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A crise da modernidade e a insegurança social

A crise da modernidade e a insegurança social

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Resumo: Trata da possibilidade de se estabelecer uma relação entre a insegurança social e a crise da modernidade. Destaca que o "vácuo civilizatório" estaria relacionado com o aumento das incivilidades. Propõe a análise da insegurança a partir das pequenas desordens ou incivilidades.

Palavras-chave: segurança pública, crise da modernidade, insegurança social, incivilidades.


1. INTRODUÇÃO

No século XXI os temas relacionados a Segurança Pública continuam a mobilizar pesquisadores, políticos, jornalistas, organizações não governamentais e gestores de instituições responsáveis pela preservação da paz social. As discussões giram em torno de uma problemática que surgiu juntamente com os modernos Estados centralizados ocidentais. Nesse sentido, se tornou clássica a perspectiva de que graças, em larga medida, à ascensão do Estado centralizador e sua tentativa de monopolizar a violência, os ocidentais se tornaram cada vez mais auto-controlados, do longo período que vai do século XIV ao século XX (ELIAS, 1993).

De acordo com as análises da maioria dos autores que se ocupam do estudo da sociedade política, os fins do Estado, qualquer que seja a ideologia que o suporte, são tradicionalmente três: "a segurança, a justiça e o bem-estar, material e espiritual (SANTOS, 1999, p.11). Portanto, a Segurança Pública, mais que um assunto dos governos, independentemente de sua esfera de atuação (federal, estadual e municipal) constituiria uma prioridade do Estado.

Na presente reflexão adota-se um conceito operacional de Segurança. Aceita-se que ela pode ser abordada nas dimensões macro e micro, e comporta condições objetivas e subjetivas. Com vista a uma melhor compreensão dos fenômenos da insegurança e sua relação com a crise da modernidade, procura-se equacionar os grandes enquadramentos aplicáveis à situação de crise que se vive nas sociedades contemporâneas, profundamente afetadas pelas novas tecnologias, pela mudança acelerada, pela competitividade desenfreada e pela radicalização do processo de globalização.

Elege-se, por contraposição ao entendimento do que seja Segurança algumas noções daquilo que para o senso comum significa insegurança, tais como estado de medo; desesperança; auto-constrangimento; incerteza, receio do desconhecido. Daí o enorme peso dos fatores subjetivos. Nesta análise considera-se a importância que assume cada vez mais o sentimento de insegurança, nota-se como esse se alimenta das crises concretas do dia a dia, da delinqüência, e também de ameaças difusas, sejam de natureza econômica, política, social ou mesmo das chamadas incivilidades.

Tendo em vista que a incerteza crescente e continuada deste estado de coisas vai se instalando no espírito dos homens e aos poucos se transforma em medo, constata-se como as tentativas para medir a insegurança se deparam com duas realidades observáveis muito distintas: por um lado, estatísticas conjugadas com dados demográficos e geográficos, baseados em fatos concretos, crimes e delitos diversos; por outro lado, os sentimentos de insegurança, que não passam de processos de leitura do mundo circundante, modos pessoais de interpretação, caracteristicamente subjetivos e muito dificilmente mensuráveis. De qualquer modo, face à delinqüência, às incivilidades e às ameaças difusas, é possível perceber a existência de um clima de desconfiança.


2. O VÁCUO CIVILIZATÓRIO

Atualmente, a insegurança social abriu caminho para uma insegurança e um vazio existencial. Não se nota que as pessoas tenham adquirido maior certeza ou segurança do que os seus antepassados. No século XVIII edificou-se o projeto civilizatório da modernidade. Esse projeto, a Ilustração, segundo Sérgio Paulo Rouanet (1993), afirmava a razão e o método científico como únicas fontes de conhecimento válido, rejeitava qualquer concepção do mundo derivada do dogma, da superstição e da fantasia e sustentava-se em três ingredientes conceituais: universalidade, individualidade e autonomia. Todavia, catástrofes provocadas pelo Homem jogaram por terra a crença hegeliana no progresso da razão. O messianismo científico cedeu lugar à emergência de todo tipo de novas seitas e igrejas, ao mesmo tempo que acontece uma recristianização, uma reislamização e uma rejudaização do mundo. É, segundo Gilles Kepel (1993) a Revanche de Deus.

