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Polícia Civil: o dever de accountability na investigação criminal

Polícia Civil: o dever de accountability na investigação criminal

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Segurança pública é um dos grandes temas da atualidade, o qual perpassa, obrigatoriamente, pela boa administração da investigação criminal. Fatores como controle, produtividade e reconhecimento fazem parte do que se chama accountability, ou seja, prestação de contas.

Há muito se ouve falar na falta de estrutura das Polícias Civis estaduais, bem como o declínio que a investigação criminal está acometida no Brasil. Por todos, relembra-se o texto do Diretor-Presidente do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, Renato Sérgio de Lima, o qual em 2016 chegou a fazer o prognóstico que tal força policial seria extinta em cinco anos, assunto sobre o qual tivemos a oportunidade de expor no artigo intitulado Polícia Civil versus Polícia Militar.

É bem verdade que os Governos estaduais não têm investido na Polícia Investigativa, pois em todos os cantos do país o que se vê é o sucateamento de delegacias, a falta de equipamentos modernos, com uma apuração de fatos criminosos quase arcaica se comparada com países desenvolvidos. 

No entanto, talvez seja o momento de a Polícia Civil fazer uma autocrítica, na medida em que cada vez mais se tem exigido dos órgãos públicos, sobretudo na moderna concepção do Direito Administrativo,  accountability[i], compreendido como a obrigação imposta aos agentes e entidades públicos de responderem de forma fiscal, gerencial e programática quanto aos recursos que lhes foram conferidos a quem lhes acometeram tais recursos, ou seja, a sociedade.

Como se sabe, a Administração Pública passou por três fases principais, que podem ser assim (bem) resumidamente definidas: a Patrimonialista – o aparelho estatal funcionava como uma extensão do poder soberano, onde a res públicanão era diferenciada da res principis, trazendo como consequência a corrupção e o nepotismo; a Burocrática – que surgiu no século XIX, bem desenvolvida por Max Weber, como resposta ao patrimonialismo, em que o aparelho estatal passa a utilizar controles administrativos a priori para evitar a corrupção e o nepotismo. Constituem princípios fundamentais a profissionalização dos agentes, a ideia de carreira, a hierarquia funcional, a impessoalidade e o formalismo e, por fim, a Gerencial – surgida no século XX, como resposta à expansão das funções estatais, ao desenvolvimento tecnológico e à globalização. A reforma do aparelho estatal do Estado passa a ser orientada pela eficiência, com controles a posteriori de resultados e maior autonomia ao administrador.

Setores da Administração Pública, como a Polícia, ainda encontram dificuldades em avançar na segunda fase. Nesse aspecto, tem-se que a falta de sistematização dos dados sobre investigação criminal por vezes corrobora o mito da improdutividade, mas também dificulta a correta alocação de recursos públicos, a conformidade de equívocos gerenciais e o direcionamento da investigação porquanto política de segurança pública, com a consequente ausência de investimento em áreas como o combate ao crime organizado e à corrupção. 

Não se mostra crível que a principal fonte de dados sobre a Segurança Pública seja uma entidade privada (Fórum Brasileiro de Segurança Pública - FBSP, cuja natureza jurídica é de associação) que, embora faça um trabalho excepcional, não retira a responsabilidade da Polícia Civil sistematizar seus dados, demonstrando o que tem feito.

É preciso que toda a sociedade tenha acesso a dados policiais como:quantas ocorrências são registradas? Quantas delas são solucionadas? Qual a real produtividade da Polícia? Quantos policiais são necessários para solucionar um crime? Qual a produtividade da delegacia do seu bairro? Isso é accountabilityum dever de transparência e um direito do cidadão, calcado no princípio da publicidade. 

O Poder Judiciário, impulsionado pela criação do Conselho Nacional de Justiça – CNJ, parece já ter compreendido a importância dos dados, adotando programas como “Justiça em Números”, já avançando para a fase gerencial, quando busca a efetividade da tutela jurisdicional, a primazia da decisão de mérito, só para citar alguns recentes princípios trazidos pelo Novo Código de Processo Civil. Temas cobrados, inclusive, nos concursos públicos para Magistrados, considerando a importância da administração da Justiça. 

Urge que a Polícia Civil, igualmente, siga esse caminho, não só sistematizando os dados criminais, como também inserindo em concursos públicos para a carreira de Delegado de Polícia, e nos cursos de formação, matérias como gerenciamento de pessoas e a busca pela efetividade da investigação criminal.

