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A necessidade de relativização da impenhorabilidade do bem de família quando de elevado valor como meio de proteção ao direito fundamental de tutela executiva efetiva

A necessidade de relativização da impenhorabilidade do bem de família quando de elevado valor como meio de proteção ao direito fundamental de tutela executiva efetiva

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Quando o único bem do devedor é bem de família de elevado valor, estão em conflito direitos fundamentais do executado e do exequente, que devem ser sopesados por meio do postulado da proporcionalidade.

Sumário: 1 Introdução. 2 Do bem de família. 3. O princípio da dignidade humana e a efetividade da tutela executiva. 3.1 Da proteção da dignidade do devedor. 3.2 A tutela executiva como direito fundamental do credor. 4 A proporcionalidade como meio de solução do conflito. 5 Conclusão. Referências.

RESUMO: Este artigo utiliza uma abordagem qualitativa por meio de revisão bibliográfica, delimitando-se a pesquisa à Lei 8009/90 que trata da impenhorabilidade do bem de família, com o objetivo de responder o problema proposto quanto à possibilidade da penhora deste quando de elevado valor. Será demonstrado o conflito no caso concreto entre os princípios da dignidade humana  e o da tutela executiva efetiva, propondo-se o sopesamento destes através do postulado da proporcionalidade, argumentando a possibilidade do juiz ultrapassar as barreiras rígidas do regime da impenhorabilidade do bem de família sem comprometer a segurança jurídica, desde que seja respeitado o núcleo central da dignidade do devedor, já que o objetivo da lei é a proteção desta e não a manutenção do padrão de vida do executado.

Palavras-chave: Impenhorabilidade. Bem de Família. Dignidade. Efetividade. Proporcionalidade.


1 INTRODUÇÃO

A garantia de que determinados bens jamais sejam objeto de expropriação judicial tem o objetivo de limitar a pretensão à satisfação do credor na execução, havendo clara preocupação em manter a mínima dignidade do executado.

O presente artigo tem por objeto a análise do instituto jurídico da impenhorabilidade do bem de família, delimitando a pesquisa ao seguinte questionamento: É possível a penhora deste bem quando possuir alto valor econômico?

A proteção ao bem de família possui o escopo de proteger o direito à moradia da entidade familiar, em virtude desse objetivo entende-se que as exceções à impenhorabilidade devem ser interpretadas de forma restritiva, assim, por não existir permissão legal, a proteção deste bem, ainda que de elevado valor econômico, não poderia ser relativizada no caso concreto pelo magistrado.

Em contrapartida há quem entenda que a lei 8009/90 que regula a impenhorabilidade do bem de família, como qualquer outra que integra o ordenamento jurídico, não pode ser interpretada de maneira isolada devendo ser confrontada com todo sistema. Nesse contexto, o julgador não pode deixar de ter em mente que o objetivo da mencionada lei é preservar o patrimônio mínimo necessário à preservação da dignidade do executado e não a manutenção do seu padrão de vida.

A partir desta perspectiva, desde que seja preservado ao devedor valor suficiente para garantir a compra de moradia digna, a penhora do imóvel residencial de alto valor econômico deverá ser admitida. Para os que adotam tal posicionamento, a adoção do regime da impenhorabilidade absoluta do bem de família resulta em proteção exagerada do executado comprometendo a efetividade do processo executivo.

Em virtude da relevância do tema proposto decorrente das consequências jurídicas que podem resultar da adoção da relativização da impenhorabilidade no caso do imóvel de elevado valor econômico, faz-se de relevante importância desenvolver o presente tema e aprofundar reflexões no campo jurídico.

Este artigo busca demonstrar a necessidade da quebra de dogmas antigos e ultrapassados em relação ao instituto jurídico da impenhorabilidade do bem de família. A metodologia utilizada foi a abordagem qualitativa por meio de pesquisa bibliográfica, através de textos de livros, revistas especializadas e artigos, além da análise da legislação relacionada ao tema, que permite tomar conhecimento de material relevante.

O artigo foi dividido em 3 seções. Na primeira será abordado o instituto da impenhorabilidade do bem de família, delimitando seus aspectos mais importantes, destacando-se a sua inserção no processo civil brasileiro. Na segunda seção serão delimitados os princípios em conflito quando o único bem do devedor é definido como bem de família de elevado valor.

E por fim, na terceira seção será destacado como uma possível solução ao caso concreto a utilização pelo magistrado do postulado da proporcionalidade.


2 DO BEM DE FAMÍLIA

Coexistem na legislação civil duas espécies de bem de família, ambas segundo Gonçalves (2016), incidem sobre bens imóveis e móveis àqueles vinculados: o voluntário, resultado da vontade, regulado pelo Código Civil nos arts. 1711 a 1722; e o involuntário, decorrente de estipulação legal (Lei nº 8009/90).

O voluntário é estabelecido quando o proprietário tem dois ou mais imóveis residenciais e deseja constituir um deles como bem de família. Para tal fim, é necessário que a escolha seja formalizada mediante escritura pública sob a condição de não ultrapassar um terço do patrimônio líquido existente ao tempo da instituição. O autor citado pondera que o bem de família voluntário possui pouca aplicação prática, já que é raramente constituído, sendo modalidade subsidiária do bem de família obrigatório. “No regime atual, o bem de família legal tem por finalidade a proteção da moradia da família, enquanto o bem de família voluntário visa à proteção da base econômica mínima da família” (LOBO, 2017, p. 187). Mas se for constituído o bem de família voluntário, afasta-se a incidência do modelo legal, já que apenas um bem pode ser protegido contra à penhora.

