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Estupro em hotel de Paris?

Repercussão mundial e a extraterritorialidade da lei penal brasileira

Estupro em hotel de Paris? Repercussão mundial e a extraterritorialidade da lei penal brasileira

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Quem deve apurar os fatos? A polícia francesa ou a brasileira?

RESUMO: O presente ensaio tem por escopo precípuo analisar a aplicação do direito penal interespacial, notadamente, com incursões nos aspectos legais em torno dos fatos supostamente envolvendo um jogador de futebol brasileiro, no dia 15 de maio de 2019, no interior de um hotel na França, onde teria ocorrido a prática de crime de estupro, fazendo mister o estudo do princípio da extraterritorialidade penal condicionada, a teor do artigo 7º, inciso II, alínea b) do Código Penal Brasileiro. Visa ainda analisar sem caráter exauriente possível conduta criminosa prevista no artigo 218-C, em face do vazamento de imagens e fotos íntimas da vítima, divulgadas em redes sociais.

Palavras-Chave: Direito penal. Crime de Estupro. Imagens. Vazamento. Dignidade Sexual. Direito interespacial. Territorialidade. Extraterritorialidade.

SUMÁRIO: 1. INTRODUÇÃO. 2. DO PRINCÍPIO DA TERRITORIALIDADE DA LEI PENAL. 3. DA EXTRATERRITORIALIDADE DA LEI PENAL BRASILEIRA. 3.1. Princípio da extraterritorialidade incondicionada. 3.2. Princípio da defesa. 3.3. Princípio da extraterritorialidade condicionada. 3.3.1. Princípio da justiça universal. 3.3.2. Princípio da nacionalidade. 3.3.3. Princípio da representação. 4. PRINCÍPIOS ADOTADOS PELO CÓDIGO PENAL NA EFICÁCIA ESPACIAL DA LEI PENAL. 5. O CASO SUPOSTAMENTE CRIMINOSO DO JOGADOR DE FUTEBOL REGISTRADO NO BRASIL E A APLICAÇÃO DA LEI PENAL BRASILEIRA. 6. O CRIME DE VAZAMENTO DE IMAGENS E FOTOS ÍNTIMAS. 7. DAS CONSIDERAÇÕES PENAIS. DAS REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.


1. INTRODUÇÃO

A grande mídia mundial noticia o suposto caso de estupro envolvendo um jogador de futebol brasileiro, fato que teria ocorrido no dia 15 de maio de 2019, no interior de um hotel na França.

Jornais brasileiros divulgaram o teor do boletim de ocorrência registrado em São Paulo, in verbis:

“Comparece nesta Especializada a vítima qualificada sob o provimento CG 32/2000, noticiando que conheceu Neymar da Silva Santos Junior através das redes sociais (Instagram) e passaram a trocar mensagens. A vítima afirma que Neymar lhe convidou para encontrá-lo em Paris e seu assessor “Gallo” entrou em contato com a mesma na data de 12/05/2019 e forneceu as passagens e hospedagem. A vítima afirma que embarcou na data de 14/05/2019, chegando em Paris na data de 15/05/2019, hospedando-se no Hotel Sofitel Paris Arc Du Triomphe. A vítima afirma que na mesma data, Neymar chegou por volta das 20:00 no hotel, aparentemente embriagado, começaram a conversar, trocaram “carícias”, porém em determinado momento, Neymar se tornou agressivo, e mediante violência, praticou relação sexual contra a vontade da vítima. A vítima afirma que foi embora de Paris na data de 17/05/2019 retornando ao Brasil. A vítima afirma que estava abalada emocionalmente e com medo de registrar os fatos em outro país, decidindo registra-los nesta Especializada em razão de seu endereço residencial. Com base no Princípio da Extraterritorialidade, bem como as partes serem brasileiras, o presente Boletim de Ocorrência foi registrado nesta Especializada, inclusive para fins de encaminhamento aos exames que se fizerem necessários. Informo, por fim, que demais informações a respeito dos fatos foram colhidas em termos próprios, bem como documentos pertinentes. Nada Mais. ”

O crime de estupro é previsto no artigo 213 do Código Penal, com nova redação determinada pela Lei nº 12.015/2009, consistente em constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso, com pena de reclusão, de 6 (seis) a 10 (dez) anos.  

