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Reforma da previdência e equilíbrio fiscal

Reforma da previdência e equilíbrio fiscal

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O presente artigo tem por objetivo tratar a reforma da previdência como questão fiscal. Não tem por finalidade adentrar nos pontos específicos da PEC 6/2019 em análise no congresso.

Previdência entende-se como conjunto dos regimes previdenciários dos trabalhadores da iniciativa privada e do serviço público, objetivando assegurar justiça social a todos os cidadãos que se encontram em incapacidade laborativa, seja física ou limitação biológica (idade). A previdência possui, também, caráter compensatório, ou seja, o trabalhador que hoje goza dos benefícios previdenciários pagos por diversas fontes de custeio, mas especificamente por trabalhadores ativos, outrora custeou a previdência com seu labor. A perda de capacidade de trabalhar também pode ocorrer por conta de uma gravidez (salário-maternidade), incapacidade física temporária (auxílio-doença) e até prisão (auxílio reclusão).

O desenho institucional de previdência social foi pensado originariamente, conforme boa parte do mundo, pelo regime de repartição, em que as contribuições dos trabalhadores no mercado de trabalho formal financiam os benefícios dos trabalhadores inativos (aposentadorias, pensões, auxílios). Este desenho, obriga, inevitavelmente que a população que esteja no mercado de trabalho formal seja maior que o número de idosos ou dependentes da previdência. Também exige que a quantidade de jovens ou aptos a atividade laboral seja maior que o número de inativos.

O desenho da Previdência atualmente está levando a despesa pública a uma ruptura desproporcional em relação à demografia do país. Os gastos com previdência no brasil é um dos 15 maiores do mundo e equivale ao da Alemanha, um país com mais do que o dobro de idosos. Essa desproporção do gasto em um país ainda jovem, junto com a profunda e acelerada transição demográfica (envelhecimento da população), dá ensejo a uma reforma previdenciária profunda e urgente.[1]

O total da despesa em 2017 com benefícios operados pelo INSS é de cerca de R$ 500 bilhões, com R$ 150 bilhões de déficit. Adicionalmente, a despesa do governo federal com o RPPS dos servidores civis foi de cerca de R$ 70 bilhões, com déficit de R$ 35 bilhões, segundo o Projeto de Lei Orçamentária Anual (PLOA) de 2017. Já o regime dos militares fechou 2016 com uma despesa aproximada de R$ 35 bilhões déficit de R$ 32 bilhões. Nos Estados, a soma dos déficits se aproximou de R$ 80 bilhões, enquanto os Municípios ainda apresentam superávit financeiros, mas não atuariais.[2]

Estima-se que o déficit atuarial[3] do RGPS nas próximas décadas será de quase R$ 86 trilhões, o do RPPS dos servidores civis de cerca de R$ 5 trilhões, e o dos militares de R$ 3,2 trilhões. O déficit atuarial dos Estados atinge quase R$ 5 trilhões, e o dos Municípios mais R$ 700 bilhões. Embora alguma cautela seja necessária ao analisar as estimativas como números exatos, porque há sensibilidade à evolução de parâmetros que são naturalmente incertos; qualquer previsão perto de números tão assustadores como estes, nos fazem pautar a reforma como causa urgente.[4]

Segundo o orçamento anual de 2018, as despesas com Previdência em todos os regimes, mais o Benefício de Prestação Continuada (BPC-Loas), correspondeu cerca de 33,3% do orçamento - 55% do total da despesa primária. Comparativamente, a participação das despesas com os servidores ativos foi de 18%, investimentos, tais como: saúde, educação e outros 6,3% PAC 2,8% e Bolsa Família 1,6%. [5]

Investimento público é essencial para a capacidade produtiva da economia, investimentos em infraestrutura, ciência e tecnologia, educação, saúde; por mais necessários que sejam para o país se desenvolver, constituem despesas “discricionárias”. Esse tipo de despesa se contrapõe à despesa obrigatória, que não pode ser reduzida e integra cerca de 92% do orçamento federal. São exemplos de despesas obrigatórias a Previdência e os salários do funcionalismo.

Os números impressionam. A cada ano que passa levamos a saúde financeira do país acima do limite. As propostas de investimento ficam insustentáveis frente aos custos obrigatórios que a união precisa suportar. Reflexos terríveis na economia vêm tornando o debate da reforma da previdência uma ação urgentíssima e inadiável.