A lei nº 8009/90 prevê o bem de família involuntário, que não depende das formalidades previstas no Código Civil, resultando diretamente de lei de ordem pública. Regulamenta, ainda, as regras de impenhorabilidade de tal bem, incidindo tanto sobre o bem de família voluntário quanto involuntário, conforme assevera Gonçalves (2016, p. 587):

Sendo instituidor dessa modalidade o próprio Estado, que a impõe por norma de ordem pública em defesa do núcleo familiar, independe de ato constitutivo e, portanto, de registro no Registro de Imóveis. Nada obsta a incidência dos benefícios da lei especial se o bem tiver sido instituído, também, na forma do Código Civil.

Lobo (2017, p. 187) ao definir o bem de família ressalta a importância da regra da impenhorabilidade como forma de proteção à entidade familiar, assevera o autor:

Bem de família é o imóvel destinado à moradia da família do devedor, com os bens móveis que o guarnecem, que não pode ser objeto de penhora judicial para pagamento de dívida. Tem por objetivo proteger os membros da família que nele vivem da constrição decorrente da responsabilidade patrimonial, que todos os bens econômicos do devedor ficam submetidos, os quais, na execução, podem ser judicialmente alienados a terceiros ou adjudicados ao credor. O bem ou os bens que integram o bem de família ficam afetados à finalidade de proteção da entidade familiar.

Acrescenta o doutrinador que a casa realiza um dos direitos fundamentais necessários à vida e à dignidade humana, constituindo o patrimônio mínimo necessário à concretização de uma vida digna. No conflito entre a segurança jurídica decorrente da garantia ao crédito, de natureza obrigacional, e o direito à moradia, de natureza existencial, o direito optou pelo segundo.

A lei nº 8009/90 considera residência um único imóvel utilizado pelo casal ou pela entidade familiar para moradia permanente, definindo o objeto de proteção à penhora no caput e parágrafo único do art. 1º:

Art. 1º O imóvel residencial próprio do casal, ou da entidade familiar, é impenhorável e não responderá por qualquer tipo de dívida civil, comercial, fiscal, previdenciária ou de outra natureza, contraída pelos cônjuges ou pelos pais ou filhos que sejam seus proprietários e nele residam, salvo nas hipóteses previstas nesta lei.

Parágrafo único. A impenhorabilidade compreende o imóvel sobre o qual se assentam a construção, as plantações, as benfeitorias de qualquer natureza e todos os equipamentos, inclusive os de uso profissional, ou móveis que guarnecem a casa, desde que quitados. (BRASIL, 1990)

Ficam excluídos da impenhorabilidade os veículos de transporte, obras de arte e adornos suntuosos.

Segundo afirma Didier (2017), a Constituição Federal ampliou o conceito de entidade familiar, para abranger a família monoparental e a união estável. Compreendendo, ainda, os irmãos que vivem juntos e a união homossexual. Desta forma, acrescenta o autor, todos que se agrupam em instituição social, incluindo-se ascendentes, descendentes, irmãos, o viúvo, ainda que seus descendentes hajam constituído outras famílias, assim como o separado judicialmente e o divorciado, estão protegidos pela lei, já que o objetivo é garantir um teto para cada indivíduo, não se direcionando a um núcleo de pessoas.

Importante destacar a Súmula n. 364 do STJ que confirma essa extensão de proteção para além da entidade familiar: "O conceito de impenhorabilidade de bem de família abrange também o imóvel pertencente a pessoas solteiras, separadas e viúvas".

Há, portanto, uma mudança de compreensão acerca do sentido da proteção, consoante acrescenta Didier (2017), de proteção da família à proteção da moradia essencial à preservação da dignidade da pessoa.

As regras se aplicam, indiferentemente, a qualquer execução civil, fiscal, previdenciária ou trabalhista. (art. 3º, caput, da Lei nº 8009/90).

Se o casal ou a entidade familiar possuir vários imóveis utilizados como residência, a impenhorabilidade será restrita ao imóvel de menor valor, salvo, conforme o art. 5º, parágrafo único da lei mencionada, outro tiver sido registrado no Registro de Imóveis. É impenhorável também, o único imóvel residencial do executado que esteja locado a terceiros, desde que a renda obtida com a locação seja revertida para a subsistência ou a moradia de sua família (Súmula n. 486 do STJ).  A lei protege apenas o único imóvel residencial familiar utilizado para moradia permanente, assim são penhoráveis os imóveis não residenciais e os terrenos não ocupados. Seguindo o fundamento já mencionado de que a impenhorabilidade do bem de família visa à preservação do direito à moradia digna do ser humano, permite-se a penhora do imóvel pertencente à pessoa jurídica. Segundo a Súmula do STJ, n.º 451, "é legítima a penhora da sede do estabelecimento comercial".