Trata-se de crime bicomum, onde qualquer pessoa pode praticar ou sofrer as consequências deletérias da infração penal, é rotulado como crime hediondo, consoante artigo 1º, inciso V, da Lei nº 8.072, de 1990.

Após o registro do fato e ampla divulgação midiática, teria havido vazamento de mensagens e fotos íntimas da noticiante dos fatos, conduta punível pela legislação penal no artigo 218-C, tipo acrescido pela Lei nº 13.718, de 2018, consistente em oferecer, trocar, disponibilizar, transmitir, vender ou expor à venda, distribuir, publicar ou divulgar, por qualquer meio - inclusive por meio de comunicação de massa ou sistema de informática ou telemática -, fotografia, vídeo ou outro registro audiovisual que contenha cena de estupro ou de estupro de vulnerável ou que faça apologia ou induza a sua prática, ou, sem o consentimento da vítima, cena de sexo, nudez ou pornografia, com previsão de pena de  reclusão, de 1 (um) a 5 (cinco) anos, se o fato não constitui crime mais grave. 

A pena é aumentada de 1/3 (um terço) a 2/3 (dois terços) se o crime é praticado por agente que mantém ou tenha mantido relação íntima de afeto com a vítima ou com o fim de vingança ou humilhação.

A Secretaria de Segurança Pública confirmou que o fato foi registrado pela vítima na 6ª Delegacia da Mulher, na capital paulista, e informou que o inquérito segue sob sigilo.


2. DO PRINCÍPIO DA TERRITORIALIDADE DA LEI PENAL

Sem a pretensão de querer analisar o mérito dos fatos, que certamente ficará sob responsabilidade da competente Polícia Investigativa, por sinal acusação muito grave, mister se faz compreender acerca da aplicação da lei penal no espaço, cuidadosamente, previsto no Código Penal Brasileiro, em sua parte geral.

Logo, é possível afirmar que a legislação brasileira previu normas sobre o direito espacial, com fato em dois grandes princípios, o da territorialidade e da extraterritorialidade.

Assim, pelo princípio da territorialidade, aplica-se a lei penal brasileira, artigo 5º, §§ 1º e 2º, sem prejuízo de convenções, tratados e regras de direito internacional, ao crime cometido no território nacional. 

Para os efeitos penais, consideram-se como extensão do território nacional as embarcações e aeronaves brasileiras, de natureza pública ou a serviço do governo brasileiro onde quer que se encontrem, bem como as aeronaves e as embarcações brasileiras, mercantes ou de propriedade privada, que se achem, respectivamente, no espaço aéreo correspondente ou em alto-mar. 

É também aplicável a lei brasileira aos crimes praticados a bordo de aeronaves ou embarcações estrangeiras de propriedade privada, achando-se aquelas em pouso no território nacional ou em voo no espaço aéreo correspondente, e estas em porto ou mar territorial do Brasil.    

Percebe-se, que via de regra, que se aplica a lei penal brasileira ao crime cometido no território brasileiro, com as exceções acima, a que se chama princípio da territorialidade temperada ou mitigada.   


3. DA EXTRATERRITORIALIDADE DA LEI PENAL BRASILEIRA    

  Casos existem que mesmo o fato criminoso sendo cometido fora do Brasil, é possível que a lei penal brasileira é aplicada, com ou sem condições, aquilo que se chama de princípio da extraterritorialidade condicionada ou princípio da extraterritorialidade incondicionada.

3.1. Princípio da extraterritorialidade incondicionada

Pelo princípio da extraterritorialidade incondicionada, a lei penal brasileira é aplicada a fatos criminosos praticados fora do território brasileiro, independentemente do preenchimento de condições, ela é, pois, incondicionada.

