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Contrato de leasing. Antecipação do Valor Residual Garantido (VRG) e a Súmula nº 293 do STJ.

Uma visão sistemática dos seus efeitos jurídicos e econômicos

Contrato de leasing. Antecipação do Valor Residual Garantido (VRG) e a Súmula nº 293 do STJ. Uma visão sistemática dos seus efeitos jurídicos e econômicos

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Talvez a questão que mais tenha suscitado controvérsias nos tribunais e na doutrina acerca do contrato de arrendamento mercantil tenha sido a antecipação do valor residual garantido, tendo em vista a divergência instaurada entre turmas do Superior Tribunal de Justiça acerca dos efeitos desta antecipação. Ocorre que esta situação restou sanada pelo julgamento dos Embargos de Divergência em Recurso Especial nº 213.828/RS, tendo o pretório superior cancelado a Súmula 263.

Antes de adentrar nas particularidades do julgamento acima referido, torna-se primordial estabelecer a diferença existente entre o valor residual garantido (VRG) e o valor residual (opção de compra), haja vista que muitas das divergências verificadas surgiram em face da confusão existente entre os dois institutos, as quais são diferenciadas e se aplicam em situações diversas.

Jorge G. Cardoso diferenciou brilhantemente VRG de opção de compra:

O valor residual garantido é, portanto uma obrigação assumida pelo arrendatário quando da contratação do arrendamento mercantil, no sentido de garantir que o arrendador receba, ao final do contrato, a quantia mínima final de liquidação do negócio, em caso do arrendatário optar por não exercer seu direito de compra e, também, não desejar que o contrato seja prorrogado.

O valor residual é o preço estipulado para o exercício da opção de compra, ou valor contratualmente garantido pela arrendatária como mínimo que será recebido pela arrendadora na venda a terceiros do bem arrendado, na hipótese de não ser exercida a opção de compra. [01]

Verifica-se, portanto, que são institutos absolutamente diferentes, não podendo ser confundidos, sob pena de desfigurar completamente o contrato ora em estudo, descaracterizando-o para compra e venda a prestações, o que efetivamente ocorreu.

Nas palavras de Silvia Vanti, [02] "podemos dizer que o valor residual corresponde ao preço para o exercício da opção de compra. Se o arrendatário optar pela compra do bem, pagará um valor residual garantido."

Nesse diapasão, surgiram duas correntes: a primeira, que defendia que o contrato de arrendamento mercantil não seria descaracterizado em face do pagamento antecipado do Valor Residual Garantido, e a segunda que defendia a descaracterização do contrato de leasing em face do pagamento antecipado do VRG.

Os que defendem a primeira tese, alegam que o valor residual pago antecipadamente funciona como uma espécie de garantia à arrendadora, isto é, se o arrendatário não exercer a opção de compra no final do contrato, devolve o bem. Por conseguinte, a arrendadora alienará e terá em seu poder uma espécie de caução proveniente da antecipação. Em sendo o preço da venda superior ao VRG, a arrendadora devolverá o excedente ao arrendatário. Se inferior, existirá um débito a ser satisfeito pela arrendatária.

A antecipação do VRG, destarte, não descaracterizaria o contrato de leasing, porquanto mesmo em sendo pago antecipadamente, a arrendatário não teria exercido a opção de compra, que é um ato voluntário ocorrido após o adimplemento de todas as contraprestações. Continuaria em vigor a opção da arrendatária ao final do contrato em optar pela compra, devolução ou renovação do contrato. O arrendatário tem ciência que está pagando o VRG antecipadamente, pois são enviados bloquetos diversos dos enviados a título de pagamento das contraprestações.

Torna-se evidente, portanto, que a assunção e o cumprimento da obrigação representada pelo pagamento do VRG não implica em antecipar a opção de compra. Portanto, quando o arrendatário antecipa numerário a título de VRG, o correto é entender essa antecipação como um depósito que ele faz em mãos do arrendador, para utilização futura. Se ele vier a optar pela compra, utilizará esse depósito para pagar o preço. Se não optar, os depósitos servirão de garantia do valor mínimo: caso, na venda a terceiros, o bem não alcance o montante estipulado no contrato, o arrendador lançara mão do depósito para cobrir o valor faltante, e devolverá o resto ao arrendatário.

