videogame com seus milhares de aliens exterminados a cada minuto. Por outro lado, a mediação eletrônica da ‘guerra real’ pode tornar muito mais fácil daqueles com estômago mais fraco. É possível esquecer com facilidade os motivos de um tiroteio ou de um bombardeio. Afinal, não é realmente um tiroteio ou bombardeio, mas um movimento de joystick e um apertar de botões. (...) Todas as imagens disputam entre si a atenção no mesmo universo de significado, o da diversão – dentro do mundo esteticamente organizado, estruturado pela relevância da atratividade, do prazer potencial, do despertar de interesse. (BAUMAN, 2011, p. 204-205)

Os autores da crueldade e as vítimas distanciam-se na medida em que armas de guerra mais atualizadas, baseadas em sistemas de identificação eletrônica, são empregadas. A responsabilidade de identificar as vítimas é maior. E caso de erro, o problema pode ser facilmente descartado como um “tilt” de computador. Nunca foi tão fácil separar a ação do seu significado moral. “As armas e estratégias de combate mais atualizadas são as de massacre e matança, e não as de combate”, assevera Bauman (2011, p. 207).


JUS AD BELLUM E JUS IN BELLO

Duas partes constituem a realidade moral da guerra, o que faz com que seja julgada duas vezes. Primeiro, de natureza adjetiva, com relação aos motivos que levaram os Estados à luta, se foram justos ou injustos. Segundo, de natureza adverbial, com relação aos meios empregados, se foi travada de modo justo ou injusto. “Escritores medievais tornaram a diferença uma questão de preposições, fazendo a distinção entre jus ad bellum, a justiça do guerrear, e do jus in bello, a justiça no guerrear”, explica Walzer (2003, p. 34).

Com a filosofia cristã medieval que se desenvolveu a noção de guerra justa. Para São Tomás de Aquino, observa Fernanda Florentino Fernandes Jankov (2009, p. 10-11), uma guerra justa tem os seguintes elementos: “a) causa justa; b) intenção reta nas hostilidades (evitar fazer o mal e procurar fazer o bem); c) declaração realizada pela autoridade competente”. “A guerra, para ele, deveria ter por fim o bem comum”, comenta Jankov (2009, p. 11).

Posteriormente, Francisco de Vitória, internacionalista, calcou a teoria de que a violação de um Direito seria a única causa para empreender uma guerra. No entanto, se deve considerar o princípio da proporcionalidade, visto que delitos leves não podem levar à guerra, pois é a grandeza do delito que acarreta na mesma, que pode ser acompanhada de sanções penais, completa Jankov (2009, p. 11).

Em “De Jure Belli  ac Pacis” (1625), Hugo Grotius, pai da doutrina do “estado de guerra”, “definiu-a como ‘status’ dos que lutam pela força, devendo corresponder a uma justa causa, ensina Jankov (2009, p. 11). Em sua obra, Grotius afirmava que todas as forças deveriam unir-se contra os culpados para a manutenção da paz, para a imposição do princípio da repressão universal, ancorado no senso comum da humanidade, “derivado da lei natural”.

Em 1758, Emer Vattel[3] reafirma que as nações têm o Direito de utilizar a força para reprimir os que violam as leis estabelecidas entre elas pela sociedade da natureza, o que atacam o bem e a saúde da mesma. São duas as consequências da doutrina da guerra:

  1. Submete a guerra ao Direito, deslocando-a do império da força. Assim, o recurso ao uso da força é jurisdicionado;
  2. Conduz à distinção entre guerra lícita e o abuso do uso da força, como resultado da defesa de um Direito das relações de força entre potências; a guerra aparece como meio de luta contra a impunidade que não será admitida caso exista uma violação do droit de gens. (JANKOV, 2009, p. 12)

Já no século XX, prosegue Jankov (2009, p. 12), ressurge a doutrina da guerra justa (Strisower, Kelsen e Guggenheim), que somente assim o é se for uma reação à violação do Direito Internacional Positivo, ao contrário dos medievais, que admitiam a guerra como sendo justa se fosse invocada em caso de violação do Direito Natural.