A impenhorabilidade abrange o solo, a construção, as plantações, as benfeitorias de qualquer natureza e todos os equipamentos ou móveis que guarnecem a casa, desde que quitados (art. 1º, parágrafo único). Didier (2017) ressalta, porém, a possibilidade de penhora de garagem que possui matrícula própria no registro de imóveis, de acordo com a Súmula n. 449 do STJ, já que pode ser transferida, a qualquer título, sem que perca sua utilidade ou valor econômico. Entretanto, essa possibilidade de penhora da garagem sofreu mitigação, conforme assevera o autor, em razão da hipótese criada pela Lei n° 12.607/2012 que alterou a redação do § 1º, do art. 1331 do Código Civil “e que, assim, se torna hipótese subsumida ao inciso I, do art. 833 do CPC/15, como novo caso de impenhorabilidade relativa: a garagem somente poderá ser penhorada em execuções promovidas por pessoa que não seja estranha ao condomínio”. (DIDIER, 2017, p. 844). Desta forma, se o bem não pode ser alienado a pessoas estranhas ao condomínio quando não existir permissão em cláusula na convenção do condomínio, também não poderá ser penhorado em sede de execução promovida por pessoa estranha ao condomínio.

O parágrafo único do art. 2º da aludida Lei protege da penhora, no caso de imóvel locado, os bens móveis pertencentes ao locatário e que guarneçam a residência por ele ocupada. Ressalva, no entanto, a condição de que os bens móveis estejam quitados, com o objetivo de evitar, de acordo com Gonçalves (2016) que se adquiram esses bens mediante financiamento com o fim de prevalecer-se dos benefícios legais numa execução.

Dispõe o seu parágrafo terceiro um rol de exceções taxativo à impenhorabilidade, não podendo nenhuma outra ser incluída através de interpretação taxativa:

A impenhorabilidade é oponível em qualquer processo de execução civil, fiscal, previdenciária, trabalhista ou de outra natureza, salvo se movido: I – Revogado; II – pelo titular do crédito decorrente do financiamento destinado à construção ou à aquisição do imóvel, no limite dos créditos e acréscimos constituídos em função do respectivo contrato; III – pelo credor da pensão alimentícia, resguardados os direitos, sobre o bem, do seu coproprietário que, com o devedor, integre união estável ou conjugal, observadas as hipóteses em que ambos responderão pela dívida; IV – para cobrança de impostos, predial ou territorial, taxas e contribuições devidas em função do imóvel familiar; V– para execução de hipoteca sobre o imóvel oferecido como garantia real pelo casal ou pela entidade familiar; VI – por ter sido adquirido com produto de crime ou para execução de sentença penal condenatória a ressarcimento, indenização ou perdimento de bens; VII – por obrigação decorrente de fiança concedida em contrato de locação. (BRASIL, 1990)

O artigo 4º, “caput” prevê, ainda, que “não se beneficiará do disposto nesta lei aquele que, sabendo-se insolvente, adquire de má-fé imóvel mais valioso” (BRASIL,1990). Este dispositivo tem o objetivo de regular o caso do devedor que embora saiba ser insolvente aja dolosamente de má-fé, transferindo a sua residência de menor valor para outro imóvel mais valioso, com a finalidade de evitar a execução do bem. Acrescenta o § 2º do mencionado artigo “quando a residência familiar constituir-se em imóvel rural, a impenhorabilidade restringir-se-á à sede de moradia, com os respectivos bens móveis, e, nos casos do art. 5º, inciso XXVI, da Constituição, à área limitada como pequena propriedade rural” (BRASIL, 1990). E por fim, à lei não interessam a qualidade e o valor da moradia, alcançando tanto o casebre quanto imóveis mais luxuosos.


3. o princípio da dignidade humana e a efetividade da tutela executiva

O desenvolvimento do problema deste artigo se dá a partir do reconhecimento do direito à tutela executiva efetiva como um corolário do princípio do acesso à justiça. Desta forma, conforme assevera Santos (2015), assim como deve ser protegido o direito fundamental à moradia como pilar do princípio da dignidade humana, também deverá ser protegido o direito fundamental ao recebimento do crédito.

Segundo os valiosos ensinamentos de Cintra, Pellegrini e Dinamarco (2014, p. 56), seja nos casos de controle jurisdicional, seja quando uma pretensão não for satisfeita, é indispensável chegar a uma solução que faça justiça. O processo deve ser manipulado de forma a propiciar às partes acesso à justiça. E este não deve ser entendido como mera admissão ao processo, sendo indispensável para que ocorra a sua efetiva institucionalização, que o maior número de pessoas seja admitido a demandar e defender-se de forma adequada. Acrescentam os autores:

A ordem jurídico-positiva (Constituição e leis ordinárias) e o lavor dos processualistas modernos têm posto em destaque uma série de princípios e garantias que, somados e interpretados harmoniosamente, constituem o traçado do caminho que conduz as partes à ordem jurídica justa. O acesso à justiça é, pois, a ideia central a que converge toda a oferta constitucional e legal desses princípios e garantias.

Para o processo alcançar efetividade, concretizando sua missão social de eliminar conflitos e fazer justiça, os autores mencionados apontam que é indispensável de um lado, tomar consciência dos escopos motivadores de todo sistema e, de outro, vencer as limitações que a experiência mostra estarem sempre ameaçando a sua boa qualidade. Desta forma, prelecionam que:

Todo processo deve dar a quem tem um direito tudo aquilo e precisamente aquilo que ele tem o direito de obter. Essa máxima de nobre linhagem doutrinária constitui verdadeiro slogan dos modernos movimentos em prol da efetividade do processo e deve servir de alerta contra tomadas de posição que tomem acanhadas ou mesmo inúteis as medidas judiciais, deixando resíduos de injustiça. (2014, p. 57)

Assim, mesmo entendendo que a proteção do bem de família é de suma importância para a entidade familiar, conforme leciona Scherer (2015), a proteção deve seguir o princípio da proporcionalidade em face do conflito no caso concreto entre direitos fundamentais do credor e do devedor.