O primeiro reflexo é a possibilidade eminente de elevação de carga tributária. Na ausência de mudanças, a carga tributária seria cada vez mais pressionada. Em 2015, ainda no governo Dilma Rousseff, o Ministro da Fazenda Joaquim Levy propôs a recriação da CPMF, desta vez para custear a Previdência. Enquanto isso, especialistas calculavam que na ausência de mudança de regras, já seria necessária a criação de uma nova CPMF por ano para financiar as despesas da Previdência.[6]

Com a urgência de arrecadação para cobrir o crescimento da despesa previdenciária e as dificuldades políticas, é provável que as escolhas seriam no futuro em elevar ou criar tributos com maior potencial arrecadatório, o que no cenário atual seria extremamente sufocante para a atividade econômica que patina desde de 2015, após a presidente Dilma sair do governo deixando um maior nível de desindustrialização astronômico e inflação na casa dos dois dígitos; fato inédito desde a criação do plano real.

Uma reportagem da revista The Economist no ano de 2012, apontava que sem reformas as contribuições de empregados e empregadores sobre a folha de pagamento deveriam subir dos atuais 31% para 86% progressivamente até 2050, a fim de cobrir os benefícios. Tal majoração da carga sobre a folha seria inviável e essas alíquotas destruiriam todo o mercado de trabalho.[7]

Para acomodar o crescimento dos gastos com Previdência, seriam as despesas discricionárias as com maior chance de serem comprimidas, o que atinge o investimento público. Esta questão afeta diretamente não só o governo federal, mas também os entes federados. Em maio deste ano, o governo federal anunciou uma série de cortes em despesas discricionárias, uma delas foi o contingenciamento de 30% nas verbas das universidades federais. Este anúncio causou uma enorme repercussão nas mídias do país, ainda que muito mal compreendido pela maioria delas.

Fato é que nenhum governo gosta ou faz cortes em despesas a órgãos tão importantes, tal qual o ensino superior, por simples beneplácito de sua vontade. Essas são medidas inevitáveis, tendo em vista que as despesas obrigatórias crescem exponencialmente.

Os efeitos sobre o investimento público, condição indispensável para o desenvolvimento econômico, tem sofrido a cada ano que passa efeitos deletérios. Pois, o crescente gasto público é diametralmente oposto ao aumento de arrecadação.  Em 2015 – ano de ajuste fiscal – enquanto a rubrica “outras despesas de capital”, que reflete o investimento público federal, teve redução de mais 30%, as despesas da Previdência (urbana e real) cresceram mais de 1% acima da inflação.

Os juros reais estão associados à percepção de risco em relação à capacidade do governo de honrar seus compromissos. A chance de insolvência no futuro, por conta de uma despesa estruturalmente crescente, pressionaria os juros para cima. Por sua vez, os juros reais altos sufocariam os empreendimentos que o país precisa para crescer.

A união tem emitido grandes quantidades de papais no mercado para capitar dinheiro, tem feito o país refém dos juros da dívida pública. Em 2015 quando a inflação acumulada chegou a 10% ao ano, a taxa Selic acumulou 15%[8] no mesmo ano, um paraíso ao rentismo.

Este efeito foi reconhecido em ata da reunião de fevereiro do próprio Comitê de Política Monetária (Copom) do Banco Central, que afirmou expressamente que a aprovação reforma da Previdência “pode produzir uma queda da taxa de juros estrutural da economia brasileira.[9]

Por fim, e o mais preocupante, são os efeitos demográficos que a previdência vem sofrendo. Conforme abordamos anteriormente, o desenho institucional de previdência social foi pensado originariamente, conforme boa parte do mundo, pelo regime de repartição, em que as contribuições dos trabalhadores no mercado de trabalho formal financiam os benefícios dos trabalhadores inativos (aposentadorias, pensões, auxílios). Este desenho pressupõe o envelhecimento a longo prazo.