Jus ad bellum exige que façamos julgamentos sobre agressão e autodefesa. Jus in bello, sobre o cumprimento ou a violação das normas costumeiras e positivas de combate. Os dois tipos de julgamento são independentes em termos lógicos. É perfeitamente possível que uma guerra justa seja travada de modo injusto e que uma guerra injusta seja travada em estrita conformidade com as normas. Contudo, essa independência é desconcertante, muito embora nossas opiniões sobre guerras específicas costumem estar em conformidade com seus termos. É crime cometer agressão, mas a guerra de agressão é uma atividade regida por normas. É certo resistir à agressão, mas a resistência está sujeita a limitações morais (e legais). O dualismo de jus ad bellum e jus in bello está no cerne de tudo o que é mais problemático na realidade moral da guerra. (WALZER, 2003, 34-35)

John Rawls (2001), em “Direito dos Povos”, tece também suas considerações sobre a doutrina da guerra justa (jus ad bellum) e à conduta de guerra (jus in bello). No âmbito da teoria não-ideal, Rawls discute como povos relativamente bem ordenados (Povos Liberais e Povos Decentes)[4] deveriam agir diante povos não bem ordenados (Estados Fora da Lei e Sociedades Oneradas)[5]. A guerra é permitida pelo Direito dos Povos em caso de autodefesa, na doutrina de Rawls, dos povos bem ordenados (liberais e decentes). Rawls (2001, p. 30) prefere utilizar “Povos”, em vez de “Estados”, pois concebe os Povos Democráticos Liberais[6] e os Povos Decentes[7] “como atores na Sociedade dos Povos, exatamente como os cidadãos são os atores na sociedade nacional”.

Quando uma sociedade liberal guerreia em autodefesa, ela o faz para proteger e preservar as liberdades básicas dos seus cidadãos e das suas instituições políticas constitucionalmente democráticas. Na verdade, uma sociedade liberal não pode exigir com justiça que seus cidadãos lutem para conquistar riqueza econômica ou obter reservas naturais, muito menos conquistar poder e império. Os povos decentes também têm direito à guerra em autodefesa. Eles descreveriam o que estão defendendo diversamente do que faz um povo liberal, mas os povos decentes também têm algo que vale a pena defender. (...) eles admitem e respeitam os membros de diferentes credos e respeitam instituições políticas de outras sociedades, inclusive de sociedades (...) não-liberais. Também respeitam e honram os Direitos Humanos; sua estrutura básica contém uma hierarquia de consulta decente e eles aceitam um Direito dos Povos (razoável). (RAWLS, 2001, p. 119-120; p. 121)


GUERRA DE AGRESSÃO COMO CRIME: NORMA PENAL INTERNACIONAL INCRIMINADORA EM BRANCO?

Em princípio, a guerra é proibida pelo Direito Internacional, sendo admitida somente como legítima defesa contra um delito e direcionada contra o Estado causador da mesmo, leciona Hans Kelsen (1999a, p. 472). “Como ocorre com as represálias, a guerra deve ser uma sanção para não ser caracterizada como delito. Trata-se da teoria de bellum justum.” O Direito protege a não intervenção dos Estados, em assuntos internos e externos, consagrando-lhes a independência. A não intervenção pressupõe a doutrina do bellum justum, que foi fundamento do Tratado de Paz de Versalhes, o Pacto da Liga das Nações e o Pacto Kellog-Briand[8], importantes estatutos do Direito Internacional Positivo (p. 475). No entanto, a preferência por essa teoria tem embasamento mais político que científico, assevera Kelsen (1999a, p. 486): “Que a guerra seja, em princípio, um delito, sendo permitida apenas como sanção, é uma interpretação possível das relações internacionais, mas não a única.”

A guerra de agressão pode ser legal ou ilegal. “Quando ilegal, pode ser denominada ‘crime internacional’ (international crime), como se pode notar no Protocolo de Genebra de 1924 para a Resolução Pacífica de Disputas Internacionais e na Resolução da Oitava Assembléia da Liga das Nações”, ressalta Jankov (2009, p. 15).

No entanto, a guerra de agressão foi criminalizada somente depois da II Guerra Mundial, com a Carta do Tribunal Militar Internacional anexada ao Acordo de Londres para o Estabelecimento de um Tribunal Militar Internacional (1945).

Segundo o art. 6º (a) da Carta, ‘o planejamento, preparação, iniciação ou promoção de uma guerra de agressão, ou de uma guerra de violação dos tratados, acordos e garantias internacionais, ou ainda a participação num plano comum ou conspiração visando os objetivos supracitados’ constituem ‘crimes contra a paz’, dando origem à responsabilidade individual (e fica especificamente acrescentado que ‘líderes, organizadores, instigadores e cúmplices que participem na formulação ou na execução’ do plano ou conspiração serão responsáveis por ‘todos os atos realizados por qualquer pessoa na execução de tal plano’). (DINSTEIN, 2004, p. 163)

A essência do art. 6º (a) da Carta do Tribunal Militar Internacional foi reiterada, com pequenas variações, no art. II (1) (a) da Lei de Controle do Conselho nº 10 (fundamento jurídico dos Processos Subsequentes de Nuremberg, nos quais outros criminosos alemães de guerra foram julgados por Tribunais Militares Americanos), e no art. 5º (a) da Carta ao Tribunal Militar Internacional para o Extremo Oriente (em que o General MacArthur designou para julgamento os principais criminosos de guerra japoneses), detalha Dinstein (2004, p. 163). “No seu julgamento de 1946, o Tribunal Militar Internacional em Nuremberg afirmou que o art. 6º (a) da Carta de Londres é declaratório do Direito Internacional Moderno, que considera a guerra de agressão como crime grave”, menciona Dinstein (p. 164). Dessa maneira, rechaçou o argumento de violação do princípio da legalidade com relação à criminalização ex post facto das condutas dos acusados.

