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Pressupostos para uma análise crítica do sistema punitivo

Pressupostos para uma análise crítica do sistema punitivo

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A tônica empreendida neste texto foi a de destacar a contradição entre a ideologia da defesa social e a prática concreta do sistema punitivo.

SUMÁRIO: Apresentação e ilustração inicial: Relatório do Ilanud sobre o Massacre do Carandiru1; 1. INTRODUÇÃO; 2. a nova ordem latino americana; 3. CONSTRUÇÃO histórica DA PUNIÇÃO;3.1 O Brasil Colônia ; 3.2 Do Brasil Império à Independência; 4. a questão criminológica; 4.1 o Debate Criminológico; 4.2 A Gênese Moderna do Pensamento Criminológico; 4.3 A Ideologia da Defesa Social; 4.4 Teorias que Negam os Príncípios da Ideologia da Defesa Social; 4.5 A Criminologia Crítica; 5. APONTAMENTOS SOBRE A REPRODUÇÃO SOCIAL DA DESIGUALDADE PELO SISTEMA PUNITIVO; 5.1 O Sistema Punitivo para além da legalidade; 5.2 A Inevitável Contradição; 5.3 Condicionamentos Históricos para a Reprodução Social da Desigualdade pelo Sistema Punitivo ; 6. CONCLUSÃO; 7. Bibliografia


APRESENTAÇÃO E ILUSTRAÇÃO INICIAL

            Massacre no Carandiru nt

            O Massacre do Carandiru é um acontecimento que permite, em primeiro lugar, escancarar os impasses no processo de institucionalização democrática que temos sofrido desde a volta ao sistema democrático, uma vez que a efetividade do Estado Democrático de Direito depende, em boa parte, do grau de controle judicial sobre a atividade dos agentes públicos e na capacidade de responsabilizá-los por crimes praticados ou danos injustos causados a terceiros.

            O relatório abaixo informa os persistentes obstáculos criados e recriados para não submeter adequadamente o aparelho repressivo do estado – a Polícia Militar, mais particularmente seus oficiais – ao império da lei a ser aplicado igualmente a todos.

            O episódio, em si, e seus desdobramentos, colocam em questão a consolidação da democracia ao permitir que a violação do mais básico dos direitos individuais, assegurado pela Constituição Federal, o direito à vida, não tenha até agora, passados 9 anos, gerado sanções adequadas aos seus infratores. Agravado pela responsabilidade legal que determina caber ao Estado assegurar a integridade física daqueles que se encontram tutelados pelo mesmo ao cumprir pena nos estabelecimentos fechados.

            Reconstruindo a História

            No dia 2 de outubro de 1992, a rebelião dos presidiários do pavilhão 9, da Casa de Detenção do Carandiru, foi reprimida pela invasão de tropas da Polícia Militar e resultou na maior chacina da história das penitenciárias brasileiras: a morte de 111 detentos. Na manhã do dia 2 de outubro de 1992 os presidiários jogavam futebol. Durante o jogo entre o time da turma da alimentação e o time dos encarregados da faxina, ocorreu um desentendimento entre dois detentos causado pela disputa de espaço no varal do segundo pavimento do pavilhão 9. "Barba" pendurava sua roupa no varal quando foi provocado verbalmente por "Coelho". "Barba" acertou um soco em "Coelho" que utilizou um pau, que escorava a corda do varal, atingindo "Barba" na cabeça, que foi socorrido por agentes penitenciários, sendo levado para enfermaria. "Coelho" é agredido por agentes penitenciários e é levado embora. O portão que dá acesso ao segundo pavimento foi trancado pelos guardas, fato que causa a reação dos presos, que quebram a fechadura e iniciam o tumulto. Um amigo de "Barba" considera a agressão covarde e desafia um comparsa de "Coelho" para brigar. Um agente penitenciário tenta apartar, mas é ameaçado por outros detentos, que querem que a briga continue. O tumulto cresce. O sentinela PM Leal vê o agente penitenciário no meio do grupo e, mirando o fuzil, ordena que soltem o Carcereiro. Um outro agente penitenciário grita para que o alarme seja acionado. O alarme soa. Pelo telefone da guarita, o PM Leal comunica o Batalhão da Guarda alertando que há rebelião no Pavilhão 9. Às 13h50, carcereiros tentam sem sucesso conter as brigas entre os presidiários. Não há possibilidade de fugas dos detentos, não há reféns e tão pouco reivindicações por parte dos presos (negrito nosso). Às 14h00, os carcereiros haviam abandonado o local. O pavilhão 9 estava controlado pelos presos para o acerto de contas entre eles. Na gíria carcerária, "a casa virou".