Verifica-se, desse modo, que a diluição do pagamento do VRG ao longo do contrato surgiu frente à necessidade das arrendadoras em garantir a segurança do capital investido, sem que esta garantia significasse, às arrendatárias, desembolso significativo a onerasse demasiadamente.

A outra corrente, que dominou as discussões acerca da descaracterização do contrato frente à antecipação do VRG, defendem que este ato estaria desnaturando o contrato de leasing, pois nada mais seria do que uma compra e venda a prestações. Deve ser ressaltado que a descaracterização ocorre quando o pagamento do VRG é efetuado antes de terminado o contrato. Uma situação é antecipar o VRG em uma única prestação; outra é fazer a opção de compra do bem. Dentre os defensores desta tese encontra-se o renomado Arnaldo Rizzardo [03], segundo o qual "instituiu-se mais uma obrigação, sem que nada constasse em lei, e descaracterizando a própria natureza do leasing[...]"

Salientam que para que o contrato de leasing seja caracterizado como tal, tendo todos os benefícios fiscais inerentes, um dos requisitos é a cláusula que permite a opção de compra do bem arrendado ao final do contrato. Não possuindo isto, não se considera arrendamento mercantil, pois não conteria um dos elementos exigidos em lei.

A discussão gira em torno do disposto pelo artigo 10 da Resolução 2309: "A operação de arrendamento mercantil será considerada como de compra e venda a prestação se a opção de compra for exercida antes de decorrido o respectivo prazo mínimo estabelecido no art. 8º deste regulamento".

Veja-se, por outro lado, o que diz o artigo 7º, inc. VII, letra a: "A previsão de a arrendatária pagar o valor residual garantido em qualquer momento durante a vigência do contrato, não caracterizando o pagamento do valor residual garantido o exercício de opção de compra".

Agora pergunta-se o porque desta divergência instaurada, ou melhor, quem é interessado em que o contrato seja descaracterizado. Nessa perspectiva, as discussões chegaram ao Poder Judiciário, oriundas de duas situações divergentes.

A primeira refere-se a defesa apresentada pelo arrendatário em ação de reintegração de posse ajuizada pelas sociedades arrendadoras, tendo em vista o inadimplemento das obrigações. Na defesa alegava-se que o pagamento antecipado do VRG significava o exercício antecipado da opção de compra, o que iria de encontro às disposições específicas aplicáveis e descaracterizaria o contrato de leasing para contrato de compra e venda a prestação, em face do disposto pelo art. 10 da Res. 2.309 do BACEN. Assim, como na compra e venda a propriedade é transferida pela tradição do bem, não há que se falar em reintegração de posse, uma vez que as sociedades arrendadoras não seriam as proprietárias dos bens arrendados.

Este entendimento foi predominante perante as Turmas de Direito Privado do STJ, sendo que até mesmo súmula fora editada no sentido acima exposado – Súmula 263: "A cobrança antecipada do valor residual (VRG) descaracteriza o contrato de arrendamento mercantil, transformando-o em compra e venda a prestação".

Note-se que esta tese ganhou relevância à medida que foi acolhida pelo Superior Tribunal de Justiça e pela maioria dos pretórios estaduais, fazendo com que as sociedades arrendadoras vissem os prejuízos em face do inadimplemento aumentar significativamente, podendo, inclusive, comprometes as operações no País.

Como exemplo desse posicionamento do STJ, transcrevemos a seguinte decisão:

Ementa: ARRENDAMENTO MERCANTIL. LEASING. ANTECIPAÇÃO DO PAGAMENTO DO VALOR RESIDUAL GARANTIDO. DESCARACTERIZAÇÃO DA NATUREZA CONTRATUAL PARA COMPRA E VENDA À PRESTAÇÃO. LEI 6.099/94, ART. 11, § 1º. NÃO OCORRÊNCIA. AFASTAMENTO DA SÚMULA 263/STJ.

1. O pagamento adiantado do Valor Residual Garantido- VRG não implica necessariamente antecipação da opção de compra, posto subsistirem as opções de devolução do bem ou prorrogação do contrato. Pelo que não descaracteriza o contrato de leasing para compra e venda à prestação.

2. Como as normas de regência não proíbem a antecipação do pagamento da VRG que, inclusive, pode ser de efetivo interesse do arrendatário, deve prevalecer o princípio da livre convenção entre as partes.

