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Intervencionismo e liberalismo no discurso político norte-americano do século XIX

Intervencionismo e liberalismo no discurso político norte-americano do século XIX

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Reflete-se sobre o discurso intelectual, desenvolvido nos Estados Unidos da metade do século XIX, de oposição à expansão estatal, através da defesa da liberdade individual perante a intervenção do Estado.

A presente pesquisa consistiu em uma análise histórico-jurídica do fenômeno da dualidade entre a contrução do intervencionismo estatal e o discurso político-filosófico liberal, situado em torno da literatura norte-americana do transcedentalismo e da desobediência civil em contraposição a um cenário político e institucional delineado no século XIX pelo federalismo e pela descentralização administrativa. A “problematização” do fenômeno jurídico como objeto de estudo histórico e filosófico é o esforço genericamente empreendido nesta pesquisa. Especificamente o fenômeno jurídico aqui tratado histórica e filosoficamente como problema é o discurso de oposição radicalizada contra a expansão do poder estatal de intervenção sobre a sociedade e sobre o indivíduo representado em seu auge pela defesa da desobediência civil. Segue-se aqui a proposta da Begriffsgeschichte (KOSELLECK, 2000), que entende a historicidade dos discursos políticos através das transformações nos conteúdos semânticos das palavras e conceitos na significação do jurídico de do não-jurídico, destacando a “missão cognitiva da história do direito” que encontra sua utilidade para o presente, segundo Wieacker, “na historicidade da nossa própria existência” ao se entender a História “sob o ponto de vista da experiência humana do direito” (WIEACKER, 2004, pp. 4-5).

A questão abordada não é de definição pragmática sobre a factual expansão estatal em termos de números e dados, mas se situa no âmbito da interpretação e da compreensão do posicionamento de autores e de textos que se colocam à sua maneira contra tal situação factual. O que esta pesquisa vem evidenciar é a crítica enunciada por intelectuais como Emerson e Thoreau a uma redução da condição de “liberdade” dos indivíduos por imposições tanto de uma sociedade mais modernizada, organizada já por um sofisticado sistema de mercado, quanto de um Estado potencialmente interventor em crescimento.

Esses discursos liberais de “grandes autores”, por outro lado, foram analisados contrapostos com um conjunto de conflitos políticos e judiciais documentados nas declarações, na legislação e na jurisprudência. A intenção foi, desta forma, verificar por detrás da linguagem política da liberdade individual o contexto político de avanço ou de restrição ao poder estatal de intervenção na sociedade, na economia e na própria esfera privada do indivíduo.


Panorama histórico-conceitual

O contexto americano, desde sua fundação, é particularmente inusitado. Em geral, descreve-se os Estados Unidos anterior à década de 1930 como um modelo de economia liberal, como um Estado mínimo, ou mesmo como uma minarquia. Esta visão é a mais adequada quando contraposta à noção de Estado Interventor pelo modelo Keynesiano pós 1930, no entanto, ela não abarca precisamente as diferentes concepções políticas expressadas pelos pensadores americanos – e também por eventuais práticas de governo – desde as origens dos Estados Unidos. Desde as divergências entre Hamilton e Jefferson1 até os conflitos judiciais que trataram dos conceitos fundamentais sobre o federalismo, a relação entre os poderes da União e dos Estados federados no século XIX é uma das mais relevantes questões para o estudo “arqueológico”, sobre as origens conceituais tanto das teses intervencionistas quanto liberalizantes.

