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Cânhamo industrial: um possível case de litígio estratégico de interesse público

Cânhamo industrial: um possível case de litígio estratégico de interesse público

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A distinção botânica e toxicológica entre cânhamo industrial e maconha serve para demonstrar que, apesar de serem espécies de um mesmo gênero, são plantas distintas e com diferentes propriedades e que, nessa condição, devem receber tratamentos contrários por parte da lei e das autoridades do poder público.

Resumo: Litígio estratégico de interesse público tem surgido como via alternativa para discutir temas políticos e proteger direitos fundamentais. No Brasil, o cânhamo industrial tem potencial para um caso concreto em defesa pelos direitos econômicos fundamentais.

Palavras-chave: Litígio estratégico. Direitos econômicos fundamentais. Cannabis Sativa. Cânhamo industrial.


I -Apresentação do tema

Existe algum consenso entre teóricos e práticos do direito que o Poder Judiciário tem se tornado um Poder mais forte, com competência e capacidade legitimada de interferir e influenciar no Legislativo e no Executivo, ainda que carente de legitimidade representativa direta da população.

Essa tendência também pode ser observada no Brasil, onde o Poder Judiciário, em especial o Supremo Tribunal Federal, tem alcançado uma posição de protagonismo no jogo da vida pública e por que não dizer, no jogo da vida política do país, a ponto de alguns autores acreditarem que esse fenômeno sinaliza uma mudança no equilíbrio do sistema de separação dos Poderes (VILHENA, 2008)[1].

Essa atuação marcante na vida pública se concretiza a partir da possibilidade de proferir a última palavra, ainda que provisória[2] (HUBNER, 2008), quanto ao que supostamente a Constituição quer dizer sobre os direitos ali encartados, o que lhe disponibiliza a viabilidade instrumental legítima de tomar ou contrariar decisões de natureza política ou até mesmo influenciar decisões futuras tomadas pelos os outros Poderes, tendo em vista o alcance de suas decisões.

A judicialização da vida cotidiana traduz-se num número crescente de ações processadas pelo Poder Judiciário, realçando a importância deste Poder sobre os demais na dinâmica habitual da vida pública.

Há quem defenda que o fortalecimento do Judiciário, enquanto poder público, decorra de uma omissão do Legislativo e há quem sustente não existir relação entre a produção legislativa e o protagonismo do Poder Judiciário, cujo fortalecimento é consequência natural do crescimento da própria democracia.

Certo é que independente da causa, Juízes e Tribunais, enquanto instâncias públicas de tomadas de decisões destinadas a solução de conflitos, têm sido cada vez mais chamados para examinar possíveis violações a direitos em contextos que envolvam debates de natureza política e que, portanto, poderiam ou deveriam ficar restritos às esferas do Legislativo e do Executivo.

É a autoridade da última palavra cronológica quanto à interpretação do texto constitucional e da resolução de conflitos judicializáveis e judicializados, que influencia a atuação de outros Poderes, seja pautando ou contrariando atuações do Legislativo e do Executivo quanto a alguns temas sensíveis à vida política ou social, e que traz o Judiciário e o Supremo Tribunal Federal mais próximos da vida cotidiana brasileira.

De todos os efeitos dessa atuação destacada, aquele que nos interessa é o surgimento desse Poder como uma via alternativa para a discussão de temas e preenchimento de lacunas jurídico-normativas, inseridas no plano dos direitos econômicos fundamentais, que poderiam ou deveriam ser decididos pelo Legislativo no Congresso, mas que por motivos políticos não o são.

A experiência tem revelado que o Poder Judiciário pode provocar mudanças legislativas e em políticas públicas e isso tem estimulado agentes interessados, sejam de direito público ou privado, a recorrer ao Judiciário por intermédio de ações que possam causar mudanças sociais. A esse tipo de processo tem-se dado o nome de litígio estratégico ou litígio de impacto[3] (CARDOSO, 2012).

O intuito deste ensaio é fazer uma breve incursão em litígios estratégicos como alternativa para a satisfação de direitos econômicos fundamentais, para daí examinar a viabilidade jurídica de um potencial caso concreto de litígio estratégico a que se pretende caracterizar de interesse público, ainda que a partir da solução de um caso individual.

Para tanto, abordaremos primeiro, sem pretensão de esgotar o tema, a justiciabilidade de direitos econômicos e como demandas dessa natureza podem causar mudanças sociais a partir de decisões judiciais.

Segundo, examinaremos melhor o que é litígio estratégico e litígio estratégico de interesse público como alternativas viáveis e, por vezes, mais fáceis, de se tutelar direitos econômicos fundamentais, em comparação às tradicionais arenas políticas, como Câmara dos Deputados e o Senado Federal.

Feito isso, analisaremos a viabilidade de um litígio estratégico de interesse público para o cânhamo industrial, como forma de alterar a realidade social atual, na qual o plantio, produção, processamento e comercialização do cânhamo para fins industriais é tido como proibido.


II - Direitos econômicos fundamentais no Brasil e sua exigibilidade

Antes de estabelecermos o que queremos significar ao utilizarmos o termo direitos econômicos fundamentais e de nos voltarmos ao Texto Constitucional em busca deles, cabe assentarmos, o que entendemos por direitos econômicos.

Um bom ponto de partida é o Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, do qual o Brasil é signatário, firmado perante a Assembleia Geral das Nações Unidas, em 1966, segundo o qual

“Os Estados Partes no presente Pacto:

Considerando que, em conformidade com os princípios enunciados na Carta das Nações Unidas, o reconhecimento da dignidade inerente a todos os membros da família humana e dos seus direitos iguais e inalienáveis constitui o fundamento da liberdade, da justiça e da paz no Mundo;

Reconhecendo que estes direitos decorrem da dignidade inerente à pessoa humana;

Reconhecendo que, em conformidade com a Declaração Universal dos Direitos do Homem, o ideal do ser humano livre, liberto do medo e da miséria não pode ser realizado a menos que sejam criadas condições que permitam a cada um desfrutar dos seus direitos econômicos, sociais e culturais, bem como dos seus direitos civis e políticos.

Considerando que a Carta das Nações Unidas impõe aos Estados a obrigação de promover o respeito universal e efetivo dos direitos e liberdades do homem; Tomando em consideração o fato de que o indivíduo tem deveres para com outrem e para com a coletividade à qual pertence e é chamado a esforçar-se pela promoção e respeito dos direitos reconhecidos no presente Pacto, acordam nos seguintes artigos:

 (...)

Art. 6º -  Os Estados Partes no presente Pacto reconhecem o direito ao trabalho, que compreende o direito que têm todas as pessoas de assegurar a possibilidade de ganhar a sua vida por meio de um trabalho livremente escolhido ou aceito, e tomarão medidas apropriadas para salvaguardar esse direito.

As medidas que cada um dos Estados Partes no presente Pacto tomará com vista a assegurar o pleno exercício deste direito devem incluir programas de orientação técnica e profissional, a elaboração de políticas e de técnicas capazes de garantir um desenvolvimento econômico, social e cultural constante e um pleno emprego produtivo em condições que garantam o gozo das liberdades políticas e econômicas fundamentais de cada indivíduo.”[4]

Deste documento legal com status constitucional, mas que antecede a Carta Federal de 1988, colhemos duas ponderações que nos parecem pertinentes à discussão que queremos suscitar.

A primeira delas é o grau de importância que os países signatários do Pacto, Brasil incluso, dão aos direitos econômicos, quando reconhecem que não há como se realizar o ideal humano sem que sejam criadas condições para que cada um possa desfrutar de seus direitos econômicos. Os pactuantes acreditam, portanto, que não há como haver dignidade da pessoa humana sem que lhe sejam preservados os direitos econômicos.

A segunda, que o termo “direitos econômicos fundamentais” utilizado neste paper advém do termo “liberdades (...) econômicas fundamentais” já cunhado pelo Pacto antes mesmo da Constituição de 1988. Embora haja elementos da proteção ao trabalho e à livre iniciativa dispersos por todo o texto constitucional, eles foram em grande parte acomodados sob o Título II – Dos direitos e garantias fundamentais, sendo este o motivo pelo qual podemos dizer que também no ordenamento jurídico nacional o termo “direitos econômicos fundamentais” parece-nos adequado.

Sem querer divagar por um assunto tangente ao do proposto neste ensaio, acrescentemos que os direitos fundamentais contidos no conceito – em especial naquele do qual partimos – são aqueles relacionados à liberdades, igualdade e dignidade, sendo que, para fins da nossa discussão, restringiremos ainda mais os direitos fundamentais econômicos aos direitos de liberdades, por sua vez entendidos como direito de fazer ou deixar de fazer algo relacionado à produção e circulação de produtos e serviços sem que sofra embaraços de terceiros ou do Estado.

Por óbvio, apenas consideramos produtos e serviços lícitos, mas exatamente por isso estamos tratando também da impossibilidade de tormentas que busquem rotular, injustificadamente, em especial por motivos éticos ou morais, produtos e serviços como ilícitos sem que efetivamente o sejam.

