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Lei nº 13774/18 e a incompetência absoluta do juízo monocrático para ex-militares

Lei nº 13774/18 e a incompetência absoluta do juízo monocrático para ex-militares

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O presente trabalho tem o objetivo de demonstrar que a competência, na Justiça Militar da União, para processar e julgar autores de crimes militares que, à época do crime, eram militares, será dos órgãos colegiados de julgamento de primeira instância.

1 INTRODUÇÃO

Nas recentes alterações legislativas do Direito Castrense, os anos de 2017 e 2018 foram pródigos.

Primeiro, conheceu-se uma importante ampliação do conceito de crime militar e a redefinição, em alguns casos, de competência para processar e julgar o crime militar doloso contra a vida de civil, nos termos da Lei n. 13.491, de 13 de outubro de 2017, publicada em 16 de outubro daquele ano.

Em sequência, por força da Lei n. 13.774, de 19 de dezembro de 2018, ocorreu uma profunda revisão da Lei de Organização da Justiça Militar da União, Lei n. 8.457, de 4 de setembro de 1992.

Sobre a primeira alteração, já houve conveniente abordagem pela doutrina e pela jurisprudência, ainda que alguns pontos ainda permaneçam sem conclusão pacífica, inclusive com questionamentos por via de ação direta de inconstitucionalidade.

Tímidas, por outro giro, ainda são as abordagens sobre as inovações trazidas pela Lei n. 13.774/18, sendo este o foco principal do raciocínio que se seguirá.

Em especial, pretende-se questionar compreensão corrente em primeira instância segundo a qual o licenciamento de militar da ativa que figure como réu em ação penal militar permite a alteração do órgão de julgamento do Conselho de Justiça (Especial ou Permanente) para o Juiz Federal da Justiça Militar.

2 AS PRINCIPAIS ALTERAÇÕES DA LEI N. 13.774/18

Como suscitado acima, a Lei n. 13.774/18 promoveu alterações na Lei n. 8.457/92 (LOJMU), que traz a organização e define algumas competências dos órgãos da Justiça Militar da União, de maneira que, advirta-se de início, que toda a discussão a ser travada não interessa, senão por questões didáticas ou eventual aplicação por analogia, às Justiças Militares dos Estados e do Distrito Federal.

Muito embora não tenha havido expressa alteração no Código Penal Militar (CPM) e no Código de Processo Penal Militar (CPPM), é evidente que, no caso deste, a leitura deve ser feita de maneira conjunta, com as necessárias adaptações. Exemplificando, para o âmbito da Justiça Militar da União, toda vez que o CPPM mencionar a figura do Juiz-auditor (v.g., art. 23), deve-se compreender como Juiz Federal da Justiça Militar, nova designação do cargo. Da mesma maneira, toda vez que o CPPM se reportar a alguma providência, competência etc. do Presidente do Conselho de Justiça (v.g., art. 385), embora pretenda se referir ao Oficial de maior posto ou mais antigo do colegiado, com a alteração promovida está, agora, a se referir ao Juiz Federal da Justiça Militar.

Mas quais foram as principais alterações trazidas pela Lei n. 13.774/18?

Reputa-se que as alterações mais relevantes sejam a reformulação da atividade de correição, agora capitaneada por um Ministro-Corregedor, a alteração de alguns critérios para o sorteio dos Conselhos de Justiça, a mudança da sua presidência, a nova competência de primeira instância para apreciar habeas corpus e habeas data e a inauguração do juízo monocrático, no curso da ação penal militar, em tempo de paz.

No que se refere à primeira alteração, sabe-se muito bem que as atividades de correição na Justiça Militar da União eram exercidas na Auditoria de Correição, por um juiz de primeiro grau, o Juiz-Auditor Corregedor. Agora, nos termos do art. 1º, II, da LOJMU, foi criada a Corregedoria da Justiça Militar, onde estará o Ministro-Corregedor, função própria do Vice-Presidente do Superior Tribunal Militar, nos termos da alínea “b” do art. 10 da mesma Lei. Para auxiliá-lo há o Juiz-Corregedor Auxiliar. Esvazia-se, assim, critica anterior em que a Correição junto às Auditorias nas Circunscrições Judiciárias Militares era feita por juiz par aos juízes-auditores.

Ademais, a alteração atribuiu ao Ministro-Corregedor possibilidades antes afetas ao Juiz-Auditor Corregedor e, neste movimento, revogou a alínea “c” do art. 14 da LOJMU. Essa alínea dispunha competir ao Juiz-Auditor Corregedor “nos autos de inquérito mandados arquivar pelo Juiz-Auditor, representando ao Tribunal, mediante despacho fundamentado, desde que entenda existente indícios de crime e de autoria”, pretensamente possibilitando o “desarquivamento” sem a promoção do Ministério Público Militar e, pior, com decisão já proferida e irrecorrível por autoridade judiciária competente. Tratava-se da segunda possibilidade de Correição Parcial, prevista na alínea “b” do art. 498 do CPPM, finalmente sepultada definitivamente por força de lei.

Sobre a alteração de alguns critérios para o sorteio dos Conselhos de Justiça, houve importante pormenorização, por exemplo, deixando claro que não concorrem a ele os oficiais dos gabinetes dos Comandantes de Força – alinhando-se à nova realidade da Lei Complementar n. 97, de 9 de junho de 1999 – e os oficiais capelães militares (alíneas “a” e “g” do § 3º do art. 19 da LOJMU.

Como já mencionado, em outra sensível alteração, a presidência dos Conselhos Especiais e Permanentes de Justiça passou a ser exercida pelo Juiz Federal da Justiça Militar, realidade mais adequada e que custou muito a chegar, uma vez que nas Justiças Militares dos Estados e do Distrito Federal, desde a Emenda Constitucional n. 45/04, a presidência é exercida pelo Juiz de Direito do Juízo Militar com excelentes resultados. Com efeito, em se tratando de órgão do Poder Judiciário e não de órgão de uma corte marcial, importante que a condução dos trabalhos, a polícia das sessões etc. estejam sob a batuta de um juiz togado, melhor conhecedor das minúcias e da liturgia do procedimento, sem demérito aos juízes militares.