As características do suposto Estado mínimo liberal dos Estados Unidos do século XIX, que tende a ser visto pelos estudos da economia e do direito pela ausência de práticas intervencionistas estatais, são, em geral, destacadas em sua perspectiva cultural e ideológica. O individualismo capitalista, o liberalismo político e a democracia preocupada com a prosperidade são elementos históricos que envolvem os Estados Unidos e apontam para a noção de que a estrutura política liberal americana reflete o espírito da nação fundada nestes princípios (CHEVALIER, 1839). No entanto, este discurso liberal presente nos EUA de 1800 não é o único fator que restringe o avanço de um poder público de caráter intervencionista. A estrutura fragmentada das instituições políticas americanas caracterizou historicamente uma limitação para o desenvolvimento de um governo mais ativo no sentido intervencionista e provocou uma deficiência na capacidade política de formulação eficaz de políticas públicas de modo geral. Esta característica que tem suas origens já na própria elaboração do Estado federado americano é destacadamente visível no período que vai de 1787 até 1870, quando o arranjo institucional estadunidense se caracterizou principalmente pela divisão do poder e da capacidade jurídica e prática de implementar as políticas públicas básicas entre os Estados e a União (ROBERTSON; JUDD, 1989). Tem-se portanto, um contexto inicial em que o arranjo político-institucional – descentralização administrativa, autonomia estadual e federalismo – gera restrições práticas à implementação dos discursos pró intervenção estatal na sociedade americana do século XIX. Esse fator de organização jurídica do Estado vai se somar às contradições sociais e econômicas geradas pela escravidão, pela industrialização e pelos antagonismos entre norte e sul – que culminariam na guerra civil – e ao perfil construído socialmente do individualista americano, para a construção do contexto de fundo do discurso liberal-individualista presente na filosofia dos transcedentalistas da Nova Inglaterra.


As contradições políticas e econômicas do contexto histórico

Uma problemática fundamental para a compreensão dos conflitos políticos das práticas estatais por traz da linguagem política geral é a da transformação econômica e social associada com a presença e a abolição da escravidão. A questão da escravidão sempre esteve em discussão nos EUA dos séculos XVIII e XIX, culminando na Guerra Civil americana. No entanto, o conflito que dá origem à “secessão” é basicamente mais econômico do que político por natureza e pode-se mesmo dizer que até a questão ideológica por trás dos ideais de liberdade e igualdade teriam ficado em segundo plano diante da disputa econômica entre o sul agrícola e o norte industrial (HEFFNER, 1999, p. 125). Para além desta interpretação sócio-econômica bem consolidada sobre este período histórico, como certo se têm o papel discursivo adotado pelas duas frentes no sentido de atrair defensores para uma causa geralmente fundamentada mais como moral do que como política ou econômica.

No âmbito retórico ambos os lados assumiram posturas vigorosamente radicais. Os sulistas defendiam-na abertamente com um discurso racionalizador, através da apologia à escravidão como em conformidade com o Direito (natural e positivo), com a história e as escrituras (do antigo testamento quanto aos povos dominados) e mesmo com as ciências mais modernas (que estariam por evidenciar a inferioridade biológica do negro). Por outro lado, os abolicionistas do Norte declamavam incansavelmente a imoralidade e a viciosidade que carregava consigo a escravidão e todas as suas conseqüências sociais e políticas despóticas, por assim dizer; e mais do que uma argumentação racional, os nortistas levantavam também a opinião de um grande público que dava força à causa abolicionista (HEFFNER, 1999, p. 127).

A escravidão que foi levada às colônias norte-americanas em 1619 entrou, ao longo do século XVII e seguintes, gradualmente em consonância com uma nova estruturação econômica das colônias meridionais, baseada na exploração latifundiária de monoculturas voltadas para o mercado internacional (plantation), servindo-lhe de mão-de-obra básica para esta atividade que, para além de seu aspecto econômico, vai estruturar estas sociedades em seus moldes próprios e em suas relações de dominação típicas das associações patrimonialistas2.

O norte, por sua vez, possui um desenvolvimento histórico profundamente diferente do sul desde a época colonial. As características populacionais, o clima e principalmente a economia são recorrentemente enumerados como fatores que antagonizam o Norte e o Sul. Assim pode-se destacar que “no século XVIII, a Nova Inglaterra[...] apresentava já uma economia com um grau relativamente elevado de complexidade” e que este “contraste mais acentuado opunha o grupo mais setentrional ao das colônias meridionais e seria de extrema importância para o futuro, pois trazia consigo o germe do antagonismo entre o Norte e o Sul, cuja exacerbação levou à Guerra de Secessão” (REMOND, 1989, p. 4).