Na Constituição de 1988, a proteção desses direitos – fundamentais econômicos - primeiro se apresenta no inciso IV, do art. 1º, no qual o texto estabelece que o Estado Democrático brasileiro terá, nos valores sociais do trabalho e da livre iniciativa, um dos seus fundamentos[5], é dizer, a regra é sempre pela preservação do direito ao trabalho e a possibilidade e desnecessidade de autorização estatal de trabalhar e empreender.

É, contudo, nos incisos do artigo 5º, que a Constituição evidencia mais destacadamente esses direitos e os aquilata, na linha do Pacto internacional firmado anteriormente, com a qualidade de direitos e garantias fundamentais.

O inciso XIII, estipula que será “livre o exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, atendidas as qualificações profissionais que a lei estabelecer”.  O direito de propriedade previsto no inc. XXII, constitui um outro elemento relacionado ao direito ao desenvolvimento econômico.

O inciso XXIX assegura aos autores de inventos industriais, privilégio temporário para sua utilização, bem como proteção às criações industriais, à propriedade das marcas, aos nomes de empresas e a outros signos distintivos, tendo em vista o interesse social e o desenvolvimento tecnológico e econômico do País.

O artigo 6º prevê o direito ao trabalho como um direito social fundamental, pois a despeito de sua topografia constitucional o situar fora dos direitos e garantias individuais fundamentais, encontra-se inserto sob o mesmo Título II, do Texto, sob o nome “Dos direitos e garantias fundamentais”.

O Título VII da Constituição trata da Ordem Econômica e Financeira e estabelece que a “ordem econômica será fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa”, assegurando “a todos o livre exercício de qualquer atividade econômica, independentemente de autorização de órgãos públicos, salvo nos casos previstos em lei”. Por fim o art. 190, prevê que a ordem social terá como base o primado do trabalho.

Tudo isso para dizer que a Constituição dispõe de forma protetiva e garantista com relação aos direitos de natureza econômica, que devem estar sob tutela do Poder Judiciário, caso provocado a proteger alguém de intervenção desnecessária ou injustificada, por parte de terceiros ou do Estado, em seu trabalho e livre iniciativa, pois do contrário estar-se-á mitigando o direito ao trabalho e à livre iniciativa; direitos econômicos fundamentais.

É certo que apenas a previsão no texto constitucional não significa a observância desses direitos. Cientes dessa realidade, alguns países latino americanos visando a um fortalecimento da eficácia e efetividade dos direitos econômicos, entre outros direitos, assinaram em 1998, em Quito no Equador, a Declaração de Princípios sobre a Exigibilidade e Realização dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais na América Latina.

O Brasil também é signatário dessa Declaração, o que, aliado ao texto constitucional, não deveria deixar margem para dúvidas normativas sobre a justiciabilidade e exigibilidade desses direitos perante o ordenamento jurídico-processual brasileiro e sul-americano.

A declaração afirma que os signatários entendem ser necessária não só a previsão de garantia desses direitos, mas também e, acima de tudo, a exigibilidade desses direitos perante o Poder Judiciário e os organismos internacionais, para efetivá-los e preservá-los.

“O gozo dos direitos econômicos, sociais e culturais são determinantes para a possibilidade do exercício efetivo, igualitário e não discriminatório dos direitos civis e políticos. Assegurar o gozo dos direitos civis e políticos sem considerar o pleno exercício dos direitos econômicos, sociais e culturais constitui discriminação intolerável, que favorece os setores beneficiados pela desigual distribuição da riqueza e reprodução das iniquidades sociais

A pessoa e sujeito de todos os direitos e liberdade, e os Direitos Humanos implicam no fortalecimento de oportunidades e capacidades para que as pessoas possam desfrutar.

Os Estados têm a primordial obrigação de respeitar, proteger e promover os direitos econômicos, sociais e culturais frente a comunidade internacional e frente a seu povo. Não obstante, outros atores tem o dever de respeitar tais direitos e ser responsáveis frente a eles. Por esta razão, tanto a sociedade civil, como a comunidade internacional e os Estados, frente as violações por ação ou omissão perpetradas por atores como as empresas multinacionais e/ou organismos multilaterais, devem adotar individualmente e mediante a cooperação internacional, medidas efetivas para prevenir, repelir e sancionar as violações a esses direitos em qualquer parte.

Os direitos econômicos, sociais e culturais estão diretamente relacionados com os tratados internacionais de comercio e finanças que vêm adaptando-se aos marcos do atual processo de globalização, de modo que seu respeito, proteção e promoção devem considerar-se como elementos para ser considerados em tais acordos.”[6]

O Pacto Internacional, a Constituição de 1988 e a Declaração de Princípios confortam uma premissa normativa necessária para um avanço na discussão, isso é, direitos econômicos são direitos fundamentais.

Quanto aos direitos fundamentais, parece ser ainda mais clara a exigibilidade desses direitos perante o Poder Judiciário. Numa reflexão acerca da aplicabilidade e eficácia dos direitos fundamentais num contexto do regime constitucional pátrio, Ingo Wolfgang Sarlet recorre à Alexy para explicar que

“(...) direitos fundamentais são posições jurídicas a tal ponto relevantes que o seu conhecimento não pode ser pura e simplesmente colocado plenamente à disposição das maiorias parlamentares simples. Também por essa razão, os direitos fundamentais – para que tenham assegurada uma posição preferencial e privilegiada – devem estar blindados contra uma supressão ou um esvaziamento arbitrário por parte dos órgãos estatais, em outras palavras, pelos poderes constituídos, além de terem sua normatividade plenamente garantida, o que implica o reconhecimento de uma dupla finalidade formal e material. Alinhando-se à tradição constitucional contemporânea, também a CF de 1988 aderiu a este modelo e, além de inserir – expressa e implicitamente – os direitos fundamentais no seleto rol das assim designadas “cláusulas pétreas” tornando-os limites materiais ao poder de reforma constitucional (art. 60, §4º, inciso IV, da CF), afirmou que as normas definidoras de direitos e garantias fundamentais são aplicáveis (art. 5º, §1º, da CF)[7](SARLET, 2008)

Estamos convencidos nessa linha, de que os direitos fundamentais, além de serem protegidos de maiorias parlamentares, são exigíveis por força de autorização constitucional, o que inclui, necessariamente os direitos econômicos fundamentais.

Para fins do nosso debate, é útil, ainda, distinguir, dentre os direitos fundamentais mencionados na Declaração, os direitos econômicos dos sociais e culturais, na medida em que estes requerem uma prestação efetiva do Estado e por isso estão submetidos a reserva do possível. Os direitos fundamentais econômicos, que consistem em direitos de liberdades - daí o Pacto se referir às “liberdades econômicas fundamentais” -, em tese não se sujeitam diretamente à reserva do possível, já que o Estado estará tutelando-os tão somente através da garantia de não embaraço, sem qualquer necessidade de ajuste ou interferência no orçamento.

Assim, tecidas essas considerações, continuaremos adiante, utilizando como premissa a exigibilidade dos direitos fundamentais econômicos no ordenamento pátrio, acrescidas do fato de que por não demandarem uma prestação estatal senão no sentido de poder, dentro de sua liberdade, trabalhar e empreender de modo a desenvolver-se economicamente,  estes deveriam ser mais facilmente tutelados pelo Estado do que outros direitos fundamentais, como os sociais e culturais, que exigem, ao invés, prestação efetiva do Estado, que por sua vez encontra restrições na disponibilidade de seus recursos, sempre atento à reserva do possível.


III - Litígio estratégico

Litígio estratégico é uma terminologia utilizada para caracterizar conflitos judicializáveis que buscam promover mudanças e transformações sociais positivas que ultrapassem os limites de um determinado caso concreto.

“(...) a transformação e o impacto social, o litígio estratégico, apesar de se dar em cortes, tem como endereçados não apenas os órgãos judiciais, mas também os tomadores de decisão (decision makers), os formuladores de políticas públicas (policy makers) e a sociedade em geral. Por essa razão, o litígio estratégico não se limita ao trâmite do caso no judiciário. Ele combina uma série de técnicas legais, políticas e sociais desde o início do caso (ou mesmo até antes de configurar-se em um caso, quando ainda é apenas um problema) até o seu término, que não é dado pela decisão judicial favorável, mas por sua real implementação” (CARDOSO, 2008)[8].

É perfeitamente possível que um determinado caso concreto de litígio estratégico tenha um resultado desfavorável nos tribunais, mas que seja exitoso em sua investida, provocando o debate, trazendo algum assunto para a pauta da agenda pública e, por vezes, provocando alterações legislativas e na maneira como as pessoas enxergam um assunto.

Quanto à capacidade de litígios judiciais improcedentes estimularem mudanças legislativas, cabe lembrar a Lei da Ficha Limpa. Em meados dos anos 2000, havia uma crescente sensação de repúdio a um número significativo de políticos com condenações judiciais que, carentes de trânsito em julgado, continuavam elegíveis e aptos a exercerem cargos político-eletivos.

