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Decisão em dúvida: inconstitucionalidade e ilegalidade

Decisão em dúvida: inconstitucionalidade e ilegalidade

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É inconstitucional decisão judicial como base nos brocardos "in dubio pro...".

Tempos houve em que os artigos jurídicos começavam com uma parte introdutória a retratar conceitos, traçar perfil normativo ou histórico, ou seja, fazia-se uma introdução.

Em tempos de inteligência artificial e rapidez da informação, o leitor não vai se permitir a leitura de algo que não é o âmago da discussão trazida.

Por inútil, vamos ao que realmente interessa.

Tem havido em protuberância decisões judiciais amparadas no brocardo latino do in dubio pro.... Assim, se vê desde o vetusto in dubio pro reo, ao in dubio pro societate, in dubio pro misero e mais recentemente in dubio pro natura.

A Constituição da República preconiza que todas as decisões judiciais devem ser fundamentadas (art. 93, IX)[1] e o Código de Processo Civil, repete tal preceito (artigo 11) e vai dizer não ser fundamentada a decisão que “invocar motivos que se prestariam a justificar qualquer outra decisão” (art. 489, § 1°, III).

Prossigamos.

O atual CPC empobreceu a determinação da maneira pela qual deve o juiz decidir, “Art. 140. O juiz não se exime de decidir sob a alegação de lacuna ou obscuridade do ordenamento jurídico.” O anterior era mais completo e objetivo, “Art. 126. O juiz não se exime de sentenciar ou despachar alegando lacuna ou obscuridade da lei. No julgamento da lide caber-lhe-á aplicar as normas legais; não as havendo, recorrerá à analogia, aos costumes e aos princípios gerais de direito.”

Todavia, o sentido é o mesmo, pois o que faltou no artigo 140 do atual, fez-se constar do artigo 8°:”Ao aplicar o ordenamento jurídico, o juiz atenderá aos fins sociais e às exigências do bem comum, resguardando e promovendo a dignidade da pessoa humana e observando a proporcionalidade, a razoabilidade, a legalidade, a publicidade e a eficiência”

Resumindo, o juiz deve ao decidir aplicar o ordenamento jurídico, e não pode se utilizar de motivos que possam justificar qualquer outra decisão.

A exegese é clara.

Dito isto, é flagrantemente inconstitucional (e ilegal) qualquer decisão judicial amparada no in dubio pro. Primeiro porque o legislador não admite que o juiz decida em dúvida.

Ora a vedação é clara. Está no regramento dos embargos de declaração do CPC:

Art. 1.022. Cabem embargos de declaração contra qualquer decisão judicial para:

I - esclarecer obscuridade ou eliminar contradição;

II - suprir omissão de ponto ou questão sobre o qual devia se pronunciar o juiz de ofício ou a requerimento;

III - corrigir erro material.

O anterior previa o seguinte em sua redação original:

Art. 535. Cabem embargos de declaração quando: 

I - há no acórdão obscuridade, dúvida ou contradição; 

II - for omitido ponto sobre que devia pronunciar-se o tribunal. 

Redação alterada pela Lei 8.950, de 1994, que suprimiu a palavra “dúvida”:

Art. 535. Cabem embargos de declaração quando

I - houver, na sentença ou no acórdão, obscuridade ou contradição;

II - for omitido ponto sobre o qual devia pronunciar-se o juiz ou tribunal

Assim, desde 1994 é vedada expressamente decisão judicial amparada em dúvida, tanto que se suprimiu tal situação, porquanto juiz não pode proferir nenhuma decisão com dúvida.

Segundo, o Código de Ética da Magistratura Nacional do Conselho Nacional de Justiça, preconiza:

Art. 24. O magistrado prudente é o que busca adotar comportamentos e decisões que sejam o resultado de juízo justificado racionalmente, após haver meditado e valorado os argumentos e contra-argumentos disponíveis, à luz do Direito aplicável.

Vê-se que não há espaço para decidir em dúvida.

Dito isso, entende-se cabalmente demonstrado à luz do direito positivo que ao Magistrado é vedado decidir com fundamento em dúvida. O juiz decide com base nos fatos, provas, ônus de distribuição delas e no Direito.