A descrença nas religiões tradicionais e novas, associada à falta de respostas racionais às dúvidas, levou grande parte da humanidade a mergulhar em todo tipo de leitura e experiência mística e esotérica, fazendo florescer, em velocidade cada vez maior, rituais mágicos e suicidas, práticas alucinógenas com justificativas religiosas, meditações em templos energizados em forma de pirâmides, além de cristais, mantras, fadas, duendes e bruxos.

Em Mal-estar na Modernidade, Rouanet afirma: "como a civilização que tínhamos perdeu sua vigência e como nenhum outro projeto de civilização aponta no horizonte, estamos vivendo, literalmente, num vácuo civilizatório. Há um nome para isso: barbárie" (ROUANET, 1993:11).

A chamada crise da modernidade tem produzido alguns paradoxos, um dos quais é a associação do racional com o irracional quando as últimas descobertas da ciência e da tecnologia se combinam com antigos mitos e crenças religiosas. Apesar de muitos avanços, a humanidade continua a viver num mundo em que a irracionalidade e superstição ainda prevalecem. E num mundo irracional tudo é possível.

Alexis de Toqueville considerava a religião como um dos cimentos aglutinadores das sociedades modernas. Quando os princípios transcendentes da religião entram em declínio, verifica-se que eles não acarretam mais a conformidade com as regras que enunciam (ROCHÉ, 2002).


3. A SOMBRA DE UMA CRISE SOCIAL

As mudanças sociais profundas e rápidas podem dar origem a crises sociais extensas e duradouras, ocasionando instabilidade e promovendo incertezas. O desequilíbrio subsequente é favorável ao desenrolar de processos conflituais, o que eventualmente gera insegurança.

Os valores sociais são idéias, normas, conhecimentos, técnicas e objetos materiais, em torno dos quais se vão condensando, pela interação social, opiniões e atitudes favoráveis, baseadas sobretudo em opiniões positivas. Pode acontecer que a sociedade se encontre mergulhada numa crise generalizada de valores tradicionais. Contemporaneamente imperam, como novos valores o enriquecimento rápido e sem obstáculos; o carreirismo feroz e sem ética; a pressão desmedida para o consumismo; e a busca frenética pelo hedonismo sem barreiras.

Por sua vez a socialização é o processo pelo qual ao longo da vida a pessoa aprende e interioriza os elementos sócio-culturais do seu meio, integrando-os na estrutura da sua personalidade sob a influência de experiências de agentes sociais significativos, adaptando-se assim ao ambiente social em que deve viver em harmonia. A situação torna-se crítica quando as principais agências de socialização (família, escola, igreja) deixam de cumprir o seu papel.

Finalmente, o controle social se constitui no conjunto de sanções positivas e negativas, formais e informais, a que a sociedade recorre para assegurar a conformidade de condutas aos modelos estabelecidos. Neste caso, a crise traduz-se nas principais agências de controle social (família, escola, igreja, polícia, tribunais, prisões) as quais se encontram em grandes dificuldades para o exercício desse controle.

Considerando os aspectos referidos, mais as macro influências da mudança social acelerada, da globalização, da desigualdade social, entre outras, pode admitir-se que a tendência vai no sentido do agravamento da crise social. Uma visão pessimista em que se corre o forte risco de caminhar para a desagregação social e para a anomia. O Estado se encontra em pane: antes, excessivamente tolerante perante a pequena delinqüência e as desordens, não sabia o que fazia; agora, perante o avolumar dos problemas, não sabe o que fazer (ROBERT, 2002).