A Associação dos Magistrados do Brasil – AMB ajuizou uma ação de descumprimento de preceito fundamental, autuada sob o nº. ADPF 144/STF, cujo desfecho foi desfavorável à pretensão erguida na inicial.

Os Magistrados buscavam, por meio da demanda, que o STF, ao interpretar a Constituição, flexibilizasse a presunção de inocência e autorizasse Juízes julgarem inelegíveis candidatos com base em sua vida pregressa. A demanda foi amplamente noticiada, o julgamento acompanhado de perto pela mídia, pela opinião pública e pelo povo.

A ADPF foi julgada improcedente, tendo, naquela oportunidade, o STF declarado que o princípio da presunção de inocência gozava de status absoluto e, nos termos da Constituição não comportaria flexibilização.

O objetivo principal da ADPF era criar um mecanismo de maior rigor no processo de julgamento dos pedidos de candidatura, mas o STF não acolheu o pedido. Talvez impulsionada pelo insucesso da demanda, vista por muitos como esperança de melhorias, a sociedade se mobilizou de tal forma que atingiu um quociente processual mínimo necessário estipulado pela Constituição para que fosse proposta uma lei de iniciativa popular que, aprovada por quórum qualificado – unanimidade nas duas Casas Legislativas – formalizou-se na Lei Complementar nº. 135, popularmente conhecida como Lei da Ficha Limpa, que flexibilizou a presunção de inocência de cidadãos que desejem extrapolar sua condição de cidadão-do-povo para encarnar o Estado, na condição de cidadão-representante-do-povo.

Ainda que uma decisão favorável não seja a única forma de se ter êxito em um litígio estratégico, um pressuposto factual para a ocorrência e resultados do litígio estratégico é que o Poder Judiciário seja independente e criativo, com capacidade de inovar. É fator contributivo para o litígio, que os Julgadores consigam enxergar novos contextos em velhos textos.

“O litígio de interesse público, no contexto em que o direito está conectado às transformações socioeconômicas, é um instrumento importante, pois tem o potencial de promover o desenvolvimento à medida em que busca avançar na luta pela garantia e efetividade de direitos sociais, e dar voz a minorias ou setores marginalizados da sociedade. Muito embora se reconheça não ser o Poder Judiciário o lócus tradicional ou ideal para realizar debates políticos, por vezes, os debates nas vias políticas tradicionais, como Legislativo e o Executivo, não são responsivos às necessidades de minorias ou de setores marginalizados da sociedade, não sendo traduzidos em ações efetivas ou desconsideradas”[9] (LANGENEGGER e CUNHA, 2013).

Logicamente o litígio estratégico tem vantagens e desvantagens e nem sempre o resultado pode ser o antecipado. A maior vantagem do litígio é que ele, em tese, despolitizaria algumas discussões, pois a função do Poder Judiciário é examinar violações a direitos. Debates políticos nas arenas parlamentares estão sujeitos a jogo de interesses políticos e não necessariamente estão em estrito compasso com direitos individuais ou mesmo o melhor interesse público.

Entre suas desvantagens, Evorah Cardoso aponta que às vezes uma decisão desfavorável pode vir a institucionalizar ou reafirmar uma prática que não só piore o problema, mas também dificulte uma resposta ao problema no futuro[10] (CARDOSO, 2011).

Mas o que torna um litígio estratégico, de interesse público? É saber, o que qualifica a demanda como de interesse público?

Cardoso distingue litígios com base na finalidade ou orientação da causa. Assim, é possível distinguir uma advocacia “client oriented” e uma advocacia “issue oriented” ou “policy oriented”; a primeira busca defender interesses de um cliente, enquanto o segundo busca promover um impacto social através do avanço jurídico de um tema sensível à sociedade; tem uma pauta temática, portanto, designada a provocar transformações sociais[11] (CARDOSO, 2012).

“The notion of public interest law assumes the existence of a ‘public sphere’, as understood by thinkers such as Habermas, or – to use the term popularized by Vaclav Havel – ‘civil society. The essence of this idea is that society includes a variety of fomal and informal, interlinked, self-organized associations that somehow connect the private and public spheres. The idea that private organizations shoud take active part in public discourse and processes sound unremarkable to Western ears, but it stands in marked contrast to the socialist legal order, in which the public sphere was coextensive with the state (PILI, 2002, p.2)”[12].

Podemos entender, portanto, um litígio estratégico como de interesse público, quando sua questão – seu “issue” – estiver interligado com interesses difusos, ainda que individuais. Em assim o sendo, é razoável que atribuamos a locução adjetiva “de interesse público” a todo litígio estratégico que vise à salvaguarda de direitos econômicos, pois a proteção dos direitos econômicos de um indivíduo, com base na igualdade, deve aproveitar a todos os outros concidadãos, estando umbilicalmente ligado aos interesses da sociedade civil que as pessoas tenham seus direitos econômicos fundamentais protegidos.

Feitas essas considerações acerca dos direitos econômicos fundamentais e como eles podem ser exigíveis através de processos judicializáveis com potencialidade de alterar uma determinada realidade social, passamos agora a abordar um possível caso concreto, ao qual se pretende qualificar como de interesse público.           


IV - Cânhamo Industrial

Cânhamo é uma planta da espécie Cannabis sativa L.. É longa e fibrosa com uma diversidade muito grande de aplicações, mas talvez a Cannabis talvez seja mais conhecida por um de seus canabinóides, o delta-9-tetra-hidrocanabinol (THC), principal agente psicoativo da maconha, que se encontra na Cannabis em variadas concentrações, a depender de sua espécie.

A Convenção da ONU, de 1961, sobre drogas e entorpecentes define Cannabis como “a extremidade dos ramos floridos ou frutificados da planta de cânhamo (com a exclusão das sementes e das folhas que não sejam acompanhadas de sumidades), cuja seiva não tenha sido extraída, qualquer que seja a sua aplicação”[13].

Por conter delta-9-tetra-hidrocanabinol (THC), a Cannabis sativa está prevista na Lista ‘E’ da Portaria nº. 344/98 - ANVISA, o regulamento técnico de substâncias e medicamentos sujeitos a controle especial, na parte que trata sobre plantas que podem originar substâncias entorpecentes ou psicotrópicas.

A Lista “E” da Portaria 344/98 da Anvisa ignora que a Cannabis sativa L. pode conter quantidades variadas de canabinóides[14] e que existem variedades de planta com índices muito baixos de delta-9-tetra-hidrocanabinol (THC) – o canabinóide psicoativo -, insuficientes para consequências psicotrópicas, que é largamente utilizada há séculos, por países ao redor do mundo para fins exclusivamente agrícolas e industriais. A essa variedade de Cannabis é dado o nome de “cânhamo industrial”, “industrial hemp” ou tão somente “hemp”, comercializado no mundo inteiro como um commodity agrícola.

Utilizaremos o termo “cânhamo”, “cânhamo industrial” e “hemp” para todas as vezes em que estivermos no referindo à espécie de Cannabis com concentrações baixas de delta-9-tetra-hidrocanabinol (THC), variando entre 0.01% a 0.03%, uma vez que a legislação internacional estipula esses índices como indicativos da Cannabis utilizada para fins industriais[15] (VANTREESE, 1997).

Utilizaremos o termo “maconha” todas as vezes em que estivermos nos referindo à Cannabis com índices de THC superiores a 0.03%, mais comumente utilizado para fins recreativos em razão da sensação de euforia e bem estar causada pela substância. Estudos toxicológicos concluíram que níveis de THC abaixo de 1% não têm condição de causar efeitos psicotrópicos[16] (WEST, 1998) e geralmente a maconha varia de índices de THC entre 3%-15%[17] (KOSOLOV, 2007).

Do ponto de vista botânico, é superada a unicidade biológica de cada espécie do gênero Cannabis L., existindo meios de testes para examinar a genética da planta, bem como para aferir níveis de THC[18] (WEST, 1998) entre outros micro e macro nutrientes e canabinóides.

A Convenção Única da ONU sobre Drogas, em seu artigo 28 prevê expressamente que o documento que proíbe as substâncias ali descritas, não se aplicará a cannabis “exclusivamente destinada a fins industriais (fibras e sementes) ou fins agrícolas”[19].

Tal previsão justifica-se por motivos econômicos, uma vez que o cânhamo possui grande utilidade industrial. O Congressional Research Service, dos Estados Unidos, estima que existam mais de 25.000 utilidades industriais aplicáveis em 9 submercados: agricultura (fonte de energia renovável), têxtil, reciclagem, automotivos, mobília, alimentos/nutrição/bebidas, papel, material de construção e cosméticos[20] (JOHNSON, 2015).

Examinaremos, ainda que brevemente, algumas das principais utilidades do cânhamo para daí concluir que suas vantagens econômicas, ecológicas e medicinais, que em nada se confundem com a maconha, não podem sofrer embargos legais do ordenamento jurídico brasileiro porquanto violariam direitos econômicos fundamentais, apresentando o litígio estratégico de interesse público como mecanismo jurídico viável para proteger esses direitos e alterar essa realidade social.        