3.1 DA PROTEÇÂO DA DIGNIDADE DO DEVEDOR

O art. 8º do Código Processual vigente impõe que o órgão julgador resguarde e promova a dignidade da pessoa humana. Para Didier (2015, p. 75) tal dispositivo é aparentemente dispensável, já que a dignidade, como visto, já é um dos fundamentos da República. A dignidade da pessoa humana, segundo o autor, pode ser vista como direito fundamental complexo. A eficácia vertical das normas referentes aos direitos fundamentais dirige-se à regulação da relação do Estado com o indivíduo e como a função jurisdicional é exercício de função do Estado, é imposto ao juiz que observe esse princípio na sua atuação. Acrescenta o autor:

O órgão julgador representa o Estado e, nessa circunstância, deve “resguardar a dignidade da pessoa humana; resguardar nesse contexto, é, de um lado, aplicar corretamente a norma jurídica “proteção da dignidade da pessoa humana” e, de outro, não violar a dignidade (por exemplo, na condução do depoimento da parte).

Desta forma, conforme os ensinamentos  do  doutrinador, o  órgão  julgador  tem  o dever de promover a dignidade da pessoa humana, atuando de forma mais ativa, podendo tomar, inclusive, de ofício, medidas para garantir a dignidade, além de poder utilizar a cláusula geral de atipicidade (art. 536, § 1º) para a execução do direito fundamental à dignidade da pessoa humana. No entanto, não é tarefa fácil a sua aplicação já que seu âmbito de incidência é ainda impreciso e a sua promoção judicial exige fundamentação específica em virtude da posição ativa do juiz no processo.

Destaca, ainda, que a argumentação jurídica em torno da dignidade humana pode contribuir na humanização do processo civil, construindo um processo atento a problemas reais. Vários doutrinadores reforçam o entendimento de que a execução não pode violar a dignidade do executado. Com o escopo de preservá-la, através da proteção do patrimônio mínimo necessário à sobrevivência digna do devedor, foram criadas as regras de impenhorabilidade,

Nesse sentido, afirma Theodoro (2015, p. 331) que prevalece na jurisprudência o entendimento de que a execução não pode violar a dignidade do executado. “Não pode a execução ser utilizada como instrumento para causar a ruína, a fome e o desabrigo do devedor e sua família, gerando situações incompatíveis com a dignidade da pessoa humana”. A preocupação do legislador é, portanto, preservar as receitas alimentares do devedor e de sua família.

Para Didier (2017, p.820) a proteção à dignidade é o principal fundamento das regras de impenhorabilidade. Afirma que com tais regras “busca-se garantir um patrimônio mínimo ao executado, que lhe permita sobreviver com dignidade. Daí a impossibilidade de penhora do bem de família.

3.2 A TUTELA EXECUTIVA COMO DIREITO FUNDAMENTAL DO CREDOR

Para Cappelletti e Garth (1988, p.8) uma premissa básica da justiça social, tal como desejada pelas sociedades modernas, é o acesso efetivo. Ao discorrer sobre a expressão “ acesso à justiça” afirmam que:

A expressão “acesso à Justiça” é reconhecidamente de difícil definição, mas serve para determinar duas finalidades básicas do sistema jurídico – o sistema pelo qual as pessoas podem reivindicar seus direitos e/ou resolver seus litígios sob os auspícios do Estado. Primeiro, o sistema deve ser igualmente acessível a todos; segundo, ele deve produzir resultados que sejam individual e socialmente justos.

 Conforme apontado por Marinoni (2017), o direito de ação não pode mais ser definido como direito a uma sentença, como as teorias clássicas defendiam, mas como direito à tutela jurisdicional adequada, efetiva e tempestiva por meio de um processo justo. Esse entendimento é resultado da combinação do art. 5º, inciso LIV, da Carta Magna que prevê que “ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal” com o inciso XXXV do citado artigo que diz que “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito” (BRASIL, 1988)

 Desta forma, aponta o autor, que o direito de ação não se limita apenas a reconhecer um direito material em juízo ou o direito de formular um pedido de tutela do direito material. A ação não é um ato estático, não podendo ser restringido ao requerimento inicial de tutela jurisdicional. Assevera o jurista que a ação compreende:

Um complexo de posições jurídicas previstas ao longo de todo o procedimento que visa tendencialmente à tutela do direito mediante uma decisão justa e passível de adequada efetivação. É por essa razão que se afirma que a ação não se confunde com a demanda, sendo antes um direito compósito e dinâmico, contendo em si um complexo de posições jurídicas (2017, p. 196)

 A ação deve ser desenvolvida, acrescenta o doutrinador, de forma a permitir o julgamento do mérito e no caso de reconhecimento do direito material, é necessário garantir meios executivos que propiciem a efetividade da tutela. O direito de ação não é, portanto, direito a uma sentença, devendo ser entendido como direito composto compreendido pelas técnicas processuais adequadas para a efetivação do direito material.