Ou seja, “desde sempre” a guerra de agressão é um crime, daí o efeito meramente declaratório do art. 6º (a) da Carta.[9] Aliás, preleciona Jankov (2009, p. 44), que o Estatuto de Roma[10], consagra o Direito Consuetudinário Internacional, sendo inquestionável a incriminação dos tipos penais previstos em seu bojo, reitera-se, ademais, a sua aplicação aos Estados Não-Partes do Estatuto, de modo que as normais penais internacionais tenham caráter de jus cogens e de aplicação erga omnes.

São os homens, e não entidades abstratas, que cometem os crimes contra o Direito Internacional, então, apenas com a sua punição que se fortalece o Direito Internacional.

O Julgamento de Nuremberg foi inovador quando introduziu a criminalidade da guerra no Direito Internacional Geral. Entretanto, o assunto não é mais tão importante. É virtualmente irrefutável que o atual Direito Internacional Positivo espelhe o Julgamento. A guerra de agressão hoje em dia constitui crime contra a paz. Não apenas um crime, mas o crime supremo sob o Direito Internacional. (...) Entretanto, nenhuma acusação por crimes contra a paz (em violação ao jus ad bellum) atingiu os conflitos armados múltiplos da era posterior à II Guerra. (DINSTEIN, 2004, p. 167)

Entretanto, o crime de agressão (guerra de agressão) teve sua definição deferida a um momento futuro, nos termos dos artigos 121 e 123 do Estatuto de Roma. Tratar-se-á de uma norma penal internacional incriminadora em branco, carente de fixação de significado e sentido de outra norma (em sentido estrito, ou não) para que tenha eficácia plena? Eis uma questão que perdura em aberto. O que se tem como óbvio e ululante é apenas o artigo 1º do Pacto Briand-Kellog: “As altas partes contratantes declaram solenemente, em nome dos seus respectivos povos, que condenam o recurso à guerra para a solução das controvérsias internacionais, e a isso renunciam, como instrumento de política nacional, em suas relações recíprocas.” No preâmbulo do pacto, consta que os Estados signatários que recorrerem à guerra para a promoção dos seus interesses, devem ser privadas das vantagens conferidas pelo mesmo.


DA EVENTUAL INCAPACIDADE DA ÉTICA E A APLICAÇÃO DO JUS IN BELLO

A guerra, para Gustav Radbuch (2010, p.295-296), só tem dois sentidos: a vitória ou a derrota. O conflito de valores ou interesses é examinado posteriormente, sendo objeto de estudo da ética tão somente a culpabilidade da guerra.[11] Portanto, nos termos de Radbruch, a ética é incapaz de resolver o problema da guerra[12], sendo que seu juízo de valor recai sobre a participação do indivíduo[13] na mesma, em se falando de inocência ou culpa.

Entendida dessa maneira, essa culpabilidade não pode de modo algum ser inequivocamente determinada, pois, enquanto a guerra tenha validez como instituição jurídica, em todo passo diplomático está implícito, mesmo que em uma forma muito sutil, o dolus eventualis de uma guerra, toda a política está orientada para a possibilidade de guerra. (RADBRUCH, 2010, p. 296)

Talvez, em vez de se falar da incapacidade da ética, a questão seja a de se enfocar a conduta durante a guerra, ou seja, o jus in bello. Trata-se da regulamentação da guerra, constituindo-se de normas aplicadas no estado de guerra. É a substituição da força pelo Direito. Para Baruch de Spinoza, “toda atividade pressupõe uma moral, mesmo a de adversários combatentes”, de acordo com Jankov (2009, p. 16): “A regulamentação convencional dos conflitos armados e a afirmação do Direito Internacional Humanitário, ambos baseados em acordos internacionais, são fenômenos jurídicos que datam da segunda metade do século XIX, impulsionados por Henry Dunant e pelo Comitê Internacional da Cruz Vermelha.