V - Benefícios econômicos e ecológicos do Cânhamo Industrial

O Cânhamo Industrial enquanto commodity agrícola tem sido cultivado por séculos, especialmente para a produção de extração de fibras e produção de óleo da semente[21]. Em meados do Século XIX, o cultivo de cânhamo era muito comum nos Estados Unidos para utilidades têxteis, cordas e papel, tendo a produção caído perto de 1890´s em função dos avanços tecnológicos de outros cultivos para fins têxteis, em especial o algodão[22]. Atualmente, o cânhamo é cultivado em mais de 30 países, entre os quais: China, França, Alemanha, Uruguai, Hungria, Rússia e Canadá.

Não existem números oficiais referentes ao valor da comercialização de produtos à base de cânhamo no mundo, mas a Associação das Indústrias do Hemp, a Hemp Industries Association (HIA) estima que o varejo do comércio do cânhamo apenas nos Estados Unidos tenha movimentado cerca de US$ 581 milhões em 2013, incluindo alimentos, cosméticos, roupas, partes automotivas, materiais de construção entre outros produtos. Um relatório da instituição (HIA) estima que desse valor total, US$ 184 milhões tenham sido relacionados a alimentos, suplementos nutricionais e produtos de beleza, e ainda aproximadamente US$ 100 milhões anuais da indústria têxtil[23].

Como insumo têxtil, a fibra do cânhamo é quase duas vezes mais resistente do que o algodão e suporta uma tensão de aproximadamente 40.000kg por polegada quadrada, com a vantagem de não necessitar de pesticidas químicos em seu cultivo e plantação. O North American Industrial Hemp Council estima que 50% de todos os pesticidas usados no planeta são para plantações de algodão[24]. Isso significa que ao autorizar e estimular, em vez de proibir o cultivo do cânhamo, poderia reduzir a emissão de pesticidas das plantações de algodão, ao mesmo tempo em que se poderia fabricar produtos têxteis mais resistentes.

Para a indústria de alimentos, o óleo do cânhamo é muito valioso por suas propriedades nutricionais e benefícios associados. Embora predominantemente composta de ácidos graxos, a semente integral do cânhamo contém de 20-25% de proteína, 20-30% de carboidratos e 10-15% de fibras, além de outros minerais. O óleo da semente do cânhamo contém ácido linoleico (LA) e a-linoleico (LNA) como seus maiores ácidos graxos poliinsaturados omega-6 e omega-3, respectivamente, numa proporção de 3:1, otimizando seu valor nutricional, criando maior resistência a câncer, inflamações e coagulação do sangue, entre outros benefícios à saúde [25] (LEIZER, RIBNICKY, POULEV, DUSHENKOV, RASKIN, 2000).

Outra utilidade do cânhamo que entrelaça benefício econômico com benefício ecológico é na indústria de papel. Estima-se que entre 75-90% do papel do mundo até 1883 era feito de cânhamo[26]. No Brasil, o Eucalipto é a madeira mais utilizada para a produção de papel e seu ciclo de vida até o corte é de seis a sete anos[27]. Uma árvore de Eucalipto consegue produzir algo entre 20.000 e 24.000 folhas de papel A4, sendo necessárias aproximadamente 11 árvores para produzir uma tonelada de papel[28]. Um hectare de cânhamo pode produzir 4 vezes mais fibras para papel do que um hectare de árvores e duas vezes mais fibra para tecido do que um hectare de algodão[29].

O Eucalipto tem em média 45% de celulose[30] em comparação a 77% do cânhamo industrial[31], entretanto, o ciclo de vida do cânhamo é consideravelmente mais curto do que do Eucalipto, uma vez que desde a semeadura até a colheita, são aproximadamente 120 dias[32]. O alto percentual de celulose (principal matéria prima para o papel) e a reduzida quantidade de químicos necessários (a polpa do cânhamo apenas é acrescida a soda cáustica reciclável) fazem com que papel do cânhamo chegue a durar até 200 anos, três vezes mais do que papel do Eucalipto, sem que o papel fique amarelado no processo de envelhecimento, portanto, melhor papel num período muito mais curto[33] (KOSOLOV, 2009).

Utilizar o cânhamo para substituir o Eucalipto na produção de papel não só economizaria matéria prima, dada a concentração maior da matéria prima principal – celulose -, mas também no tempo de produção, uma vez que o ciclo de vida do cultivo do cânhamo é 1/18 em comparação ao do Eucalipto. Sua exploração para papel poderia evitar desmatamento de florestas para esse fim, tornando-se também vantajoso sob esse ponto de vista.

A fibra do cânhamo ainda pode ser prensada para produzir compensados de madeira. Sua utilização na confecção de madeira MDF (modern density fiber) e na indústria de móveis de madeira é comum, com a vantagem de ter um ciclo de vida reduzido, economizando tempo, recursos e árvores.

O Cânhamo pode ser utilizado na fabricação de bioplásticos e tem se tornado uma alternativa viável e ecologicamente correta a plásticos feitos à base de petróleo e fibra de vidro[34] (KOSOLOV, 2009).

A indústria da construção civil também pode se beneficiar da utilização de cânhamo industrial em comparação aos insumos hoje utilizados. A fibra do cânhamo pode ser usada para criar um concreto, Hempecrete, que além de ser 50% mais leve do que concreto convencional, é 7 vezes mais forte, mais flexível, menos susceptível à rachadura, sendo à prova de fogo e de água. Entretanto, essas não são as características que mais chamam atenção no Hempcrete. Ele desencadeia um processo químico chamado sequestro de carbono, que captura gás carbônico da atmosfera para o enrijecimento do concreto, tendo sido registrados níveis de sequestro de até 200kg de gás carbônico por metro quadrado de parede[35] (KOSOLOV, 2009). O impacto ambiental de construções com Hempcrete em larga escala poderia proporcionar uma limpeza ou filtragem do ar, ao mesmo tempo em que renderia créditos de carbono, compatibilizando ganhos ecológicos e econômicos de forma sustentável.

O cânhamo pode fazer dois tipos de combustíveis: biodiesel (óleo da semente) e etanol/metanol (fermentação do talo), sendo, em razão de seu curto ciclo de vida e produção, uma fonte de energia renovável[36], que poderia, eventualmente, substituir motores movidos a combustível fóssil, como o petróleo.

Outra vantagem ecológica do cânhamo é que seu cultivo realiza um processo de fitoremediação, ou seja remove, imobiliza ou torna inofensivos ao ecossistema, orgânicos e inorgânicos presentes no solo e na água[37], havendo registros de que o cânhamo foi utilizado para recuperar porções de terra após o acidente de Chernobyl, na Ucrânia, uma vez que a planta não é afetada por metais pesados presentes no solo[38].

Cabe também mencionar a utilidade do cânhamo industrial para fins medicinais, em sua maior parte relacionado ao Cannabidiol ou CBD, um dos canabinóides do cânhamo. O CBD tem demonstrado propriedades farmacológicas importantes, sem qualquer relação com propriedades psicoativas do THC. Há registros médicos de benefícios do CBD relacionados a Distonia, um distúrbio neurológico, em especial no nível de tremor do paciente. Além disso há diversos estudos médicos que documentam atividades anticonvulsivante e antiepiléptica[39].

Um estudo da American Society for Pharmacology and Experimental, conduzido em 2014, concluiu que o Cannabidiol (CBD) atua contra insulite, inflamações em geral, dores neuropáticas e disfunção do miocárdio em modelos pré-clínicos de diabetes[40].

Todas essas características do cânhamo foram listadas para demonstrar sua utilidade industrial e os benefícios provenientes de seu cultivo.


VI - Situação legislativa do cânhamo industrial no Brasil

Não existe legislação específica relacionada ao cânhamo no Brasil, nem tampouco há distinção, por parte das autoridades, entre cânhamo industrial e maconha.

A Cannabis está listada no rol da Portaria 344/98 da ANVISA, como planta proibida que pode produzir substâncias psicoativa, situação que atrai a incidência da Lei 11.346/06, conhecida como a Lei das Drogas ou Lei Anti-Drogas.

A citada lei “institui o Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas - Sisnad; prescreve medidas para prevenção do uso indevido, atenção e reinserção social de usuários e dependentes de drogas; estabelece normas para repressão à produção não autorizada e ao tráfico ilícito de drogas e define crimes”[41].

O art. 2º da Lei determina que “Ficam proibidas, em todo o território nacional, as drogas, bem como o plantio, a cultura, a colheita e a exploração de vegetais e substratos dos quais possam ser extraídas ou produzidas drogas, ressalvada a hipótese de autorização legal ou regulamentar, bem como o que estabelece a Convenção de Viena, das Nações Unidas, sobre Substâncias Psicotrópicas, de 1971, a respeito de plantas de uso estritamente ritualístico-religioso”.