Numa administração moderna do efetivo policial, se faz necessário o controle dos dados estatísticos como premissa, seguido da aferição da produtividade, com o reconhecimento dos bons profissionais, selando a ideia de meritocracia, sobre a qual está firmada a sociedade atual. 


CONTROLE

Como já mencionado, existe um dever de prestar contas por parte dos agentes públicos, modernamente chamado de accountabilityAssim, no âmbito da Polícia Judiciária Civil, esse dever de prestar contas perpassa pelo absoluto domínio do número global de ocorrências registradas, do número de ocorrência sob a responsabilidade de cada unidade policial, de servidores utilizados para cada conjunto de investigação realizada, bem como dos procedimentos realizados em comparação ao número de ocorrências,  sobretudo para a aferição da produtividade, até mesmo como análise da real necessidade orçamentária do órgão e aporte de maiores  recursos orçamentários. 

Desse modo, o controle desponta com um dos principais instrumentos de gestão responsável, consubstanciado na elaboração de dados estatísticos e fiscalização interna na produção autêntica dos dados, com a posterior divulgação desses dados à sociedade.

O processo de redemocratização do país, aliado ao surgimento de tecnologias da informação e comunicação, impõe e facilita a divulgação dos dados de segurança pública, seja por meio da mídia tradicional, seja com auxílio das redes sociais e acesso a sites institucionais.


A PRODUTIVIDADE NA INVESTIGAÇÃO CRIMINAL 

Considerando que a produtividade é fator essencial em qualquer organização, compreendida, no âmbito da Polícia Judiciária Civil, como a entrega de melhores resultados, solucionando crimes de modo a possibilitar, legalmente, a deflagração de futura ação penal e continuidade da persecução criminal por parte de outros órgãos, utilizando, para tanto, a menor quantidade de recursos possíveis, mantendo-se uma boa qualidade dos procedimentos, se faz necessária a criação de indicadores de desempenho de todas as unidades policiais e, mais ainda, de todas as equipes de investigação. 

Deste modo, a aferição da produtividade do Policial Civil não é mera discricionariedade do gestor, mas sim dever, consoante o atendimento do princípio constitucional da eficiência, sopesando-se as diferentes formas de atuação policial.

Não se pode olvidar que investigações têm diferentes graus de dificuldade, investimento de tempo e dedicação. Por isso, talvez seja tão difícil mensurar a produtividade na apuração de crimes. Incomparável, por exemplo, a apuração de um homicídio praticado por um grupo de extermínio com a apuração de uma simples ameaça, tampouco meses de investigação que culminam em grande apreensão de droga com a averiguação de lesão corporal leve entre vizinhos. Porém, apesar disso, todas as investigações têm a sua função social e merecem ser valoradas.

Da mesma forma, inquéritos policiais, termos circunstanciados de ocorrência, encaminhamento de medidas protetivas, prisões, apreensões de armas, de veículos furtados/roubados, de valores ilícitos, conciliações feitas em delegacias, tudo isso merece ser valorado com produtividade da Polícia Civil, pois demanda esforço, empenho  e abnegação no exercício da atividade policial.

Nesse sentido, sopesando que a Segurança Pública, que tem um dos seus sustentáculos consubstanciado na investigação policial séria e eficiente, a fim de proporcionar à sociedade a confiabilidade nos órgãos incumbidos na persecução penal, há que se reconhecer as diferenças existentes entre investigações de variados graus de dificuldade, bem como a necessidade de ponderação diferenciada de modo a atender justa e objetivamente critérios de produtividade.


O RECONHECIMENTO COMO TÉCNICA DE GESTÃO

Qualquer estudo raso que envolva administração de pessoas passa pela Pirâmide de Maslow,  desenvolvida pelo psicólogo norte-americano Abraham H. Maslow. Seu objeto era determinar o conjunto de condições necessárias para que um indivíduo alcance a satisfação, seja pessoal ou profissional[ii]. No nível quatro da pirâmide está a necessidade de estima, ou seja, de ser reconhecido pelos seus resultados, ganhar aumentos ou prêmios e ter sua opinião como profissional respeitada, fatores essenciais para a motivação.

Por outro lado, o reconhecimento por parte da Administração Pública e também por parte da sociedade, apesar de mecanismo simples de motivação dos servidores, raramente se verifica.