É importante observar que o aumento da idade média da população não se deve apenas ao aumento da expectativa de sobrevida, mas também à redução das taxas de natalidade da população.  Taxa de fertilidade das mulheres no Brasil vem diminuindo ao com o passar do tempo e já é a menor da América do Sul e desde de 2005 o número de nascidos é insuficiente para repor a população. São atribuídos a esses fatores o aumento na escolaridade, a dissociação da sexualidade e o consumismo.[10]  

Assim, temos em uma ponta, menos pessoas estão nascendo para financiar os benefícios quando estiverem no mercado de trabalho, e, na outra ponta, os aposentados estão vivendo mais e recebendo os benefícios por mais tempo. Nos próximos 25 anos, o país terminará uma transição demográfica que países desenvolvidos fizeram em mais de 100 anos.[11]

Tal situação faz com que o regime de repartição sofra problema em sua matriz, tornando-o insustentável. As diversas contribuições para o financiamento da seguridade social, tais como PIS/COFINS; CSLL; Contribuição patronal; INSS sobre construções; receitas de loterias e outras, não estão sendo suficientes para conter o problema de fluxo dos gastos previdenciários, frente a demografia que desiquilibra a receita advindas da mão de obra formal. 

Em que pese a justa motivação de redução de desigualdades, a arrecadação da tributação sobre grandes fortunas ou juros e dividendos, por exemplo, não parece ser suficiente para responder ao crescimento da despesa previdenciária - partindo da premissa de que o teto de gastos não seja cumprido, e o crescimento da despesa seja absorvido por aumentos da carga tributária. Tal observação é natural diante da realidade econômica do país que, além de possuir níveis altíssimos de desigualdade de renda, possui uma renda média baixa.

O Imposto sobre Grandes Fortunas teria potencial de arrecadar cerca de R$ 7 bilhões por ano. Tal valor é muito pequeno diante das necessidades da Previdência: é inferior a despesa mensal com a pensão por morte. Ainda que sob outras hipóteses a estimativa de arrecadação do IGF seja mais otimista, fica evidente que a ordem de grandeza da despesa previdenciária é diversa.[12]

A conclusão que se chega é que a reforma previdenciária é assunto de ajuste fiscal. Sem ela o Brasil pode entrar em poucos anos em colapso fiscal, seja por falta de pagamento para o financiamento das despesas obrigatórias e investimento público. Ou, em razão da enorme carga tributária a ser criada para conter a sangria financeira.

A previdência, por essência, deve acompanhar os novos tempos e as realidades sociais e econômicas em sua contemporaneidade. A “velha” previdência já deixou há muito tempo de cumprir sua missão e seu desenho não corresponde mais aos novos tempos.


[1] COSTANZI, R. N. Estrutura Demográfica e Despesa com Previdência: Comparação do Brasil com o Cenário Internacional. Boletim Informações Fipe, dezembro de 2015.

[2] https://www12.senado.leg.br/publicacoes/estudos-legislativos/resultadopesquisa?autor=Pedro%20Fernando%20de%20Almeida%20Nery%20Ferreira

[3] ‘É a soma dos fluxos futuros de receitas e despesas, trazidas a valor presente”

[4] https://www12.senado.leg.br/publicacoes/estudos-legislativos/resultadopesquisa?autor=Pedro%20Fernando%20de%20Almeida%20Nery%20Ferreira

[5] https://www2.camara.leg.br/orcamento-da-uniao/raio-x-do-orcamento/raio-x-autografo-ploa-2018

[6] O foco do problema. O Globo. 16 de setembro de 2015.

[7] Baseado em estimativas do demógrafo Bernardo Queiroz, da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Brazil’s pension system: Tick, tock. The Economist. 24 de março de 2012. Disponível em: http://www.economist.com/node/21551093.

[8] https://www.bcb.gov.br/controleinflacao/historicotaxasjuros

[9] http://www.bcb.gov.br/htms/copom/not20170222205.pdf.

[10] Ver Camarano e Fernandes (2014). CAMARANO, A. A. FERNANDES, D. Mudanças nos Arranjos Familiares e Seu Impacto nas Condições de Vida: 1980 a 2010. CAMARANO, A. A. (Org.). Novo Regime Demográfico: uma nova relação entre população e desenvolvimento? Rio de Janeiro: Ipea, 2014

[11] TAFNER, P.; BOTELHO, C.; ERBISTI, R Transição Demográfica e o Impacto Fiscal na Previdência Brasileira. CAMARANO, A. A. (Org.). Novo Regime Demográfico: uma nova relação entre população e desenvolvimento? Rio de Janeiro: Ipea, 2014

[12] http://congressoemfoco.uol.com.br/noticias/levy-barrou-projeto-que-arrecadariar-6-bilhoes-por-ano/.



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