A parte das considerações da Convenção da ONU de 1971 sobre psicotrópicos parece um bom ponto de partida para compreender a intenção do tratado e a que ele se destina.

“As partes,

Preocupadas com a saúde e o bem-estar da humanidade;

Observando, com preocupação, os problemas sociais e de saúde-pública que resultam do abuso de certas substâncias psicotrópicas;

Determinadas a prevenir e combater o abuso de tais substâncias psicotrópicas;

Determinadas a prevenir e combater o abuso de tais substâncias e o tráfico ilícito a que dão ensejo;

Considerando que as medidas rigorosas são necessárias para restringir o uso de tais substâncias aos fins legítimos;

Reconhecendo que o uso de substâncias psicotrópicas para fins médicos e científicos é indispensável e que a disponibilidade daquelas para esses fins não deve ser indevidamente restringida;

Acreditando que medidas eficazes contra o abuso de tais substâncias requerem coordenação e ação universal;

Reconhecendo a competência das Nações Unidas no campo do controle de substância psicotrópicas e desejosos de que os órgãos internacionais interessados se situem dentro do âmbito daquela Organização;

Reconhecendo a necessidade de uma convenção internacional para a consecução de tais objetivos, (...).”   

A parte introdutiva da Convenção é clara com a ideia de que são as substâncias psicotrópicas que a ONU considera uma ameaça à saúde e o bem estar dos seres humanos e por isso a entidade acredita que devam ser combatidas através de “todas as medidas viáveis para impedir o abuso de substâncias psicotrópicas e para a pronta identificação, tratamento, pós-tratamento, educação, reabilitação e reintegração social das pessoas envolvidas, e deverão coordenar seus esforços para tais fins[42].”

A Convenção traz em seu anexo, Lista de Substâncias Psicotrópicas divididas em 4 relações, entre as quais não se encontra a Cannabis, mas sim menção específica à substância psicoativa da Cannabis, o tetraidrocanabinol (THC), em sua Relação I.

Já foi dito, por outro lado, que a Convenção Única da ONU, de 1961, sobre substâncias entorpecentes, especificamente excetuou a cannabis para usos industriais e agrícolas, como se colhe do item 2, do art. 28,

“2 - A presente Convenção não se aplicará à cultura da planta de cannabis exclusivamente destinada a fins industriais (fibras e sementes) ou a fins hortícolas.”

Em 2014, Dep. Jean Wyllys, do PSOL/RJ protocolou projeto de lei que (pretende)

“Regula a produção, a industrialização e a comercialização de Cannabis, derivados e produtos de Cannabis, dispõe sobre o Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas, cria o Conselho Nacional de Assessoria, Pesquisa e Avaliação para as Políticas sobre Drogas, altera as leis 11.343, de 23 de agosto de 2006, 8.072, de 25 de julho de 1990, e 9.294, de 15 de julho de 1999 e dá outras providências”[43]

Esse projeto de lei reconhece a diferenciação entre a maconha e o cânhamo industrial.

“Artigo 2º - A Cannabis é toda a parte da planta do gênero Cannabis, em crescimento ou não, as sementes da mesma, a resina extraída de qualquer parte da planta, e todo o composto, manufatura, sal, derivados, mistura ou preparação da planta, suas sementes, ou sua resina, incluindo concentrado de Cannabis.

§ 1º “Cannabis” não inclui o cânhamo industrial, nem sua fibra produzida a partir do caule, óleo ou bolo feito a partir das sementes da planta, sementes esterilizadas da planta incapazes de germinar, ou qualquer outra substância combinada com Cannabis para preparar administrações tópicas ou orais, comida, bebida, ou outro produto.

§ 2º “Cânhamo industrial” é a planta do gênero Cannabis e qualquer parte dessa planta, em crescimento ou não, com uma concentração de delta-9-tetrahidrocanabinol (THC) que não exceda três décimos por cento com base no seu peso quando seco.”

Alguns aspectos desse projeto de lei coincidem com a legislação internacional quanto ao conceito de cannabis, sua distinção quando cultivada para fins industriais - hemp – e a concentração de THC para que seja classificada como cânhamo industrial, em três décimos por cento (0.03%).

Também em 2014, o Senador Cristovam Buarque, do PDT/DF, provocou a Consultoria Legislativa do Senado Federal através de uma Solicitação de Trabalho à Consultoria Legislativa, STC nº. 2014-00720, que resultou no Estudo nº. 765 de 2014, “acerca da regulamentação dos usos recreativo, medicinal e industrial da maconha[44]”.

O estudo identifica a distinção botânica e genética do cannabis para fins industriais a partir de reduzidos níveis de delta-9-tetra-hidrocanabinol (THC) na planta, tendo levantado que

“Aproximadamente três dezenas de países permitem o cultivo do cânhamo. Alguns desses países nunca proibiram o cultivo da planta, enquanto outros reverteram banimentos feitos no passado. A China é um dos maiores produtores e exportadores mundiais de cânhamo e derivados. A União Europeia (UE) tem mercado bastante ativo para esse produto, com produção em vários países, especialmente França, Reino Unido, Romênia e Hungria. Esse mercado foi impulsionado pela suspensão do banimento ao cultivo do cânhamo, durante a década de 1990, nos países da UE. A área cultivada de cânhamo no mundo tem permanecido estável, eventualmente com leve declínio, mas a produção tem mantido crescimento sustentado, por ganhos de produtividade.”

Concluímos, sobre o status legal da cannabis no Brasil, que seu cultivo para fins industriais e comercialização de seus derivados não deveria encontrar óbice legislativo, uma vez que, enquanto signatário da Convenção Única sobre Entorpecentes de 1961, da ONU, reconhece que existe diferenciação entre cânhamo para fins industriais e agrícolas em comparação à cannabis com propriedades psicotrópicas ou psicoativas.

Por sua vez, parece claro que o critério adotado pelas Convenções da ONU para definir o que são drogas, são as propriedades psicoativas de uma substância e que a Lei 11.343/06 quanto à qualificação do que considera como droga está definido no parágrafo único do art. 1º: a capacidade “de causar dependência”[45].

Outras referências na Lei vinculam a proibição das plantas que podem originar substâncias psicotrópicas quando destinadas a esse fim, não contendo restrições relacionadas a outros fins, a exemplo dos artigos 31 e 32[46].

As propriedades psicoativas da cannabis encontram-se no THC que, em concentração inferior a 1%, não tem a potencialidade de resultar em efeito psicotrópico, portanto não tendo como causar dependência, permitindo a conclusão de que a Lei 11.343/2006 não alcança a cannabis para fins industriais ou agrícolas e que sua previsão na Lista ‘E’ da ANVISA deveria restringir-se a cannabis sativa com concentrações de THC acima de 1%, já que cientificamente comprovado como limite de ineficácia das propriedades psicoativas presentes no delta-9-tetra-hidrocanabinol (THC).

Em 2014, o Poder Judiciário recebeu algumas demandas de pacientes com distúrbios neuropáticos, os quais a medicina já reconheceu benefícios da utilização de remédios à base de cannabidiol (CBD). Um caso tornou-se icônico por sua precursão, o chamaremos “Caso Anny Fischer”.

O relatório da sentença da 3ª Vara Federal do Distrito Federal[47] dá conta de que Anny de Bortoli Fischer, à época da ação, era uma criança de cinco anos de idade, acometida por uma rara moléstia "encefalopatia epiléptica infantil precoce”. Segundo constam dos relatórios médicos do caso, a doença se caracteriza pelo sofrimento de crises convulsivas nos primeiros estágios da infância, associadas a retardo mental e comprometimento da coordenação motora.

Após insucessos reiterados com tratamentos convencionais, a família lançou mão do uso de medicamento alternativo à base de cannabidiol (CBD), tudo com acompanhamento médico que documentou melhora sensível nas crises convulsivas da garota, a ponto de seu médico recomendar a continuidade no tratamento com a medicação.

Durante um tempo, a família importou o cannabidiol clandestinamente, até o momento em que sua encomenda foi retida pela ANVISA para análise técnica, com o alerta de que só seria liberada mediante apresentação de documentação comprobatória do nome do remédio, do fabricante e declaração de finalidade do produto e da importação, sob pena de devolver o pacote para origem. Foi quando a família de Anny buscou o Judiciário.

Ao proferir sua decisão, o Magistrado valeu-se da incapacidade do cannabidiol (CBD) de produzir efeitos psicoativos e, portanto, incapacidade de causar dependência química, para afastar a incidência da lista da ANVISA.