A estrutura econômica que na Nova Inglaterra vai se apresentar, desde a época colonial, já “relativamente complexa” e variada, após a independência e a construção dos Estados Unidos, cresceria exponencialmente a partir de então nos rumos de uma economia industrializada e socialmente organizada em torno do mercado capitalista. Em termos weberianos, enquanto a sociedade do Sul vivia sob laços de relações de dependência e dominação patrimonial, o Norte se desenvolvia rapidamente nas direções da burocratização das relações sociais e da dominação racional-legal típica do capitalismo industrial. Seria de se esperar assim, de acordo com a própria teoria histórico-sociológica de Weber, que logo estas duas sociedades antagônicas entrassem em um conflito inevitável e que, nos termos que descrevem a marcha para a modernidade através da racionalização dos sistemas sociais, concluiriam necessariamente no predomínio da economia e da sociedade burocratizada sobre a patrimonialista. Uma discussão análoga, no contexto brasileiro, é feita por Raymundo Faoro, que demonstra que historicamente foi possível o desenvolvimento de uma economia capitalista moderna em convívio com práticas amplamente patrimonialistas no campo social, político e na própria estrutura do Estado Brasileiro - colonialismo, clientelismo, corrupção generalizada, etc (FAORO, 2001). Quanto ao caso americano o próprio Weber analisaria esta característica das práticas contra-burocráticas na política e na Administração Pública, quando a Administração estatal americana ficou, no século XIX, até a civil service reform, conhecida como um spoils system (WEBER,1978).


A sociedade do novo mundo e o perfil americano

A percepção histórica de que a mentalidade política americana do século XIX representava o que haveria de mais instrumental, mais moderno e economicamente mais progressista em todo o mundo foi ressaltada não só pelo senso comum, mas também por grandes autores. Max Weber, ao visitar os Estados Unidos em 1904 descreveu um contexto único que caracterizava o cúmulo de uma cultura social produzida durante todo o século anterior. Em carta a sua mãe, Weber observara:

Depois do trabalho, os operários freqüentemente têm de viajar horas para chegar à sua casa. A estrada de ferro está falida há anos. Como sempre, um depositário, que não tem interesse em apressar a liquidação, administra seus negócios; por isso não são comprados vagões novos. Os carros velhos constantemente enguiçam, e cerca de 400 pessoas por ano morrem ou ficam aleijadas em desastre. Segundo a lei, cada morto custa à companhia cerca de 5.000 dólares, pagos a viúva ou herdeiros, e cada aleijado custa cerca de 10.000 dólares, pagos ao próprio. Tais indenizações são devidas enquanto a companhia não adotar medidas de precaução. Calculou-se que as 400 mortes por ano custam menos do que as tais precauções necessárias. E, por isso, a companhia não as adota (WEBER apud AMORIN).

Este estereótipo de comportamento social instrumental e burocrático, pautado em poucos valores sociais e muita racionalidade, dá à nação americana uma imagem de progresso em direção ao individualismo exacerbado e a uma forma radical de um liberalismo que se esquiva à regulação estatal e social. Esta característica ressaltada pelos estrangeiros foi, em maior ou menor medida, assumida pela sociedade americana e criticada, com grande força, pelos filósofos transcedentalistas da Nova Inglaterra.

Um dos retratos mais interessantes e importantes para a análise aqui proposta se encontra na obra deixada por Michael Chevalier, que, do mesmo modo que Tocqueville, foi enviado pelo governo da França aos Estados Unidos em 1834 para investigar as instituições públicas americanas e acabou produzindo uma grande análise sobre a sociedade, os costumes e a política nos Estados Unidos.

Ao contrário do pessimismo demonstrado por Weber, Chevalier retrata com entusiasmo muitos dos aspectos inovadores do povo americano. A sociedade e as instituições do novo mundo construíram uma nova forma de fazer política. O sistema político americano, no entanto, não é puramente “materialista”. A prosperidade material tem um papel político fundamental para o desenvolvimento da própria liberdade política presente no sistema democrático na opinião de Chevelier:

Before passing to the institutions best suited to develop industry, I would observe that a political system which should be particularly calculated to create and sustain them, cannot be taxed with materialism. Industry influences the moral nature of man; the material prosperity of a people has an important bearing on the public liberties. Men cannot practically enjoy the rights secured to them by law, when they are manacled and fettered by poverty; the English and their children in America call competency, independence. The Anglo-Americans have reached wealth through their political liberty; other nations, and we, I think, are of the number, must arrive at political franchises by the progress of national wealth. (CHEVALIER, 1839, p. 185)

Na medida em que a população americana é mais livre, de acordo com as suas condições materiais, ela é mais capacitada para os assuntos públicos, valorizando mais a política e defendendo a sua autonomia privada e o seu auto-governo.