As regras do Direito da Guerra, no final do século XIX e começo do século XX, não eram acompanhadas de sanções internacionalmente aplicáveis. Os Estados eram livres para punir, ou não, os atos cometidos pelas tropas contra inimigos ou pelos inimigos, narra Jankov (2009, p. 17), ficando a cargo do poder discricionário dos Estados. As Convenções de Haia de 1899 e 1907, embora fossem codificações de Direito de Guerra mais significativas em tratado internacional, tinham mais como objetivo impor obrigações e deveres aos Estados, sem criar responsabilidade criminal (p. 19), daí, a necessidade de ser complementada pelas Convenções de Genebra de 1949 e seus dois Protocolos de 1977 (p. 35). Foi em 17 de julho de 1998, que foi aprovado o Estatuto do Tribunal Penal Internacional, em Roma, em conjunto com um “Final Act”, com a previsão de criação de uma Comissão Preparatória pela Assembléia Geral das Nações Unidas.

Dentre as tarefas a serem desempenhadas pela Comissão destaca-se a elaboração do Regulamento Processual (Rules of Procedure and Evidence), bem como os Elementos Constitutivos dos Crimes (Elements of Crimes), que ‘auxiliarão o Tribunal a interpretar e aplicar os artigos 6º, 7º e 8º ‘ (crime de genocídio, crimes contra a humanidade e crimes de guerra, respectivamente) do Estatuto do TPI, finalizados em 30 de junho de 2000.

Para Rawls (2001, p. 124-127), no plano da Filosofia Política e Jurídica, são seis os princípios que restringem a conduta de guerra (jus in bello): 1) o objetivo de uma guerra justa é a justa e duradoura paz entre os povos, inclusive o seu atual inimigo; 2) povos bem ordenados (liberais ou decentes) não fazem guerra entre si, só com os povos não bem ordenados que, em virtude de doutrinas expansionistas, coloquem em risco a segurança e as instituições livres das sociedades bem ordenadas; 3) Os povos bem ordenados, no jus in bello, devem distinguir três grupos (líderes e funcionários de Estados Fora da Lei, seus soldados e sua população civil). Os líderes e funcionários, com assessoria das elites, desejaram a guerra, assim, são responsáveis por ela. A população civil não pode ser responsabilizada, mesmo que haja alguns simpatizantes da guerra, pois são influenciadas pela propaganda do Estado e muitas vezes mantida na ignorância. Os soldados, exceto os altos escalões dentre os oficiais, não são responsáveis, pois, geralmente, são alistados compulsoriamente e doutrinados nas virtudes guerreiras de maneira cega. São atacados diretamente pura e simplesmente porque os povos bem ordenados não têm escolha, por uma questão de defesa; 4) Os Direitos Humanos dos membros do outro lado devem ser respeitados pelos povos bem ordenados, para ensiná-los (soldados e civis) o seu conteúdo e mensagem, pelo tratamento que receberam; 5) As ações e proclamações dos povos bem ordenados, durante a guerra, devem prever qual paz e quais relações buscam; 6) Deve-se restringir o raciocínio prático de meios e fins, com fronteiras que não devem ser cruzadas nas normas de conduta de guerra, exceto em situações emergenciais.


CRIMES INTERNACIONAIS E O TRIBUNAL PENAL INTERNACIONAL

Os crimes internacionais têm as seguintes características cumulativas:

1 Violações às normas costumeiras internacionais, abrangendo também as disposições dos tratados, que codificam ou consagram o Direito Consuetudinário, ou ainda contribuem para a formação deste;

2 Normas com o objetivo de proteger valores considerados importantes por toda comunidade internacional, consequentemente obrigatórias a todos Estados e indivíduos. (...)

3 Além disso, existe interesse universal na repressão desses crimes. Respeitados certos requisitos, os acusados podem, em princípio, ser julgados e punidos por qualquer Estado, independentemente do vínculo territorial ou de nacionalidade com o autor ou a vítima. (....)

4. Na hipótese de o autor ter agido em sua capacidade oficial, ou seja, como oficial de Estado de jure ou de facto, o Estado em cujo nome tenha praticado a conduta proibida está impedido de alegar o gozo de imunidade jurisdição civil ou penal do Estado estrangeiro com base no Direito Consuetudinário aplicável aos oficiais do Estado que ajam no exercício das suas funções. (JANKOV, 2009, p. 57-59)

Não se encontram no conceito de crimes internacionais o tráfico ilegal de drogas e de armas, contrabando de materiais letais ou potencialmente letais, ou lavagem de dinheiro. Tais crimes não se encontram no Direito Consuetudinário, mas em tratados e resoluções de organizações internacionais. “(...) são aplicados contra os Estados, por entes privados ou organizações criminais. Na hipótese de envolverem agentes estatais, estes agem por interesses particulares, realizando condutas consideradas crimes pela legislação nacional”, leciona Jankov (2009, p. 59).