            O Coronel Ubiratan Guimarães, Comandante do Policiamento Metropolitano tomou conhecimento dos acontecimentos na Casa de Detenção por meio do rádio do Comando de Policiamento (Copom), que havia sido avisado pelo Dr. Ismael Pedrosa, Diretor da Casa de detenção. Dirigiu-se ao local e foi informado sobre a situação, pede auxilio ao Comando do Policiamento de Choque de São Paulo, Tenente Coronel PM Luiz Nakaharada, que envia reforço. O Cel.Ubiratan Guimarães se reúne também com os juizes Ivo de Almeida e Fernando Antônio Torres Garcia para avaliar a situação. Cel Ubiratan Guimarães conversa por telefone com o então Secretário de Segurança Pública, Dr. Pedro Franco Campos, que entra em contato com o Governador do Estado de São Paulo, Luis Antônio Fleury Filho. Às 14h51, avalia-se que a situação é grave e é oficializada a passagem do comando da decisão para a Polícia Militar. Autoridades superiores ao Cel. Ubiratan avaliam a necessidade de uma invasão a Casa de Detenção. Às 15h30, a tropa de choque, sob o comando do Cel. Ubiratan, estaciona do lado de fora da muralha. De acordo com a denúncia oferecida pelo Ministério Público, apesar do grande tumulto e de sinais de fogo, não havia perigo de fuga. Com a chegada da Polícia Militar, os presos começaram a jogar estiletes e facas para fora, demonstrando que não resistiriam à invasão. Alguns colocam faixas nas janelas, indicando um pedido de trégua. As autoridades reunidas decidem que, antes da invasão do pavilhão 9, o diretor da Casa de Detenção, com um megafone, iria tentar uma última negociação. Entretanto, soldados do Grupo de Ações Táticas Especiais quebram o cadeado e correntes do portão do pavilhão 9, enquanto o Cel Ubiratan se reúne com os comandantes dos 1º, 2º e 3 º Batalhões do Choque da Polícia Militar. Não houve negociação alguma. As tropas da Polícia Militar afastaram do caminho o Dr. Pedrosa e invadiram o pavilhão 9 sob o comando e instrução do Cel Ubiratan Guimarães, às 16h30, ação que seguiu até às 18h30. Trezentos e vinte cinco policiais militares ingressaram no pavilhão 9 sem as respectivas insígnias e crachás de identificação. Depois da tomada do térreo, sem resistência ou reação com armas de fogo por parte dos presos, segundo o depoimento dos próprios policiais envolvidos na ação, exceto o depoimento do Cel. Ubiratan, os policiais partiram para os andares superiores. Não foi permitida a presença de autoridades civis durante a invasão. A maioria dos presos refugiouse nas suas celas, onde muitos deles foram mortos. Os PMs dispararam contra os presos com metralhadoras, fuzis e pistolas automáticas, visando principalmente a cabeça e o tórax. Na operação também foram usados cachorros para atacar os detentos feridos. Ao final do confronto foram encontrados 111 detentos mortos: 103 vítimas de disparos (515 tiros ao todo) e 8 morreram devido a ferimentos promovidos por objetos cortantes. Não houve policiais mortos. Houve ainda 153 feridos, sendo 130 detentos e 23 policiais militares.

            O Cenário Político

            Ao situarmos o contexto histórico e político em que ocorreu o Massacre do Carandiru ficam evidentes os diversos paradoxos e as ações continuadas que interferiram, seja na produção de provas para o processo jurídico, seja na formação da opinião pública. Á época os acontecimentos nacionais sugeriam a expansão política e a consolidação dos direitos políticos e instituições democráticas. Os meses de agosto e setembro tinham sido marcados por debates públicos e mobilizações populares sobre a "ética na política". A invasão da Casa de Detenção ocorreu na véspera das eleições municipais. A prefeita da cidade de São Paulo na época era Luiza Erundina, do Partido dos Trabalhadores. Já era previsível que a oposição liderada por Paulo Maluf venceria as eleições. Mais uma vez a tendência política se inclinava para as forças sociais politicamente conservadoras. O governador do Estado de São Paulo era Luiz Antônio Fleury Filho, do PMDB, ex-secretário de Segurança do governador Orestes Quércia. O governador Fleury não havia adotado uma política de segurança pública que viesse a coibir a violência policial ilegal. Essa tendência é verificada pelos números de civis mortos pela Polícia Militar do Estado de São Paulo, ascendentes de 1990 a 1992. Em 1990, foram 585 civis mortos pela PM-SP. Em 1991, foram 1140. Em 1992, 1359.