In political affairs, the American multitude has reached a much higher degree of initiation than the European mass, for it does not need to be governed; every man here has in himself the principle of self-government in a much higher degree, and is more fit to take a part in public affairs (CHEVALIER, 1839, p. 230).

Por outro lado, apesar da exímia capacidade de discutir a política de modo geral, a austeridade americana refletiria também na capacidade da democracia de produzir ali um Estado com força para impulsionar políticas públicas para a sua própria população. A aversão da população à criação de novos impostos3 reflete a falta de obras públicas e a ausência de políticas públicas “desenvolvimentistas”, como demonstra o relatório sobre a cidade de Cincinnati:

Cincinnati has, however, no squares planted with trees in the English taste, no parks nor walks, no fountains, although it would be very easy to have them. It is necessary to wait for the ornamental, until the taste for it prevails among the inhabitants; at present the useful occupies all thoughts. Besides, all improvements require an increase of taxes, and in the United States it is not easy to persuade the people to submit to this. Cincinnati also stands in need of some public provision for lighting the streets, which this repugnance to taxes has hitherto prevented (CHEVALIER, 1839, p. 105).

A repulsa à taxação por parte da população é, portanto, um dos elementos determinantes para a política norte-americana. Em seus relatórios Chevalier criticou o modelo europeu de cobrança de impostos que diferencia ricos e pobres, enquanto enalteceu o espírito voltado ao trabalho e à prosperidade nos Estados Unidos.

The attention of the benevolent in Europe has long been directed towards the reduction of the public expenditures, and a more equal distribution of the burden of taxation, as a means of improving the condition of the poor; but all these plans, supposing them to succeed according to the views of the projectors, would merely amount to taking a few coppers less from the pockets of the poorer class (CHEVALIER, 1839, p. 183).

Mais do que diminuir o peso dos impostos sobre os pobres, o Novo Mundo encontrava no trabalho livre a fonte de riqueza e de união entre o interesse público e o privado:

Labour is an admirable instrument of concord, for all interests gain by the prosperity of industry. This is the pure and true source of all wealth, public and private. (…) The admirable prosperity of the United States is the fruit of labour, much more than of any reform in taxation. The soil has not the luxuriant fertility of the tropical regions; roasted larks fly into nobody’s mouth; but the American is a model of industry (CHEVALIER, 1839, p. 183).

A congruência entre o trabalho individual e o interesse público se localizava justamente, para Chevalier, na construção do perfil do americano nascido para o trabalho:

Tall, slender, and light of figure, the American seems built expressly for labour; he has no equal for despatch of business. Nobody also can conform so easily to new situations and circumstances; he is always ready to adopt new processes and implements, or to change his occupation. He is a mechanic by nature; among us there is not a schoolboy who has not made a vaudeville, a ballad, or a republican or monarchial constitution; in Massachusetts and Connecticut, there is not a labourer who has not invented a machine or a tool. (CHEVALIER, 1839, p. 152).

É para o trabalhador pobre e protestante, que busca o crescimento espiritual através do enriquecimento material e social, que a América fala:

“Work,” says American society to the poor man; “work, and at eighteen years of age, although a mere workman, you shall get more than a captain in Europe. You shall live in plenty, be well-clothed, well-lodged, and be able to lay up a part of your earnings. Be attentive to your work, be sober and religious, and you will find a devoted and submissive partner of your fortunes; you shall have a more comfortable home, than many of the higher classes of the commonalty in Europe. From a journeyman, you will become a master; you will have apprentices and dependents under you in turn; you shall have credit without stint; you shall become a manufacturer or agriculturist on a great scale; you shall speculate and become rich; you shall found a town and give it your own name; you shall be a member of the legislature of the State, or alderman of the city, and finally member of Congress; your son will have as good a chance to be made President as the son of the President himself. Work, and if the fortune of business should be against you, and you fall, you will soon be able to rise again; for a failure is nothing but a wound in battle; it will not deprive you of the esteem or confidence of any one, if you have always been prudent and temperate, a good christian and a faithful husband.” (CHEVALIER, 1839, p. 153).