O Tribunal Penal Internacional tem competência para julgar quatro grupos de crimes, conforme Jankov (2009, p. 59): “genocídio, crimes contra a humanidade, crimes de guerra e agressão”. Genocídio, norma consuetudinária internacional codificada pelo Estatuto de Roma, consiste em cinco atos, para destruir, no todo ou em parte, grupo nacional, étnico, racial ou religioso: “homicídio de membros do grupo; ofensas graves à integridade física ou mental de membros do grupo; sujeição intencional do grupo a condições de vida com o objetivo de provocar sua destruição física, total ou parcial; imposição de medidas destinadas a impedir nascimentos no seio do grupo; transferência, à força, de crianças para outro grupo”. (JANKOV, 2009, p. 60).

O artigo 6º do Estatuto de Roma depreende que o dolus specialis distingue o homicídio dos demais crimes contra a humanidade e dos crimes de guerra. Esse especial intuito é o de destruir em todo, ou em parte, grupo nacional, étnico, racial ou religioso, assevera Jankov (2009, p. 61).

Os crimes contra a humanidade estão previstos no artigo 7º do Estatuto de Roma: “1. Para os efeitos do presente Estatuto, entende-se por ‘crime contra a humanidade’ qualquer um dos atos seguintes, quando cometido no quadro de um ataque, generalizado ou sistemático, contra qualquer população civil, havendo conhecimento desse ataque. 2. O ataque contra uma população civil deve ser praticado de acordo com a política de um Estado ou de uma organização de praticar esses atos ou tendo em vista a persecução política.”

Por sua vez, os crimes de guerra estão tipificados no artigo 8º do Estatuto de Roma, agrupados em quatro categorias, duas direcionadas para conflitos armados internacionais e duas, para conflitos internos. Estes seriam, propriamente, as violações do jus in bello, ou seja, violações sérias de normas consuetudinárias ou dos tratados constitutivos do Direito Internacional Humanitário dos conflitos armados. Aí, um problema de ordem prática, assinala Jankov (2009, p. 65), para que o Tribunal Penal Internacional tipifique uma conduta como crime de guerra, deve haver consideração do Direito Internacional Geral de que tal violação é crime de guerra.

Dessa forma, o Tribunal Penal Internacional deve verificar, segundo Jankov (2009, p. 65-66): “1. Com base no Direito Internacional geral, se a conduta é considerada violação do Direito Humanitário Internacional dos conflitos armados e também; 2. Conforme o Direito Consuetudinário Internacional, a conduta constitui crime de guerra.”

A guerra de agressão, como ressaltado em tópico anterior, é norma penal internacional incriminadora em branco, carente de outra norma da mesma espécie, ou não, para fixar-lhe sentido, para que tenha eficácia plena.


A PAZ PERPÉTUA, O DIREITO DOS POVOS E A JUSTIÇA GLOBAL

John Rawls inspira-se na ideia de foedus pacificum de Immanuel Kant, esboçada no texto “Paz Perpétua” (1975) para formular sua teoria do Direito dos Povos. Os Estados Nacionais, segundo Kant (2002, p. 124), estariam submersos num Estado de Natureza, no qual a guerra seria o meio necessário e lamentável para se afirmar, pela força, o Direito. Mesmo no Estado de Direito, ainda há ameaça constante de hostilidades por parte dos homens que vivem em sociedade. Daí, a necessidade de se instituir um Estado de Paz, “pois a omissão de hostilidades não é ainda a garantia de paz e se um vizinho não proporciona segurança a outro (o que só pode acontecer num Estado Legal – de Direito), cada um pode considerar como inimigo quem exigiu tal sentença”, afirma Kant (p. 127).

Os Estados devem ser republicanos, defende Kant (p. 128) para assegurar os princípios da liberdade dos seus membros (enquanto homens), submetendo-os a um único Direito (como súditos), estabelecendo a igualdade entre os mesmos (enquanto cidadãos), derivando da idéia de contrato social. O Estado Republicano exige a anuência dos cidadãos para que haja adesão ou não a uma guerra, o que viabilizaria, em si, a paz perpétua.

O Direito das Gentes (dos Povos, para Rawls, ou Internacional, de acordo com a terminologia corrente) teria seu fundamento na existência de uma federação de Estados Republicanos Livres. Tratados de paz seriam soluções terminativas que poriam a termo uma guerra, porém, não eliminaria o Estado de Guerra. Então, faz-se necessário um pacto entre os povos, uma federação da paz (foedus pacificum), que teria a função de por fim a todas as guerras, para sempre, idealiza Kant (2002, p. 134-135).

Tal federação não teria a pretensão de poder de um Estado, preconiza Kant (p. 135), mas de poder para “manter e garantir a paz de um Estado para si mesmo e, ao mesmo tempo, a dos outros Estados Federados, sem que estes devam submeter-se a leis públicas e sua coação”. Mas como ter eficácia do Direito, num Estado de Natureza, no qual estão os Estados Nacionais? Uma das propostas de Kant (p. 136) é a construção de um Estado de Povos, uma República Mundial, que resultaria no término dos povos da Terra, o que, para Rawls (2000, p. 46), seria um despotismo global, ou império frágil com frequentes guerras civis. Caso a Sociedade Internacional não opte por isso, haveria a necessidade de se formar uma federação contrária à guerra, com contínua e permanente expansão, embora haja sempre o perigo latente da sua irrupção.

