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Serviços de restaurante

competência tributária e conflitos

Serviços de restaurante: competência tributária e conflitos

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Este trabalho busca definir a norma jurídica tributária possível de ser construída a partir dos enunciados do texto constitucional quando trata das competências tributárias com relação ao serviço de restaurante.

SUMÁRIO: INTRODUÇÃO; 1 PROBLEMATIZAÇÃO; 2 A CONSTRUÇÃO DAS NORMAS TRIBUTÁRIAS; 3 AS NORMAS GERAIS DE DIREITO TRIBUTÁRIO; 4 O DIREITO TRIBUTÁRIO COMO DIREITO DE SUPERPOSIÇÃO; 5 O CRITÉRIO MATERIAL DOS TRIBUTOS; 5.1 O Icms; 5.2 O Iss; 6 O ISS E A LISTA DE SERVIÇOS; 7 A POSIÇÃO DA JURISPRUDÊNCIA; CONCLUSÃO; REFERÊNCIAS.

PALAVRAS-CHAVE: Direito Tributário; ISS; fornecimento de alimentação; interpretação.

RESUMO: Analisa a incidência tributária sobre os chamados "serviços de restaurantes", com objetivo de analisar se consiste em obrigação de dar ou de fazer e, conseqüentemente, sua tributação pelo ICMS ou ISS.


INTRODUÇÃO

Este trabalho tem por objetivo definir qual é a norma jurídica tributária possível de ser construída a partir dos enunciados do texto constitucional quando trata das competências tributárias com relação ao serviço de restaurante.

A tributação do fornecimento de alimentação, bebidas e outras mercadorias em restaurantes, bares, cafés e estabelecimentos similares foi assunto que despertou acirradas discussões doutrinárias, sobretudo a época do advento do Decreto-lei 406/68, que estabelecia normas gerais de direito tributário aplicáveis aos Impostos sobre Operações Relativas à Circulação de Mercadorias (ICM) e Sobre Serviços de Qualquer Natureza (ISS).

O referido decreto assim enuncia:

"Art. 1º. O imposto sobre operações relativas à circulação de mercadorias tem como fato gerador:

[...]

III – o fornecimento de alimentação, bebidas e outras mercadorias em restaurantes, bares, cafés e estabelecimentos similares."

A partir de tal enunciado, a doutrina passou a discutir a sua validade, em razão da natureza do serviço tratar-se de uma obrigação de fazer, e não de uma obrigação de dar, fato pelo qual haveria a subsunção dos conceitos dos eventos tributários ao conceito do critério material do imposto sobre serviços.

Instaurou-se um conflito de competências entre as fazendas públicas estaduais e municipais, dizendo-se competentes para tributar o evento de fornecer alimentação, bebidas e outras mercadorias, doravante referenciado como serviço de restaurante.

Cabe esclarecer, inicialmente, que o trabalho enfocará o direito tributário constitucional, embora se reconheça a existência da legislação infraconstitucional que rege o Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS) e o Imposto Sobre Serviços (ISS).

Assim, devemos ressaltar ainda que, delimitado o campo de incidência em nível constitucional, a legislação que venha a conflitar com o texto constitucional deve ser tida por inconstitucional.

Este estudo contribuirá para uma revisão na forma de interpretação dada ao denominado "serviço de restaurante", a fim de se adequar à determinação de competências tributárias enumeradas na Constituição Federal de 1988, tendo em vista que a constituição é exaustiva em matéria tributária e deve ser tida como ponto de partida para qualquer incursão que se pretenda fazer no sistema tributário brasileiro.

A doutrina, apesar da dominação da interpretação meramente literal, entendendo pela tributação por meio do Imposto Sobre Circulação de Mercadorias, trilha discussões acirradas, com autores importantes defendendo ambas as posições. Contudo, acreditamos estar trilhando o caminho certo, a fim de propor um estudo que objetive adequar o tema ao sentido que lhe é dado pela constituição.

Em razão das divergências doutrinárias acredita-se ser pertinente a proposição de um trabalho que objetive esta análise.


1 PROBLEMATIZAÇÃO

Ninguém se dirige até um restaurante para comprar feijão, arroz e carne grelhada, mas sim busca um serviço, um esforço pessoal que se concretiza na utilidade fornecida.