Pelo art. 469 do CPPM, compete apenas ao Superior Tribunal Militar o conhecimento do pedido de habeas corpus. Assim, ainda que a autoridade coatora fosse a autoridade de polícia judiciária militar, na condução de um inquérito policial militar, por exemplo, a impetração deveria se dar perante a maior Corte Castrense. Adequadamente, a Lei n. 13.774/18 alterou essa situação, dando ao Juiz Federal da Justiça Militar a competência para julgar os habeas corpushabeas data e mandados de segurança contra ato de autoridade militar praticado em razão da ocorrência de crime militar, exceto o praticado por oficial-general (inciso I-C do art. 30 da LOJMU). Compete ainda ao Superior Tribunal Militar processar e julgar originariamente os pedidos de habeas corpus e habeas data contra ato de juiz federal da Justiça Militar, de juiz federal substituto da Justiça Militar, do Conselho de Justiça e de oficial-general (alínea “c” do art. 6º da LOJMU).

A alteração que mais interessa ao presente trabalho, entretanto, está na inauguração do juízo monocrático na Justiça Militar, frise-se, em empo de paz. Sim, porque já havia essa possibilidade em tempo de guerra para processar e julgar civis e praças, nos termos do inciso II do art. 97 da LOJMU.

Na atual redação do inciso I-B do art. 30 da mesma Lei, compete ao Juiz federal da Justiça Militar, monocraticamente, processar e julgar civis nos casos previstos nos incisos I e III do art. 9º do CPM, e militares, quando estes forem acusados juntamente com aqueles no mesmo processo. A competência dos Conselhos de Justiça, em adição, ainda está prevista nos incisos I e II do art. 27 da LOJMU, consistindo em processar e julgar oficiais, exceto oficiais-generais, nos delitos previstos na legislação penal militar, no caso do Conselho Especial de Justiça, e processar e julgar militares que não sejam oficiais, nos mesmos delitos.

Merece crítica a redação, de partida, ao mencionar o inciso I do art. 9º do CPM, porquanto a melhor compreensão impõe que o civil, assim como o militar inativo, apenas pode cometer crime militar quando houver subsunção nas hipóteses do inciso III desse mesmo artigo. Em outros termos, por expressa previsão do inciso III (“considerando-se como tais não só os compreendidos no inciso I, como os do inciso II”), ainda que se trate de crime militar do inciso I (“os crimes de que trata este Código, quando definidos de modo diverso na lei penal comum, ou nela não previstos, qualquer que seja o agente, salvo disposição especial”), deverá haver o enquadramento neste inciso, de maneira que não se mostra possível o cometimento de crime militar por civil diretamente no inciso I do art. 9º do CPM.

Outra crítica que se pode fazer está na não clareza da redação no que concerne à competência para processar e julgar militares inativos e ex-militares.

Como visto acima, ao tratar do Conselho Permanente de Justiça, o inciso II do art. 27 utiliza da palavra “militares” e não “praças”, diferentemente do inciso precedente que, ao tratar do Conselho Especial de Justiça menciona os “oficiais”. Com essa redação, pode-se inaugurar interpretação no sentido de que todos os oficiais, na ativa ou na inatividade, ao praticarem crimes militares serão julgados pelo Conselho Especial de Justiça, enquanto praças, somente as da ativa seriam julgadas pelo Conselho Permanente de Justiça, isso com a aplicação do art. 22 do CPM.

Equivocada essa compreensão. Em primeiro lugar, a competência trazida pelo art. 30 da LOJMU é restringida a civil, onde, obviamente, não se enquadra praça na inatividade. Em segundo lugar, embora o art. 22 do CPM conduza à interpretação de que a palavra “militar” sempre se refere a militar da ativa (pessoa “incorporada às Forças Armadas”, no termos do Código), sua aplicação está restrita apenas ao próprio CPM (“para efeito da aplicação deste Código”), em interpretação autêntica contextual, não se espraiando para outras normas, ainda que qualificadas como normas castrenses.

Em conclusão, portanto, avaliando os arts. 27 e 30 da LOJMU, crime militar praticado por oficial da ativa ou inativo, exceto oficial-general, quando haverá competência originária do Superior Tribunal Militar, será processado e julgado pelo Conselho Especial de Justiça; quando for praticado por praça da ativa ou na inatividade será processado e julgado pelo Conselho Permanente de Justiça; finalmente, em sendo o caso de prática de crime militar por civil, a competência será monocrática, do Juiz Federal da Justiça Militar, que também será competente para processar e julgar oficiais e praças, da ativa ou na inatividade, quando em concurso com civil.

Entretanto, a lei não explicita – e talvez nem devesse fazê-lo – qual órgão será competente para processar e julgar os casos em que, no momento do crime, o autor era militar, mas, no curso da persecução, perde essa condição por algum ato administrativo ou judicial, ostentando a condição de ex-militar.

Diante dessa questão, obviamente, duas posições podem surgir.

A primeira entendendo que no exato instante em que o autor do crime se torna ex-militar, passa à condição de civil e, portanto, inaugura-se a competência monocrática. Esta a visão que parece dominar na primeira instância do Poder Judiciário castrense, qual ocorre na 3ª Auditoria da 3ª CJM, em Santa Maria/RS.

Em outra vertente, pode-se compreender que a fixação da competência se dará no momento da prática do delito, não importando que o autor perca a condição de militar no curso da persecução, seguindo a competência colegiada. Esta a interpretação mais adequada, como se demonstrará adiante.   