4. INSEGURANÇA

Estreitamente associadas com o termo insegurança aparecem sistematicamente as palavras perigo e risco que, na linguagem vulgar, são tomadas como sinônimos. Os significados de risco confundem-se: estudo dos perigos; inventário das rupturas possíveis; recensão dos problemas; identificação das vulnerabilidades. O estudo do modo como as populações afetadas se sentem ou não em perigo, a sua percepção própria do risco, é um domínio privilegiado das ciências sociais, como argumenta David Le Breton (1995).

Uma outra sociologia do risco relaciona-se antes com o significado das atividades empreendidas pelos atores sociais na sua vida pessoal e profissional, os seus divertimentos, para irem ao encontro do risco ou para se protegerem dele. Desde finais dos anos sessenta, certas atividades com mais ou menos elevado grau de risco conhecem um sucesso estrondoso, assim como as empresas de "aventura" ou dos novos aventureiros ou esportes radicais. De igual modo, embora noutro plano, desenvolvem-se e suscitam inquietação as chamadas condutas de risco das gerações mais novas.

Dando possibilidade de manifestação das paixões pelo risco, o indivíduo confronta-se fisicamente com o mundo, tenta alcançar marcas, esforça-se por ter nas mãos uma realidade que lhe escapa. Assim, os desafios que toma a iniciativa de enfrentar servem para testar o valor da própria existência. Paradoxalmente, ao mesmo tempo que tal se verifica, as nossas sociedades conhecem um clima de segurança objetiva raramente atingido ao longo da história.

O risco, em sentido técnico, é hoje uma medição da incerteza e indica a probabilidade, com uma margem de erro segura de êxito de uma conduta ou de uma empresa, e sublinha a adversidade susceptível de ocorrer ao ator ou à população que negligencia uma informação ou que se empenha numa ação particular. Ele mostra a extensão das ameaças que pairam sobre a coletividade devido a certas particularidades. O deslizar do significado do termo risco, de referência a uma probabilidade a sinônimo de uma ameaça ou de um perigo pode ser percebido como indicativo de uma sociedade preocupada com a segurança e desejosa de assegurar a prevenção das diferentes formas de entraves e desgraças que atingem o ser humano.

Os receios não são os mesmos em diferentes culturas, classes sociais ou épocas. O risco é uma noção socialmente construída, eminentemente variável no tempo e no espaço. No ambiente de incerteza instalado pela maior visibilidade da crise social e cultural desenvolvida a partir dos nos anos setenta, o desejo de segurança tomou uma dimensão política considerável.

O sentimento de insegurança na vida cotidiana alimenta-se da crise de ameaças difusas sobre a existência, dado que o estilo de vida das nossas sociedades multiplicam as zonas de vulnerabilidade. Toda a percepção do risco, como defende Breton (1995), implica uma forte conotação afetiva e a influência de um discurso social e cultural. O medo está menos ligado à objetividade do risco do que aos imaginários induzidos.

Segundo Pierre Mannoni (1982) é no espírito dos homens que se encontra a verdadeira sede do medo, é lá que ele exerce plenamente os seus poderes. Os animais não o desconhecem, mas o que estes experimentam fica muito abaixo do que pode conhecer o homem: as suas notáveis faculdades de representação e de imaginação fazem dele o principal artesão dos seus terrores e ao mesmo tempo o propagandista dos mesmos. Embora útil para a salvaguarda do indivíduo em certas circunstâncias, o medo representa sempre uma prova desagradável para quem o experimenta.

Entre as tentativas para medir a insegurança e aquilo que se apreende como sentimento de insegurança joga-se uma parte delicada que deixa livre curso a incertezas e pode dar lugar a interpretações variadas. Medidas relativamente objetivas de certos aspectos da insegurança são as estatísticas das ocorrências policiais, um certo número da fatos que constituem a base racional do que se chama insegurança: os crimes e delitos contra as pessoas, como homicídios, agressão, maus tratos, estupros; os crimes contra a propriedade, como roubo, furto, arrombamento, receptação, invasão; os crimes ligados a droga, como produção, tráfico, posse e consumo. A utilização de tais medidas conjugadamente com elementos de caráter demográfico permite construir indicadores, embora sujeito a críticas, do grau de insegurança por áreas geográficas.

