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Savigny e o direito internacional privado

Savigny e o direito internacional privado

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O ARTIGO DESTACA AS LIÇÕES DE SAVIGNY PARA O DIREITO INTERNACIONAL PRIVADO.

SAVIGNY E O DIREITO INTERNACIONAL PRIVADO

Rogério Tadeu Romano

Frederich Carl Von Savigny(1779 – 1861) foi professor jubilado de Berlin e Ministro da Legislação da Prússia, publicando em 1849 o oitavo volume do seu “System des Heutigen Romisschen Rechts”, “Sistema de direito romano atual”, correspondente ao livro III da parte geral de sua obra, que tratou sobre o império das Regras de Direito sobre as Relações Jurídicas, § 1º, no espaço, e § 2º, nos seus limites do tempo, temporais, formulando naquele a sua célebre teoria da comunidade do direito entre os povos, a segunda doutrina moderna do Direito Internacional Privado.

Considerou Savigny os trabalhos, à época existentes, “revelando tendência ao acercamento e à conciliação, não só com relação à doutrina alemã, no estudo de Waecheter, dos franceses, como Foelix, dos Italianos, Rocco, dos ingleses com Burge e ainda dos americanos na obra de Story.

Afastando-se do territorialismo e da comitas gentium, estatutários do direito rigoroso da soberania, levando à aplicação exclusiva do direito nacional, do princípio da lex fori de Waechter, Savigny mostrou que o aumento das relações entre os povos impõe a renúncia àquele princípio da exclusividade e a adoção do princípio contrário, ou seja, que se tende à reciprocidade (qual se fazia com a assimilação de direitos entre nacionais e estrangeiros) na apreciação das relações jurídicas perante a Justiça entre os estrangeiros e os nacionais, a fim de estabelecer uma igualdade reclamada pelo interesse dos povos e dos indivíduos.

Savigny asseverou que “esse ponto de vista é o de uma comunidade de direito entre os diferentes povos, sob a influência das ideias cristãs e das vantagens reais que dá a todas as partes”, sustentando que a “comunidade de direitos entre os Estados independentes que busca regular de maneira uniforme as colisões de diferentes direitos positivos, estranha aos romanos”, mas decorrente de “um direito costumeiro geral”, representando não “uma simples “cordialidade ... mas realmente um desenvolvimento próprio do direito, que “acabará por ser o mesmo entre todos os povos”, através de doutrinas científicas.

Bem de acordo com o regime individualista da época, Savigny punha como base das três regras, domicilli, rei sitae, loci solutionis, o “mesmo princípio da submissão voluntária da parte”, pois “cada qual é absolutamente livre de escolher seu domicílio”; “quem deseja adquirir ou exercer um direito sobre uma coisa transporta-se para onde está situada, submetendo-se, assim, voluntariamente, ao direito do lugar”; e a sede da obrigação no lugar de uma execução resulta “da submissão livre das partes a mais das vezes, de uma declaração de vontade não expressa mas tácita”. Para a forma extrínseca dos atos, bem que preferindo fosse regulada “pelo direito local de que tal ato dependesse”, segundo sua sede, aceitava, pela dureza da regra.

Estabelecendo que o juiz deve aplicar o direito local a que pertence a relação jurídica em litígio, sem distinguir se este direito é o de seu país ou de um Estado estrangeiro, Savigny determinou logo uma restrição, pois “há diversas espécies de leis cuja natureza especial não admite esta independência, da comunidade de direito entre diferentes Estados... devendo o juiz aplicar, exclusivamente, o direito nacional”, e fixa duas exceções em duas classes especiais: a) leis de uma natureza positiva rigorosamente obrigatória, leis absolutas ou imperativas, baseadas em motivo moral ou de interesse geral(“publica utilitas”) de caráter político ou, de polícia, ou economia política, assim as leis que proíbem a poligamia ou a aquisição da propriedade imóvel pelos judeus; b) instituições de um Estado estrangeiro não reconhecidos no foro, por exemplo a morte civil, a escravidão, era o limite da ordem pública.