            A conjuntura eleitoral na qual ocorreu a invasão da Casa de Detenção provavelmente motivou o retardamento na divulgação das informações, e no encobrimento das reais dimensões dos fatos ocorridos. O governador Fleury, e o Secretário de Segurança Pública Pedro Franco Campos, somente concederam informações completas sobre o número de mortos 24 horas depois do evento, no dia 3 de outubro, por volta das 17 horas, quase no final da votação. Dessa maneira, o conflito na Casa de Detenção que ocorreu antes das urnas fecharem não pode afetar a disputa eleitoral municipal, nem prejudicar o desempenho do candidato do PMDB, Aloysio Nunes Ferreira Filho. O Caso do Carandiru foi amplamente divulgado pelos meios de comunicação, obteve a atenção e o acompanhamento diário por parte da imprensa. Várias pesquisas de opinião pública foram realizadas para conhecer a posição da sociedade em relação ao massacre. O Datafolha realizou 1079 entrevistas com habitantes da cidade de São Paulo, 98% dos Em revistados sabiam do acontecimento. É importante frisar que a concordância com o massacre do Carandiru foi sempre uma opinião minoritária entre os paulistanos. Entre os entrevistados, 53% discordava da ação da PM, 18% estavam indecisos e 29% concordavam com a ação. A pesquisa foi feita quando não se sabia ao certo quais eram os fatos, devido à censura do governo e do encobrimento e sonegação de informações da PM de São Paulo. Confrontava-se duas versões opostas sobre os acontecimentos. Uma considerava o ocorrido uma chacina desnecessária, fruto de uma ação policial arbitrária e criminosa e a outra versão sustentava o episódio como resultado de um confronto entre os policiais e os detentos. Ainda nesta questão 53% dos entrevistados não concordaram com a ação da PM e 52% não acreditavam na versão do confronto, os que acreditam nesta versão representaram 39%.

            O Perfil dos Presos Mortos

            Um levantamento das vítimas mostrou que 80% ainda esperavam por uma sentença definitiva da Justiça, ou seja ainda não haviam sido condenados. Só 9 presos tinham recebido penas acima de 20 anos. Quase a metade dos mortos – 51 presos – tinha menos de 25 anos e 35 presos tinha entre 29 e 30 anos. No dia 2 de outubro de 92, 66% dos detentos recolhidos na Casa de Detenção eram condenados por assalto. Os casos de homicídios representavam 8%.

            A Cena do Crime

            Imediatamente após o massacre, os policiais militares modificaram a "cena do crime", destruindo provas valiosas que teriam possibilitado a atribuição de responsabilidade pelas mortes a indivíduos específicos. O acesso de civis aos andares superior do Pavilhão 9 ficou impedido, enquanto a PM dava ordens aos detentos para que removessem os corpos dos corredores e celas a fim de empilhá-los no 1° andar. As atividades da perícia foram dificultadas pela quantidade de cadáveres, e pela faxina feita no presídio pelos policiais militares e a remoção ilegal dos corpos ordenada pelos oficiais. A perícia policial chegou ao local às 21h30 do dia 2 de outubro e procedeu ao exame técnico do térreo e do 1° andar, tendo observado indícios de fogo e uma barricada no andar térreo. No 1° andar, encontrou de 80 a 85 corpos empilhados no corredor. Os corpos não foram fotografados individualmente. A perícia só voltou ao local do crime uma semana depois.

            A perícia concluiu que só 26 detentos foram mortos fora de suas celas. Os presos mortos foram atingidos na parte superior do corpo, nas regiões letais como cabeça e coração. Os exames de balística informam que os alvos sugerem a intenção premeditada de matar. Um detento tinha 15 perfurações de disparos de arma de fogo no corpo. No total entre os 103 mortos, a cabeça foi alvo de 126 balas, o pescoço alvo de 31, e as nádegas levaram 17 balas. Os troncos tiveram 223 tiros. Os laudos periciais concluíram que vários detentos mortos estavam ajoelhados, ou mesmo deitados, quando foram atingidos. Diante de tamanha violência, muitos detentos se jogaram sobre os corpos que estavam no chão, fingindo-se de mortos para conseguir sobreviver.