3 O QUESTIONAMENTO SOBRE O JULGAMENTO DE CIVIS PELA JUSTIÇA MILITAR

A justificativa de encaminhamento do Projeto n. 7.683/2014 – que originou a Lei n. 13.774/18 –, consignada pelo Superior Tribunal Militar, dispõe:

Nesse contexto, destaca-se a necessidade do deslocamento da competência do julgamento dos civis, até então submetidos ao escabinato dos Conselhos de Justiça, para o Juiz-Auditor: se por um lado é certo que a Justiça Militar da União não julga somente os crimes dos militares, mas sim os crimes militares definidos em lei, praticados por civis ou militares; de outro, é certo também que os civis não estão sujeitos à hierarquia e à disciplina inerentes às atividades da caserna e, consequentemente, não podem continuar tendo suas condutas julgadas por militares. Assim, passará a julgar os civis que cometerem crime militar.

Embora não declaradamente nesse sentido na justificativa – que se ateve à não vinculação do civil à hierarquia e disciplina – a inauguração da competência monocrática para processar e julgar civis na Justiça Militar da União – frise-se que a Justiça Militar dos Estados e do Distrito federal não julgam civis, por restrição expressa da norma constitucional, especificamente no § 4º do art. 125 da CF –, buscou, também, amainar as ácidas críticas sobre o fato de uma corte castrense julgar pessoas que não são militares.

Como as principais críticas se davam pelo fato de militares julgarem civis, realidade que existia pelos Conselhos de Justiça, em havendo a competência monocrática do Juiz Federal da Justiça Militar – cargo de natureza civil e concursado, sem vínculo com as Forças Armadas – nestes casos, as críticas seriam – e foram – esvaziadas.

A propósito do ataque à possibilidade de civis serem julgados pela Justiça Militar, sabe-se que o tema não é desconhecido e nem recente. Discutido há muito, foi concretizado já na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) n. 289, ajuizada pela Procuradoria-Geral da República no ano de 2013, em que pede que seja dada ao artigo 9º, incisos I e III, do CPM, interpretação conforme a Constituição Federal, a fim de que seja reconhecida a incompetência da Justiça Militar para julgar civis em tempo de paz e que esses crimes sejam submetidos a julgamento pela Justiça comum, federal ou estadual.  

Ainda pendente de julgamento pelo Supremo, deve-se frisar muito bem que o questionamento tinha por base a realidade dos Conselhos de Justiça e não a novel competência monocrática por Juiz Federal da Justiça Militar.

Em outra ocasião, o Ministério Público Federal, manifestou-se sobre o tema na Nota Técnica n. 08/2017/PFDC/MPF, da Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão (PFDC), que fez críticas ao então Projeto de Lei da Câmara n. 44/2016, que, aliás, resultou na Lei n. 13.491/17. Frise-se que a nota pretende atacar a questão sobre o processo e julgamento do crime doloso contra a vida de civil, mas, de maneira tangencial, reporta-se ao julgamento de civis por uma Justiça Militar que não possui autonomia em relação às Forças Armadas.

Parte a Nota Técnica de disposições de instrumentos de Direitos Humanos em que, pretensamente, haveria a restrição aplicável ao caso brasileiro, nos seguintes termos:

Tal compreensão tem amparo em prescrições constantes da Declaração Universal de Direitos Humanos, do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos, da Convenção Americana sobre Direitos Humanos – “Pacto de São José”, e da Convenção Europeia para a Proteção dos Direitos Humanos e das Liberdades Fundamentais, especificamente aquelas que garantem a todas as pessoas julgamento por tribunais competentes, independentes e imparciais.

O Relator Especial sobre a Independência dos Juízes e Advogados da ONU, Leandro Despouy, observou, contudo, em seu segundo relatório apresentado à Assembleia Geral, em 25 de setembro de 20068:

“Nos últimos anos o Relator Especial tem notado com preocupação que a extensão da jurisdição dos tribunais militares continua representando um grave obstáculo para muitas vítimas de violações de direitos humanos em sua busca por justiça. Em um grande número de países, os tribunais militares continuam julgando militares responsáveis por graves violações de direitos humanos, ou julgando civis, em franca violação dos princípios internacionais aplicáveis a essa matéria, e que em alguns aspectos transgridem inclusive suas próprias legislações nacionais” (g.n.).

Para justificar sua posição ademais, aponta alguns precedentes da Corte Interamericana de Direitos Humanos, na seguinte conformidade:

A Corte Interamericana de Direitos Humanos já teve a oportunidade de se pronunciar várias vezes acerca do alargamento inapropriado e indevido da competência da justiça militar nos seguintes precedentes: caso 19 COMERCIANTES (2004, parágrafos 164 a 177), caso ALMONACID ARELLANOS (2006, parágrafos 130 a 133), caso CANTORAL BENAVIDES (2000, parágrafos 111 a 115), caso DURANTE Y UGARTE (2000, parágrafos 115 a 118) e caso LAS PALMERAS (2001, parágrafo 51 a 54)9 . No caso Durand e Ugarte vs. Peru, consignou:

“117. En un Estado democrático de Derecho la jurisdicción penal militar ha de tener un alcance restrictivo y excepcional y estar encaminada a la protección de intereses jurídicos especiales, vinculados con las funciones que la ley asigna a las fuerzas militares. Así, debe estar excluido del ámbito de la jurisdicción militar el juzgamiento de civiles y sólo debe juzgar a militares por la comisión de delitos o faltas que por su propia naturaleza atenten contra bienes jurídicos propios del orden militar.

[…].

Registre-se, ainda, que a matéria foi bem sintetizada na sentença do caso Nadege Dorzema y otros Vs. República Dominicana, prolatada em 24 de outubro de 2012, sobretudo nos parágrafos 187 a 189:

“[…].