Ao ressaltar a importância dos meios executivos idôneos à efetividade da tutela jurisdicional Marinoni (2017, p. 202) afirma:

Assim, a sentença (compreendida como medida processual) e a execução adequadas são óbvios corolários do direito de ação, impondo a conclusão de que o direito de ação, muito mais do que o direito ao julgamento do mérito, é o direito à adequada e efetiva tutela jurisdicional. Isso porque, por efetiva tutela jurisdicional, deve -se entender a efetiva realização do direito material, para a qual são imprescindíveis a sentença e o meio executivo adequados

Corroborando o posicionamento dos autores já mencionados, Scarpinella (2016, p. 48) ao discorrer sobre os princípios constitucionais do direito processual civil, destaca o princípio da efetividade do processo, que encontra seu fundamento no art. 5º, inciso XXXV da Constituição Federal, já descrito acima. Afirma o autor, que uma vez reconhecido o direito, seus resultados devem ser efetivos, concretos, isto é, sensíveis no plano exterior do processo.  Desta forma, é inócuo falar em processo justo ou em um processo devido, já que esses termos dão a falsa ideia de que a tutela jurisdicional se esgota apenas com a observância do meio correto de produzir a decisão jurisdicional apta a veicular a tutela pretendida. De forma contrária, entende o autor, seguindo o posicionamento de Marinoni  apontado anteriormente, que o justo e o devido, vão além do reconhecimento jurisdicional do direito. Neste sentido, propõe a substituição da tradicional expressão “efetividade do processo” para “efetividade do direito pelo e no processo”.

O direito fundamental à tutela executiva, conforme aponta Guerra (2003 citado por DIDIER 2015 p. 66) exige um sistema de tutela jurisdicional apto a permitir a integral satisfação a qualquer direito merecedor de tutela executiva. Sendo possível identificar três premissas que devem ser observadas para garantir a efetividade:  1) a interpretação das normas que fundamentam a tutela executiva deve ser realizada de forma a alcançar a maior efetividade possível, 2) o juiz tem o poder-dever de adotar os meios executivos necessários à prestação da tutela 3) o juiz tem o poder-dever de não aplicar uma norma que imponha uma restrição a um meio executivo, sempre que essa restrição, não se justificar à luz da proporcionalidade, como forma de proteção a outro direito fundamental.

E esse entendimento de que há o direito fundamental do credor à tutela executiva, afirma Didier (2015), é essencial à solução de problemas no processo executivo, principalmente aqueles relacionados com a aplicação das regras de proteção do executado.

Esse é justamente o que se vislumbra no caso da impenhorabilidade do bem de família ainda que de elevado valor. Como ficou demonstrado anteriormente, o direito à tutela executiva efetiva é direito fundamental assentado no art. 5º, incisos XXXV e LIV, da Constituição Federal. E embora não se questione a restrição imposta ao direito fundamental à tutela executiva efetiva do credor imposta pela Lei nº 8009/90, haja vista o seu escopo de proteger a dignidade do executado, essa restrição deve sempre que possível estar voltada à realização dos outros direitos fundamentais. Argumenta-se que a mens legis da regra que limita a penhora do bem imóvel visa garantir a dignidade do devedor através da proteção de um patrimônio mínimo e não à manutenção do seu padrão de vida.


4 A PROPORCIONALIDADE COMO MEIO DE SOLUÇÃO DO CONFLITO

 Afirma Maidame (2008, p. 127), que a proporcionalidade deve vincular o operador do direito a sempre buscar uma ponderação de resultados. A proporcionalidade deve ser compreendida como um meio que deve ser utilizado como forma de “controle de “justicidade” ou “eticidade” das normas, possibilitando, por método comparativo de direitos fundamentais, retirar a eficácia de uma norma desarrazoada, sem o rompimento do ordenamento jurídico”.

A proporcionalidade pode ser desdobrada em três elementos: a adequação, a necessidade e a proporcionalidade propriamente dita.

No que se refere a adequação, segundo afirma Silva (2005), quando uma medida estatal implica intervenção no âmbito de proteção de um direito fundamental, essa medida deve ter um fim constitucionalmente legítimo, que em geral é a realização de outro direito fundamental. Deve-se indagar se a medida adotada é adequada para realizar o objetivo perseguido.

Já a necessidade, conforme leciona Ávila (2005, p. 122), envolve a análise da existência de meios que sejam alternativos àquele inicialmente escolhido pelo Poder Legislativo ou Poder executivo, e que possam promover da mesma forma o mesmo fim sem restringir na mesma intensidade os direitos fundamentais afetados. Aponta que:

Nesse sentido, o exame da necessidade envolve duas etapas de investigação: em primeiro lugar, o exame da igualdade de adequação dos meios, para verificar se os meios alternativos promovem igualmente o fim; em segundo lugar, o exame do meio menos restritivo, para examinar se os meios alternativos restringem em menor medida os direitos fundamentais colateralmente afetados.

E o terceiro elemento do postulado da proporcionalidade, denominado de proporcionalidade em sentido estrido, segundo o autor mencionado, exige para seu exame a comparação entre a importância da realização do fim e a intensidade da restrição aos direitos fundamentais. Neste caso, é preciso indagar se as vantagens causadas pela promoção do fim são proporcionais às desvantagens causadas pela adoção do meio. Desta forma, é preciso questionar se o grau de importância do fim justifica o grau de restrição causada aos direitos fundamentais.