            A Polícia Militar afirmou que os detentos tinham armas e apresentou dezenas de armas brancas e 13 armas de fogo. O informe balístico informa que "todas as armas apresentam em suas superfícies sinais de oxidação normalmente encontrados em condições de armazenagem em ambientes inadequados". Essas informações levam a creditar que as armas foram "plantadas". A tese de que houve confronto armado entre policias militares e detentos não é sustentada pelas provas dos autos do processo. A legitima defesa alegada pela cúpula da Polícia Militar não tem fundamento nos fatos. O laudo do Instituto de Criminalística concluiu: "Em todas as celas examinadas, as trajetórias dos projéteis disparados indicavam atirador(es) posicionado(s) na soleira das celas, apontando sua arma para os fundos ou laterais (...) Não se observou quaisquer vestígios que pudessem denotar disparos de armas de fogo realizados de dentro para fora das celas, indicando confronto entre as vítimas-alvo e os atiradores postados na parte anterior da cela". O relatório de criminalística termina com a afirmação de que não fora possível elaborar conclusões mais profundas porque "(...) o local dava nítidas demonstrações de que fora violado, tornando-o inidôneo para a perícia".


1. INtrodução

            No dia 02 de outubro de 1992, quando ocorreu a invasão da Casa de Detenção do Carandiru e a Polícia Militar do Estado de São Paulo promoveu a chacina de 111 homens, o Brasil estava por completar quatro anos de reabertura democrática e de promulgação da Constituição da República.

            De um lado, havia a esperança de construção de novas bases para a participação democrática, seja pelo clima favorável que as primeiras eleições diretas e universais para Presidente da República provocaram, seja por, a partir daquele momento, haver o amparo de um texto constitucional comprometido com esta mesma participação popular, pois a considera como seu eixo central na efetivação do Estado Democrático de Direito.

            De outro, o assassinato daquelas 111 pessoas demonstrou a fragilidade de nossa democracia, absolutamente carente das condições materiais essenciais para seu crescimento e fortalecimento, e colocou um questionamento essencial. Que sociedade é esta que produziu o fuzilamento de homens encurralados dentro de celas, feito bichos raivosos que precisam ser executados para que não causem mal a mais ninguém? E tudo que ocorreu no desenrolar dos acontecimentos daí oriundos demonstra o quão frágil realmente é nossa democracia. E, talvez, seja preciso arriscar que nunca conseguimos uma real democracia, na melhor acepção que esta palavra possa traduzir, com toda a carga histórica que traz em si.

            E não é o caso de nos contentarmos com o fato de que não mais se corre o risco de ser preso, torturado e morto, por questionar o sistema político, econômico e social, como aconteceu por mais de vinte anos no Brasil e em outros países, especialmente nossos vizinhos, como Chile e Argentina. Realmente foram avanços que não se pode desmerecer, pois trazem em si a história da própria sociedade brasileira e de seus filhos que foram mortos por lutarem por uma sociedade mais justa e igualitária.

            As experiências por que passam um povo nunca poderão ser inteiramente sentidas pelas novas gerações, que terão a seu favor apenas a atualidade – o que em si mesmo já é uma imensa responsabilidade – como a maior demonstração do que deve ser feito para se construir o futuro. O presente é o resultado histórico do passado e as potencialidades do futuro. E, por isto mesmo, para que as potencialidades se transformem em força material de mudança, alguns questionamentos não podem deixar de serem feitos, principalmente para que toda uma geração não se perca em um vazio histórico que apenas legitima a ordem vigente. É preciso construir um sentido histórico, reconhecendo avanços alcançados, mas nunca limitando o impossível ao possível.

            Neste sentido, cabe perguntar: será mesmo possível a construção de uma democracia nos moldes econômicos, políticos e sociais nos quais está estruturada nossa sociedade? Será mesmo possível a construção de uma democracia desarticulada de suas condições materiais indispensáveis, representadas por toda uma gama de direitos fundamentais, individuais e sociais, consagrados na Constituição da República e em declarações internacionais de direitos, tais como a Declaração de Direitos do Homem das Nações Unidas ou o Pacto de São José da Costa Rica? Será mesmo possível a concretização de anseios democráticos no sistema capitalista de produção, principalmente na sua atual conformação, neoliberal por excelência, dentro das especificidades brasileiras de capitalismo periférico?

            Poder-se-ia argumentar que o aporte normativo nascido e adotado pelos constituintes com a promulgação da Constituição da República de 1988 trouxe inserto um novo paradigma, o do Estado Democrático de Direito, a ser construído por uma prática sócio-jurídica engajada, que admita a desigualdade da ordem econômica e estabeleça, pela ordem jurídica – daí o caráter "de Direito" desta nova concepção de Estado – novas responsabilidades para com o desenvolvimento da igualdade, que já não poderá encerrar-se na mera igualdade jurídico-formal, mas deverá, sobretudo – daí seu caráter "Democrático" – propiciar uma igualdade substancial.