188. Esta jurisprudencia constante de la Corte también ha señalado que la jurisdicción militar no satisface los requisitos de independencia e imparcialidad establecidos en la Convención. En particular, la Corte ha advertido que cuando los funcionarios de la jurisdicción penal militar que tienen a su cargo la investigación de los hechos son miembros de las fuerzas armadas en servicio activo, no están en condiciones de rendir un dictamen independiente e imparcial.

[…]” (g.n.).

Em arremate, a PFDC emite posição que questiona a imparcialidade da Justiça Militar brasileira, nos seguintes termos:

No Brasil, a Justiça Militar – dada a sua composição e organização – não goza de autonomia em relação às Forças Armadas. Portanto, não pode ser reconhecida como isenta para processar atos graves que foram praticados por militares contra civis, por ordens das mais altas autoridades da instituição (g.n.).

Avaliando a posição da PFDC, extrai-se nitidamente uma visão equivocada da realidade das Justiças Militares no Brasil, e isso foi cirurgicamente apontado na Nota Técnica n. 02/2017, do Ministério Público Militar, cujos argumentos aproveitam-se aqui, em parte.

Os exemplos apreciados pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, citados na Nota da PFDC, referem-se a casos de cortes marciais, ou seja, situações em que os órgãos de julgamento integram a estrutura das Forças Armadas. No Brasil, as Justiças militares integram o Poder Judiciário, nos termos dos arts. 123 a 125 da Constituição Federal, portanto não havendo relação de subordinação às instituições militares.

Embora reconheça essa estrutura, a PFDC insiste na tese de não autonomia das Justiças Militares, o que leva a outra impropriedade – para não dizer ofensa –, qual seja, ignorar ou considerar irrelevante a atuação do Ministério Público Militar e da Defensoria Pública da União na persecução criminal militar.

A reboque, a Nota Técnica ao acidamente questionar a imparcialidade da Justiça Militar, desconsidera que na promoção de justiça está o Ministério Público Militar – ou Ministério Público dos Estados e do Distrito Federal –, integrado por membros aprovados em rígido certame e detentores de cargo de natureza civil – aliás, exatamente como ocorre com os membros do Ministério Público Federal –  que certamente busca a correção de eventuais desvios na distribuição de justiça, com os recursos pertinentes.

Igualmente, olvida-se a PFDC do importante e essencial papel da Defesa – majoritariamente exercida pela Defensoria Pública da União na Justiça Militar da União – que, de maneira aguerrida e competente, busca a correção de equívocos nas Decisões, não raramente alcançando o Supremo Tribunal Federal.

Seja como for, as críticas ao julgamento de civis pela Justiça Militar da União perdem o chão com a competência monocrática do Juiz federal da Justiça Militar, exceto, claro, se continuarem a entender, ofensivamente, que não apenas os membros do Ministério Público Militar e da Defensoria Pública da União vinculam-se às Forças Armadas, mas também os Juízes Federais da Justiça Militar, cargo provido também após aprovação em rigoroso concurso de títulos e provas.    

4 DA COMPREENSÃO SOBRE O PROCESAMENTO E JULGAMENTO DE EX-MILITARES À LUZ DA NOVA LEI

Para que haja objetiva explanação, necessário resgatar a exata delimitação da situação a ser enfrentada. Trata-se do caso em que o autor, no momento do delito, possui a condição de militar (da ativa ou inativo) e, no curso da persecução criminal perde essa condição.

O exemplo mais recorrente é o do militar em prestação do serviço militar inicial que pratica o crime militar e, no curso do processo, é licenciado pela administração militar.

No caso de autores que eram militares à época do delito e que, ulteriormente, por qualquer razão, tenham perdido essa condição, a interpretação deve ser no sentido de que deve haver o início ou o seguimento do processo perante o escabinato.

Caso ainda não tenha havido recebimento da denúncia, ao recebê-la, o Juiz Federal deverá convocar ou sortear o Conselho de Justiça, conforme o caso. Caso já exista processo em curso e, então, ocorra a perda da condição de militar do réu, deverá o processo seguir sob a competência do colegiado.

Não é, entretanto, o que vem ocorrendo em grande parte das Auditorias das Circunscrições Judiciárias Militares.

Nos processos já instaurados, por exemplo, por via de Despacho, os Juízes Federais da Justiça Militar estão dissolvendo (ou deixando de convocar) os Conselhos e seguindo em competência monocrática – em alguns casos, utilizam-se da expressão “avocar” o processo, embora tenham a mesma hierarquia do órgão colegiado, como órgão julgador.

Nestes casos, com o devido respeito, já ocorre uma primeira afronta à competência. O órgão jurisdicional competente para processar e julgar o caso, a partir do recebimento da denúncia, foi o colegiado, o escabinato, cabendo apenas a ele, a partir de então, nos exatos termos do inciso V do art. 28 da Lei nº 8.457/92, “decidir as questões de direito ou de fato suscitadas durante instrução criminal ou julgamento”.

Ainda que se entenda que a competência para processar e julgar ex-militares seja do juiz federal da Justiça Militar – com o que não se concorda, mas apenas se coloca como argumento de reflexão – a decisão pela incompetência do escabinato deve ser declarada por ele próprio, posto se tratar de questão de direito enfrentada após o recebimento da denúncia.

Em uma frase, parafraseando parecer irretocável do Subprocurador-Geral de Justiça Militar Clauro Roberto de Bortolli, em manifestação nos autos do Recurso em Sentido Estrito nº 103-31.2019.7.00.0000: o Conselho Permanente de Justiça é competente, inclusive, para reconhecer sua incompetência.