“Como aclarado, devidamente, no parecer acostado na fl. 104, elaborado pelo Departamento de Neurociência e Ciências do Comportamento da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto, da Universidade de São Paulo, de autoria do Dr. Antonio Waldo Zuardi, Professor Titular de Psiquiatria, o Canabidiol (CBD), cuja importação se pretende, é apenas um dos 80 (oitenta) canabinóides presentes na Cannabis Sativa (maconha), precisamente aquele que não produz os efeitos típicos da planta (euforia, distorção sensorial, alucinações, delírios), que são resultantes, em verdade, de outro canabinóide, o Delta-9-Tetrahidrocanabinol, ou, simplesmente, Tetrahidrocanabinol (THC). Tanto é assim que, na listagem de substâncias de uso proscrito no Brasil anexa à Portaria 344/98, da ANVISA, atualizada pela Resolução da Diretoria Colegiada n. 37/2012, da mesma autarquia, consta apenas o Tetrahidrocannabinol (THC) e não o Canabidiol.

É bem verdade que faz parte da lista de plantas proscritas a Cannabis Sativa L. a maconha, donde também se extrai o Canabidiol. Todavia, sua vedação se justifica enquanto capaz de originar substâncias entorpecentes e/ou psicotrópicas, no caso o Tetrahidrocannabinol (THC), que foi expressamente incluído no rol das substâncias psicotrópicas de uso proscrito no Brasil.”

A sentença usou como fundamento relevante, que a cannabis sem concentrações significativas de THC[48], porque não tem capacidade de gerar efeitos psicoativos ou psicotrópicos, não deveria ser objeto da vedação legal.

Esse aspecto é importante porque converge com a visão aqui sustentada de que a incapacidade do cânhamo industrial de produzir efeitos psicoativos e, por conseguinte, incapacidade de causar dependência, deveria ser determinante para considerar a cannabis para fins industriais e agrícolas no Brasil, legal, cujo embargo, por conta do Estado ou de terceiros, deveria ser considerado uma afronta aos direitos fundamentais econômicos de qualquer cidadão ou empresa, que deveriam ser livres para plantar e comercializar matéria prima ou derivada do cânhamo industrial.           


VII - Cânhamo Industrial como possível caso concreto de litígio estratégico de interesse público no Brasil

Ao examinar o litígio estratégico, Evorah Cardoso aponta que o ciclo de vida desses litígios inicia-se com a escolha do caso paradigmático e seu potencial impacto como agente de mudança social.

Foram abordados, ainda que en passant, benefícios econômicos e ecológicos do cânhamo industrial, assim como benefícios relacionados à saúde, com a intenção de demonstrar que sua grande utilidade sem qualquer relação com propriedades ou substâncias psicoativas, sugere que existe uma indústria potencial latente, da qual cidadãos e o Estado brasileiro poderiam se beneficiar.

A distinção botânica e toxicológica verificável por testes científicos, entre cânhamo industrial e maconha, serviu para demonstrar que a despeito de serem espécies de um mesmo gênero, são plantas distintas com propriedades distintas e que, nessa condição, devem receber tratamentos distintos por parte da Lei e das autoridades do Poder Público.

Em outros lugares do mundo, pessoas se beneficiam do cânhamo tanto quanto outros commodities agrícolas. Nesses países, há pesquisas científicas e desenvolvimento tecnológico que permitem a utilização do cânhamo industrial comercial e ecologicamente, fomentando a economia, gerando empregos e riquezas.

Os potenciais benefícios do cultivo do cânhamo industrial enquanto commodity agrícola; o enorme potencial do Brasil do ponto de vista do agrobusiness; a liberação do Conselho Federal de Medicina para que médicos prescrevam remédios à base de Canabidiol quando entenderem ser úteis[49]; o momento histórico em que o mundo começa a alterar sua percepção quanto ao modelo norte-americano da guerra às drogas, em especial às drogas ditas leves; todos esses fatores sugerem que a pauta temática do cânhamo industrial poderia ser bem recebida pelo Poder Judiciário, pela mídia e pela opinião pública, a ponto de causar uma mudança social.

Pessoas poderiam plantar cânhamo industrial e comercializá-lo como commodity agrícola. Pessoas poderiam desenvolver tecnologias, produtos e serviços relacionados ao cultivo. O potencial do Brasil enquanto produtor de uma matéria prima cujo utilidade no mundo tem crescido, poderia, por meio de uma indústria milionária com efeitos positivos na economia e no meio ambiente, gerar empregos e receita, inclusive com tributos; portanto, mudança social significativa poderia resultar de um eventual sucesso do case.

 É curioso lembrar que, no Brasil – assim como nos Estados Unidos -, as pessoas e as empresas podem consumir e usar produtos à base de cânhamo, quando já processados, mas não manufatura-los ou processá-los. Existem algumas poucas lojas que trabalham, sobretudo na internet, com roupas dita ecológicas confeccionadas a base de fibra de cânhamo, porém, não é possível produzi-las, o que nos parece contrassenso. O Brasil pode importar, mas não pode produzir. Pode pagar por, mas não pode ganhar com. A quem isso interessa?

Reconhecimento por parte do Poder Judiciário de que o cânhamo industrial não deveria possuir embargos legais, poderia permitir que centros de pesquisa pudessem desenvolver novas tecnologias e remédios, o que poderia acarretar em projetos com financiamento público de pesquisa sobre o assunto, influenciando, possivelmente, políticas públicas relacionadas ao commodity, com possíveis subsídios do Estado. Esse é o objetivo de um litígio estratégico de interesse público, cuja pauta seja a regulamentação do cânhamo industrial como commodity agrícola.

Evorah Cardoso salienta que a capacidade de organização e articulação da entidade patrona do litígio é importante não só para conseguir financiamento, mas também para dialogar em espaços institucionais, governamentais e não governamentais, domésticos e internacionais, na busca pela realização dos objetivos do litígio. Isso porque diferentemente de litígios usuais, o litígio estratégico de interesse público é conduzido a partir de uma diversidade de técnicas e frentes, destinadas a mobilizar e sensibilizar o Judiciário, a mídia, a opinião pública e a população[50] (CARDOSO, 2012).

Uma demanda individual de uma associação, de um agricultor ou de uma empresa que busque junto ao Poder Judiciário proteção ao seu direito econômico fundamental de poder plantar para vender ou processar seu cultivo, porque defende um direito fundamental difuso, interessa a toda e qualquer pessoa com pretensão semelhante, ultrapassando a esfera individual da associação, do agricultor ou da empresa e penetrando a zona em que interesses particulares e interesses públicos coexistem. Essas circunstâncias autorizam que se rotule uma demanda individual de litígio estratégico de interesse público.

Pensar em um litígio estratégico para o cânhamo industrial requer identificar instituições, empresas, entidades e associações, de alguma forma interessadas na cadeia produtiva ou consumidora do cânhamo, que possam contribuir com o litígio de uma maneira positiva. Possíveis exemplos seriam empresas que fabricam e comercializam produtos que poderiam ser feitos à base de cânhamo, empresas que comercializam ou querem comercializar produtos já processados feitos à base de cânhamo, associações de agricultores, organizações não-governamentais que defendem interesses e causas ecológicas e utilização de novas fontes de energia, em especial renováveis, além de laboratórios de medicamentos interessados em fabricar remédios à base de CBD.

Para dar notoriedade à causa, poderia ser útil apoio de parlamentares de partidos mais compromissados com o meio ambiente ou que vislumbrem benefícios diretos do cânhamo industrial para seus redutos políticos, tanto no plano ecológico quanto econômico, e que desejem formular políticas públicas de apoio e incentivo ao cânhamo.

Esses players são possíveis stakeholders. Stakeholders, são pessoas, grupos ou organizações com interesses legítimos em determinadas ações ou negócios e que têm, no litígio estratégico de interesse público, grande importância, uma vez que o que se busca é uma mudança social[51] (CARDOSO, 2012).

Como objetivo de um litígio dessa natureza, com orientação para uma pauta temática, é promover uma mudança social, importante considerar o papel da mídia, já que uma das formas de influenciar a opinião pública é fazer com que o tema chegue à sociedade civil com um viés positivo, que estimule o cidadão mediano a formar uma opinião ou posição favorável ao assunto.

Embora estejamos em acordo, naquilo que diz respeito à violação ao direito da menina Anny, deve ser levado em consideração o trabalho que sua família fez junto aos meios de comunicação, que, por sua vez, noticiaram o caso, sensibilizando a população em geral para o drama da família que abraçou e apoiou a causa.

O precedente judicial que autorizou a importação do remédio feito à base de cannabis levou, inclusive, o Conselho Federal de Medicina a publicar a Resolução CFM nº. 2.113/2014, que “Aprova o uso compassivo do canabidiol para o tratamento de epilepsias da criança e do adolescente refratárias aos tratamentos convencionais”[52], portanto já houve mudança social relacionada ao tema.           


VIII - Conclusão

O fortalecimento do Poder Judiciário tem o transformado numa espécie de nova arena para discussões de natureza política e de políticas públicas, dada a capacidade de suas decisões influenciarem a atuação do Legislativo e do Executivo, seja contrariando uma decisão ou pautando uma discussão.

Demandas com pretensões que extrapolam interesses individuais e postulam uma mudança social têm surgido como alternativa apta a superar o jogo de interesses políticos, próprios das arenas políticas, quando houver violação a um direito. Litigância estratégica de interesse público é um termo utilizado para tratar dessas demandas, que têm ganhado espaço nos planos doméstico e internacional, como mecanismo jurídico viável para se exigir proteção a direitos fundamentais.