Para concluir o perfil do americano, Chevalier propõe uma comparação entre um simples camponês europeu e um mesmo camponês americano:

Examine the population of our rural districts, sound the brains of our peasants, and you will find that the spring of all their actions is a confused medley of the Bible parables with the legends of a gross superstition. Try the same operation on an American farmer, and you will find that the great scriptural traditions are harmoniously combined, in his mind, with the principles of modern science as taught by Bacon and Descartes, with the doctrine of moral and religious independence proclaimed by Luther, and with the still more recent notions of political freedom. He is one of the initiated (CHEVALIER, 1839, p. 229).

O americano médio, partícipe da democracia jacksoniana, é, portanto, alguém que conhece os princípios da ciência, que discute suas doutrinas religiosas e que defende a liberdade política. Assim é caracterizado, pelo menos em uma perspectiva, o comportamento social e a linguagem política do americano da primeira metade do século XIX.


Questão do radicalismo liberal e da desobediência civil na Nova Inglaterra

Uma questão radical que exige uma especial problematização é o discurso anti-estatal que objetivará ampliar os direitos individuais de liberdade (clássicos) contra a intervenção do Estado e mesmo através da “desobediência civil”, como indica o mais famoso “texto político” do filósofo Henry D. Thoreau. A partir desta contingência histórica de expansão da intervenção estatal que a importância do texto-problema – A desobediência civil, ou Os direitos e deveres do indivíduo em relação ao governo – se destaca. A fundamentação do texto se coloca como universal e transcendental, em torno da natureza humana, mas o fenômeno que ele representa está claramente relacionado a uma contingência. O fenômeno é situado em um contexto identificável e relacionado a conceitos próprios de uma época que pode ser descrita através de tais termos como “expansionista”. Destaca-se neste sentido o desenvolvimento, ainda que inicial, de uma burocratização estatal, mas também em termos de mercado, a concentração de poderes pela União em detrimento aos Estados e o fortalecimento das funções estatais no campo da economia e da regulação sobre aspectos da sociedade antes pouco significativos (regulamentação comercial, urbana, ferroviária, etc.).

Com o objetivo de discutir a questão da desobediência civil e amplificar a análise dos fenômenos jurídicos em torno desta, é que se deve buscar uma releitura histórica e filosófica do problema exposto, através do estudo dos textos de expressão politicamente liberal da corrente de pensamento conhecida como transcendentalismo, na literatura americana do século XIX.

Além do notável valor filosófico dos textos, também o contexto é extremamente rico e diverso. Os Estados Unidos desses tempos traz consigo tradições e características construídas por uma história relativamente recente de independência, revolução e consolidificação política e econômica e esse conjunto de características se quer e se faz mostrar muito desvinculada do “padrão europeu” de pensamento político e jurídico.

Destacadamente, o período definido como “renascimento americano” enuncia a singularidade do ambiente cultural dos EUA, sua emancipação e sua potencialidade4. É nos discursos realizados pelos “letrados americanos” que se encontravam fundidos os debates sobre os deveres civis, sobre o direito natural e sobre a democracia popular, mas também sobre a religião, a moral e a ciência modernas, tudo, em geral, sem profundas distinções entre as propostas científico-filosóficas, as criações da estética artístico-literária e até mesmo o ministério religioso.


Questão da análise densa das fontes literárias

Para uma análise densa de um texto-problema como este acima, aspectos que destacam a autonomia da obra literária devem ser destacados. Foi de maneira muito diversa, em comparação com os juristas e filósofos europeus, que os escritores americanos expuseram os problemas de uma época marcada pelo desenvolvimento econômico, pela expansão estatal, pela escravidão e pela perplexidade do homem comum perante o desencantamento do mundo.

Não fora através de uma rigorosa análise teórica que esses autores manifestaram suas posições e trouxeram suas propostas para o público e para o debate político, mas sim por via de um sincretismo discursivo que se caracteriza pelo apelo retórico embasado na fusão entre filosofia (política, da história, da ciência) com a literatura de prosa e de poesia.