Ao decidir monocraticamente pela competência monocrática - permissa venia para as palavras repetidas – o Juiz Federal pratica ato de competência do Conselho, nos exatos termos do acima citado inciso V do art. 28, ou, em outras letras, invade competência do Conselho Permanente de Justiça, como já decidiu essa Corte na Correição Parcial nº 7000264-75.2018.7.00.0000, julgada em 22 de maio de 2018, sob relatoria do Ministro Luis Carlos Gomes Mattos, cuja ementa se transcreve:

CORREIÇÃO PARCIAL. QUESTÃO CUJA RESOLUÇÃO COMPETE AO CONSELHO PERMANENTE DE JUSTIÇA. NULIDADE DE DECISÃO MONOCRÁTICA. DEFERIMENTO EM PARTE. Na exata dicção do artigo 28, inciso V, da Lei nº 8.457/1992, compete aos Conselhos de Justiça “decidir as questões de direito e as de fato suscitadas durante a instrução criminal ou Julgamento”. A Juíza-Auditora, ao decidir pela “sustação do processo”, invadiu a competência do Conselho Permanente de Justiça, chamando, para a hipótese, a nulidade preconizada no artigo 500, inciso I, do Código de Processo Penal Militar. Em que pese ter sido rotulado pela Magistrada a quo como “despacho mero expediente”, o ato questionado é efetivamente uma decisão, mais precisamente uma decisão interlocutória simples, em face de conter inescondível carga decisória, resolutiva de sua questão de fato e de direito suscitada pelas partes no curso do Processo. Deferimento, em parte, da Correição Parcial para anular o ato judicial atacado e para determinar que os requerimentos do MPM e da DPU sejam submetidos à apreciação do Conselho Permanente de Justiça, a quem cabe decidi-los. Decisão unânime. (g.n.).

Retomando a questão principal, repita-se que cabe ao escabinato processar e julgar ex-militares, desde que ostentassem a condição de militar na época do delito, mesmo diante da nova redação dos arts. 27 e 30 da Lei nº 8.457/92.

Autoriza essa conclusão o fato de a lei processual penal militar – embora por meio da Lei nº 8.457/92, não se pode negar o cunho processual penal militar das disposições em avaliação – adotar um critério penal para definir a competência, atrelando a condição do agente no momento do delito, ao se referir aos incisos I e III do art. 9º do CPM, ainda que se critique a menção ao inciso I, como acima exposto.

Em outros termos, o que importa para fixar a competência monocrática é o instante em que o crime é cometido, encontrando sua subsunção nos citados incisos I ou III. Sendo civil naquele instante, fixa-se a competência monocrática; sendo militar, no mesmo momento, haverá competência do escabinato.

A justificativa de encaminhamento do Projeto que resultou na lei 13.774/18, evidencia essa preocupação com o momento do delito, sendo prudente repetir o trecho essencial:

Nesse contexto, destaca-se a necessidade do deslocamento da competência do julgamento dos civis, até então submetidos ao escabinato dos Conselhos de Justiça, para o Juiz-Auditor: se por um lado é certo que a Justiça Militar da União não julga somente os crimes dos militares, mas sim os crimes militares definidos em lei, praticados por civis ou militares; de outro, é certo também que os civis não estão sujeitos à hierarquia e à disciplina inerentes às atividades da caserna e, consequentemente, não podem continuar tendo suas condutas julgadas por militares. Assim, passará a julgar os civis que cometerem crime militar.

Teleologicamente interpretando, tem-se que o texto transmite a preocupação com o momento de cometimento do delito (“...julga somente os crimes dos militares, mas sim os crimes militares definidos em lei, praticados por civis ou militares...”) e que houve o cuidado com aquele que nunca esteve atrelado a valores de caserna (“...civis não estão sujeitos à hierarquia e à disciplina inerentes às atividades da caserna...”).

No caso de ex-militares, que chegam a essa condição por qualquer razão, tem-se que a hierarquia e disciplina, no momento do crime, foram efetivamente violadas, ainda que de forma mediata, pelo autor que era militar, situação que não é reparada com a simples perda da condição de militar do autor. No caso de civis, no momento da prática do delito – embora a hierarquia e a disciplina sejam valores constitucionalmente consagrados e, portanto, é um dever de todos assimilá-los e protegê-los –, não estão eles sujeitos aos rigores que envolvem a hierarquia e a disciplina, argamassa que dá solidez aos fundamentos das instituições militares.

Essa interpretação, adicione-se, já está versada, após detido estudo, no âmbito do Ministério Público Militar, notadamente pela Câmara de Coordenação e Revisão que emitiu enunciado sobre o assunto. Trata-se do recente Enunciado nº 19 – CCR/MPM, de 12 de fevereiro de 2019, verbis:

Para aferimento da competência dos Conselhos de Justiça e do Juiz Federal da Justiça Militar, órgão judiciais da 1ª Instância da Justiça Militar da União, nos termos do art. 27 e art. 30 da LOJM (Lei nº 8.457, de 04/09/1992, com a redação dada pela Lei nº 13.774, de 19 de dezembro de 2018) deve ser considerada a condição do agente (civil ou militar), no momento do fato, não alterando esta competência a posterior modificação de tal condição.

5 DO JUÍZO MONOCRÁTICO PARA EX-MILITARES E A AFRONTA AO PRINCÍPIO DO JUIZ NATURAL E À SEGURANÇA JURÍDICA

Impõe-se, ainda, destacar que a manutenção do processo monocraticamente conduzido, no caso de ex-militares, fere o princípio do juiz natural ou legal, extraído dos incisos XXXVII (“não haverá juízo ou tribunal de exceção”) e LIII (“ninguém será processado nem sentenciado senão pela autoridade competente”) do art. 5º da Constituição Federal.

A clarear o conteúdo desse princípio, tem-se que ele

“pode ser resumido na inarredável necessidade de predeterminação do juízo competente, quer para o processo, quer para o julgamento, proibindo-se qualquer forma de determinação de tribunal para casos determinados. Na verdade, o princípio em estudo é um desdobramento do princípio da igualdade. Nesse sentido, Pontes de Miranda aponta que a ‘proibição dos tribunais de exceção representa, no direito constitucional contemporâneo, garantia constitucional: é direito ao juízo legal comum’, indicando vedação à discriminação de pessoas ou casos para efeito da submissão a juízo ou tribunal que não o recorrente por todos os indivíduos”[1].