Nas palavras de Carrazza (1989, p. 212):

"[...] o fornecimento de alimentação, bebidas etc. em bares, cafés e estabelecimentos similares é apenas o meio, ou um dos meios, de implementar-se o serviço em apreço, o serviço em questão. O restaurante, penso eu, não pratica operações mercantis; o restaurante presta serviços, serviços que exigem, para implementar-se, o fornecimento de matérias-primas – comida e bebida; mas exige também para implementar-se a utilização de ferramentas, de equipamentos, de todo um trem de cozinha; exige ainda para implementar-se a presença do maitre, do garçom, do manobrista, do cozinheiro, de pessoas especializadas. Em alguns casos (eu me refiro a restantes mais sofisticados) exige até o fornecimento de diversão, de música ambiente, de pista de danças, de show, e assim por diante."

Apesar da aparente clareza semântica com que podemos visualizar os serviços de restaurante, essa atividade tem originado inúmeros conflitos de competência em matéria tributária.

A competência tributária, nas palavras de Carvalho (1999, p. 156):

"[...] é uma das parcelas entre as prerrogativas legiferantes de que são portadoras as pessoas políticas, consubstanciada na faculdade de legislar para produção de normas jurídicas sobre tributos."

No Brasil, as competências tributárias são definidas em nível constitucional, onde o poder constituinte permite aos entes federativos a criação dos tributos nela mencionados. Segundo Grupenmacher (1999, p. 36):

"Ao distribuir as competências tributárias, o texto constitucional traça, de modo implícito, a hipótese de incidência dos vários tributos previstos em nosso sistema, ou seja, a Constituição, ainda que não o faça de maneira expressa, prevê a norma-padrão de incidência, o arquétipo genérico de cada uma das espécies tributárias. A União, os Estados, os Municípios e o Distrito Federal, ao criarem, por lei, os tributos, devem, com absoluta fidelidade, respeitar este arquétipo constitucional."

Quando dois ou mais entes federativos acreditam ser competentes para exigir determinado tributo, temos ai um conflito de competência.

O direito positivo apresenta-se embasado na linguagem natural com algumas nuances de linguagem técnica, uma vez que o legislador não é cientista do direito. Nossas casas legislativas são compostas de indivíduos de conhecimentos plúrimos, de forma que não são profundos conhecedores da ciência jurídica a ponto de elaborarem textos legais sistematizados e facilmente interpretáveis.

O legislador descreve de modo abstrato o fato que pretende ser jurídico de modo a identificá-lo do universo dos tatos que compõe o cotidiano, de forma plurissignificativa, dificultando o processo de interpretação. Assim, ao enunciar que é tributável o evento de "serviços de restaurante" pelo ICM, muitos questionamentos se apresentaram no sentido de que, se tais fatos são efetivamente uma obrigação de dar ou de fazer.

Essas diferentes premissas necessariamente levam a distintas conclusões: tratando-se de obrigação de dar, incidirá o ICM e, tratando-se de obrigação de fazer, a incidência será do ISS.

Embora a legislação infraconstitucional, como já mencionado acima, tenha optado por tributar os serviços de restaurante pelo ICM, procuraremos demonstrar que tal opção não se coaduna com as disposições constitucionais.

Acredita-se que o desenvolvimento de estudos que tenham como objeto central a "releitura" do tema sob o contexto da regra matriz de incidência fiscal seja de importância fundamental na delimitação do poder de tributar dos Municípios e dos Estados Federados, e por conseqüência, à garantia e segurança jurídica dos contribuintes.


2 A CONSTRUÇÃO DAS NORMAS TRIBUTÁRIAS

A constituição federal é, segundo Vieira (2000, p. 62), "[...] fundamento de todas as regras que se distribuem pelos degraus inferiores da hierarquia normativa". Distribui rigidamente as competências tributárias, estruturando a feição tributária do Estado brasileiro.

Aos operadores do direito, resta construir, a partir dos enunciados prescritivos tributários da Constituição Federal, as normas de competência tributária, em abstrato, que possibilitarão a subsunção do evento, fazendo incidir, assim a norma tributária.

Oliveira (2001, p. 151), coloca que:

"A busca da norma implica reconhecer que o enunciado prescritivo é apenas e tão somente o início do processo de sua construção. As normas são sempre implícitas e nascem pela descoberta da mensagem construída, pela leitura de textos legais, princípios de direito e na consideração do sistema jurídico e normativo."