3. Afastamento da aplicação da Súmula 263/STJ.

4. Embargos de Divergência acolhidos. [04]

A segunda situação refere-se às demandas ajuizadas pelas autoridades fiscais, as quais postulavam a descaracterização do contrato de leasing, com conseqüente perda dos benefícios fiscais à arrendatária, argumentando que o pagamento antecipado do VRG resultava em valor irrisório a ser pago ao final do contrato pelo arrendatário, no caso de vir a exercer a opção de compra.

Ao contrário das demandas julgadas pela Turmas de Direito Privado, as Turmas de Direito Público entendiam que a antecipação do valor residual garantido não descaracterizaria o contrato de leasing, mantendo o benefício tributário legalmente conferido às arrendatárias. Note-se que o fundamento para tal decisão é de que a autonomia da vontade deve prevalecer em toda a sua extensão.

Exemplificativamente, transcrevemos a seguinte decisão, oriunda da Seção de Direito Público do STJ:

Ementa: TRIBUTÁRIO. "LEASING". IMPOSTO DE RENDA. DESCARACTERIZAÇÃO DO CONTRATO.

1. O contrato de "leasing", em nosso ordenamento jurídico, recebe regramento fechado pela via da Lei nº 6.099, de 1974, com a redação que lhe deu a Lei nº 7.032, de 1983, pelo que só se transmuda em forma dissimulada de compra e venda quando, expressamente, ocorrer violação da própria lei e da regulamentação que o rege.

2. Não havendo nenhum dispositivo legal considerando como cláusula obrigatória para a caracterização do contrato de "leasing" e que fixe valor específico de cada contraprestação, há de se considerar como sem influência, para a definição de sua natureza jurídica, o fato das partes ajustarem valores diferenciados ou até mesmo simbólico para efeitos da opção de compra.

3. Homenagem ao princípio de livre convenção pelas partes quanto ao valor residual a ser pago por ocasião da compra.

4. Não descaracterização de contrato de "leasing" em compra e venda para fins de imposto de renda.

5. Recurso desprovido. [05]

Embora se tratando de teses completamente distintas, os julgamentos que redundaram nos Embargos de Divergência que cancelaram a Súmula 263 do STJ tinham o mesmo objetivo: descaracterizar o contrato de arrendamento mercantil, seja para retirar benefícios tributários das arrendatárias, seja para manter-se na posse do bem. Foram colocadas em lados opostos as Turmas de Direito Privado e de Direito Público do STJ.

Tendo em vista a divergência instaurada, foram opostos Embargos de Divergência no Recurso Especial, sendo apreciado pela Corte Especial do STJ, que é a competente para dirimir conflitos de entendimentos sobre o mesmo assunto.

No julgamento dos Embargos opostos, a Corte Especial reconheceu a validade da pactuação do pagamento antecipado da VRG, como elemento ínsito aos contratos de arrendamento mercantil, e de interesses das próprias arrendatárias.

A decisão levou em consideração o fato de que o pagamento antecipado do VRG não implica antecipação da opção de compra, tendo em vista que continuariam disponíveis as opções de compra, renovação e devolução do objeto arrendado. Nesse diapasão, a cláusula não descaracteriza o contrato de leasing, tampouco o transforma em compra e venda a prestações. Ressalte-se que o referido julgamento redundou no cancelamento da Súmula 263 do STJ.

Abaixo transcreve-se a ementa do acórdão dos Embargos de Divergências supracitados, os quais modificaram o posicionamento das Turmas de Direito Privado do STJ:

Ementa: ARRENDAMENTO MERCANTIL. LEASING. ANTECIPAÇÃO DO PAGAMENTO DO VALOR RESIDUAL GARANTIDO. DESCARACTERIZAÇÃO DA NATUREZA CONTRATUAL PARA COMPRA E VENDA À PRESTAÇÃO. LEI 6.099/94, ART. 11, § 1º. NÃO OCORRÊNCIA. AFASTAMENTO DA SÚMULA 263/STJ.

1. O pagamento adiantado do Valor Residual Garantido- VRG não implica necessariamente antecipação da opção de compra, posto subsistirem as opções de devolução do bem ou prorrogação do contrato. Pelo que não descaracteriza o contrato de leasing para compra e venda à prestação.

2. Como as normas de regência não proíbem a antecipação do pagamento da VRG que, inclusive, pode ser de efetivo interesse do arrendatário, deve prevalecer o princípio da livre convenção entre as partes.