Sabidamente, a Justiça Especializada, como a Castrense, pré-definida legalmente, sem a escolha de juízo ou órgão ocasionalmente, está em alinho com o comando constitucional.

Entretanto, admitir que a perda da condição de militar mude automaticamente a competência para o juízo monocrático, é permitir que o acusado escolha, em momento que lhe aprouver, o órgão de julgamento, ferindo o princípio constitucional em comento, possibilitando suprimir do escabinato a apreciação de importantes fatos.

No espectro de proteção do princípio do juiz natural, em outros termos, está uma garantia de que não se poderá, no Poder Judiciário, escolher determinado órgão julgador para apreciar a questão, sob pena de colocar em risco à tão necessária imparcialidade do magistrado.

Nesse sentido, embora em outro contexto, menciona a decisão monocrática do Ministro Alexandre de Moraes, com arrimo em seu notável conhecimento constitucional, no Habeas Corpus nº 142.926/GO, datada de 26 de abril de 2017:

Incognoscível o pedido. Ambas as Turmas do Supremo Tribunal Federal já decidiram que não é passível de conhecimento o habeas corpus impetrado contra decisão monocrática proferida por Ministro de Tribunal Superior. É que, não exaurida a jurisdição do tribunal prolator, o ajuizamento do habeas corpus diretamente nesta Suprema Corte, além de ensejar indevida supressão de instância, traduz-se em evidente afronta ao princípio do juiz natural, pois faculta ao impetrante escolher o órgão jurisdicional revisor da decisão impugnada (cf. HC 122.402, Rel. Min. MARCO AURÉLIO, Relatora p/ Acórdão: Min. ROSA WEBER, Primeira Turma, DJe de 13/3/2017; HC 112.985, Rel. Min. MARCO AURÉLIO, Relator p/ Acórdão: Min. ROBERTO BARROSO, Primeira Turma, DJe de 2/3/2017; HC 138.248-AgR, Rel. Min. DIAS TOFFOLI, Segunda Turma, DJe de 22/2/2017; HC 137.191, Rel. Min. RICARDO LEWANDOWSKI, Segunda Turma, DJe de 29/11/2016) (g.n.).

É preciso que se advirta que a questão aqui tratada, em nada guarda relação com similares discussões onde presente o foro especial por prerrogativa de função, em que também é possível que a não mais detenção do cargo implique em alteração de competência. Nestes casos, tem-se que “a peculiar posição dos agentes políticos que justifica o tratamento diferenciado em relação aos demais agentes públicos”[2], não se comparando ao que ocorre simplesmente com a detenção ou não da condição de militar da ativa, com ethos diverso.

Em outro aspecto do princípio do juiz natural, fundamental a presença dos juízes militares para a escorreita distribuição de justiça, de maneira imparcial e com a necessária profundidade na análise fática, em crimes próprios de caserna, como no caso do crime de abandono de posto, do crime violência contra superior e do crime de deserção, crimes esses praticáveis por militares – que podem posteriormente perder essa condição. A presença dos juízes militares (os “Sabres”) é essencial para a exata compreensão do fato, em todas as suas peculiaridades, aliás, o que exatamente justifica a existência da Justiça Militar.

Óbvio que o juiz federal da Justiça Militar (a “Toga”) possui condições de apreciar o fato e julgá-lo de maneira imparcial, mas a presença dos juízes militares permite o conhecimento dos impactos do delito nas fileiras de maneira mais próxima. Suprimir essa competência dos Conselhos, apenas porque o autor do fato deixou de ser militar, implicará no julgamento de um delito típico da vida militar, sem a experiência dos juízes militares que compõem o escabinato. Este pode ser o início do fim da Justiça Militar, vez que, se os juízes militares não farão falta para a distribuição de justiça ao caso concreto, em crimes como os mencionados, para que, afinal, manter uma estrutura do escabinato, notadamente mais dispendiosa ao Erário?

Estará afetada também, em mais um argumento favorável à tese aqui advogada, a segurança jurídica. No caso da deserção, por exemplo, isso se torna gritante.

Imaginando, por exemplo, que se pacifique a tese de que o fato de ser militar da ativa na deserção de praças especiais e de praças não estáveis seja apenas condição de procedibilidade e não de prosseguibilidade – como decidido pelo Supremo Tribunal Federal, também em exemplo, no Agravo Regimental no Habeas Corpus nº 146.355/RJ, julgado pela Primeira Turma, em 22 de junho de 2018, sob relatoria do Ministro Alexandre de Moraes –, um processo de deserção pode conhecer momentos em que o réu é militar da ativa, deixa de sê-lo e volta à ativa.

No caso de uma deserção praticada, o autor será militar da ativa no momento do delito, mas com a consumação, em sendo praça não estável, será excluído do serviço ativo. Até este momento, como já ocorre, as deliberações na persecução criminal são de competência do Juiz Federal da Justiça Militar, porquanto ainda não há processo. Capturado o autor do fato, será ele reincluído e o Ministério Público oferecerá a denúncia que, recebida, submeterá o autor à competência do Conselho Permanente de Justiça. Caso no curso da instrução desse processo, cometa nova deserção, será, uma vez mais, excluído, o que, prevalecendo a interpretação contrária, remeteria a primeira deserção à competência monocrática. Caso seja capturado, novamente, será reincluído, firmando a competência para a segunda deserção, se houver denúncia recebida, do Conselho Permanente de Justiça, mas, também e mais importante, restituindo a competência do escabinato para a primeiro processo de deserção, e assim por diante.