Quanto a medir o sentimento de insegurança, é algo que se apresenta bastante complicado. Relacionados com este estado ou condição revelam-se numerosos fenômenos psicossociológicos, implicando forte subjetividade. Roché, citado por Jean-Luc Mathieu (1995), afirma que o sentimento de insegurança é um processo de leitura do mundo circundante. Apodera-se dos indivíduos como uma síndrome de emoções (medo, raiva, ciúme) cristalizadas acerca do crime e dos seus autores. Como qualquer leitura, o sentimento de insegurança é redutor. Antes de mais nada, ele mostra que não é necessário ter sido o próprio indivíduo vítima, ou ter tomado contato direto com uma vítima. Em primeiro lugar é um elemento que tende a provar que não se trata de uma simples leitura da realidade mas de um modo pessoal de interpretação. Em segundo lugar, conclui ser importante na formação do medo aquilo que se chama de incivilidades, reunindo nesse termo indelicadezas, gritarias, arruaças, exibicionismos ruidosos, vandalismos, comportamentos desbragados, atividades de bandos de jovens. Elas são entendidas como ofensas, fraturas da sociedade, são sinais de ameaça, geram sentimentos de rejeição, de receio e são interpretadas como reflexos de degradação social. Igualmente tem um contributo importante para o aumento de dimensão do sentimento de insegurança o fato de numerosos delitos não serem esclarecidos e os seus autores ficarem impunes, dando lugar a instalação, junto a muitos cidadãos, do sentimento de terem pouco a esperar das forças públicas encarregadas de garantir a segurança.

A criminalidade provoca elevados prejuízos materiais e, fundamentalmente, conseqüências psicológicas que contribuem para uma acentuada redução dos níveis de qualidade de vida das pessoas. Além dos danos materiais que provoca, o crime tende a fazer aumentar sentimentos de medo e de desconfiança que inviabilizam, por sua vez, a existência de valores e práticas fundamentais de sociabilidade e solidariedade social. No entanto, as mesmas conseqüências resultam invariavelmente de uma incapacidade física ou de uma situação prolongada de doença ou de desemprego (FERREIRA, 1998).

Os crimes, ao contrário dos acidentes, não são encarados como uma fatalidade, mas sim como agressões intoleráveis aos valores, às leis e normas em vigor na ordem social estabelecida., promovendo o caos e a desordem. As conjunturas marcadas por uma elevada instabilidade socio-econômica e cultural e, consequentemente, por incertezas quanto ao sentido da vida e do mundo, tal como ele existe, sempre provocaram, entre outras conseqüências, um maior desejo de segurança. Encarando a intolerância ao crime como um dado adquirido, expectativas subsequentes são a repressão severa dos criminosos e a sua recuperação. Quando tais expectativas são frustadas, parece natural o aumento da insegurança. A este segue-se a atribuição de responsabilidades por múltiplos problemas sociais aos criminosos, que atuam impunemente, e aos sistemas de polícia e de justiça, que se revelam ineficazes (FERREIRA, 1998).

Sebastian Roché (1994) destaca as novas violências urbanas, aquilo que designa como pequena e média delinqüência, bem como as desordens do dia-a-dia que ele denomina de incivilidades (vandalismo, degradação, recusa de códigos de boas maneiras, etc.). O mesmo autor considera que se trata de ofensas contra a ordem social normal, que acabam por tornar a vida social insuportável por ser imprevisível, derrubando os mais elementares rituais que regem o contato entre as pessoas, rituais esses necessários numa sociedade complexa e com muita mobilidade.