Sobre o tema, Silva (2014, p. 174) afirma que além de verificar se a medida adotada é adequada para fomentar o objetivo que persegue (adequação) e se não há outra medida que seja tão eficiente quanto e que restrinja menos o direito atingido (necessidade) é preciso realizar uma última análise que se refere à proporcionalidade em sentido estrito.  E como justificativa para este último teste o autor afirma:

A razão de ser desse último teste é facilmente explicável: se fossem suficientes apenas os dois primeiros exames - adequação e necessidade -, uma medida que fomentasse um direito fundamental com grande eficiência mas que restringisse outros vários direitos de forma muito intensa teria que ser considerada proporcional e, portanto, constitucional. Isso porque, além de  adequada, a medida é necessária.

Neste ponto está o cerne desta pesquisa, como afirma Maidame (2008, p. 132), o processo de execução é palco de um conflito de interesses que resulta em colisão de direitos fundamentais. Em virtude da humanização do processo executório o credor acaba suportando restrições a seus direitos fundamentais. Há casos em que essas restrições são justificáveis em virtude dos interesses em jogo, mas é preciso que o sacrifício suportado pelo credor seja na medida do necessário, devendo sempre levar em conta os seus direitos fundamentais. Acrescenta o autor:

Decisões que mantêm certas impenhorabilidades que garantem não o mínimo existencial digno, mas o luxo e as comodidades modernas do devedor, não se sustentam porque não têm razão “sensivelmente mais forte” do que os legítimos interesses do credor, buscados no processo de execução. Por isso, a jurisprudência e o regime de impenhorabilidade merecem revisão, na medida em que ofendem o direito de igualdade, pois mantêm benefícios incompatíveis com os direitos em conflito. Frise-se que a dignidade da pessoa humana está diretamente ligada a questão da igualdade e que o credor também tem dignidade.

Para o doutrinador é  preciso que os  tribunais  reconheçam a  autoridade outorgada pela Constituição para estabelecer estas correções da lei com fundamento no direito, “na medida em que a concretização dos direitos fundamentais, mormente em época de enorme erosão moral no parlamento depende da conduta independente do Judiciário, nos limites de sua nobre competência”.  (MAIDAME, 2008, p. 132). Nesse sentido afirma, ainda, que:

(...)o que se defende é que o magistrado, na dialética do caso concreto, é melhor aparelhado que o legislador para aferir se a penhora do bem X ou Y atenta contra a dignidade do devedor ou contra as garantias do credor, devendo, por isso mesmo, chamar a si esta responsabilidade trabalhando com o ferramental que a Constituição e a teoria dos direitos fundamentais oferecem na consecução desta tarefa, que dignificaria o processo de execução e toda sociedade brasileira. (2008, p. 133)

No que diz respeito ao bem de família, o autor afirma que fica evidente que a Lei nº 8009/90 não procurou proteger os fracos, já que pôs a salvo da penhora bens imóveis sem qualquer limitação de valor.  Propõe o doutrinador, então a “correção da lei “ pelo magistrado com o objetivo de adequá-la aos interesses em jogo.

Ao tratar sobre o tema Didier (2017, p. 811) segue a mesma linha de pensamento de Maidame (2008), afirmando que a impenhorabilidade de certos bens é uma restrição ao direito fundamental do credor à tutela executiva. E que se justifica como meio de proteção da dignidade do executado. “São regras que compõem o devido processo legal, servindo como limitações políticas à execução forçada”. E justamente por implicar limitação a um direito fundamental, é necessário que sua aplicação se submeta ao método da ponderação, a partir da análise das circunstâncias do caso concreto.

Segundo o doutrinador o legislador ao estabelecer o rol dos bens impenhoráveis já realiza um juízo prévio de ponderação entre os interesses envolvidos, optando pela proteção do direito do executado em detrimento do direito do exequente. Mas apesar dessa constatação as hipóteses de impenhorabilidade podem não incidir em determinados casos concretos, em que seja verificada a desproporção entre um direito fundamental e a proteção do outro. Para o autor é preciso que o órgão faça o controle de constitucionalidade in concreto da aplicação das regras de impenhorabilidade, e, se, sua aplicação se revelar inconstitucional, por não ser razoável ou ser desproporcional, deve afastá-la e construir a solução adequada ao caso concreto.

Especificamente em relação ao bem de família de alto valor, Didier (2017, p. 813) traz como exemplo a seguinte situação: um imóvel de altíssimo valor e um crédito que corresponda a quarenta por cento do valor do imóvel. A venda judicial do imóvel, no caso, segundo o autor, permitiria não só satisfazer o direito do credor como, ainda, garantir ao executado, com a sobra, a aquisição de outro imóvel, que lhe preserve a dignidade. Neste caso, a opção pela interpretação literal da regra, que proíbe a penhora deste bem, protegeria exclusivamente o direito de devedor de forma desnecessária já que a relação executado/valor do bem permitiria a aquisição de outro imóvel após a entrega do dinheiro ao exequente. Pensar de forma diferente seria interpretação contrária aos preceitos da contemporânea hermenêutica constitucional que determina a necessidade de, nos casos de conflito entre direitos fundamentais, dar interpretação que mais adequadamente proteja ambos. Afirma o doutrinador:

Enfim, são em princípio constitucionais as regras que restringem a responsabilidade patrimonial, impedindo a penhora de certos bens. Em um Estado Democrático que busca a construção de uma sociedade livre, justa e solidária (art. 3º, I, CF /88), a restrição à penhora de certos bens apresenta-se como uma técnica processual tradicional e bem aceita pela sociedade contemporânea. Mas essas regras não estão imunes ao controle de constitucionalidade in concreto e, por isso, podem ser afastadas ou mitigadas se, no caso concreto, a sua aplicação revelar-se não razoável ou desproporcional.