Na construção das normas tributárias, importância singular assume a interpretação do sistema jurídico. Ferraz Júnior (2003, p. 289), ao tratar da interpretação sistemática, coloca que

"[...] qualquer preceito isolado deve ser interpretado em harmonia com o todo. Portanto, nunca devemos isolar o preceito nem em seu contexto (a lei em tela, o código: penal, civil, etc) e muito menos em sua concatenação imediata (nunca leia um só artigo, leia também os parágrafos e os demais artigos)."

Nessa atividade de "construção" das normas tributárias, o ponto de partida, que poderíamos chamar de "alicerces" está na Constituição Federais, ou, ainda, numa visão topográfica, nos princípios constitucionais tributários, que visam delinear o sistema constitucional tributário vigente.

Ocorre que, por vezes, da interpretação dos textos do direito positivo, surgem os conflitos de competência tributária, que sempre foram objeto de estudo na doutrina.


3 AS NORMAS GERAIS DE DIREITO TRIBUTÁRIO

A Constituição Federal, em seu artigo 146 estabelece que compete à lei complementar dispor sobre os conflitos de competência em matéria tributária, bem como estabelecer normas gerais em matéria tributária.

A carga semântica de tal dispositivo divide a doutrina, basicamente, em três correntes.

A primeira corrente, chamada de tricotômica, a qual Carvalho (1999, p. 127) chama de "bem comportada", cujos adeptos podemos citar Baleeiro (1972) Martins (2003), Machado (2003) e Martins (2004) dentre outros, numa interpretação literal, entende que a lei complementar possui três funções: dispor sobre conflitos de competência, limitações constitucionais ao poder de tributar e estabelecer normas gerais de direito tributário.

A segunda, por sua vez, denominada dicotômica, que tem como defensores Ataliba (1969), Borges (1975), Esteves (1997) e Carvalho (1999), dentre outros, entende como funções da lei complementar dispor sobre os conflitos de competência e sobre as limitações constitucionais ao poder de tributar.

Convém apontar, ainda, a existência de uma terceira corrente, embora minoritária, que pode ser conhecida por "intermediária", cujo maior expoente é Sacha Calmon Navarro Coelho, que entende que as competências tributárias poderiam ser exercidas pelas pessoas políticas enquanto não sobreviesse lei complementar incompatível, o que, se ocorrendo, ensejaria a necessidade de adequação pela legislação ao disposto pela lei complementar. (ALVIM, 1994, p. 62)

As leis complementarem veiculam normas de caráter nacional, assim conceituadas por Ataliba (1969), ao tratar das leis complementares, que vinculam todos os entes federados, diferentes das normas federais, que trataria de matéria de interesse da União.

Portanto, as leis complementares que tenham por objetivo dirimir os conflitos em matéria tributária são normas nacionais, que vinculam União, Estados e Municípios.


4 O DIREITO TRIBUTÁRIO COMO DIREITO DE SUPERPOSIÇÃO

A doutrina é unânime em aceitar o disposto no artigo 110 do CTN, que determina que:

"A lei tributária não pode alterar a definição, o conteúdo e o alcance dos institutos, conceitos e formas de direito privado, utilizados, expressa ou implicitamente, pela Constituição Federal, pelas Constituições dos Estados ou pelas Leis Orgânicas do Distrito Federal ou dos Municípios, para definir ou limitar competências tributárias."

E mesmo que tal dispositivo não constasse expressamente de nosso Código Tributário Nacional, que veicula as normas gerais de direito tributário, não caberia outra interpretação, sob pena de serem tolhidas as determinações constitucionais.

Trata-se de uma faceta do "direito de superposição" atribuído ao direito tributário, em razão de valer-se de institutos de outros ramos do direito, uma vez que

"[...] já estando certos conceitos definidos e denominados pelo direito civil, comercial etc, cuja elaboração precedeu à do direito tributário, compreende-se que este último, ao se referir àqueles mesmos conceitos, adote, por uma questão de clareza e precisão, as mesmas denominações e definições já conhecidas. (SOUSA, 1952, p. 35)"

Portanto, a Constituição Federal foi clara ao estabelecer que cabe aos Municípios a tributação dos serviços de qualquer natureza, excluindo-se apenas os que ela atribui a outros entes, como os serviços de comunicação e de transporte intermunicipal e interestadual, atribuídos aos Estados e a tributação sobre operações financeiras, que abrange alguns serviços tributados pela União.

Quando se estabelece que compete aos estados instituir impostos sobre a circulação de mercadorias, o conceito de "mercadoria" não pode ser livremente atribuído pelo legislador infraconstitucional, mas deve ser tomado o conceito do direito comercial, sob pena de ofensa a Constituição.