            Porém, as mudanças sociais somente virão quando a própria sociedade conseguir superar os limites decorrentes da diversidade de fatores que lhe condiciona à manutenção das condições econômicas, políticas, sociais e culturais postas. E isto vai de encontro à superação dos limites impostos pela própria estrutura jurídica, enquanto realidade que permite conformar as relações sociais ao que interessa para a manutenção de índices concretos de desigualdade.

            É preciso reconhecer que a ordem jurídica tanto pode oprimir como emancipar, o que dependerá fundamentalmente do modo como estão dadas as condições materiais de existência da população, pois será a partir das contradições geradas por tais condições materiais que retirar-se-á o caminho para a sua superação.

            Por mais que a concepção de Estado Democrático de Direito tente nos alertar para a necessidade de construção de bases sólidas de participação democrática para além de sua perspectiva formal, o critério da contradição social – a partir da qual abrem-se potencialidades para avanços ou recuos1 – ao qualificar a estrutura jurídica com toda a carga de questionamentos que lhe são próprios, insita esta estrutura jurídica a se manifestar com toda sua força repressora, desocultando seu caráter opressor e trazendo à tona a necessidade de novas bases de legitimidade.

            As contradições da ordem jurídica são inevitáveis, sendo preciso desenvolvê-las ao máximo, alcançando um ponto limite, após o qual a própria sociedade não a reconheça mais como sua, e construa novas formas de poder 2.

            A superação desta ordem jurídica pela exploração de suas contradições passa, necessariamente, pela superação do complexo de estruturas que tornam real a faceta opressora da ordem jurídica. Pois, por mais que haja uma construção filosófica de justificação para o Direito, naquilo a que se propõe a concepção de Estado Democrático de Direito, o Direito real será aquele produzido pelo complexo de estruturas que se encarregam de aplicá-lo.

            E, no mais das vezes, a história brasileira está aí para demonstrar, a ordem jurídica vem sendo utilizada reiteradamente para oprimir setores sociais específicos que, a par de não vislumbrarem alternativas, imediatas e muito menos mediatas, têm em suas mãos os motivos para tomar para si a tarefa de construção daquelas novas formas de poder a que nos referimos acima.

            E, neste ponto, trazemos à tona a questão do sistema punitivo, complexo de instituições encarregadas de aplicar o Direito Penal – a partir da dinâmica imposta por um conjunto de normas de natureza instrumental – que, a par de pretender ser o reflexo de anseios por paz social, possui uma prática perversa que, agindo sobre pontos frágeis da dinâmica social, retira daí o substrato material apto a reproduzir ideologicamente o entendimento de que o crime representa um desvio daquilo que a sociedade, pretensamente um todo coeso, considera como moral e eticamente desejável.

            E não se pode contentar com a fundamentação segundo a qual as concepções penais do Estado Democrático de Direito funcionam como limite à atuação estatal frente ao indivíduo. Reconheça-se a força desses princípios na defesa da liberdade humana, mas admita-se que são insuficientes quando um conflito sócio-penal desenrola-se sem as devidas condições materiais que propiciem a efetivação destes princípios. Dentro da ordem de questionamentos a que este trabalho se propõe, é, no mínimo curioso, para não dizer ultrajante, o aporte financeiro direcionado pelo Estado brasileiro – em sentido lato – para o Ministério Público, em detrimento da Defensoria Pública. Levando-se em conta as funções político-jurídicas de cada qual, nota-se o compromisso deste Estado em alcançar níveis adequados de proteção da pessoa humana. A função punitiva sobressai-se, em muito.

            Que o fenômeno do crime pode ser percebido em qualquer sociedade é uma constatação a que se chega por leituras de documentos históricos dos diversos países. E que é necessário a constituição de uma estrutura preparada para lidar com tais fatos também não se questiona. Porém, constatar o fenômeno do crime em sociedades diversas e admitir que é necessária uma estrutura para lidar com este fenômeno não quer dizer absolutamente que isto signifique que setores sociais dominantes devam aproveitar-se dele para confirmar e reproduzir a desigualdade que os mantêm como dominantes.

            Este desvirtuamento pela prática do sistema punitivo dos princípios constitucionais que fundamentam nosso Estado Democrático de Direito não é sintomático da falta de compromisso para com princípios éticos de efetivação deste mesmo Estado Democrático de Direito.

            Este desvirtuamento é, antes de tudo, condição essencial para o desenvolvimento deste aparelho repressivo, pois, enquanto aparelho repressivo que é, antes de buscar a paz social a que pretende a ideologia oficial, sua função é reproduzir as contradições que não permitem que esta paz social exista, transmitindo apenas a sensação de que há alguma segurança. Sensação de segurança, aliás, somente para setores sociais que detêm o poder de Estado.