O Direito Cosmopolita, assevera Kant (p. 137), deve ter condições de hospitalidade universal, ou seja, “o Direito de um estrangeiro a não ser tratado com hostilidade em virtude de sua vinda ao território de outro”, “um Direito de visita, que assiste todos os homens para se apresentar à sociedade em virtude do Direito da propriedade comum da superfície da Terra”.

Rawls (p. 12-13), em “Direito dos Povos”, salienta a possibilidade de celebração de um acordo (contrato social hipotético) entre povos bem-ordenados (liberais ou decentes), para concretizar efetivamente a liberdade dos seus cidadãos. Os princípios do Direito dos Povos seriam estes:

1 Os povos são livres e independentes, e a sua liberdade e independência devem ser respeitadas por outros povos.

2 Os povos devem observar tratados e compromissos.

3 Os povos são iguais e são partes em acordos que os obrigam.

4 Os povos sujeitam-se ao dever de não-intervenção.

5 Os povos têm o Direito de autodefesa, mas nenhum Direito de instigar a guerra por outras razões que não a autodefesa.

6 Os povos devem honrar os Direitos Humanos.

7 Os povos devem observar certas restrições especificadas na conduta da guerra.

8 Os povos têm o dever de assistir a outros povos vivendo sob condições desfavoráveis que os impeçam de ter um regime político e social justo e decente.

Algumas instituições a exemplo da própria Organização das Nações Unidas (ONU), como idealmente concebidas, poderiam dar efetividade ao Direito dos Povos, fazendo valer os seus princípios, com a autoridade de “expressar para a sociedade de povos bem-ordenados a sua condenação de instituições nacionais injustas em outros países e esclarecer casos de violação dos Direitos Humanos”, propõe Rawls (p. 47). A efetividade do Direito dos Povos seria garantida por organizações cooperativas “assegurar o comércio justo entre os povos, outra para permitir que um povo peça empréstimo a um sistema bancário cooperativo, e a terceira, uma organização com papel similar ao das Nações Unidas, à qual se denominará Confederação dos Povos (não Estados)”, teoriza Rawls (p. 54).

Faz-se também necessária a busca da justiça global, assim definida por Amartya Sen (2011, p. 444), em “A Idéia de Justiça”. Como exposto anteriormente, pode ser impossível, ao nos nas atuais conjunturas, a formação de um Estado Democrático Global. No entanto, se a democracia for encarada como forma de argumentação racional pública, há possibilidade de se exercitar a democracia global. Várias vozes, de diversas fontes, de instituições formais e não formais – embora não perfeitas para fins de argumentação global – existem e podem ter certa eficácia. Elas ampliam e disseminam as informações e ampliam as possibilidades de discussão internacional, defende Sen (p. 443).

Aqui, muitas instituições têm um papel a desempenhar, inclusive a ONU e as instituições vinculadas a ela, mas há também o trabalho engajado das organizações da sociedade civil, de muitas ONGs e de algumas parcelas da imprensa. Há ainda um papel importante para as iniciativas empreendidas por inúmeros artistas individuais, operando em conjunto. (...) A distribuição dos benefícios das relações globais depende não só das políticas internas, mas também de um leque de arranjos sociais internacionais, incluindo tratados comerciais, leis de patentes, iniciativas sobre a saúde global, convênios educativos internacionais, centros de disseminação tecnológica, restrições ecológicas e ambientais, negociação de dívidas acumuladas (muitas vezes criadas por governos militares irresponsáveis no passado) e contenção de conflitos e guerras locais. Todos esses temas merecem discussão, podendo ser objetos fecundos para o diálogo global, incluindo críticas de todos os quadrantes. (SEN, p. 443-444)


CONCLUSÃO

Clausewitz (1998, p. 27;28-29) já enunciava que “guerra é uma simples continuação da política por outros meios”. A guerra sempre resulta de um motivo político, sendo ela própria um ato político. É um camaleão que modifica sua natureza no caso concreto, mas também um fenômeno de conjunto relativo às tendências que nela predominam, pressupondo a violência original, o ódio, a animosidade, o cego impulso natural, o jogo de probabilidades e do acaso, que, por ser instrumento da política, pertence à razão pura.