Segundo Carrazza (1979, p. 283):

"[...] pelo ICM se tributa a operação jurídica (obrigação) de dar uma mercadoria; pelo ISS, a operação jurídica (a obrigação) de fazer (de prestar) um serviço (ainda que a prestação do serviço se traduza, a final, numa realidade palpável, como um quadro, um terno, uma casa, etc.).

[...] a obrigação de dar tem por objeto a entrega de uma coisa ao credor para que este adquira, sobre a mesma um direito. [...] a obrigação de fazer tem por objeto um ou mais atos do devedor, de fora parte a entrega de uma coisa. Este serviço, se se traduzir numa utilidade, tiver conteúdo econômico e obedecer ao regime de direito privado, só pode ser tributado por via de ISS."


5 O CRITÉRIO MATERIAL DOS TRIBUTOS

Para o aprofundamento da questão, faz-se necessária uma análise do critério material da hipótese de incidência tributária, utilizando-se de metodologia da regra-matriz de incidência desenvolvida por Carvalho (1999).

A regra matriz de incidência, em síntese, consiste num antecedente ("p") – que trata-se da hipótese de incidência tributária - formado por três critérios: o material, o temporal e o espacial, que respondem aos questionamentos de como, quando e onde pode ser considerada ocorrida a hipótese que ensejará a instauração da relação jurídica tributária entre o sujeito passivo e o órgão do poder público titular do direito subjetivo concernente ao crédito tributário.

O conseqüente ("q") – relação jurídica tributária - por sua vez, é formado pelos critérios pessoal (que abrange o sujeito ativo e o sujeito passivo) e pelo critério quantitativo, que se divide em base de cálculo e alíquota.

O critério material apresenta o núcleo da hipótese, representado por um verbo e seu complemento, conforme expõe Carvalho (1998, p. 129/130):

"O critério material ou objetivo da hipótese tributária resume-se, como dissemos, no comportamento de alguém (pessoa física ou jurídica), consistente num ser, num dar ou num fazer e obtido mediante processo de abstração da hipótese tributária, vale dizer, sem considerarmos os condicionantes de tempo e de lugar (critérios temporal e espacial). Isto, porém, já é o suficiente para classificarmos os tributos."

Ainda, segundo o mesmo autor:

"O critério material da hipótese tributária pode bem ser chamado de núcleo, pois é o dado central que o legislador passa a condicionar, quando faz menção aos demais critérios. Parece-nos incorreta a tentativa de designá-lo como a descrição objetiva do fato, porto que tão descrição pressupõe circunstâncias de espaço e de tempo que o condicionam. Estar-se-ia conceituando a própria hipótese tributária. Essa é uma entre as muitas dificuldades que se nos antolham quando pretendemos cindir, mesmo que em termos lógicos, entidade una e indecomponível. E nesse engano incidem todos os autores que versam a matéria. Tem-se esse critério como envolvente dos outros dois, isto é, daqueles que expressam os condicionantes de espaço e de tempo.

Ao individualizar o critério material não se pode abarcar elementos estranhos que teriam o condão de emprestar-lhe feição definitiva como previsão de um evento. E é uma tarefa sumamente difícil a ele referir sem tocarmos, mesmo que levemente, nas circunstâncias de tempo e lugar que lhe sejam atinentes.

Para obviarmos tal empecilho, é preciso fazer abstração absoluta dos demais critérios (o que só é possível no plano lógico abstrato) e procurar extrair não só o próprio fato, mas um evento que, condicionado no tempo e no espaço, venha a transformar-se no fato hipoteticamente descrito. Dessa abstração emerge sempre o encontro de expressões genéricas designativas de comportamentos de pessoas, sejam aqueles que encerrem um fazer, um dar, ou simplesmente um ser (estado). Teremos, por exemplo, ‘vender mercadorias’, ‘industrializar produtos’, ‘ser proprietário de um bem imóvel’, ‘auferir rendar’, ‘prestar serviços’, ‘construir estradas’, ‘pavimentar ruas’ etc.

Esse núcleo, ao qual nos referimos, será formado, invariavelmente, por um verbo, seguido de seu complemento."(CARVALHO, 1998. p. 124-125)

O critério material dos tributos é dedutível do próprio dispositivo constitucional ao instituir a competência para sua instituição. Assim, para a análise do tema proposto, são necessárias digressões, embora breves, ao critério material dos tributos em conflito.