Assim, diferentemente da leitura lógica e formal – de uma hermenêutica analítica – lançada sobre os textos jurídicos da tradição européia – marcados pela especificação dos termos e dos elementos teóricos delimitados em disciplinas cientificamente estruturadas – a interpretação dos textos aqui estudados, dos transcendentalistas norte-americanos, deve seguir então os mesmos critérios retóricos destes discursos enunciados, através de uma indissociação entre os gêneros da filosofia e da literatura – por uma hermenêutica sintética, por assim dizer.

Em outras palavras, para a melhor compreensão de um texto que enuncia conteúdos essencialmente filosóficos (da teoria política e do Direito) estruturados em um discurso amplamente retórico, deve-se levar em consideração que a análise dedicada ao texto não pode buscar um enquadramento cientifico paralelo ao modelo de análise adotado pela ciência do Direito positivo, e que as propostas daqueles textos transcendentalistas dificilmente se mostram teórica e logicamente estruturadas de modo a derivar suas conclusões “verdadeiras” das suas premissas “verdadeiras”; mais do que isso, buscam o sucesso retórico de suas posições através dos mais diversos recursos literários.

Por isso, aqui já se propõe uma junção entre a análise literária e a análise filosófica para a interpretação de um texto de tais características, pois “assim como a filosofia e a ciência não constituem universos próprios, tampouco a arte e a literatura constituem um império da ficção que pudesse afirmar sua autonomia em face do texto universal” (HABERMAS, 2002, p. 268)5 e, desta forma, tanto a lógica quanto a retórica do discurso são elementos significativos para o estudo desses textos.

Esta base de análise literária serve não somente aos textos transcendentalistas, mas também para a interpretação compreensiva das diversas fontes escritas utilizadas na pesquisa. Não obstante a análise literária das fontes, a pesquisa também exerce um esforço no sentido de reconstruir o contexto do discurso como problema para a história do direito.


Fundamentos filosóficos do discurso

As propostas dos filósofos como Emerson e Thoreau para a sociedade americana pertenciam com um maior ou menor grau de independência a uma corrente de pensamento comum na Nova Inglaterra, chamada de transcendentalismo. As escolas americanas do inicio do século XIX debatiam doutrinas morais e filosóficas que de certa forma contrapunham a produção intelectual dominante na Inglaterra, o empirismo epistemológico e o utilitarismo moral.

Logo, a formação cultural e acadêmica dos pensadores liberais americanos como os transcendentalistas seria profundamente envolvida pela negação da tabula rasa, e a construção de uma proposta moral baseada no pensamento do indivíduo que percebe as verdades filosóficas através do exercício do próprio entendimento. Nas palavras de HOWARD:

“It [a tabula rasa] violated the well-established American belief in self-evident truths, and Harvard would have none of it as an absolute principle. The hard-headed New Englander was willing to assume that the external world was self-evident real, most of then were quite willing to accept God on the same basis, and they have found a school of kindred souls in Scotland who were willing to assert as much in an aggressive philosophical system” (1972. p. 138).

A base do pensamento moral e filosófico dos liberais americanos da corrente de Emerson e de Thoreau se sintetiza na doutrina que diz que a verdade é manifesta6 e acessível ao senso comum por todos os homens. O próprio Emerson conheceu a chamada Scottish Common-Sense school of philosophy, que defendia que todos os seres humanos, em todos os tempos e lugares, tinham um senso comum de realidade, de moralidade e de beleza ideal, destacando o papel determinante de toda a cultura sobre os aspectos da hermenêutica, da estética e da ética7.

Para Emerson, portanto, a consciência agiria como uma faculdade racional que transcendia o “entendimento” lockeano e daria acesso à natureza, ao conhecimento material do mundo através do conhecimento do próprio espírito da razão humana. O estudo da essência humana e da natureza se dá na relação entre esses dois elementos – o homem e a paisagem – mediados pelo pensamento. O conhecimento filosófico que é típico da cultura americana é a ênfase do estudo da natureza como fonte da verdade. Na análise de Fernandes Alves,

Se na tradição inglesa as primeiras obras se reportam aos séculos XVII e XVIII, na América a escrita sobre natureza surge associada à curiosidade acerca do Novo Mundo descoberto. Aos exploradores, cientistas e naturalistas eram pedidos mapas e inventários; dessas acções resultou a ideia de que a América era sobretudo natureza. Na base da escrita sobre a natureza encontra-se a vontade de narrar uma realidade completamente nova aliada à procura de palavras e perspectivas que efectivamente traduzam essa nova circunstância do homem no Novo Mundo. Consequentemente, a natureza e a forma – paradoxal – como tem sido lida e interpretada constitui um elemento essencial da matriz cultural americana (2006).