Daí, se faz necessária a presença da tolerância religiosa e ideológica, classificada provisoriamente, por Luiz Paulo Rouanet (2010, p. 31), em quatro tipos:

  1. tolerância governamental: é quando o poder estabelecido tolera a coexistência de crenças e práticas religiosas divergentes, desde que não ponham em xeque a estabilidade e a legitimidade do Estado;
  2. tolerância passiva: é a tolerância que os homens do século XVIII (Kant, Goethe) qualificavam de odiosa, arrogante, pois é aquela tolerância em que se está convencido da superioridade da própria crença, mas em que se aceita que outros tenham ou pratiquem suas próprias crenças;
  3. tolerância ativa: é aquela em que, independentemente da própria convicção religiosa ou política, se defende ativamente o Direito de outrem a ter e a praticar suas próprias crenças;
  4. tolerância da diferença: é aquela em que as pessoas pouco se importam com as convicções dos demais, numa espécie de relativismo limítrofe da apatia.

É evidente que, de acordo com Rouanet, a tolerância ativa é a que “tem maiores possibilidades de sucesso para o objetivo de promover a paz, a justiça e a tolerância no mundo”. No atual cenário mundial em que a paz aparece extremamente fragilizada, a contribuição da Filosofia Política e da Filosofia do Direito é fundamental para se repensar as práticas cotidianas tanto da Política quanto do Direito. Diante dos deslizes dos políticos e demais atores do cenário global, a crise econômica é um dos menores males que se avista. Se a política falha ao tecer o condão da paz, entra em cena sua outra faceta, a guerra. Edmund Burke, salvo melhor juízo, anunciava: “O mal prospera quando os bons se omitem.” Por isso, é de suma importância a participação dos intelectuais no debate global engajado, no intuito de qualificá-lo para evitar males maiores, frutos das irracionalidades do senso comum. Sigam-me os bons.[14] No bom sentido, é claro.


REFERÊNCIAS

BAUMAN, Zygmunt. Vida em Fragmentos. Sobre a ética pós-moderna. Rio de Janeiro: Zahar, 2011.

BOBBIO, Norberto. Teoria Geral da Política. Rio de Janeiro: Elsevier, 2000.

CLAUSEWITZ, Carl von. Da Guerra. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1996. 

DINSTEIN, Yoram. Guerra, Agressão e Legítima Defesa. 3. ed. Barueri: Manole, 2004.

KANT, Immanuel. A Paz Perpétua e Outros Opúsculos. Lisboa: Edições 70, 2002.

KEEGAN, John. Uma História da Guerra. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.

KELSEN, Hans. Teoria Geral do Direito e do Estado. 3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998a

____. Teoria Pura do Direito. 6. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998b.

MELLO, Celso Duiviver Albuquerque de. Curso de Direito Internacional Público. 15. ed. v. I e II. Rio de Janeiro: Renovar, 2004.

OPPENHEIM, L. International Law. 7. ed. v. II, 1953-1654, p. 884-890.

RADBRUCH, Gustav. Filosofia do Direito. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2010.

RAWLS, John. O Direito dos Povos. São Paulo: Martins Fontes, 2001.

ROUANET, Luiz Paulo. Paz, Justiça e Tolerância no Mundo Contemporâneo. São Paulo: Loyola, 2010.

SEN, Amartya. A Idéia de Justiça. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.

WALZER, Michael. Guerras Justas e Injustas. Uma Argumentação Moral com Exemplos Históricos. São Paulo: Martins Fontes, 2003.


Notas

[1] Interessante ler “Não há dia fácil. Um líder da tropa de elite americana conta como mataram Osama Bin Laden”, de Mark Owen e Kevin Maurer, da editora Paralela, lançado em 2012, que narra uma série de missões do Grupo para o Desenvolvimento de Operações Especiais da Marinha (DEVGRU), popularmente conhecida como Equipe Seis do Seal (sigla para combatentes para situações em Sea – Mar, Air – Ar, e; Land – Terra), a unidade de missões especializadas da Marinha Americana. O DEVGRU trabalha, muitas vezes, em estreita cooperação com a Força Delta, do Exército Americano, já que ambas são subordinadas ao Comando de Operações Especiais Conjuntas (JSOC). Em “Força Delta – Por dentro da Tropa Antiterrorista Americana”, o veterano Eric L. Haney relata alguns dos procedimentos da tropa de elite mais secreta do Exército Americano. O livro de Haney inspirou o seriado “The Unit”, que foi ao ar de 7 de março de 2006 a 10 de maio de 2009, pela CBS, nos Estados Unidos.

[2] “Ora, a linguagem com que debatemos sobre a guerra e a justiça é semelhante à linguagem do Direito Internacional. (...) Há muitas obras sobre esse tema, e eu muitas vezes recorri a elas. Tratados legais não fornecem, entretanto, uma explicação perfeitamente plausível ou coerente de nossos argumentos morais; e as duas abordagens mais comuns à lei refletidas nos tratados necessitam de suplementação de fora do âmbito legal. Antes de mais nada, o positivismo legal, que gerou importantes obras eruditas no final do século XIX e início do século XX, vem se tornando na era as Nações Unidas cada vez menos interessante. (...) Os juristas construíram um mundo de papel, que em pontos cruciais não corresponde ao mundo no qual ainda nós ainda vivemos.” (WALZER, 2003, p. XXV-XXVI)

[3] Emmer Vattel (1758), segundo Jankov (2009, p. 15-16), tornou clara a distinção entre jus ad bellum e jus in bello.