Pela qualidade de fundamentais, alguns direitos não se encontram à disposição de maiorias parlamentares e deverão ser protegidos, no plano nacional e internacional, quando forem alvo de lesão ou ameaça de lesão.

Estamos certos de que as liberdades aos direitos econômicos fundamentais deveriam gozar de proteção do Poder Judiciário, quando invocado a garantir a um cidadão, a um grupo de cidadãos ou mesmo a uma empresa, o direito de trabalhar e empreender com o intuito de desenvolver-se economicamente.

De seu turno, as já mencionadas convenções da ONU sobre drogas e a Lei 11.343/06 definem como droga entorpecente, substâncias com propriedades psicoativas que possam causar dependência, sendo essa característica que justifica a vedação dessas substâncias e de plantas das quais se possa extrair essas substâncias.

A rigor, poderia se acreditar que o cânhamo industrial seria legal no Brasil, já que, por não ter potencialidade psicotrópica, não deveria ser objeto de proibição legal. Entretanto, o cânhamo industrial é espécie do gênero Cannabis, planta prevista na Lista “E” da ANVISA, no rol de plantas que podem originar substâncias psicoativas.

Se a lei, ao proibir o gênero cannabis pretendia proibir toda e qualquer utilidade dela advinda, ou se houve um equívoco do legislador ao generalizar todas as espécies ainda que impotentes para os fins vedados, seria, em tese, uma discussão político-legislativa, que caberia ao Poder Legislativo nas arenas parlamentares.

A generalização do cânhamo e sua equiparação deturpada com a maconha dá ao tema um estigma, marginalizando agricultores que nada têm a ver com drogas ou entorpecentes, impedindo-os, sejam por quais motivos forem, de trabalharem e empreenderem, violando seus direitos econômicos fundamentais.

A discussão sobre a legalidade ou ilegalidade da cannabis ficaria no âmbito parlamentar, não fosse a violação a direito fundamental que a proibição - indevida dentro dos parâmetros justificativos expostos pela legislação nacional e internacional examinada – impõe a agricultores e empresas que intentem cultivá-la para fins agrícolas e industriais, sem que suas espécies de cannabis sequer tenham propriedades psicoativas ou possam causar dependência.

Litígios estratégicos de interesse público surgem como alternativa para que cidadãos que tenham direitos violados, busquem junto ao Judiciário, proteção, ainda que isso signifique adentrar searas de natureza predominantemente política.

Nesse contexto é que pensamos inserir-se o cânhamo industrial enquanto pauta temática defensável perante os tribunais, através de uma ação que busque garantir a uma associação, a um agricultor ou a uma empresa o direito de plantar cannabis exclusivamente para fins industriais e agrícolas.

O Poder Judiciário, provocado a examinar uma demanda individual, deve debruçar-se sobre as considerações fundamentais das convenções internacionais sobre drogas e da legislação específica sobre drogas, para alcançar seus princípios, intenções e seus objetivos.

Como a regra constitucional é pela livre iniciativa, as restrições devem ser motivadas e justificadas, cabendo ao órgão técnico que institui a proibição, a justificativa técnico-científica para cada uma das substâncias e plantas que constam de qualquer lista proibitiva e por isso restrinjam atividade agrícola.

Acreditamos que a diferença botânica, genética e toxicológica entre as espécies “cânhamo industrial” e “maconha”, ambos do gênero cannabis, em especial a imprestabilidade material do cânhamo para produção de qualquer substância psicotrópica, é ponto central para compreensão do debate, uma vez que o que a legislação busca vedar são as drogas entorpecentes, consideradas ameaça à saúde pública e individual.

Considerando que litígios são contendas que existem dentro de um determinado espaço temporal, há contextos temporais, ou timing, que podem contribuir ou atrapalhar um litígio naquilo que toca a sensibilização dos Juízes, da mídia e da opinião pública. Dentre os fatores extra-direito relacionados ao presente momento histórico, tem relevância contributiva a vitória judicial da família da Anny Fischer, porquanto estabeleceu uma a premissa fundamental para qualquer discussão jurídico ou política relacionada à cannabis, e isto é que cannabis não tem apenas utilidade psicotrópica.

Isso significa dizer que já houve uma mudança por parte da sociedade e do Judiciário quanto à cannabis e essa mudança pode servir de estímulo para que outros debates subjacentes a este – a utilidade e a proibição da cannabis -  possam desabrochar e resultar em novas mudanças.

Sob a perspectiva da estratégica do litígio vislumbrado, importante apontar, o que cremos ter sido um equívoco semântico por parte do Juiz que julgou o caso Anny Fischer. O magistrado confunde os termos maconha e cannabis, utilizando-os alternadamente como se sinônimos fossem. Isso cria a falsa percepção de que maconha e cannabis L. são a mesma coisa, quando em verdade não são. A maconha é uma espécie do gênero cannabis L. e essa distinção nos parece relevante, tanto que a legislação internacional faz essa distinção com base na concentração do canabinóide com propriedades psicoativas, o THC.

A conclusão deste ensaio, então, é que o cânhamo industrial se qualifica como possível pauta temática de um litígio estratégico de interesse público cujo principal objetivo seja preservar direitos econômicos fundamentais ao livre trabalho e iniciativa, quando não houver justificações jurídicas para sua restrição.

Ademais, considerando o crescimento do interesse científico, bem como o crescimento do mercado consumidor de produtos à base de cânhamo, pensamos que uma regulamentação legislativa mais apropriada poderia ser provocada por decisão judicial que reconheça a inconstitucionalidade em proibir uma substância sem propriedades psicoativas, como se entorpecente fosse, na medida em que obsta o direito econômico fundamental de agricultores e empresas que desejem cultivar seus plantios para fins industriais.

Tendo em mente a cultura política brasileira, a publicação de uma lei que regulamente adequada e especificamente a cannabis, certamente seria representativa de uma nova realidade social para o cânhamo industrial e todos de alguma forma relacionado à sua cadeia produtiva ou consumidora.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Notas

[1] VIEIRA, Oscar Vilhena, in Supremocracia, Revista Direito GV – São Paulo 4(2), pg. 441-464, Julho-Dezembro/2008.

[2] A expressão “última palavra provisória” atribuímos a HÜBNER, Conrado Mendes. Direitos fundamentais, separação de poderes e deliberação. Disponível em www.teses.usp.br/teses/.../TESE_CONRADO_HUBNER_MENDES.pdf. Acesso em 21 jan. 2016.

[3] CARDOSO, Evorah Lusci Costa. LITIGIO ESTRATÉGICO E SISTEMA INTERAMERICANO DE DIREITOS HUMANOS. Ed. Fórum, Belo Horizonte, 2012, pág. 41.

[4] Pacto Internacional sobre os Direitos Econômicos, Sociais e Culturais das Nações Unidas, disponível em http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/pacto_internacional_direitos_economicos_sociais_culturais.pdf, Acesso em 08 mar.2015.

[5] Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:

(...)

Art. 5º, IV - os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa;

[6] Declaração de Quito, 24/07/1998, disponível em http://www.dhnet.org.br/direitos/dhesc/quito.html, em 08/03/2015

[7] SARLET, Ingo Wolfgang, in OS DIREITOS SOCIAIS COMO DIREITOS FUNDAMENTAIS: contributo para um balanço aos vinte anos da Constituição Federal de 1988, disponível em http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/processoAudienciaPublicaSaude/anexo/artigo_Ingo_DF_sociais_PETROPOLIS_final_01_09_08.pdf. Acesso em 18 mar. 2015.

[8] CARDOSO, Evorah Lusci Costa. LITIGIO ESTRATÉGICO E SISTEMA INTERAMERICANO DE DIREITOS HUMANOS. Ed. Fórum, Belo Horizonte, 2012, pág. 56

[9] LANGENEGGER, Natalia e CUNHA, Luciana Gross in LITÍGIO DE INTERESSE PÚBLICO E DESENVOLVIMENTO, 2013, disponível em http://repositorio.ipea.gov.br/bitstream/11058/2331/1/Livro_Direito_e_desenvolvimento_no_Brasil_do_s%C3%A9culo_XXI_v_1.pdf, em 12/03/2015.

[10] CARDOSO, Evorah, in CICLO DE VIDA DO LITÍGIO ESTRATÉGICO NO SISTEMA INTERAMERICANO DE DIREITOS HUMANOS: DIFICULDADES E OPORTUNIDADES PARA ATORES NÃO ESTATAIS, 2011, disponível em http://www.derecho.uba.ar/revistagioja/articulos/R000E01A005_0038_p-d-der-humanos.pdf, em 12/03/2015.

[11] CARDOSO, Evorah Lusci Costa. LITIGIO ESTRATÉGICO E SISTEMA INTERAMERICANO DE DIREITOS HUMANOS. Ed. Fórum, Belo Horizonte, 2012.