Esse conhecimento da existência não se confunde com o conhecimento das ciências exatas (ou naturais). Ele se baseia na vivência da natureza e da humanidade, não é uma experiência empírica objetiva. A experiência da paisagem, dos próprios atos e pensamentos pertence ao universo das sensações, mas não pode ser mesurada ou determinada em quantidades.

Não nos pode surpreender, portanto a ocorrência cultural de uma espécie de “regresso à natureza”, levado, por vezes, a formas radicais, como foi o caso do isolamento de Thoreau, durante dois anos, num bosque nas vizinhanças do lago Walden, perto de Concord, no Massachusets. Na obra que esse influente pensador norte-americano dedicou ao seu exílio voluntário numa paisagem, nessa altura, ainda natural, as razões apresentadas apontam para um dos desiderados patentes noutras meditações filosóficas sobre a paisagem, a saber, o desejo por uma vida autêntica e plena (SOROMENHO-MARQUES, 2001, p. 153).

É a partir do juízo crítico, da reflexão, que o filósofo transcedentalista encontra em si a idéia de transformação e de reconstrução como exigência.

Este é o âmago do livro de Thoreau; o autor parte da natureza para fazer o homem olhar-se a si mesmo, ou seja, o seu pensamento responde às associações que a paisagem lhe suscita. Se as águas de Walden são serenas, já as dos rios remetem para a passagem, para a fluidez: “Há no mundo um fluxo incessante de novidades” e “a vida em nós é como a água no rio”: repleta do que não sabemos (FERNANDES ALVES, 2006).

No ato de pensar transforma a si e assim não é mais capaz de se omitir em relação ao mundo.

Textos como The American Scholar (EMERSON; WHICHER, 1957; EMERSON; MASTERS, 1965) reivindicam ara o pensamento americano um título de original e independente. Para Emerson, o ser humano é capaz de compreender as leis da natureza, que são a organização das coisas do mundo que se inter-relacionam e interagem com aquele ser humano; essas leis são as leis do seu próprio pensamento.

Por isso, Emerson afirma que as sentenças conhecer a natureza e conhecer a si mesmo fazem parte do mesmo enunciado. Aquilo que os homens discutem, que é sempre tema de estudo e dedicação entre os pensadores, está sempre ligado à reprodução do que outrora se encontrou na busca por uma verdade qualquer. A filosofia, a história, os livros em geral adquirem este papel de caminho da verdade; mas a verdade não é reproduzida como as folhas de escrito, ela é experimentada constantemente no ato de pensar a vida, quando a vida passa a ser ela mesma uma manifestação da verdade.


O indivíduo frente ao Estado:

Existe um Estado em expansão. O contexto é a metade do séc. XIX. Os EUA têm um projeto nacional-expansionista; defende a criação de um exército permanente e promove intencionalmente uma guerra contra o México. Um sexto da população é composta por escravos e através de leis o governo de Massachusetts condena criminalmente aquele que ajuda escravos fugidos. As instituições políticas Estatais passam a regular a vida do indivíduo de forma mais freqüente em uma época que isto ainda causava estranheza.

O indivíduo, portador de um potencial moral original e espontâneo, é impedido formalmente de exercer uma conduta própria; é obrigado por lei a auxiliar o Estado na guerra contra o México e é proibido de auxiliar um ser humano em condição de escravidão a se libertar. Esse homem sofre uma coação irresistível a todo o instante. A população acompanha sempre os resultados da guerra e as votações das leis através da imprensa.

O jornal diariamente enlaça as pessoas com a casa do governo, com as exportações e importações, com os heróis de guerra e suas conquistas. A política e o legislador decidem não sobre valores humanos, mas valores financeiros, sobre o comércio e sobre os impostos. A lei do Estado define o homem que é livre e o que é escravo, mas não é a lei que liberta o homem; nestas condições, é o homem que deve se libertar da lei.