Todavia, pululam decisões que se amparam no brocardo citado.

Muito comum se ver nas ações previdenciárias a afirmativa de que na dúvida se resolve em favor do demandante (in dubio pro misero). Aqui, mister uma pausa.

A primeira aula de Direito Administrativo que ouvi na Faculdade de Direito da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (UNESP-Franca/SP) tratou da supremacia do interesse público sobre o privado e na indisponibilidade do interesse público.

Há autores a defender uma relativização desses princípios, nada obstante, não se concebe como nas hipóteses a serem tratadas e, tal relativização é preciso ser vista cum grano salis. Tal diluição se vê no artigo de Bruno Fischgold[2], do qual se aproveitamos a seguinte passagem:

De acordo com autores tradicionais, como Celso Antônio Bandeira de Mello, Hely Lopes e Maria Sylvia Di Pietro, a supremacia do interesse público sobre o particular consubstancia um princípio do ordenamento jurídico brasileiro, ainda que não esteja expressamente contemplado em nenhum texto normativo. Para Celso Antônio Bandeira de Mello, a prevalência dos interesses da coletividade sobre os interesses dos particulares é pressuposto lógico de qualquer ordem social estável e justifica a existência de diversas prerrogativas em favor da Administração Pública, tais como a presunção de legitimidade e a imperatividade dos atos administrativos, os prazos processuais e prescricionais diferenciados, o poder de autotutela, a natureza unilateral da atividade estatal, entre outras.

Na mesma linha, Hely Lopes Meirelles defende a observância obrigatória do princípio da supremacia do interesse público na interpretação do direito administrativo. Sustenta que o princípio se manifesta especialmente na posição de superioridade do poder público nas relações jurídicas mantidas com os particulares, superioridade essa justificada pela prevalência dos interesses coletivos sobre os interesses individuais. Para ele, o interesse coletivo, quando conflitante com o interesse do indivíduo, deve prevalecer.

Maria Sylvia Zanella Di Pietro, por sua vez, ressalta a importância de se observar tal princípio no momento tanto de elaboração da lei quanto de sua execução pela Administração Pública. Para Di Pietro, todas as normas de direito público têm a função específica de resguardar interesses públicos, mesmo que reflexamente protejam direitos individuais. Firme na premissa de que a Constituição da República de 1988 está em sintonia com as conquistas do Estado Social, Di Pietro entende que a defesa do interesse público corresponde ao próprio fim estatal. Por tal razão, o ordenamento constitucional contemplaria inúmeras hipóteses em que os direitos individuais cedem diante do interesse público. 

Não há como conciliar supremacia do interesse público com in dubio pro misero. A aplicação do princípio faz tábula rasa do preceito fundamental do direito administrativo e destrói a responsabilidade pela produção da prova.

CPC:

Art. 373. O ônus da prova incumbe:

I - ao autor, quanto ao fato constitutivo de seu direito;

II - ao réu, quanto à existência de fato impeditivo, modificativo ou extintivo do direito do autor.

Ora, a prova cabe a quem alega. A existir prova segura do direito ao benefício previdenciário é dever que se o conceda. Ausente esta, o pleito é de improcedência. Não há dúvida. Não há espaço para dúvida. A dúvida, se usada, inquina de inconstitucional e ilegal a decisão.

Abre-se espaço, e é patente, para um decisão não fundamentada, amparada no sentimento do Magistrado. Decisões sentimentais, não são jurídicas.

O Judiciário deve abandonar as "decisões sentimentais" e amparar-se na evidência científica. Aliás a fala de decisão sentimental se vê em escrito do Ministro Luis Roberto Barroso in Judicialização, ativismo judicial e legitimidade democrática. Thesis, Rio de Janeiro, vol. 5, n° 1, 2012, p. 23-32.[3] (in Sentença Proc. N. 5000417-41.2019.8.13.0040).

De mesmo sentido no caso do in dubio pro societate no momento da pronúncia e na ação de improbidade administrativa.