As sociedades urbanas e complexas libertaram o homem do controle social abrindo-lhe oportunidades em todos os domínios, inclusive no da delinqüência. Dessa forma, registra-se um paralelismo entre o aumento da delinqüência e do medo; o Estado perdeu a capacidade para se pacificar; a sociedade não se auto vigia como uma aldeia; as políticas de prevenção e repressão não acompanhariam as mudanças sociais aceleradas. O sentimento de insegurança será, assim, expressão subjetiva da maior vulnerabilidade da estrutura social das sociedades complexas (ROCHÉ, 1994).

As principais agências de socialização (a família, a escola e a igreja) se encontram em crise. Tal estado de coisas é sistematicamente enunciado como uma das principais causas da delinqüência e envolve também a administração da justiça e da polícia. Acrescente-se que os símbolos do poder e do monopólio da violência legítima (como o porte e uso das armas e até os uniformes pelas polícias em alguns países europeus) tem sido postos em causa e mesmo privatizados, como é o caso da crescente transferência de atividades de prevenção, proteção e intervenção características dos poderes públicos para empresas privadas de segurança (ROCHÉ, 1998).


5. INSEGURANÇA NAS SOCIEDADES CONTEMPORÂNEAS

Verifica-se a necessidade metodológica de considerar os mais diversos fatores, quer objetivos, quer subjetivos que estão na origem da insegurança fatual e do sentimento de insegurança na sociedade contemporânea.

Há toda a conveniência em identificar a natureza predominante dos fatos em questão (políticos, econômicos, sociológicos, educacionais e criminológicos) de modo a permitir o seu tratamento adequado. É premente efetuar a escolha e o tratamento estatístico sistemático, abrangente e confiável dos dados que possibilitem análises globais e setoriais e diagnósticos corretos.

Note-se, porém, que esta não será uma abordagem que permita obter resultados abrangentes a curto prazo. É, no entanto, indispensável para possibilitar a compreensão dos fenômenos, o planejamento e a implementação de medidas e a obtenção de resultados a médio e a longo prazo. Numa tentativa simplista, meramente operacional e exemplificativa, pode-se ensaiar um alinhamento evidentemente pouco sólido, conforme se verifica no QUADRO 1.

QUADRO 1 - Fatores sociais, comportamentos e criminalidade geradores de insegurança

Fatores sociais

Comportamentos marginais

Criminalidade

  • Pobreza.

  • Precariedade de emprego;

  • Desemprego;

  • Receio quanto ao futuro;

  • Exclusão.

  • Consumo de drogas;

  • Incivilidades.

  • Delinqüência juvenil;

  • Pequena criminalidade;

  • Violência urbana;

  • Tráfico de drogas;

  • Alta violência;

  • Crime organizado;

  • Terrorismo.

Acrescentam-se como fatores sociais geradores de insegurança as situações de gueto. As situações de pobreza, de desemprego, de desenraizamento cultural, de dificuldades na habitação e tantas outras motivadoras de exclusão social facilitam o aparecimento de áreas habitacionais mais ou menos degradadas e segregadas. Geram-se situações de autêntico gueto, no mau sentido da palavra, onde os valores da sociedade pouco pesam, a socialização funciona no pior modo, promovendo o aparecimento de bandos juvenis, de infratores e de traficantes de drogas; e o controle social seria muito difícil de exercer. É alto o risco de se constituírem áreas sem lei ou terra de ninguém, no man’s land no dizer de Philippe Cohen (1999); ou pior ainda, territórios dominados por bandos organizados, onde a polícia tenha dificuldade em entrar.

O consumo de drogas encontra-se bastante documentado. As chamadas incivilidades podem ser interpretadas como sintomas anunciadores de mal maior e a sua percepção permite introduzir algumas medidas com caráter preventivo. Acrescente-se a conveniência de equacionar as suas relações com a denominada teoria do vidro quebrado e com a prática da tolerância zero.