Quando tudo na sociedade gira em torno do pensamento econômico, as pessoas passam a medir suas vidas e seu tempo pela utilidade e pelos resultados. Trabalho e produção, ordem e progresso, a nação levanta uma bandeira, um projeto, e os homens marcham para o oeste, por ouro e por riqueza. Entre os indivíduos o que há é o comércio, nas eleições é um façam suas apostas, o diário de notícias é a nova bíblia – e é no Diário que se perde a compreensão do Eterno.

É assim que se apresenta o contexto social que o pensamento de Thoreau se contrapõe (THOREAU; PAUL, 1962; THOREAU; DREISSER, 1965), e é esse panorama que se deve levar em conta para analisar os antagonismos entre a literatura vanguardista americana de moralização e elevação do humano no político e no social e os movimento políticos proto-intervencionistas presentes na ordem liberal americana da primeira metade do século XIX.


Referências bibliográficas

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THOREAU, H, PAUL, S. Thoreau: a collection of critical essays. Englewood Cliffs: Prentice-hall, inc., 1962.


Notas

1 “Alexander Hamilton, o primeiro Secretário do Tesouro, cuja campanha veemente levou o Estado de Nova York a aderir à Constituição, era o líder dos federalistas. Thomas Jefferson, o primeiro Secretário de Estado da União, redator da Declaração de Independência, era o porta-voz e o filósofo dos republicanos” (RÉMOND,1989).

2 Neste sentido atente-se principalmente sobre os conceitos Traditionale Herrschaft e Haushalt em WEBER, Max. Wirtschaft und Gesellschaft: Grundriss der verstehenden Soziologie, 1922, já disponível on-line em: http://www.textlog.de/weber_wirtschaft.html, acesso em 14 de março de 2009.

3 O “imposto de renda” americano, o income tax, só seria criado nos EUA no ano de 1862, sob uma taxação que variava de três a cinco por cento dos ganhos anuais de cada cidadão que ganhasse mais de 600 dólares por ano.

4 “O período de 1829 a 1860 tem recebido dos historiadores diversas designações: Marrett Wendell chamou-o ‘O Renascimento da Nova Inglaterra’, Lewis Mumford ‘A Idade de Ouro’. Mas, qualquer que seja a qualificação adotada, uma coisa é certa: foi a mais destacada fase literária desta região. Em seu transcurso os literatos de Boston e Cambridge, Concord e Salem iniciaram a divulgação de suas idéias sobre religião e natureza humana, democracia e homem comum, progresso industrial e expansão territorial do país, escravatura e Guerra Civil ou ciência e desenvolvimento humano”. (BLAIR, HORNBERGER, STEWART, Breve história da literatura americana. p. 81)

5 . Ao discutir a proposta desconstrucionista de Derrida, Habermas destaca que, sob um ponto de vista moderno e bem fundamentado, poder-se-ia aceitar as seguintes premissas: 1) “a crítica literária não é primariamente uma atividade científica; ela obedece aos mesmos critérios retóricos que seus objetos literários; 2) tampouco existe uma diferença de gênero entre filosofia e literatura, de modo que em seus conteúdos essenciais os textos filosóficos tornam-se acessíveis para uma crítica literária; 3) a precedência da retórica sobre a lógica significa a competência geral da retórica para as qualidades universais de uma relação textual abrangente e na qual se dissolvem, em última instância, todas as diferenças de gênero(...)” (HABERMAS, 2002, pp. 268-9).

6 Sobre este termo e esta forma genérica de compreender as fontes do conhecimento e assim conseqüentemente a moralidade, e também a sua relação com o empirismo, ver POPPER, K. Acerca das fontes do conhecimento e da ignorância. In: ________. Conjecturas e Refutações. Coimbra: Almedina, 2006, pp. 40-5.

7 Neste sentido ver BRITO, E. Hermenêutica, estética e ética: quatro estudos introdutórios. Desterro: Nephelibata, 2006.



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COELHO, Fernando Nagib Marcos. Intervencionismo e liberalismo no discurso político norte-americano do século XIX. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 24, n. 5783, 2 maio 2019. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/72733. Acesso em: 29 mar. 2024.