Entretanto, como ressalta, justamente por proteger direitos fundamentais as regras de impenhorabilidade também poderão ser ampliadas em virtude das peculiaridades do caso visando tutelar de forma adequada esses mesmos direitos.

Corroborando o posicionamento acima exposto Guerra (2003 citado por Santos 2015 p. 83) afirma que apenas o modelo dos direitos fundamentais pode fornecer um caminho seguro que ao mesmo tempo oriente e justifique o desenvolvimento judicial do direito, que para o autor ocorre quando se permite ao juiz que ora deixe de aplicar normas expressamente postas, ora aplique outras não expressamente positivadas, mas inseridas no âmbito semântico de algum direito fundamental. Acrescenta que:

O primeiro dado que se impõe ao intérprete é que a impenhorabilidade de bens do devedor imposta pela lei consiste em uma restrição ao direito fundamental do credor aos meios executivos (...) ...as restrições aos direitos fundamentais não são, em princípio, ilegítimas. Devem, no entanto, estar voltadas à realização de outros direitos fundamentais e podem, por isso mesmo, estar sujeitas a uma revisão judicial que verifique, no caso concreto, se a limitação, ainda que inspirada em outro direito fundamental, traz uma excessiva compressão ao direito fundamental restringido.

Importante destacar, ainda, a posição de Marinoni (2017, p. 747) que vê exagero no elenco de bens impenhoráveis. Para o autor a proteção dada ao devedor acaba por prejudicá-lo, já que o comércio exige maiores garantias para realização de compras e financiamentos. Propõe, por essa razão, limitação a extensão dada à impenhorabilidade, restringindo-a aos bens imprescindíveis à manutenção do padrão médio       de vida da entidade familiar. Quanto a proteção indiscriminada do bem de família o doutrinador faz duras críticas, como se vê a seguir:

Altamente criticável, ademais, é a previsão da impenhorabilidade indiscriminada de imóveis residenciais. Nos termos da lei brasileira – sem paralelo no direito comparado – qualquer imóvel residencial, não importando o seu valor, é impenhorável sempre, a não ser em hipóteses específicas. Claramente, isso só se presta a estimular o devedor de má-fé, sem nenhuma relação à preservação de garantias fundamentais como a dignidade da pessoa humana ou a proteção do patrimônio mínimo. Se não há dúvida de que se deve preservar da responsabilidade patrimonial um mínimo para uma existência digna, também é certo que fazer impenhorável um imóvel, por exemplo, de dimensões extraordinárias, cujo valor pode chegar a vários milhões de reais é certamente um despropósito.

Pelos motivos expostos, afirma Marinoni (2017), que o Brasil possui um sistema defasado e ilógico e para se tornar mais justo depende do trabalho jurisprudencial.

Tartuce (2017), entretanto, é contrário aos argumentos acimas apontados, ao afirmar não ser possível a penhora do bem de família mesmo quando de alto valor. Para ele o bem de família é um dos temas mais controvertidos no Direito Brasileiro e uma das questões é justamente quanto a existência ou não de um teto para o valor do imóvel que deve ser considerado como impenhorável. A dificuldade está, segundo o autor, em responder indagações como: O que é considerado bem de alto valor? Qual o patamar monetário a ser utilizado? O valor venal do imóvel, a quantia estipulada pelo mercado imobiliário, o critério pessoal do credor ou do julgador? Ressalta que o Brasil é um país continental e para cada região do país os critérios e padrões relacionados tanto a valores necessários para a sobrevivência digna quanto aqueles ligados ao mercado imobiliário são absolutamente diversos.

Para o doutrinador o parâmetro de fixação daquilo que seja bem de elevado valor, ao contrário do pensamento adotado pelos doutrinadores anteriormente citados, deve ser fixado pelo legislador e não pelo julgador, devendo tal limitação ser inserida de forma expressa na Lei nº 8009/90. Nesse sentido, afirma ainda, que não é possível negar que o Novo Código de Processo Civil trouxe um abrandamento quanto às regras de impenhorabilidade, prova disso é a norma que reconhece a possibilidade de penhora de pensões, salários e rendimentos em montantes superiores a cinquenta salários mínimos. Mas no que se refere ao bem de família não houve nenhuma inovação quanto a um teto de proteção, perdendo o legislador a chance de fazê-lo, e por tal razão não cabe ao julgador tal tarefa sob o risco de sacrificar a proteção da moradia, direito social fundamental amparado pelo art. 6º da Constituição Federal.

Outros autores entendem que constitui fator de igualdade a não limitação do valor do imóvel, já que penhorar o bem apenas de alguns viola o princípio da isonomia.

 Nesse sentido, Santos (2003 citado por Lustosa 2016 p. 11) não admite a penhora do imóvel residencial suntuoso, alegando que agiu corretamente o legislador em virtude da impossibilidade de diferenciar qual padrão de família é merecedor da proteção do benefício, sob pena de incidir em indesejável casuísmo arbitrário, ofendendo o princípio da isonomia.