Esta última pretende ser uma nova abordagem da sociedade face à delinqüência, procurando remediar as conseqüências da cultura da desculpa que entretanto se instalou. Pretende romper com a tolerância sem limites, tornar efetiva a responsabilização de quem prevarica. A idéia é a de que prevenção e repressão andam a par, não fazendo sentido uma sem a outra (FENECH, 2001).


6. AS INCIVILIDADES

Embora alguns considerem simples, a relação das incivilidades com o medo e a insegurança é um fato. Ao tomar por pressuposto que as incivilidades, ao gerar um clima de mal-estar social, favorecem a insegurança, torna-se necessário e urgente a implementação de ações para as reduzir. Mas qual o caminho a trilhar?

Certamente as crises econômicas favorecem o crescimento de frustrações, cujo exacerbação pode facilmente ocasionar incivilidades e, em conseqüência, furtos, roubos e agressões. Isso obriga a levar a sério as pequenas desordens. Mas o que se entende por incivilidades? Como se expressam no cotidiano?

As incivilidades não são roubos ou agressões; não são prejuízos materiais graves; nem tampouco agressões físicas. Trata-se de uma quebra das regras de convívio em harmonia. São fatos que transformam as aparências de normalidade. Por conseqüência, as reações das pessoas frente as incivilidades, sejam de retraimento ou de fuga, contribuem para a construção da insegurança.

As incivilidades caracterizam-se por comportamentos não lucrativos, desafiadores, pouco organizados e muito visíveis. São pouco reprovadas, raramente consideradas graves e condenáveis, e, são públicas. Assim, traduzem tensões sobre a ocupação dos espaços e sobre as relações entre indivíduos. Podem também incluir uma dimensão étnica, com origem na incompreensão de concepções e práticas diferenciadas conforme as origens. Cotidianamente se concretizam sob a forma de:

  • Pequenas degradações: arrombamento de caixas de correio, lâmpadas partidas, incêndios de caixotes de lixo, quebra de telefones públicos.

  • Sujeiras: dejetos e lançamento de objetos em espaços coletivos, pichações e incrições de obscenidades nas paredes.

  • Ausência ou rompimento das regras de boa educação: provocações, desafios, intimidações, insultos.

  • Confrontos em torno do uso do espaço, os ruídos, os cheiros.

Quanto ao aspecto quantitativo das incivilidades, o que se revela insuportável é a sua repetição cumulativa. Quando não são reprovadas ficam afastadas da noção de desvio e hoje em dia quase não são condenáveis. Que existe uma dificuldade em coibi-las é um fato, mas dada a sua quantidade, elas tornam-se insuportáveis.

Os autores das desordens desenvolvem uma visão individualista das coisas, enquanto a indiferença progride, alimentada pela tolerância. Se perante o cometimento de uma incivilidade ninguém contesta, não há antagonismo sobre uma regra social nem tampouco denúncia da infração à norma, mas apenas indiferença face às suas conseqüências negativas.

Questão que levanta fortes interrogações é a de saber se estamos ou não perante práticas que podem ser consideradas como delinqüentes e, sobretudo, no caso de não serem qualificadas como delitos, definir quem é competente para fazer o que face às incivilidades.

O sentimento de insegurança, alimenta-se das crises concretas do dia-a-dia, da delinqüência das ameaças difusas, de natureza econômica, política, social ou mesmo das incivilidades. A incerteza crescente e continuada disto resultante se instala no espírito dos homens e aos poucos se transforma em medo. Os sentimentos de insegurança, no entanto, são processos de leitura do mundo circundante, modos pessoais de interpretação, caracteristicamente subjetivos e muito dificilmente mensuráveis.

Para a formação do medo, tem muita importância aquilo que se designa por incivilidades, reunindo nesse termo as indelicadezas, gritarias, arruaças, exibicionismos ruidosos, vandalismos, comportamentos desbragados e atividades de bandos juvenis.