Os casos taxativos de extraterritorialidade incondicionada estão previstos no artigo 7º do Código Penal Brasileiro, a saber:

Art. 7º - Ficam sujeitos à lei brasileira, embora cometidos no estrangeiro:                         

I - os crimes:                           

a) contra a vida ou a liberdade do Presidente da República;                          

b) contra o patrimônio ou a fé pública da União, do Distrito Federal, de Estado, de Território, de Município, de empresa pública, sociedade de economia mista, autarquia ou fundação instituída pelo Poder Público;                      

c) contra a administração pública, por quem está a seu serviço;                        

d) de genocídio, quando o agente for brasileiro ou domiciliado no Brasil; 

Aqui pode-se elencar os crimes contra a vida ou liberdade do Presidente da República, art. 7º, I, alínea a), do Código Penal.

Neste caso, os crimes contra a vida são o homicídio, induzimento ao suicídio, infanticídio e as diversas modalidades de aborto, previstos nos artigos 121 a 126 do Código Penal.

Já os crimes contra a liberdade do Presidente da República são aqueles elencados nos artigos 146 a 154-A do Código Penal, abrangendo a meu sentir, a sua liberdade individual e não somente a sua liberdade pessoal, a saber:

I – Constrangimento ilegal

II – Ameaça

III – Sequestro e Cárcere Privado

IV – Redução à condição análoga a de escravo

V – Tráfico de Pessoas

VI – Violação de domicílio

VII – Violação de correspondência

VIII – Correspondência comercial

IX – Divulgação de segredo

X – Violação de segredo profissional

XI – Invasão de dispositivo informático.

Também estão no rol dos crimes abrangidos pelo princípio da extraterritorialidade incondicionada, art. 7º, I, alínea b), aqueles cometidos contra o patrimônio ou a fé pública da União, do Distrito Federal, de Estado, de Território, de Município, de empresa pública, sociedade de economia mista, autarquia ou fundação instituída pelo Poder Público.

Os crimes contra o patrimônio estão previstos nos artigos 155 a 180 do Código Penal Brasileiro. São os seguintes os crimes contra o patrimônio:

I – Furto

II – Roubo

III – Extorsão

IV – Extorsão mediante sequestro

V – Extorsão indireta

VI – Alteração de limites

VII – Supressão ou alteração de marcas em animais

VIII – Dano

IX - Introdução ou abandono de animais em propriedade alheia

X - Dano em coisa de valor artístico, arqueológico ou histórico

XI - Alteração de local especialmente protegido

XII - Apropriação indébita

XIII - Apropriação indébita previdenciária 

XIV - Apropriação de coisa havida por erro, caso fortuito ou força da natureza

XV – Estelionato

XVI - Duplicata simulada

XVII - Abuso de incapazes

XVIII - Induzimento à especulação

XIX - Fraude no comércio

XX - Outras fraudes

XXI - Fraudes e abusos na fundação ou administração de sociedade por ações

XXII - Emissão irregular de conhecimento de depósito ou "warrant"

XXIII - Fraude à execução

XXIV – Receptação

XXV - Receptação de animal.

Por sua vez, os crimes contra a Fé Pública estão elencados nos artigos 289 a 311-A, do Código Penal Brasileiro, indo desde a moeda falsa até fraude em certame de interesse público, este introduzido pela Lei n°

O artigo 7º, inciso I, alínea c), prevê os crimes contra a administração pública, por quem está a seu serviço. 