[12] CARDOSO, Evorah Lusci Costa. LITIGIO ESTRATÉGICO E SISTEMA INTERAMERICANO DE DIREITOS HUMANOS. Ed. Fórum, Belo Horizonte, 2012, nota de rodapé, pág. 48.

[13] Disponível em http://www.obid.senad.gov.br/portais/OBID/biblioteca/documentos/Legislacao/ONU/329619.pdf, na data de 14/03/15.

[14] A Wikipedia define Canabinóide como “um termo genérico para descrever substâncias, naturais ou artificiais, que ativam os receptores canabinóides. Englobam os fitocanabinóides, compostos encontrados na planta Cannabis e estruturalmente relacionados com o tetraidrocanabinol (THC); os endocanabinóides, que são encontrados nos sistemas nervoso e imunológico dos animais e seres humanos, e que ativam os receptores canabinóides; e, por fim, os canabinóides sintéticos, uma diversidade de substâncias que se ligam a receptores de canabinóides”. Disponível em http://pt.wikipedia.org/wiki/Canabinoide, em 19/03/2015.

[15] VANTREESE, Valerie, L. in Industrial Hemp: Global Market and prices, University of Kentucky, 1997, disponível em http://www.uky.edu/Classes/GEN/101/Hemp/HEMP97.PDF, em 17/03/2015.

[16] WEST, David, P. in Hemp and Marijuana: Myths & realities, 1998, disponível em http://www.naihc.org/hemp_information/content/hemp.mj.html. Acesso em 17 mar. 2015.

[17] KOSOLOV, Christine, A., in Evaluating the public interest: Regulation of industrial hemp under the controlled substances act, UCLA Law Review 237 (2009), disponível em http://www.uclalawreview.org/?p=790. Acesso em 17 mar. 2015.

[18] WEST, David, P. in Hemp and Marijuana: Myths & realities, 1998, disponível em http://www.naihc.org/hemp_information/content/hemp.mj.html. . Acesso em 17 mar. 2015.

[19] Artigo 28, Convenção Única de 1961. DA FISCALIZAÇÃO DO «CANNABIS»

(...)2 - A presente Convenção não se aplicará à cultura da planta de cannabis exclusivamente destinada a fins industriais (fibras e sementes) ou a fins hortícolas.

[20] JOHNSON, Renée in  Hemp as an agricultural commodity. Congressional Research Service, Fev. 2015, disponível em https://fas.org/sgp/crs/misc/RL32725.pdf. Acesso em 17 mar. 2015.

[21] JOHNSON, Renée in  Hemp as an agricultural commodity. Congressional Research Service, Fev. 2015, disponível em https://fas.org/sgp/crs/misc/RL32725.pdf. Acesso em 17 mar. 2015.

[22] KOSOLOV, Christine, A., in Evaluating the public interest: Regulation of industrial hemp under the controlled substances act, UCLA Law Review 237 (2009), disponível em http://www.uclalawreview.org/?p=790. Acesso em 17 mar. 2015.

[23] JOHNSON, Renée in  Hemp as an agricultural commodity. Congressional Research Service, Fev. 2015, disponível em https://fas.org/sgp/crs/misc/RL32725.pdf. Acesso em 17 mar. 2015.

[24] Fonte: http://www.naihc.org/hemp_information/hemp_facts.html

[25] LEIZER, Cary, RIBNICKY, David, POULEV, Alexander, DUSHENKOV, Slavik, RASKIN, Ilya, 2000. The composition of hemp seed oil and its potential as an important source of nutrition, disponível em http://cannabinetics.org/pdfs/leizer-et-al.pdf. Acesso em 17 mar. 2015.

[26] Disponível em http://www.hemphasis.net/Paper/paper.htm. Acesso em 19 mar. 2015..

[27] Fonte: http://www.amda.org.br/?string=interna-projetos&cod=31

[28] Fonte: http://revistagalileu.globo.com/Revista/Galileu/0,,EDG87237-7946-221,00-QUANTAS+FOLHAS+DE+PAPEL+DA+PRA+FAZER+COM+UMA+ARVORE.html

[29] Fonte: http://www.hempcar.org/hempfacts.shtml. Acesso em 23 mar. 2015.

[30] Fonte: http://www.paperonweb.com/wood.htm

[31] Fonte: http://hashmuseum.com/industrial-hemp-plastic

[32] Fonte: http://www.hempbasics.com/shop/hemp-information

[33] KOSOLOV, Christine, A., in Evaluating the public interest: Regulation of industrial hemp under the controlled substances act, UCLA Law Review 237 (2009), disponível em http://www.uclalawreview.org/?p=790, em 17/03/2015.

[34] Idem.

[35] Idem.

[36] Fonte: http://www.hemp.com/hemp-education/uses-of-hemp/hemp-fuel/, disponível em 17/03/2015.

[37] Fonte: http://pt.wikipedia.org/wiki/Fitorremedia%C3%A7%C3%A3o, disponível em 17/03/2015.

[38] Fonte: http://sensiseeds.com/en/blog/hemp-decontamination-radioactive-soil/, disponível

[39] LEIZER, Cary, RIBNICKY, David, POULEV, Alexander, DUSHENKOV, Slavik, RASKIN, Ily, 2000. The composition of hemp seed oil and its potential as an important source of nutrition, disponível em http://cannabinetics.org/pdfs/leizer-et-al.pdf, em 17/03/2015.

[40] Abstrato do estudo disponível em http://www.ncbi.nlm.nih.gov/m/pubmed/25212218/?i=3&from=cannabinoid, em 18/05/2015

[41] Art. 1º, da Lei 11.343/06, disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2006/lei/l11343.htm, em 17/03/2015.

[42] Artigo 20, da Convenção da ONU sobre substâncias psicotrópicas, disponível em http://www.oas.org/juridico/mla/pt/bra/pt_bra_1971_convencao_substancias_psicotropicas.pdf, em 18/03/2015.

[43] Projeto de Lei disponível em http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=1237297&filename=PL+7270/2014, em 18/03/2015.

[44] Disponível em https://www.google.com.br/url?sa=t&rct=j&q=&esrc=s&source=web&cd=1&cad=rja&uact=8&ved=0CB0QFjAA&url=http%3A%2F%2Fwww.senado.gov.br%2Fatividade%2Fmateria%2FgetDocumento.asp%3Ft%3D156942&ei=TDAOVeriGeeIsQSm34DgCg&usg=AFQjCNFLVbUtR00oT5fek7SCLYqzxsVQgQ&sig2=dEPBr1Tou2vTofsfB8riLg&bvm=bv.88528373,d.cWc, em 18/03/2015.

[45] Art. 1º, Parágrafo Único, L. 11.343/06 - Para fins desta Lei, consideram-se como drogas as substâncias ou os produtos capazes de causar dependência, assim especificados em lei ou relacionados em listas atualizadas periodicamente pelo Poder Executivo da União.

[46] Art. 31 (L. 11.343/06).  É indispensável a licença prévia da autoridade competente para produzir, extrair, fabricar, transformar, preparar, possuir, manter em depósito, importar, exportar, reexportar, remeter, transportar, expor, oferecer, vender, comprar, trocar, ceder ou adquirir, para qualquer fim, drogas ou matéria-prima destinada à sua preparação, observadas as demais exigências legais.

Art. 32.  As plantações ilícitas serão imediatamente destruídas pelo delegado de polícia na forma do art. 50-A, que recolherá quantidade suficiente para exame pericial, de tudo lavrando auto de levantamento das condições encontradas, com a delimitação do local, asseguradas as medidas necessárias para a preservação da prova. (Redação dada pela Lei nº 12.961, de 2014).

[47] Processo nº. 24632-22.2014.4.04.3400 – 3ª Vara Federal do Distrito Federal.

[48] Já estabelecidas como limite máximo de 1%.

[49] Resolução CFM nº. 2.113/2014, disponível em http://www.portalmedico.org.br/resolucoes/CFM/2014/2113_2014.pdf, em 20/03/2015.

[50] CARDOSO, Evorah Lusci Costa. LITIGIO ESTRATÉGICO E SISTEMA INTERAMERICANO DE DIREITOS HUMANOS. Ed. Fórum, Belo Horizonte, 2012.

[51] CARDOSO, Evorah Lusci Costa. LITIGIO ESTRATÉGICO E SISTEMA INTERAMERICANO DE DIREITOS HUMANOS. Ed. Fórum, Belo Horizonte, 2012.

[52] Resolução CFM nº. 2.113/2014, disponível em http://www.portalmedico.org.br/resolucoes/CFM/2014/2113_2014.pdf, em 20/03/2015.



Informações sobre o texto

Texto elaborado como requisito para aprovação na matéria "Políticas Públicas", em Maio/2016, no programa de mestrado do UniCeub.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ANDRADE, Andre. Cânhamo industrial: um possível case de litígio estratégico de interesse público. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 23, n. 5626, 26 nov. 2018. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/70365. Acesso em: 26 abr. 2024.