É fácil deslizar das incivilidades para os delitos. Veja-se o exemplo dos chamados grafitti – riscos, escritos, desenhos em paredes – que passam de expressões "artísticas" a manifestações de desenraizamento, de contestação cultural, de protesto, e logo ou simultaneamente ao dano material da propriedade alheia e mesmo à vandalização de obras de arte e monumentos históricos.

A noção de incivilidade, geralmente tomada como sinônimo de pequenas desordens, aparece cada vez mais como tendo uma influência propiciadora ao desenvolvimento de um processo em espiral que acaba por conduzir ao roubo e à agressão. Chegou-se, assim, à redescoberta da importância das relações sociais e das regras informais na vida urbana e do seu respectivo peso para realizar a prevenção da delinqüência.

Ao mesmo tempo, difundiu-se a idéia de que é preciso agir de forma mais rígida, o que implica responder a todos os delitos, de modo a afirmar a responsabilidade individual de quem os cometa. Nessa linha estaria a política repressiva, de matriz anglo-saxônica, denominada "tolerância zero", Tais noções desenvolveram-se e foram difundidas inicialmente nos Estados Unidos da América, sobretudo a partir de 1982, com a publicação de Broken Windows, artigo de autoria de James Q. Wilson e Georges Kelling, que seria traduzido para o francês em 1994 com o título de Vitres Cassés. O desenvolvimento das idéias nele defendidas viria a dar lugar à chamada teoria do vidro partido (ROCHÉ, 2002).


7. OS VIDROS PARTIDOS

Wilson e Kelling atribuem grande importância à manutenção das regras informais de comportamento nas situações de vizinhança. Aceitando que as desordens ou incivilidades se ligam à delinqüência, colocam em evidência o seguinte fato: se uma vidraça partida num prédio não for reparada, o resto dos vidros será rapidamente quebrado.

A partir daí, desenvolve-se uma espiral: quando todos os vidros estiverem partidos começam os furtos, os roubos e as agressões. Os vidros partidos são tomados como indicadores de um lugar sem lei. Mas, em vez de vidros partidos, a situação pode desenrolar-se de um simples problema de ruído para uma algazarra, que perturbaria toda a vizinhança.

Para compreender a importância desta análise, há que ter presente o efeito de demonstração de força sobre a comunidade de vizinhança, pois os vidros partidos dizem muito, informando acerca do estado de coisas na zona: degradações, insultos por parte de jovens, famílias que se desfazem, conflitos pela ocupação de passeios, acumulação de detritos. As pessoas pacíficas habituam-se a atravessar a rua para não cruzarem com grupos de jovens. Aos poucos, a zona de residência de uma comunidade pode transformar-se numa selva inóspita.

O enfraquecimento dos laços de solidariedade corresponde a um abrir de portas à delinqüência. Pretende-se confiar à polícia o papel essencial de reforçar os mecanismos informais de vigilância da própria comunidade. Isto significa complementar o controle social informal da comunidade.

Ora, as patrulhas policiais motorizadas não permitem estabelecer laços fortes com a população. Além disso, os agentes policiais não conhecem os jovens e estes consideram os policiais como uma força estranha, que se pode menosprezar com impunidade e mesmo escarnecer abertamente. Este policiamento é considerado como uma forma de caça ao delinqüente, correspondendo a uma visão individualista da lei. Nesse caso, o policial é visto como um estranho preocupado em perseguir os transgressores das normas e não procurando garantir as regras sociais de vizinhança que podem estar ameaçadas por incivilidades. Ao contrário o patrulhamento a pé e de proximidade pode contribuir para a manutenção das regras informais da comunidade, reforçando com vivência coletiva pacífica, sem quebrar os laços da polícia com a população.

Os autores insistem sobre a dimensão coletiva da vida em sociedade e, portanto, naquilo que une as pessoas ou, pelo contrário, cria medo, repulsa, desvio. A teoria do vidro partido acentua a importância dos laços sociais de proximidade. Nesse modelo, a polícia deve reforçar o processo de controle social informal da comunidade, dedicando tempo a escutar e a compreender os habitantes, interessando-se pelas pequenas desordens e intervindo para fazer cessá-las em vez de considerar tais intervenções como profissionalmente menores. Está-se, pois, longe da tolerância zero, prática realizada através de repressão sistemática de todas as infrações.