5.1 O ICMS

O texto constitucional, nas palavras de Batalha (1982, p. 129) "outorga competência aos Estados para tributar, por via de imposto, o comportamento de pessoas consistente no realizar operações relativas à circulação de mercadorias".

Carrazza (2001, p. 38), por sua vez, nos apresenta o conceito de mercadoria como "[...] bem móvel, sujeito à mercancia. É, se preferirmos, o objeto da atividade mercantil, que obedece, por isso mesmo, ao regime jurídico comercial".

Conforme mencionada Ataliba (1994, p. 29):

"[...] não é qualquer bem que pode ser, juridicamente, qualificado como mercadoria. Essa qualificação depende de dois fatores, a saber: (i) a natureza do promotor da operação que a tem por objeto; e (ii) a destinação que a ela dá o seu titular."

Podemos observar que o critério material do Imposto Sobre Circulação de Mercadorias consiste em negócios jurídicos que transferem a titularidade de um bem móvel, com o objetivo de lucro.

5.2 O ISS

No que pertine ao ISS, temos que seu critério material é sintetizado na expressão "prestar serviços".

Não será qualquer serviço que encontrará subsunção a norma constitucional. Justen Filho (1985, p. 83) ao construir o conceito dos serviços tributáveis, diz tratar-se da:

"[...] prestação de esforço (físico-intelectual), produtor de utilidade (material ou imaterial) de qualquer natureza, efetuada sob o regime de Direito Privado, que não caracterize relação empregatícia."

O Imposto Sobre Serviços, conforme discorre Moraes (1967, p. 180), tem seu advento no direito internacional apontado na reforma fiscal francesa de 1954-1955, que instituiu a "taxe sur les prestations services". No Brasil, foi introduzido com a Emenda Constitucional n° 18/65, substituindo o Imposto de Indústrias e Profissões, que recaía sobre o efetivo exercício de qualquer atividade lucrativa.

Atribuído pela Constituição Federal à competência impositiva dos Municípios, apresenta, na delimitação de seu critério material, a discussão quanto à carga semântica da expressão "definidos em lei complementar".


6 O ISS E A LISTA DE SERVIÇOS

No que diz respeito ao conteúdo semântico da expressão "definidos em lei complementar", a doutrina se divide em duas correntes, uma, que defende uma interpretação literal do texto do direito, integrada por Baleeiro (1972), Machado (2003), Martins (2003) e Martins (2004), entendendo pela taxatividade da lista de serviços, de forma que somente poderiam ser tributados pelo ISS os serviços descritos na lei complementar que introduzisse tal lista no mundo jurídico, e outra, cujos expoentes são Ataliba (1999) e Borges (1975), Justen Filho (1985), Carrazza (1991), Barreto (2003) e Chiesa (2001), dentre outros, que defende, mediante uma interpretação sistemática, o caráter exemplificativo da lista, de forma que os Municípios poderiam instituir a cobrança do ISS sobre qualquer prestação de serviços, excluídos os de competência de outros entes.

A questão da taxatividade da lista de serviços deve ser interpretada de forma a não violar a autonomia municipal, decorrência direta do princípio federativo. (ATALIBA, 1987)

Princípios, segundo Carvalho (2002, p. 17), são:

"[...] "normas jurídicas" carregadas de forte conotação axiológica. É o nome que se dá a regras do direito positivo que introduzem valores relevantes para o sistema, influindo vigorosamente sobre a orientação de setores da ordem jurídica. [...] "princípio" é uma regra reportadora de núcleos significativos de grande magnitude influenciando visivelmente a orientação de cadeias normativas, às quais outorga caráter de unidade relativa, servindo de fator de agregação para outras regras do sistema positivo."

Além da interpretação, por veicularem normas de estrutura, estão em nível indiscutivelmente superior ao das normas jurídicas, uma vez que se dirigem à elaboração de outras normas, de modo que a sua violação, nas exatas palavras de Mello (1999, p. 630):

"[...] é muito mais grave que transgredir uma norma qualquer. A desatenção a um princípio implica ofensa não apenas a um específico mandamento obrigatório, mas a todo o sistema de comandos. É a mais grave forma de ilegalidade ou inconstitucionalidade, conforme o escalão do princípio atingido, porque representa insurgência contra todo o sistema, subversão de seus valores fundamentais."