Atente-se, assim, que, alternadamente, poderá haver em um mesmo processo, competência colegiada, monocrática, colegiada, monocrática etc., a depender de quantas deserções o autor esteja disposto a praticar, o que trará extrema insegurança jurídica às partes, não só à acusação, mas também à defesa, sem conhecer previamente o órgão de julgamento que pronunciará o decreto condenatório ou absolutório.

Aliás, a instabilidade apontada poderá fomentar o estabelecimento de uma estratégia de escolha do órgão julgador do crime de deserção, voltando-se à lesão ao princípio do juiz natural, sobre a qual acima já se discorreu.

6 DA DISCUSSÃO SIMILAR NAS JUSTIÇAS MILITARES DOS ESTADOS E DO DISTRITO FEDERAL

A discussão apontada, necessariamente, remete à busca de uma comparação com a Justiça Militar dos Estados e do Distrito Federal. O que ocorre nessa Justiça quando o autor do fato, obviamente militar do Estado, perde essa condição? O feito é remetido para a Justiça Comum?

Certamente que não!

Antes da exposição, porém, deve-se fazer uma diferenciação da temática do civil e o crime militar na Justiça Miliar da União e dos Estados (ou Distrito Federal).

A Justiça Militar Estadual, nos termos do art. 125, § 4º da Constituição Federal é competente apenas para processar e julgar militares dos Estados e do DF, mas o crime militar praticado por eles, militares dos Estados, contra civis, conhece a competência monocrática, com exceção do crime doloso contra a vida, de competência do Tribunal do Júri.

Na Justiça Militar da União, que pode ter por jurisdicionado qualquer pessoa, nos termos do art. 124 da Constituição Federal, o crime cometido por civil conhece a competência monocrática, com a nova realidade trazida pela Lei n. 13.774/16.

Em um simples raciocínio resumido: o crime militar praticado contra civil – exceto o doloso contra vida – na Justiça Militar Estadual, que apenas julga militares, por força constitucional, será de competência singular do Juiz de Direito da Justiça Militara; o crime militar praticado por civil, na Justiça Militar da União, por força de norma infraconstitucional, será de competência monocrática do juiz federal da Justiça Militar.  

“Realidades diversas”, poderá dizer quem fizer uma superficial análise, mas a questão fulcral para o ponto discutido é saber como é compreendido o autor do fato, militar da ativa, que pratique crime militar e é jurisdicionado da Justiça Militar Estadual, após superveniente perda do posto e de patente ou da graduação.

Repita-se a questão acima consignada, com maior detalhe: Considerando que pela Constituição Federal apenas o militar do Estado pode ser julgado pela Justiça Militar Estadual, com a perda da condição de militar, deverá a Justiça Castrense da Unidade Federativa remeter os autos para a Justiça Comum?

Em assentada jurisprudência, tem-se a resposta em sentido negativo.

Inaugure-se com uma mensagem do sítio eletrônico do Tribunal de Justiça Militar de Minas Gerais, segundo o qual, a “Justiça Militar estadual é competente para processar e julgar os crimes militares e ações judiciais contra atos disciplinares militares praticados pelos oficiais e praças da Polícia Militar e do Corpo de Bombeiros Militar, bem como os crimes cometidos por militares da reserva e reformados, nos casos especificados na legislação penal militar. Julga também o militar excluído (ex-militar) que tenha cometido crime militar, ainda naquela condição à época do fato[3] (g.n.). 

Essa afirmação encontra respaldo no entendimento de que a competência da Justiça Militar Estadual, como juízo natural, é fixada no momento da prática do fato, exatamente como acima se sustentou. Nesse sentido, tome-se, no Tribunal de Justiça Militar Paulista, a Apelação nº 6.649/13, julgada em 11 de junho de 2013, pela Primeira Câmara, sob relatoria do Juiz Cel PM Fernando Pereira:

POLICIAL MILITAR – Apelação Criminal – Seis policiais militares denunciados pela prática do crime de concussão – Decisão em primeiro grau que condenou três dos denunciados – Recurso de apelação – Preliminar de incompetência da Justiça Militar – Pleito requerendo a absolvição nos termos da primeira parte da alínea “a” do art. 439 do CPPM - Manifestação da Procuradoria de Justiça no sentido da absolvição por não existir prova suficiente para a condenação – Preliminar rejeitada – Juízo natural que se fixa à época do fato – Conjunto probatório permeado de dúvidas e incertezas sobre os fatos – Aplicação do princípio do “in dubio pro reo” – Reforma da Sentença para absolver os apelantes com base na alínea “e” do art. 439 do CPPM – Recurso de apelação que comporta parcial provimento (grifei).

A questão, frise-se, chegou ao Superior Tribunal de Justiça, onde a compreensão foi mantida, como se verifica no Habeas Corpus nº 20.348-SC, julgado em 24 de junho de 2008, que teve como Relatora a Ministra Maria Thereza de Assis Moura, assim se expressando:

PENAL. PROCESSUAL PENAL. HABEAS CORPUS. 1. CRIME MILITAR COMETIDO POR POLICIAL MILITAR DO ESTADO. COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA MILITAR ESTADUAL. DEMISSÃO ANTERIOR À INSTAURAÇÃO DO INQUÉRITO POLICIAL. IRRELEVÂNCIA. JUÍZO NATURAL QUE SE FIXA À ÉPOCA DO FATO. 2. RECURSO A QUE SE NEGA PROVIMENTO. 1. Crime militar cometido por militar no exercício da função. Em homenagem à garantia do juízo natural, a competência deve ser fixada sempre em relação à qualidade que o recorrente apresentava no momento do cometimento do fato, não podendo ser alterada por conta de alteração fática posterior (exoneração). 2. Recurso a que se nega provimento. (...) A garantia do juízo natural liga-se à ideia de anterioridade, devendo ser verificada à época do cometimento do crime, ou seja, qual o juízo que à época do cometimento do crime se mostrava competente. Nesse sentido, veja-se a mais abalizada doutrina:

“Em suma, excluindo-se, necessariamente, em matéria penal, os órgãos jurisdicionais ad hoc e ex post facto, a garantia do juiz natural, na Justiça Criminal, apresenta-se dupla, a saber: a) ao imputado confere a certeza da inadmissibilidade de processamento da causa e julgamento por juiz ou tribunal distinto daquele tido como competente à época da prática da infração penal; e, b) à jurisdição penal, a segurança de que os regramentos da unidade e do monopólio da administração da justiça, assim como o determinante da independência de seus agentes, não serão ameaçados pela constituição de tribunais ou de órgãos excepcionais e submissos a outro poder do Estado.” (Rogério Lauria Tucci, Direitos e Garantias Individuais no Processo Penal Brasileiro, 2ª ed., São Paulo, Revista dos Tribunais, p. 111) (g.n.).

Qual a distinção da situação enfrentada pela Justiça Militar dos Estados, desde há muito, para a atualmente enfrentada pela Justiça Militar da União?

Nenhuma, responde-se!

Aliás, se no caso da Justiça Castrense Estadual, em que a competência é definida pela Constituição Federal, tem-se a fixação do juízo natural com base na condição do autor na época do fato, com muito mais razão se deve adotar mesma compreensão no âmbito da Justiça Militar da União, em que a novel competência é disciplinada por lei ordinária.

7 CONCLUSÃO

Muito importante a atual busca de aprimoramento da legislação penal castrense (substantiva e adjetiva), consistindo em movimento que reconhece a importância dessa especializada área da ciência jurídica.

Entretanto, em se sabendo que a lei, por mais criteriosa que seja, sempre permite interpretações díspares, conflitantes, às vezes, deve-se ter muita cautela na sua aplicação ao caso concreto.

A interpretação não pode resultar de uma visão enviesada, marcada por preconceitos ideologicamente construídos, como a alegação de que militares são parciais em julgamento ao integrarem os Conselhos de Justiça.

Igualmente equivocadas, interpretações que são arrimadas em suposições espúrias de que os fins justificam os meios, como já se ouviu, por exemplo e infelizmente, que o Ministério Público prefere o julgamento pelo escabinato em função da maior propensão de o Conselho prover o postulado pelo Parquet. Trata-se de um argumento ardiloso, que justificaria uma afirmação não menos reprovável, segundo a qual os que entendem pelo juízo monocrático querem concentrar toda a deliberação nas mãos de apenas um julgador, apenas para que não sejam contrariados em suas decisões.

Ambas se equivocam. Ambas perdem de vista a principal razão de existência de um Estado-Juiz a substituir a vontade das partes, que não pode ser outra senão a pacificação de conflitos pela justa distribuição de justiça.

Neste trabalho, sem aderir a viés ideológico ou a suposições espúrias, buscou-se evidenciar os argumentos pelos quais se entende que a perda da condição de militar do indiciado ou do réu não alteram a competência do escabinato, mantendo a razão de existência da Justiça Militar.

Espera-se que os ataques a este posicionamento – que certamente virão – sejam igualmente preocupados com a justeza das decisões e com os princípios constitucionais que, com grandeza ímpar, dão as raias a serem seguidas pelo Direito Castrense.

REFERÊNCIAS

ASSIS, Jorge Cesar de. Crime militar & processo: comentários à Lei 13.491/2017. Curitiba: Juruá, 2018.

FOUREAUX, Rodrigo. A Lei 13.491/17 e a ampliação da competência da Justiça Militar. Disponível em https://jus.com.br/artigos/61251/a-lei-13-491-17-e-a-ampliacao-da-competencia-da-justica-militar. Acesso em: 04 fev. 2018.

LENZA, Pedro. Direito constitucional esquematizado. São Paulo: Saraiva, 2016.

MARREIROS, Adriano Alves. Lei 13.491/2017, uma breve análise sobre a mudança da natureza comum para militar de certos casos de crimes dolosos contra a vida: um resumo didático da confusão que se reinicia... Disponível em file:///C:/Users/rcoim/AppData/Local/Microsoft/Windows/INetCache/IE/OYF326G7/740512c5-adriano-marreiro.pdf. Acesso em: 04 fev. 2018.

MENDES, Gilmar Ferreira Mendes; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de direito constitucional. São Paulo: Saraiva, 2013.

NEVES, Cícero Robson Coimbra. Inquietações na investigação criminal militar após a entrada em vigor da Lei n. 13.491, de 13 de outubro de 2017. Revista Direito Militar, Florianópolis, n. 126, p. 23-28, set./dez. 2017.

NEVES, Cícero Robson Coimbra. Manual de direito processual penal militar. São Paulo: Saraiva, 2018.


[1] LENZA, Pedro. Direito constitucional esquematizado. São Paulo: Saraiva, 2016, p. 1222.

[2] Cf. MENDES, Gilmar Ferreira Mendes; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet.  Curso de direito constitucional. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 465.

[3] Disponível em http://www.tjmmg.jus.br/institucional-sp-576/competencia, acesso em 24Fev19.


Autor

  • Cícero Robson Coimbra Neves

    Promotor de Justiça Militar na Procuradoria de Justiça Militar de Santa Maria/RS. Membro colaborador da Comissão de Preservação da Autonomia do Ministério Público (CPAMP) junto ao Conselho Nacional do Ministério Público. Coordenador de Ensino do Ministério Público Militar junto à Escola Superior do Ministério Público. Professor da Faculdade de Direito de Santa Maria (FADISMA). Mestre em Direito Penal pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Mestre em Ciências Policiais de Segurança e Ordem Pública pelo Centro de Altos Estudos de Segurança da Polícia Militar do Estado de São Paulo.

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