Por isso, impõe-se a necessidade de reconhecer o trabalho realizado pelos bons servidores à sociedade, tanto como forma de expor boas práticas aos demais Policiais, quanto para estimular a continuidade do bom serviço desenvolvido. 

Nessa senda, muito embora o Delegado de Polícia seja gestor da investigação e das unidades policiais, não age só, havendo que se reconhecer, igualmente, o trabalho de todos os Policiais envolvidos, é dizer, Agentes e Escrivães de Polícia, uma vez que fazem parte do processo produtivo, da mesma forma, impõe-se reconhecimento pelos serviços prestados.

Como outra vertente do reconhecimento há que se mencionar a compensação, pois muito embora haja certa dificuldade no setor público de compensação financeira direta, ante as limitações legais do administrador público, há formas eficazes e legais de implementá-la. 

Para além do reconhecimento, há que se compensar os Policiais Civis que se destaquem no exercício da função seja com premiações pertinentes, assim como oferta de recursos públicos para uma capacitação maior ainda, a exemplo de cursos, diárias, progressão e promoção funcional, entre  outros, de modo a atender o princípio administrativo da impessoalidade, especialmente pela adoção de critérios objetivos nessas bonificações. 


MERITOCRACIA

Como um dos critérios de Justiça e princípio ideal de organização administrativa moderna consubstanciada na eficiência, em que busca promover os indivíduos em função de seus méritos, a aferição da produtividade, o reconhecimento e a compensação daqueles servidores Policiais Civis que mais se ressaltarem no desempenho de suas funções prestigia a meritocraciafechando um ciclo administrativo virtuoso, como deseja a Constituição Federal, leis infraconstitucionais e a própria sociedade.

Desse modo,  há necessidade de praticar, efetivamente, critérios objetivos de eficiência e produtividade, duração razoável dos procedimentos policiais, mormente em observância aos princípios constitucionais estabelecidos no art. 5º, inciso LXXVIII e art. 37, caput, da Constituição Federal.

Relembra-se o papel relevante atribuído às Polícias Civis pela Constituição Federal, cujo objetivo precípuo é a apuração de infrações penais e o exercício das funções de Polícia Judiciária, nos termos do art. 144, §4º.

Assim, reafirma-se a necessidade de valorização do Policial Civil que se destaque, para além dos limites normais do exercício do cargo, de forma a atender os preceitos estabelecidos pela Constituição.

Conforme preceitua o texto constitucional, as Polícias Civis são dirigidas por Delegados de Polícia de carreira. Dirigir significa gerir, administrar, conduzir etc. Nesse prisma de ideias, além de presidir investigações, cabe aos Delegados gerir seus Policiais, administrando-os de modo a extrair seu máximo potencial, assim como prestar contas da atividade investigativa à sociedade, sob pena de se cumprir o prognóstico nefasto mencionado nas linhas iniciais deste texto. 


Notas

[i] O viés majoritário na política comparada: responsabilização, desenho institucional e qualidade democrática. Revista Brasileira de Ciências Sociais. Disponível em <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-69092007000100003&lng=enenandothers&nrm=iso>. Acesso em 02.05.2019.

[ii] Disponível em: https://www.sbcoaching.com.br/blog/qualidade-de-vida/piramide-de-maslow/.


Autor

  • Paulo Reyner Camargo Mousinho

    Delegado de Polícia Civil do Estado no Amapá. instrutor da Academia Integrada de Formação e Aperfeiçoamento do Amapá (AIFA). professor convidado da pós-graduação de Direito Penal da Escola Superior de Advocacia do Amapá (ESA/AP). Professor de cursos preparatórios para concursos públicos. Administrador do site Justiça & Polícia (juspol.com.br), autor do livro Peças e Prática da Atividade Policial pela editora Clube de Autores, coautor do livro Tratado Contemporâneo de Polícia Judiciária pela editora Umanos, autor de diversos artigos jurídicos sobre temas correlatos. Especialista em Política e Gestão em Segurança Pública pela Escola de Administração Pública do Amapá (EAP) em parceria com a Universidade Estácio de Sá. Presidente do Conselho Editorial da Revista Justiça & Polícia.

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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MOUSINHO, Paulo Reyner Camargo. Polícia Civil: o dever de accountability na investigação criminal. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 24, n. 5817, 5 jun. 2019. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/73954. Acesso em: 28 mar. 2024.