Portanto, podemos observar que princípios são comandos impregnados de valores, que irradiam efeitos para a interpretação de todo o direito positivo. Logo, o princípio federativo irradia seus efeitos como vetor de interpretação devendo ser observado quando da construção das normas jurídicas tributárias.

A competência tributária, distribuída pela Constituição Federal, não pode ser ampliada, diminuída ou anulada por Lei Complementar e aceitar a taxatividade da lista de serviços seria reconhecer que uma norma constitucional teve seu alcance diminuído por uma Lei Complementar.

Nas palavras de Fischer (2003, p. 121):

"[...] em momento algum podemos admitir que um ente federativo detenha o poder de amesquinhas a autonomia financeira de outro membro da federação. Se é certo que a federação não é um conceito lógico-jurídico, mas, sim, um conceito jurídico-positivo, não menos certo que sua acomodação em um ordenamento jurídico deve resguardar um núcleo normativo mínimo, a autonomia dos entes federativos."


7 A POSIÇÃO DA JURISPRUDÊNCIA

O assunto em análise foi objeto de diversas manifestações jurisprudenciais na década de 1990, que firmaram o entendimento dominante hoje no pela incidência do ICMS.

Da análise dos julgados da época, como por exemplo o Supremo Tribunal Federal nos RE 100.563-7, 107.770-1, 108.934-2 e o Superior Tribunal de Justiça, nos Resp. 15.447-SP e 10.388-DF, pode-se evidenciar um aspecto interessante:

Um dos fundamentos da decisão, como se pode verificar no RE 1.200 (89.0011254-6), menciona que, caso prevalecesse o entendimento pela não incidência do ICM, os restaurantes, bares, cafés e similares não seriam tributados em razão do serviço não estar previsto na lista de serviços.

Assim, utilizou-se de um argumento não jurídico para a construção de um entendimento que se apresenta totalmente contrário ao texto constitucional.

Trata-se de uma conclusão absurda, entender-se pela incidência de um tributo em razão de não poder incidir outro.

Por fim, cabe ressaltar a existência de diversas decisões judiciais de primeiro grau, como por exemplo no mandado de segurança n° 781/80, da 2ª Vara da Fazenda Estadual de São Paulo, apud Ichihara, (1979, p. 292/294), declarando a inconstitucionalidade do Art. 1°, III, do Decreto-Lei n° 406/608, em razão de submeter atividade atípica sob a incidência do ICM.


CONCLUSÃO

Como já mencionado anteriormente, quando se dirige até um restaurante o que se procura não é a mera aquisição de uma mercadoria, uma porção de arroz ou um suco, mas sim o que se procura é uma utilidade prestada pelo restaurante, a presteza dos garçons, os atributos do chefe de cozinha, a beleza do ambiente etc, onde a qualidade do serviço é fator determinante na escolha, de forma que apresenta claramente a existência de uma obrigação de fazer e não de uma obrigação de dar.

Cabe mencionar aqui as palavras de Carrazza (1989, p. 208), para quem:

"[...] a interpretação gramatical não é uma verdadeira interpretação; é um pressuposto de interpretação, é simples leitura de leigos. Nós só conseguimos discernis o singnificado, o conteúdo, o alcance de uma dada norma jurídica se a submetermos a uma interpretação sistemática; ou seja, aquela interpretação que leva em conta o ordenamento jurídico como um todo considerado."

Nas exatas palavras de Ortega y Gasset, apud Becker (1963), "Los lugares comunes son los tranvias del transporte intelectual". Assim, não devemos aceitar passivamente o que nos é imposto pela doutrina majoritária, mas sim utilizar esses conhecimentos para inicias "vôos mais altos".

A interpretação majoritária atual é flagrantemente contrária ao texto constitucional. Retirar dos municípios parcela de sua competência tributária é uma afronta ao princípio federativo, uma vez que estes já têm arrecadação tributária reduzida e cada vez mais insuficiente para manutenção das despesas básicas.

Não há como se tributar uma obrigação de fazer por meio do ICM. Resta clara a subsunção do conceito do evento tributário ao conceito do critério material do imposto sobre serviços.

Cabe aos operadores do direito empreender novos estudos nesta área, objetivando uma interpretação que adequada ao texto constitucional.


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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ANSELMO, Márcio Adriano. Serviços de restaurante: competência tributária e conflitos. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 10, n. 790, 1 set. 2005. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/7231. Acesso em: 29 mar. 2024.