A teoria defende a reparação do vidro partido como forma de obstar à erupção de incivilidades e, assim, de evitar o desenvolvimento de espirais de desqualificação, de insegurança e de violência. Mas Kelling veio a sublinhar que a teoria da reparação do vidro partido rejeita explicitamente a idéia de fazer da polícia o elemento central de atuação. Para ele, forte coesão da vizinhança, leva os próprios habitantes a se comportarem como vigilantes naturais da zona, rareando as incivilidades. A polícia pode contribuir para baixar o nível de delitos mas não consegue substituir o papel dos habitantes.

Os meios de comunicação social, por sua vez, veiculam muito mais a idéia de tolerância zero do que da conveniência de reparar os vidros partidos. Acontece que ambas as expressões apontam para a análise do impacto das incivilidades, mas há que distinguir: a teoria do vidro partido aponta para a importância da dinâmica social global. A tolerância zero centra-se nas respostas repressivas.


8. CONSIDERAÇÕES FINAIS: DA TEORIA À PRÁTICA

A teoria do vidro partido mostra-se muito interessante atendendo ao fato de propor soluções para os problemas das desordens, uma vez que se estas forem enfrentadas pode-se conseguir baixar o número de delitos numa dada área. Além disso, consigna um lugar e uma missão à polícia.

Wilson e Kelling atribuíram uma dimensão política à degradação do ambiente nas vizinhanças, ocasionando a associação das desordens a atentados contra a qualidade de vida. O que acabou por inspirar as políticas de luta contra a delinqüência. E, precisamente em torno da noção de incivilidades, foi reformulada a atuação da polícia de Nova Iorque, com resultados retumbantes e com eco em todo o mundo. Kelling veio para a ribalta contando em pormenor o seu papel na política de reparação dos vidros partidos, entre 1994 e 1996, e também o prefeito Giuliani e o chefe da polícia William Brantton se celebrizaram pela ação desempenhada neste âmbito.

A segurança, a par com a justiça e o bem-estar, continua a ser um dos fins últimos do Estado. A delinqüência em geral é vista como geradora de insegurança, donde é natural que se tomem medidas contra ela e, numa perspectiva de prevenção que se procurem identificar os fatores que contribuem para a sua aceleração. Os gestores da segurança pública almejam tomar iniciativas que sejam realizáveis com os recursos disponíveis e que possam alcançar sucesso num prazo razoável. Porém, o normal mesmo seria que procurassem respostas para conseguir resultados imediatos. Entendendo que necessitam de identificar o que fazer de concreto para em pouco tempo começar a resolver um problema, há quem defenda que podem de imediato atacar os sintomas daquilo que eventualmente sejam causas profundas e complexas da insegurança. O tratamento credível do conjunto das supostas causas da delinqüência e da insegurança é moroso e, por isso, não facilita a tomada de medidas a curto e a médio prazo.

Se uma política de segurança baseada em medidas de prevenção e repressão da delinqüência, em termos clássicos, não substitui uma política social, então é possível que a análise da insegurança a partir das pequenas desordens ou incivilidades ponha em evidência alguns fatores sobre os quais se pode agir rapidamente, de modo a fazer baixar a delinqüência.

Estas teorias podem ser úteis mesmo para aqueles que atuam através da repressão institucional, mostrando as tendências que se desenham e apontando o que fazer. Para as polícias, não se trata tanto de explicar porque são impotentes face a determinadas situações, mas, antes, sugerir como podem ser mais eficazes.


REFERÊNCIAS

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Informações sobre o texto

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

COTTA, Francis Albert. A crise da modernidade e a insegurança social. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 10, n. 857, 5 nov. 2005. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/7461. Acesso em: 27 abr. 2024.