            A consideração do crime como condutas potencialmente aptas a assim tornarem-se sobreleva o aspecto histórico do que seja "crime", destacando-se que não interessa a conduta em si, mas, além disto, interessam as contradições que lhe dá origem. Assim, sociedades cujos fundamentos sejam contraditórios e, principalmente, estejam conformadas a um padrão histórico de exploração econômica, social e política, terá a criminalidade como fenômeno social que lhe delimita o caráter. Diante disto, a mera constatação a criminalidade passa a não ser o essencial.

            O essencial é destacar o processo de criminalização pois, quaisquer que sejam as condutas abstratamente tidas como passíveis de criminalização, o sistema punitivo construído sobre a exploração do trabalho as ultrapassará, e atingirá a dinâmica social, imprimindo aos segmentos sociais materialmente mais fracos, e subjetivamente frágeis – pois simplesmente submetem-se à ideologia oficial, sem questioná-la e, muito menos, construir seu próprio senso de realidade – o estigma criminalizante, que em última análise traz inserto toda a carga histórica que perpetua a desigualdade que assim as determinou.

            Ou seja, gera-se um círculo vicioso do qual não se pode sair senão por mudanças estruturais na sociedade, ainda que isto possa parecer utópico. Do contrário, seria melhor esquecer-se toda ordem de argumentações em prol da pessoa humana, pois tudo não passaria de mero discurso e, como tal, potencialmente apto a perpetuar as condições estruturais opressoras.

            É um risco que se corre, necessário, aliás, pois segundo Roberto Lira Filho3:

            Justiça é Justiça Social, antes de tudo: é atualização dos princípios condutores, emergindo nas lutas sociais, para levar à criação duma sociedade em que cessem a exploração e opressão do homem pelo homem; e o Direito não é mais, nem menos, do que a expressão daqueles princípios supremos, enquanto modelo avançado de legítima organização social da liberdade. Mas até a injustiça como também o Antidireito (isto é, a constituição de normas ilegítimas e sua imposição em sociedades mal organizadas) fazem parte do processo, pois nem a sociedade justa, nem a Justiça corretamente vista, nem o Direito mesmo, o legítimo, nascem dum berço metafísico ou são presente generoso dos deuses: eles brotam nas oposições, no conflito, no caminho penoso do progresso, com avanços e recuos, momentos solares e terríveis eclipses.

            Destaca-se o massacre do Carandiru como exemplo emblemático do que é nosso sistema punitivo por dois motivos.

            Primeiro, o perfil dos presos mortos na chacina, que, sem medo de errar, pode-se admitir como uma amostra de quem é preferencialmente punido pelo sistema punitivo brasileiro.

            Pelo relatório elaborado pelo ILANUD, 80% dos presos mortos ainda aguardavam julgamento, ou seja, o pressuposto essencial da punição, a responsabilidade penal, não havia sido sequer confirmada e os efeitos maléficos do sistema punitivo já se mostravam em todas as suas possibilidades de deterioração do ser humano. No mesmo sentido, 66% dos presos – da totalidade dos presos, e não apenas dos presos mortos – alí estavam por terem cometido o crime de roubo, contra o patrimônio, contra a propriedade privada.

            Em segundo lugar, o que não pode ser considerado simples coincidência, a Casa de Detenção do Carandiru era4 o maior complexo penitenciário da cidade de São Paulo, maior centro industrial da América Latina, síntese das mazelas sociais típicas do capitalismo periférico subdesenvolvido.

            O objetivo desta monografia é oferecer alguns elementos para uma análise crítica do sistema punitivo, naquilo que ele propicia para a reprodução social da desigualdade material decorrente do modo de produção capitalista, especificamente num país como o Brasil, de capitalismo tardio e dependente.

            O trabalho está estruturado a partir do desenvolvimento histórico brasileiro. Evidente que não se pretende aprofundar em temas históricos, porém, consideramos que, ainda que superficialmente, é necessária uma vinculação histórica, principalmente ao período colonial, quando foram estruturadas as bases do sistema punitivo brasileiro.

            Assim, o segundo capítulo cuida da contextualização histórica dos tempos atuais, desde fins da segunda guerra mundial, quando começou a se formar o que viria, hoje, a ser denominado de neoliberalismo.