Nestas hipóteses temos direitos individuais em risco, liberdade, honra, nome etc.

O Juiz não tem o poder de mandar a júri popular quem quer que seja, se há dúvida, muito menos submeter o cidadão ao risco de uma ação de improbidade porque ficou em dúvida se era caso de rejeição liminar.

Não cabe dúvida em decisões judiciais, repita-se.

Na hipótese do júri ou estão presentes os requisitos do artigo 413, do CPP e então submete-se o acusado ao tribunal Popular ou se impronuncia, desqualifica-se ou absolve-se sumariamente.

No caso da improbidade administrativa de igual sorte. Na presença dos indícios suficientes, e autoria, recebe-se a inicial e determina-se seu processamento, porém, ausentes, ou sendo manifesto caso de não improbidade deve o Juiz rejeitar a petição inicial.

Art. 17. ...

§ 6º.  A ação será instruída com documentos ou justificação que contenham indícios suficientes da existência do ato de improbidade ou com razões fundamentadas da impossibilidade de apresentação de qualquer dessas provas, observada a legislação vigente, inclusive as disposições inscritas nos arts. 16 a 18 do Código de Processo Civil.

(...)

§ 8º.  Recebida a manifestação, o juiz, no prazo de trinta dias, em decisão fundamentada, rejeitará a ação, se convencido da inexistência do ato de improbidade, da improcedência da ação ou da inadequação da via eleita.

A questão é de ordem constitucional e legal. E, bom frisar, estes dispositivos da Lei de Improbidade Administrativa estão em vigor.

Apenas como exemplo, aplicou-se a dúvida para resolver uma desapropriação indireta em favor dos desapropriados, em ação cuja prescrição havia sido declarada em primeiro grau.

É do acórdão:

Portanto, na ausência de comprovação da data do início das obras, é de se adotar a data confessada na contestação (fl. 31), até porque mais favorável ao desapossado, considerando como sendo o termo inicial para a contagem do prazo o da data do início das obras, em 2005. (TJMG.  Ap. 100401200240350012017807229).

O interesse indisponível público cedeu até ante a ausência de prova do direito do autor, fato constitutivo, ônus seu, pela aplicação da dúvida em favor do desapossado.

Por último o meio ambiente dispensa um in dubio pro natura. A normativa constitucional e infraconstitucional são bastantes para a preservação; não haverá dúvida diante de um ato poluidor ou que atente contra a fauna e a flora. Basta a fundamentação adequada.

Em resumo, o ordenamento pátrio não admite decisão judicial calcada em dúvida. A existir, é ela inconstitucional e ilegal.


Notas

[1] IX- todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos, e fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade, podendo a lei limitar a presença, em determinados atos, às próprias partes e a seus advogados, ou somente a estes, em casos nos quais a preservação do direito à intimidade do interessado no sigilo não prejudique o interesse público à informação;(Redação dada pela Emenda Constitucional nº 45, de 2004).

[2] Bruno Fischgold é sócio do escritório Torreão Braz Advogados, mestre em Direito, Estado e Constituição pela Universidade de Brasília e autor do livro "Direito Administrativo e Democracia – A Inconstitucionalidade do Princípio da Supremacia do Interesse Público".

[3]  SCHULZE, Clenio Jair. GEBRAN NETO, João Pedro. Direito à Saúde. RS:Verbo Jurídico. 2019.


Autor

  • José Aparecido Fausto de Oliveira

    Fui Defensor Público/MG, Procurador do Estado/MG e Professor Universitário na Faculdade de Direito da Unifenas campus São Sebastião do Paraíso/MG. Possuo capacitação em Direito à Saúde Baseada em Evidências pelo Instituto Sírio-Libânes de Ensino e Pesquisa e estou me Especializando em Direito Sanitário pela Escola de Saúde Pública de Minas Gerais. Sou Juiz de Direito em Minas Gerais.

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Informações sobre o texto

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

OLIVEIRA, José Aparecido Fausto de. Decisão em dúvida: inconstitucionalidade e ilegalidade. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 24, n. 5907, 3 set. 2019. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/75976. Acesso em: 19 abr. 2024.