 Contrariando tal linha de pensamento Lustosa (2016) afirma que a insegurança jurídica devido à subjetividade da noção do que seria excessivamente luxuoso deve ser mitigada por uma fundamentação adequada da decisão que autorizar a penhora. Neste sentido, determina que o juiz deve demonstrar que no caso concreto o saldo preservado sob a cláusula de impenhorabilidade é suficiente para garantir ao executado o necessário à manutenção de uma vida digna, sob pena de sujeitar-se à revisão pelo sistema recursal. O autor, destaca ainda, o papel importante que pode ser desempenhado pela doutrina no estabelecimento de parâmetros objetivos que sejam capazes de balizar o intérprete na identificação do patrimônio mínimo a ser resguardado em cada caso.

A partir do exposto não se nega que o regime da impenhorabilidade do bem de família é instituto jurídico eficaz para proteção do patrimônio mínimo necessário à garantia da dignidade do devedor. O questionamento se dá apenas quando esse bem é de elevado valor, já que neste caso, entende-se que a sua dignidade não será violada ao se garantir no caso concreto o direito fundamental do credor à tutela executiva efetiva. Assim, no conflito entre à dignidade do executado e o direito à tutela efetiva do exequente, realizando-se o sopesamento destes princípios através do postulado da proporcionalidade, deve-se garantir o direito ao crédito.


5 Conclusão

Ao responder afirmativamente o questionamento levantado no início desta pesquisa quanto à possibilidade de relativização da impenhorabilidade do bem de família quando de elevado valor, não se pretende afastar a proteção do princípio da dignidade humana, garantia basilar do nosso Estado Democrático de Direito. Pelo contrário, visando justamente preservá-la é que se entende que ao garantir o direito fundamental à tutela executiva efetiva está se preservando a dignidade do credor, entendendo-se que no caso concreto a dignidade do executado não será violada, já que com o remanesceste da venda do imóvel, o executado poderá adquirir outro para sua moradia.

 A possibilidade da relativização do regime da impenhorabilidade de bens tem como fundamento a ideia de que este visa à preservação de um patrimônio mínimo necessário a uma vida digna e não a manutenção do padrão de vida do executado. Ao assumir uma obrigação patrimonial é natural que o executado sofra redução do seu patrimônio e privações necessárias à satisfação do crédito. O que não pode ser permitido é que a busca sem freios dessa satisfação prive o devedor do mínimo indispensável a uma vida digna.

Apesar do posicionamento favorável adotado por ilustres doutrinadores e seguido por esta pesquisa, o entendimento jurisprudencial dominante é pela impossibilidade da relativização, com o fundamento de que deve ser conferida à Lei nº 8009/90 interpretação restritiva, só admitindo mitigação do regime da impenhorabilidade nos casos das ressalvas expressas no próprio dispositivo legal. E como a mencionada lei não faz distinção à proteção em relação ao valor do imóvel, esta não pode ser mitigada no caso concreto. A impenhorabilidade, portanto, seria regra absoluta tendo como objetivo a proteção da dignidade do executado.

Embora se respeite o posicionamento jurisprudencial, não é possível aceitá-lo, em virtude das razões expostas neste artigo. O que se defende é que no caso concreto, quando o único bem do devedor é bem de família de elevado valor, estão em conflito direitos fundamentais do executado e do exequente que devem ser sopesados por meio do postulado da proporcionalidade.

O direito à tutela efetiva é garantia fundamental do credor estando consubstanciado no princípio constitucional do acesso à justiça, que garante ao credor não apenas o acesso em sentido estrito, mas o direito a uma prestação jurisdicional adequada, tempestiva e efetiva. Assim, o acesso à justiça não pode ser entendido como direito a uma sentença, mas também a garantia de que ao ser reconhecido um direito material sejam utilizados todos os meios executivos necessários à sua concretização.

No caso concreto, entende-se que há uma proteção excessiva do direito do executado já que, como afirmado, se com a venda do bem for possível realizar o pagamento do crédito e com o valor remanescente comprar outro imóvel, a dignidade do executado não será violada, devendo neste caso através da utilização da proporcionalidade ser garantido o direito fundamental do credor à tutela executiva efetiva. Não é possível, neste caso, permitir que uma demanda executiva chegue ao final sem a satisfação do crédito, condenando o credor a um processo longo e inútil quando for possível alcançar sua satisfação sem violar a dignidade do devedor.

Não se negam as dificuldades encontradas. A moradia ou a casa é direito social essencial à pessoa humana, previsto no art. 6º da Constituição Federal, onde pode viver não apenas o executado, mas outros membros da sua família, trazendo, muitas vezes, uma grande carga valorativa tornando a saída do imóvel traumática. Outrossim, não é fácil definir o que seria bem de família de elevado valor e quanto deve ser preservado após a venda para compra de outro imóvel. Mas esses problemas devem ser superados, como foi fundamentado, pela apreciação do caso concreto pelo julgador, que deve utilizar o postulado da proporcionalidade, proferindo decisões fundamentadas e tendo sempre como norte a ideia de que a mens legis do regime da impenhorabilidade é a preservação do patrimônio mínimo necessário à garantia da dignidade do executado e não a manutenção de um padrão de vida luxuoso.


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