A doutrina de Savigny teve de imediato ampla e profunda repercussão na Alemanha, jurisprudencial na medida em que se segue a lei do lugar da execução para reger as obrigações. Do ponto de vista legislativo, vários textos do Código da Saxônia(1863, envolvendo bens, obrigações, regime de bens no casamento, autonomia da vontade; apenas em dois no Código do Império(BGB de 1896, que seguiu o princípio da lei nacional; e ainda na forma dos atos, ordem pública, da respectiva Lei de Introdução).

Na Europa continental, Savigny influenciou a Áustria-Hungria e Unger; na Suíça(Código Civil de Zurique de 1853); na Grécia; na Holanda; na França(valery, Bartin Despagnet); o Código dos Estados Bálticos; na Itália(Busa, Lomonaco, Fiore), em Portugal(Teixeira de Abreu, dentre outros).

No Brasil, Teixeira de Freitas aceitou, mas com grandes aperfeiçoamentos a sua obra; Pimenta Bueno e Carlos de Carvalho(Nova Consolidação, LXXXVI), Velez Sarsfield, na Argentina, Gonzales Ramires, no Uruguai, nos Tratados de Direito Civil Internacional de Montevideo.

Embora Savigny aceite as regras jurídicas como um dado histórico-cultural de validade objetiva, ele não se limita a propor uma descrição tópica e fragmentária delas, mas propõe uma reelaboração científica do material recebido, a partir de pontos de vista unitários, lançando as bases de uma ciência jurídica a um só tempo sistemática e historicista. Assim, o jurista, ao estudar o direito (romano e consuetudinário), deve identificar os princípios gerais, evidenciar e corrigir as lacunas e contradições, e elaborar os conceitos fundamentais para o desenvolvimento de um verdadeiro sistema jurídico.

É nesse livro que Savigny completa sua quadripartição dos critérios interpretativos, acrescentando à tripartição anterior o elemento sistemático. Então, duas inovações promove o jurista com os critérios interpretativos: primeiro, é a substituição da noção de diversas espécies de interpretação pela noção de vários elementos, isto é, não opções distintas de interpretação, mas partes integrantes de uma interpretação completa que deveria levar em considerações todos os elementos; e, segundo, uma inovação no conceito de direito já que, para Savigny, a noção de instituto vinculava-se à própria realidade jurídica, isto é, às relações concretas da vida tal como vividas pelo povo, e não, apenas, a descrições nas regras jurídicas.

O principal legado da obra de Savigny é o seu método, conhecido como historicismo, e os efeitos que ele teve sobre as mais diversas correntes do direito germânico, como, por exemplo, a Jurisprudência dos conceitos. Embora a codificação acabasse vindo, sua gestação foi longa e encontrou uma Alemanha já unificada (o código civil alemão entrou em vigor em 1900). De certo modo, Savigny saiu-se vitorioso na polêmica sobre a codificação já que não só conseguiu retardá-la por quase um século, como o código refletiu as diversas inovações produzidas pela ciência do direito alemã do século XIX.

Filosoficamente, o historicismo liga-se à matriz hegeliana. Assim, o sujeito da história não é os indivíduos, mas o Espírito Objetivo. Essa visão se coadunava com o romantismo alemão e sua sacralização e mitificação do passado. Recusava, assim, o projeto modernizante do iluminismo, tido como abstrato e artificial. No Direito, isso significava a ligação da validade da ordem jurídica com a sua adequação aos valores pertencentes a uma cultura determinada. Assim, quando Gustav Hugo, primeiro representante da Escola Histórica Alemã, redirecionou os esforços dos juristas germânicos para o estudo dos textos romanos e do direito consuetudinário, criou um novo método de estudo que permitiu o desenvolvimento de um sistema jurídico a partir daquelas regras.

A originalidade da Escola histórica de Savigny não foi a de evidenciar a historicidade ou o caráter sistemático, o que já havia sido feito pela escola humanista e pelo jusracionalismo, respectivamente, mas permitir uma síntese dessas duas características. Assim, a Escola histórica constituiu-se em uma inovação conservadora: o novo método de estudo do Direito é utilizado para a manutenção do direito germânico tradicional, impedindo as codificações feitas pelos Estados de inspiração liberal. Portanto, a partir das características do elemento histórico, podemos conceituar o historicismo de Savigny como retrospectivo e conservador: buscava dar um sentido objetivo ao Direito através da ligação deste com o seu passado, opondo-se à atualização das soluções jurídicas a partir das condições históricas do momento da aplicação do direito.


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