Os crimes contra a administração pública começam do peculato, artigo 312 e se estende até ao artigo 359-H, a saber:

1. Art. 312 - Peculato

2. Art. 313 - Peculato mediante erro de outrem

3. Art. 313-A - Inserção de dados falsos em sistema de informações

4. Art. 313-B -Modificação ou alteração não autorizada de sistema de informações 

5. Art. 314 - Extravio, sonegação ou inutilização de livro ou documento

6. Art. 315 - Emprego irregular de verbas ou rendas públicas

7. Art. 316 -Concussão

8. Art. 317 - Corrupção passiva

9. Art. 318 - Facilitação de contrabando ou descaminho

11. Art. 319 - Prevaricação

12. Art. 320 - Condescendência criminosa

13. Art. 321 -  Advocacia administrativa

14. Art. 322 - Violência arbitrária

15. Art. 323 - Abandono de função

16. Art. 324 - Exercício funcional ilegalmente antecipado ou prolongado

17. Art. 325 - Violação de sigilo funcional

18. Art. 326 - Violação do sigilo de proposta de concorrência

19. Art. 328: Usurpação de função pública (TCO)

20. Art. 329: Resistência (TCO)

21. Art. 330: Desobediência (TCO)

22. Art. 331: Desacato (TCO)

23. Art. 332: Tráfico de influência (IP)

24. Art. 333: Corrupção ativa (IP)

25. Art. 334: Descaminho (IP)

26. Art. 334-A: Contrabando.

27. Art. 335: Impedimento, perturbação ou fraude de concorrência (TCO)

28. Art. 336: Inutilização de edital ou de sinal (TCO)

29. Art. 337: Subtração ou inutilização de livro ou documento (IP)

30. Art. 337A: (IP)

31. Art. 338: Reingresso de estrangeiro expulso (IP);

32. Art. 339: Denunciação caluniosa (IP);

33. Art. 340: Comunicação falsa de crime ou de contravenção (TCO);

34. Art. 341: Autoacusação falsa (TCO);

35. Art. 342: Falso testemunho ou falsa perícia (IP);

36. Art. 343: ... (IP);

37. Art. 344: Coação no curso do processo (IP);

38. Art. 345: Exercício arbitrário das próprias razões (TCO);

39. Art. 346: ... (TCO);

40. Art. 347: Fraude processual (TCO);

41. Art. 348: Favorecimento pessoal (TCO);

42. Art. 349: Favorecimento real (TCO);

43. Art. 349-A: Favorecimento prisional (TCO)

44. Art. 350: Exercício arbitrário ou abuso de poder (TCO);

45. Art. 351: Fuga de pessoa presa ou submetida a medida de segurança (TCO);

46. Art. 352: Evasão mediante violência contra pessoa (TCO);

47. Art. 353: Arrebatamento de preso (IP);

48. Art. 354: Motim de presos (TCO);

49. Art. 355: Patrocínio infiel;

50. Art. 355, parágrafo único: Patrocínio simultâneo ou tergiversação (IP);

51. Art. 356: Sonegação de papel ou objeto de valor probatório (IP);

52. Art. 357: Exploração de prestígio (IP);

53. Art. 358: Violência ou fraude em arrematação judicial (TCO);

54. Art. 359: Desobediência a decisão judicial sobre perda ou suspensão de direito (TCO);

55. Art. 359-A:  Contratação de operação de crédito

56. Art. 359-B: Inscrição de despesas não empenhadas em restos a pagar

57. Art. 359-C: Assunção de obrigação no último ano do mandato ou legislatura

58. Art. 359-D: Ordenação de despesa não autorizada

59. Art. 359-E:  Prestação de garantia graciosa

60. Art. 359-F: Não cancelamento de restos a pagar

61. Art. 359-G: Aumento de despesa total com pessoal no último ano do mandato ou legislatura 

62. Art. 359-H: Oferta pública ou colocação de títulos no mercado

Para todos esses casos, o agente é punido segundo a lei brasileira, ainda que absolvido ou condenado no estrangeiro.

3.2. Princípio da defesa.

O princípio da defesa, também chamado de princípio real ou da proteção leva em conta para a aplicação da lei penal brasileira o bem jurídico lesado, independentemente do local ou da nacionalidade do agente.