[4] “Tomamos como característica básica dos povos bem ordenados o fato de que desejam viver num mundo em que todas as pessoas aceitam e seguem o (ideal do) Direito dos Povos.” (RAWLS, 2001, p. 117)

[5] “Um tipo lida com condições de não-aquiescência, isto é, com condições em que certos regimes recusam-se a aquiescer a um Direito dos Povos razoável; esses regimes pensam que uma razão suficiente para guerrear é o fato de que a guerra promove, ou poderia promover, os interesses racionais (não-razoáveis) do regime. Chamo esses regimes Estados Fora da Lei. O outro tipo (...) lida com condições desfavoráveis, isto é, com as condições de sociedades cujas circunstâncias históricas, sociais e econômicas tornam difícil, se não impossível, a conquista de um regime bem ordenado, liberal ou decente. Chamo a essas sociedades de sociedades oneradas.” (RAWLS, 2001, p. 118)

[6] “Os povos liberais têm três características básicas: um governo constitucional razoavelmente justo, que serve os seus interesses fundamentais; cidadãos unidos pelo que Mill denominou ‘afinidades comuns’; e, finalmente, uma natureza moral. A primeira é institucional, a segunda é cultural e a terceira exige uma ligação firme com uma concepção política (moral) de Direito e justiça.” (RAWLS, 2001, p. 30-31)

[7] “A estrutura básica de um tipo de povo decente tem o que chamo ‘uma hierarquia de consulta decente’, e chamo esses povos ‘povos hierárquicos decentes’; o outro tipo de povo decente é simplesmente uma categoria que deixo de reserva, supondo que pode haver outros povos decentes cuja estrutura básica não se ajusta à minha descrição de hierarquia de consulta, mas que são dignos de tornar-se membros de uma Sociedade dos Povos.” (RAWLS, 2001, p. 82)

[8] Tratado de Renúncia à Guerra (1928), ou Pacto de Paris (Briand-Kellog), teve a adesão brasileira em 20 de fevereiro de 1934, via nota da Embaixada Brasileira em Washington, ratificada em 10 de abril de 1934, cujo depósito foi realizado em 10 de maio de 1934, também em Washington. E foi promulgado pelo Decreto nº 24.557, de 3 de julho de 1934, esclarece Jankov (2009, p. 14).

[9] O Estatuto de Roma dispõe: “Art. 22 (Nullun cimen sine lege) – 1. Nenhuma pessoa será considerada criminalmente responsável, nos termos do presente Estatuto, a menos que a sua conduta constitua, no momento em que tiver lugar, um crime de competência do Tribunal. 2. A previsão de um crime será estabelecida de forma precisa e não será permitido o recurso à analogia. Em caso de ambiguidade, será interpretada a favor da pessoa objeto de inquérito, acusada ou condenada. 3. O disposto no presente artigo em  nada afetará a tipificação de uma conduta como crime nos termos do Direito Internacional, independentemente do presente Estatuto.”

[10] “O Brasil assinou o tratado em fevereiro de 2000, tendo-o ratificado pelo Decreto Legislativo nº 112, de 6 de junho de 2002, e pelo Decreto de Promulgação nº 4.388, de 25 de setembro de 2002.” (JANKOV, 2009, p. 31)

[11] Não se concorda com a posição de Radbruch, como se argumenta ao longo do texto, com justificação em vários autores.

[12] Para Michael Walzer (2003, p. 3) o argumento de que a guerra está além (ou aquém) da apreciação moral não subsiste. Quer dizer: “Inter arma silent leges: em tempos de guerra, cala-se a lei.”

[13] Interessante o comentário de Bauman (2011, p. 266) acerca da participação do indivíduo na máquina da morte: “A modernidade não tornou as pessoas mais cruéis; ela apenas inventou uma maneira pela qual crueldades poderiam ser praticadas por pessoas não cruéis. As pessoas racionais, homens e mulheres bem-afixados na rede impessoal, adiaforizada, da organização moderna, podem fazê-lo perfeitamente.”

[14] Frase frequentemente utilizada pelo herói do seriado mexicano “Chapolim Colorado”.


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Informações sobre o texto

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

YABIKU, Roger Moko. Anotações jusfilosóficas contemporâneas sobre a guerra. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 24, n. 5804, 23 maio 2019. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/70139. Acesso em: 28 mar. 2024.