            O terceiro capítulo traz uma digressão histórica, voltando-se os olhos para a formação colonial brasileira, passando pelos idos da proclamação da República, e da posterior inserção brasileira no sistema capitalista na sua condição de país de capitalismo periférico. Destes períodos e momentos históricos se extrairá a base cultural do senso de punição que orienta o sistema punitivo brasileiro.

            No quarto capítulo inserimos o debate criminológico, com a apresentação das diversas teorias criminológicas construídas, desde as primeiras incursões neste campo, pela Escola Clássica do Direito Penal, ainda que sem uma proposta propriamente criminológica, passando pelo positivismo criminológico, a primeira tentativa. Estas duas são apresentadas como a síntese do que posteriormente veio a ser denominado por Alessandro Baratta de Ideologia da Defesa Social. Ainda, teceremos alguns comentários sobre outras várias teorias criminológicas que, ainda com Alessandro Baratta, representam a negação de cada um dos princípios da Ideologia da Defesa Social.

            No quinto capítulo procederemos a uma conjugação das conclusões a que chegamos sobre a origem histórica do sistema punitivo brasileiro, ou seja, de que a base social sobre a qual ergueu-se nosso sistema punitivo constitui-se da miséria, da escravidão, da conscientização política e militarização, esta última como a resposta oferecida pelo Estado penal.

            Confrontando estes elementos com alguns dados da realidade atual, tentaremos alguns apontamentos acerca da reprodução social da desigualdade pelo sistema punitivo.

            No que respeita à miséria, utilizamos como ponto de partida dados sobre as ocorrências registradas na Polícia Civil no ano de 2005 quanto aos crimes de roubo e furto, comparando-os às ocorrências de homicídio doloso e lesão corporal, para destacar que o sistema punitivo age preferencialmente sobre condutas passíveis de criminalização que estão diretamente ligadas à contradições sociais estruturais, sem as quais o modo de produção capitaslista não se mantém.

            Quando à escravidão, focaremos principalmente as suas consequências para a construção de uma subjetividade que identifica no negro o estereótipo do criminoso, próprio e adequado para uma atuação direcionada do sistema punitivo.

            Sobre a conscientização política, destacamos o Movimento do Trabalhadores Rurais Sem Terra e o Movimento do Sem Teto, cuja postura política construída a partir de questões específicas tem sido reiteradamente criminalizadas.

            Por fim, a militarização se apresenta como a resposta ideológica e material oferecida pelo sistema punitivo, na medida em que constrói-se um clima de terror na população, utilizado para fundamentar uma verdadeira construção de um Estado Penal, em detrimento de um Estado Social.


2. a nova ordem latino americana

            Após a Segunda Guerra Mundial os países industrializados entraram em um ciclo de crescimento econômico que foi fundamentado, ao nível ideológico, pela construção da noção de globalização.

            Este termo veio adquirir múltiplas significações, em um mundo marcado pela lógica da maximização do capital, que imprimiu à realidade dos países subdesenvolvidos uma nova forma de exploração, ainda mais perversa, pois sob o manto da idéia de globalização, justifica-se o (sub)desenvolvimento como questão de integração ao sistema mundial, do qual nenhum país pode fugir, sob pena de confinar-se na sua condição de subdesenvolvimento, sendo condição para tanto, a quebra dos Estados Nacionais.

            O que se esquece de deixar claro é a que ordem global devem os países subdesenvolvidos integrar-se. Pois há, perfeitamente delimitadas, ordens socioeconômicas específicas para cada país, dentro da lógica, esta sim global, de divisão internacional do trabalho. E, em cada uma delas, o Estado salta como o principal articulador da adoção das medidas socioeconômicas propulsoras da inserção nesta divisão internacional do trabalho, seja para deixar de agir no campo social5, seja para manter o pulso firme no campo econômico.

            Especialmente o subcontinente latino-americano, desde fins da década de oitenta, vem sendo alvo de um conjunto de medidas políticas, econômicas, administrativas e jurídicas que propõem uma nova configuração para os Estados Nacionais.

            O cenário econômico iniciou-se com a crise do petróleo, pelo qual os países industrializados, enquanto construíam uma política econômica comum visando conter o ritmo de atividade econômica, com vistas a baixar os preços internacionais de matérias-primas e produtos primários em geral, estimulavam os países em desenvolvimento a manter suas economias abertas, elevando níveis de importações que não eram compatíveis com uma economia mundial em posição defensiva.

            Por esta política macroeconômica os países industrializados conseguiram transferir os custos decorrentes da baixa do petróleo para as economias mais frágeis que, assim, embora pouco dependentes de combustíveis importados, surgiram ao final da década de 1970 como os grandes devedores internacionais.