3.3. Princípio da extraterritorialidade condicionada

Pelo princípio da extraterritorialidade condicionada, como o próprio nome sugere, para a aplicação da lei penal brasileira é necessário que algumas condições sejam observadas, sendo os casos previstos no artigo 7º, inciso II, do Código Penal Brasileiro, a saber:

Destarte, nos casos do inciso II, a aplicação da lei brasileira depende do concurso das seguintes condições:                         

a) entrar o agente no território nacional;                         

b) ser o fato punível também no país em que foi praticado;                           

c) estar o crime incluído entre aqueles pelos quais a lei brasileira autoriza a extradição;                       

d) não ter sido o agente absolvido no estrangeiro ou não ter aí cumprido a pena;                       

e) não ter sido o agente perdoado no estrangeiro ou, por outro motivo, não estar extinta a punibilidade, segundo a lei mais favorável.  

Desta feita, o Código Penal Brasileiro elencou os casos de extraterritorialidade condicionada, artigo 7º, II, do Código Penal, a saber:

a) que, por tratado ou convenção, o Brasil se obrigou a reprimir;                              

b) praticados por brasileiro;                            

c) praticados em aeronaves ou embarcações brasileiras, mercantes ou de propriedade privada, quando em território estrangeiro e aí não sejam julgados.  

3.3.1 Princípio da justiça universal

Também chamado de princípio cosmopolita, segundo o qual, o criminoso deve ser julgado e punido onde for praticado o delito, segundo as leis desse país, não se levando em conta o lugar do crime, a nacionalidade do autor ou o bem jurídico lesado.

3.3.2. Princípio da nacionalidade

O princípio da nacionalidade também é conhecido por princípio da personalidade, e cogita-se a aplicação da lei do país de origem do agente, pouco importando o local onde o crime foi cometido.

Esse princípio subdivide-se em duas subespécies:

I - Nacionalidade ativa: somente se considera se o autor do delito é nacional, sem se cogitar da vítima.

II - Nacionalidade passiva: exige, para a aplicação da lei penal, sejam nacionais o autor e o ofendido do ilícito penal. 

3.3.3. Princípio da representação.

Conhecido também por princípio da bandeira ou do pavilhão. Determina a aplicação da lei do país quando, por deficiência legislativa ou desinteresse de outro que deveria reprimir o crime, este não o faz, e diz respeito aos delitos cometidos em aeronaves ou embarcações. 


4. PRINCÍPIOS ADOTADOS PELO CÓDIGO PENAL NA EFICÁCIA ESPACIAL DA LEI PENAL

Em face de toda exposição fática, pode-se afirmar que a Legislação penal brasileira adotou os seguintes princípios segundo as hipóteses previstas em especial nos artigos 5º e 7º do Código Penal.

1º - territorialidade: art. 5º (regra);

2º - real ou de proteção: art. 7º, I e § 3º;

3º - justiça universal: art. 7º, II, a;

4º - nacionalidade ativa: art. 7º, II, b;

5º - representação, da bandeira ou pavilhão: art. 7º, II, c.


5. O CASO SUPOSTAMENTE CRIMINOSO DO JOGADOR DE FUTEBOL REGISTRADO NO BRASIL E A APLICAÇÃO DA LEI PENAL BRASILEIRA.

Após toda exposição jurídico-penal, passa-se doravante à análise da hipótese de aplicação da lei penal brasileira a fotos ocorridos fora do Brasil.

A lei penal brasileira pode ser aplicada a fatos registrados fora do país em várias possibilidades jurídicas.

No caso do jogador de futebol, que é acusado de ter estuprado uma jovem brasileira no interior de um hotel na França, trata-se de fato grave e considerado hediondo, o que nasce para o Estado o exercício da pretensão penal punitiva, evidentemente, viabilizado palmilhadas investigações pela Polícia Judiciária, nos termos do artigo 4º e SS do Código de Processo Penal.

No caso em testilha, pode-se dizer em adoção do princípio da extraterritorialidade condicionada, uma vez que o Brasil por Convenção se obrigou a reprimir o crime de estupro, cuja acusação se recai a um brasileiro, o que justifica a aplicação da lei penal brasileira, em razão das seguintes condições:

I – a primeira condição é que o agente tenha entrado no território brasileiro, o que se motiva a aplicação do princípio sob exame.