3. Afastamento da aplicação da Súmula 263/STJ.

4. Embargos de Divergência acolhidos. [06]

Consoante Informativo da ABEL nº 165 [07], a trajetória do leasing retomou o crescimento após a decisão do STJ declarando que a antecipação do valor residual garantido não descaracteriza o contrato para compra e venda a prestações. Salienta tal informativo que

"desde a decisão da Justiça, em relação à legalidade do Valor Residual Garantido (VRG), o número de contratos e valores negociados tem crescido de maneira expressiva. Em agosto deste ano(2003) os novos negócios somaram R$ 510 milhões. Valor 99,75% maior do que os R$ 255 milhões registrados no mesmo mês do ano passado(2002)."

Exemplificativamente, temos abaixo o gráfico que demonstra a importância da decisão do STJ para o setor de arrendamento mercantil:

Contudo, apesar de cancelada a Súmula 263, que descaracterizava o contrato de leasing, em maio de 2003, alguns tribunais estaduais, especialmente o Tribunal de Justiça de São Paulo, Goiás e Rio Grande do Sul, mantém o entendimento de que o pagamento antecipado do VRG descaracteriza o leasing para compra e venda a prestações [08].

Impende seja destacado que a Súmula 263 foi substituída pela Súmula 293 do Superior Tribunal de Justiça com a seguinte redação, publicada no site do e. STJ [09] em 05.05.2004:

"Súmula 293 – STJ A cobrança antecipada do valor residual garantido (VRG) não descaracteriza o contrato de arrendamento mercantil."

Verifica-se, portanto, que, não obstante a decisão proferida pelo Superior Tribunal de Justiça, a questão do pagamento antecipado do Valor Residual Garantido continua gerando controvérsias nos tribunais estaduais. De um lado há os arrendatários e o fisco para os quais a descaracterização, embora com efeitos diferentes, tornar-se-ia benéfica, uma vez que impossibilitaria a reintegração de posse e a extinção dos benefícios legais que o contrato de leasing possibilita ao arrendatário. De outro lado, as sociedades arrendadoras, com capital elevadíssimo investido no setor, a qual não quer ver o seu investimento frustrado.

Não resta dúvida, em face de todo o exposto, que a controvérsia continuará sendo discutida nos tribunais, haja vista a importância dos valores e interesses envolvidos, sendo que decisões judiciais podem acarretar o fomento da própria indústria nacional, indo ao encontro do escopo original do Contrato de Leasing, que surgiu para aquecer a indústria norte-americana após a segunda grande guerra.


Notas

01 Aspectos Controvertidos de Arrendamento Mercantil. Cadernos e Direito Tributário e Finanças Públicas, p. 73-74.

02 VANTI, Silvia. Leasing: aspectos controvertidos do arrendamento mercantil. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1998. 155 p. 110.

03 RIZZARDO, Arnaldo. O "leasing" — arrendamento mercantil no direito brasileiro. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000. 312 p. 85.

04 STJ – Embargos de Divergência no Recurso Especial nº 213828/RS, Relator Ministro MILTON LUIZ PEREIRA, julgado em 29.09.2003.

05 STJ - Recurso Especial nº 174031/SC, Relator Ministro José Delgado, julgado em 15.10.1998.

06 STJ – Embargos de Divergência no Recurso Especial nº 213828/RS; Relator Ministro Edson Vidigal, julgado em 29.09.2003

07 ABEL – Associação Brasileira das Empresas de Leasing. Pesquisa em banco de dados. Disponível em: <https://www.leasingabel.com.br/wp-content/uploads/2017/05/Edicao-165.pdf>.

08 Nesse sentido, julgamento de Apelação Cível Nº 70007710502, Relator: Isabel de Borba Lucas, julgado em 11.03.2004, do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul; Apelação Cível nº 65665-5/188, Relator Des. Gilberto Marques Filho, julgado em 18.02.2004, do Tribunal de Justiça do Estado de Goiás.

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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BERGER, Pablo. Contrato de leasing. Antecipação do Valor Residual Garantido (VRG) e a Súmula nº 293 do STJ. Uma visão sistemática dos seus efeitos jurídicos e econômicos. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 10, n. 763, 3 ago. 2005. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/7108. Acesso em: 29 mar. 2024.