II - ser o fato punível também no país em que foi praticado, o que também se evidencia, eis que a França também pune a prática do estupro em seu Código Penal, preenchendo aquilo que se chama de dupla tipicidade. 

III - não ter sido o agente absolvido no estrangeiro ou não ter aí cumprido a pena, o que também se confirma, uma vez que o fato não foi registrado na Polícia francesa.

Pode-se afirmar que estamos diante do princípio da extraterritorialidade condicionada, com a presença de todas as condições de procedibilidade para o exercício da ação penal, muito embora, a meu juízo, quem deveria apurar os fatos seria a Polícia francesa, pelos argumentos expendidos nas conclusões finais deste ensaio.


6. DO CRIME DE VAZAMENTO DE IMAGENS E FOTOS ÍNTIMAS

O crime de divulgação de cena de estupro ou de cena de estupro de vulnerável, de cena de sexo ou de pornografia foi incluído pela Lei nº 13.718, de 2018, que acrescentou o artigo 218-C no Código Penal, consistente oferecer, trocar, disponibilizar, transmitir, vender ou expor à venda, distribuir, publicar ou divulgar, por qualquer meio - inclusive por meio de comunicação de massa ou sistema de informática ou telemática -, fotografia, vídeo ou outro registro audiovisual que contenha cena de estupro ou de estupro de vulnerável ou que faça apologia ou induza a sua prática, ou, sem o consentimento da vítima, cena de sexo, nudez ou pornografia.

A pena para esse tipo de conduta criminosa é de reclusão, de 1 (um) a 5 (cinco) anos, se o fato não constitui crime mais grave, havendo aumento de pena de 1/3 (um terço) a 2/3 (dois terços) se o crime é praticado por agente que mantém ou tenha mantido relação íntima de afeto com a vítima ou com o fim de vingança ou humilhação.

Como se sabe, após o registro do suposto crime de estupro na França, houve o vazamento de imagens de fotos íntimas da jovem que registrou o fato de estupro numa Delegacia de Polícia em São Paulo.

Trata-se de crime comum, que pode ser praticado por qualquer pessoa, instantâneo que consuma no exato momento da conduta criminosa, comissivo, porque denota ação do agente e crime formal eis que a conduta se perfaz tão somente com a conduta criminosa, não havendo necessidade de resultado naturalístico.

Por se tratar de crime de médio potencial ofensivo, cuja pena mínima não é superior a 01 ano, cabe a suspensão condicional do processo, a teor do artigo 89 da Lei nº 9.099/95.


7. DAS CONSIDERAÇÕES FINAIS

De todo o exposto, há de se afirmar que as informações acusatórias são gravíssimas, considerando que o crime de estupro é classificado e rotulado como crime violento e hediondo.

O fato teria ocorrido na França, em 15 de maio de 2019, no interior de um hotel, mas registrado numa Unidade Policial no Brasil, o que atende perfeitamente as condições para o exercício da ação penal no Brasil, preenchidas, é claro, as condições de procedibilidade do artigo 7º, inciso II, do Código Penal, muito embora, a meu sentir, devesse ser apurado pela Polícia francesa, onde estaria a maior parte das provas, como depoimentos de testemunhas do hotel, imagens de vídeo-monitoramento das instalações na França e demais meios de prova.

Sabe-se que se a Polícia brasileira necessitar inquirir testemunhas do fato, e com certeza isso vai acontecer, em especial, empregados do hotel na França, deverá utilizar-se de meios de cooperação como carta rogatória e outros meios de prova, devendo tramitar por meio das vias diplomáticas, o que pode dificultar ou demorar para a apuração do crime.

Quando ao fato da divulgação e vazamento das imagens íntimas da jovem, crime previsto no artigo 218-C do Código Penal, aqui a matéria de competência e atribuição investigativa não possui e nem oferece maiores implicações, aplicando a lei penal brasileira em face do princípio da territorialidade, artigo 5º do Código Penal.

Noutra toada, não comprovando os fatos imputados ao jogador de futebol, a própria lei brasileira prevê o crime de denunciação criminosa, previsto no artigo 339 do Código Penal, consistente em dar causa à instauração de investigação policial, de processo judicial, instauração de investigação administrativa, inquérito civil ou ação de improbidade administrativa contra alguém, imputando-lhe crime de que o sabe inocente, com pena de 02 a 08 anos de reclusão, além de multa.

O crime de denunciação criminosa é considerado comum, porque pode ser cometido por qualquer pessoa, não se exigindo nenhuma condição especial em relação ao sujeito ativo.

De acordo com a lição do festejado professor NELSON HUNGRIA:

“Denunciação caluniosa, perante o nosso Código, é crime de quem, mala fide, atribui falsamente à pessoa individualizada uma determinada infração penal (crime ou contravenção), provocando contra o acusado a atividade policial ou judicial”.

Por fim, espera-se que o fato seja rigorosamente apurado na forma da legislação em vigor, dentro do mais rigoroso tecnicismo e profissionalismo dos órgãos que compõem o sistema de persecução criminal para que a sociedade mundial tenha a verdadeira dimensão daquilo que efetivamente ocorreu intramuros na França e também possível crime cibernético no Brasil prevalecendo, unicamente, a verdadeira justiça, nada mais que isso, que há de sobrepujar sobre o poder econômico, fama e estrelismos, de um lado e, possíveis oportunismos de outro.


DAS REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BOTELHO, Jeferson. Manual de Processo Penal; FERNANDES, Fernanda Kelly Silva Alves,  Editora D´Plácido, BH, 1ª edição, 20015.

BOTELHO, Jeferson Botelho. Elementos do Direito Penal. Editora D´Plácido, BH, 1ª edição, 2016.

CUNHA, Rogério Sanches. Manual de Direito Penal. Parte Especial. 5ª edição. Editora Jus PODIVM. 2013.


Autor

  • Jeferson Botelho Pereira

    Jeferson Botelho Pereira. Ex-Secretário Adjunto de Justiça e Segurança Pública de MG, de 03/02/2021 a 23/11/2022. É Delegado Geral de Polícia Civil em Minas Gerais, aposentado. Ex-Superintendente de Investigações e Polícia Judiciária de Minas Gerais, no período de 19 de setembro de 2011 a 10 de fevereiro de 2015. Ex-Chefe do 2º Departamento de Polícia Civil de Minas Gerais, Ex-Delegado Regional de Governador Valadares, Ex-Delegado da Divisão de Tóxicos e Entorpecentes e Repressão a Homicídios em Teófilo Otoni/MG, Graduado em Direito pela Fundação Educacional Nordeste Mineiro - FENORD - Teófilo Otoni/MG, em 1991995. Professor de Direito Penal, Processo Penal, Teoria Geral do Processo, Instituições de Direito Público e Privado, Legislação Especial, Direito Penal Avançado, Professor da Academia de Polícia Civil de Minas Gerais, Professor do Curso de Pós-Graduação de Direito Penal e Processo Penal da Faculdade Estácio de Sá, Pós-Graduado em Direito Penal e Processo Penal pela FADIVALE em Governador Valadares/MG, Prof. do Curso de Pós-Graduação em Ciências Criminais e Segurança Pública, Faculdades Unificadas Doctum, Campus Teófilo Otoni, Professor do curso de Pós-Graduação da FADIVALE/MG, Professor da Universidade Presidente Antônio Carlos - UNIPAC-Teófilo Otoni. Especialização em Combate à corrupção, crime organizado e Antiterrorismo pela Vniversidad DSalamanca, Espanha, 40ª curso de Especialização em Direito. Mestrando em Ciências das Religiões pela Faculdade Unida de Vitória/ES. Participação no 1º Estado Social, neoliberalismo e desenvolvimento social e econômico, Vniversidad DSalamanca, 19/01/2017, Espanha, 2017. Participação no 2º Taller Desenvolvimento social numa sociedade de Risco e as novas Ameaças aos Direitos Fundamentais, 24/01/2017, Vniversidad DSalamanca, Espanha, 2017. Participação no 3º Taller A solução de conflitos no âmbito do Direito Privado, 26/01/2017, Vniversidad DSalamanca, Espanha, 2017. Jornada Internacional Comjib-VSAL EL espaço jurídico ibero-americano: Oportunidades e Desafios Compartidos. Participação no Seminário A relação entre União Europeia e América Latina, em 23 de janeiro de 2017. Apresentação em Taller Avanco Social numa Sociedade de Risco e a proteção dos direitos fundamentais, celebrado em 24 de janeiro de 2017. Doutorando em Ciências Jurídicas e Sociais pela Universidad Del Museo Social Argentino, Buenos Aires – Argentina, autor do Livro Tráfico e Uso Ilícitos de Drogas: Atividade sindical complexa e ameaça transnacional, Editora JHMIZUNO, Participação no Livro: Lei nº 12.403/2011 na Prática - Alterações da Novel legislação e os Delegados de Polícia, Participação no Livro Comentários ao Projeto do Novo Código Penal PLS nº 236/2012, Editora Impetus, Participação no Livro Atividade Policial, 6ª Edição, Autor Rogério Greco, Coautor do Livro Manual de Processo Penal, 2015, 1ª Edição Editora D´Plácido, Autor do Livro Elementos do Direito Penal, 1ª edição, Editora D´Plácido, Belo Horizonte, 2016. Coautor do Livro RELEITURA DE CASOS CÉLEBRES. Julgamento complexo no Brasil. Editora Conhecimento - Belo Horizonte. Ano 2020. Autor do Livro VIOLÊNCIA DOMÉSTICA. 2022. Editora Mizuno, São Paulo. articulista em Revistas Jurídicas, Professor em Cursos preparatórios para Concurso Público, palestrante em Seminários e Congressos. É advogado criminalista em Minas Gerais. OAB/MG. Condecorações: Medalha da Inconfidência Mineira em Ouro Preto em 2013, Conferida pelo Governo do Estado, Medalha de Mérito Legislativo da Assembléia Legislativa de Minas Gerais, 2013, Medalha Santos Drumont, Conferida pelo Governo do Estado de Minas Gerais, em 2013, Medalha Circuito das Águas, em 2014, Conferida Conselho da Medalha de São Lourenço/MG. Medalha Garimpeiro do ano de 2013, em Teófilo Otoni, Medalha Sesquicentenária em Teófilo Otoni. Medalha Imperador Dom Pedro II, do Corpo de Bombeiros, 29/08/2014, Medalha Gilberto Porto, Grau Ouro, pela Academia de Polícia Civil em Belo Horizonte - 2015, Medalha do Mérito Estudantil da UETO - União Estudantil de Teófilo Otoni, junho/2016, Título de Cidadão Honorário de Governador Valadares/MG, em 2012, Contagem/MG em 2013 e Belo Horizonte/MG, em 2013.

    Autor do livro <em>Tráfico e Uso Ilícitos de Drogas: atividade sindical complexa e ameaça transnacional</em> (JH Mizuno). Participação nos livros: "Lei 12.403/2011 na Prática - Alterações da Novel legislação e os Delegados de Polícia", "Comentários ao Projeto do Novo Código Penal PLS 236/2012", e "Atividade Policial" (coord. Prof. Rogério Greco), da Impetus. Articulista em Revistas Jurídicas.

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PEREIRA, Jeferson Botelho. Estupro em hotel de Paris? Repercussão mundial e a extraterritorialidade da lei penal brasileira. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 24, n. 5816, 4 jun. 2019. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/74358. Acesso em: 29 mar. 2024.