            A respeito, Cezar Benjamim6 comenta:

            Nos anos 70, com a crise do petróleo, a adoção do regime de câmbios flutuantes e a desregulamentação financeira patrocinada pelo governo norte-americano, o sistema bancário internacional enfrentou uma situação de excesso de liquidez, com oferta abundante de capital. O Brasil, que naquele momento tinha muitos projetos de investimento, foi levado a adotar uma política de captação desses recursos, elevando sua dívida externa de US$12 bilhões em 1973 para US$54 bilhões em 1979.

            Este conjunto de medidas começou a ser elaborado, com maior articulação entre os países centrais e aqueles onde seriam aplicadas estas medidas, a partir de novembro de 1989, quando se reuniram na capital dos Estados Unidos funcionários do governo norte-americano e dos organismos financeiros internacionais ali sediados – Fundo Monetário Internacional (FMI), Banco Mundial e Banco Interamericano (BID) – todos especializados em assuntos latino-americanos. O encontro foi realizado pelo Institute for Internacional Economics, sob o título "Latin American Adjustment: How Much Has Happened?".

            Tinham o objetivo de promover avaliações sobre as reformas econômicas empreendidas nos países da região. Participaram também desta reunião economistas latino-americanos que relataram as experiências dos seus países. Desta reunião, mesmo não possuindo caráter deliberativo, foi articulada uma nova estratégia econômica-administrativa que teve um impacto decisivo para a América Latina. Tal estratégia foi comumente chamada de "Consenso de Washington".

            Tais medidas foram denominadas de Plano de Ajuste Estrutural, PAE, imposto pelo Fundo Monetário Internacional, pelo qual dever-se-ia ajustar as políticas econômicas para alcançar superávits primários cada vez maiores, a fim de garantir a amotirzação dos juros da dívida externa. A adoção destas medidas político-econômicas pelos países latino-americanos foi, então, orientada pela quebra dos aparelhos estatais ligados às áreas sociais e, com o mesmo objetivo, mas com outra tônica para a atuação estatal, pelo fortalecimento do controle do Estado sobre a economia.

            Os meios específicos pelos quais implementou-se tais ajustes, e os seus efeitos próprios, estão relacionados ao desenvolvimento histórico do capitalismo em cada país, às particularidades de inserção de cada economia no plano internacional.

            Como afirmou Zigmund Bauman7:

            A desintegração social, a derrocada das agências efetivas de ação coletiva, é recebida muitas vezes com grande ansiedade e lamentada como ‘efeito colateral’ não previsto da nova leveza e fuidez do poder cada vez mais móvel, escorregadio, evasivo e fugitivo. Ma a desitegração social é tanto uam condição quanto um resultado da nova técnica do poder, que tem como ferramentas principais o desengajamento e a arte da fuga. Para que o poder tenha liberdade de fluir, o mundo deve estar livre de cercas, barreiras, fronteiras fortificadas e barricadas. Qualquer rede densa de laços sociais, e em particular uma que esteja territorialmente enraizada, é um obstáculo a ser eliminado. Os poderes globais se inclinam a desmantelar tais redes em proveito de sua contínua e crescente fluidez, principal fonte de sua força e garantia de sua invencibilidade. E são esse derrocar, a fragilidade, o quebradiço, o imediato dos laços e redes humanos que permitem que esses poderes operem".

            Assim, guardadas as particularidades de cada país, o que se observou foi que, ao arrepio de suas legislações nacionais, os Estados latino-americanos provocaram mudanças drásticas nas suas estruturas administrativas, invertendo completamente a ordem de prioridades na alocação de recursos, prejudicando a manutenção de políticas sociais de efetivação dos Direitos Sociais constitucionalmente fixados. Em conseqüência desta lógica administrativa, foram transferidas para a iniciativa privada a maior parte das empresas estatais através das privatizações.

            No Brasil, a conseqüência essencial desta política foi à ampliação da dívida externa, através da política de estabilização monetária da qual surgiu o Plano Real, cujo cerne é o aumento da taxa de juros, com a justificativa de conter a inflação, aliada com a abertura indiscriminada do mercado, gerando uma estagnação econômica crônica, pois "uma vez adotada a sobrevalorização do câmbio e a abertura comercial, o país não pode parar de captar vultuosos recursos no exterior para equilibrar o balanço de pagamentos (...) oferecendo-se a pagar juros muito superiores aos vigentes no mercado internacional"8.

            Apesar de, em alguns momentos, serem divulgados índices matemáticos de crescimento econômico, estes são pontuais e vulneráveis, no entanto, pois não são capazes de proporcionar a inclusão de toda a população economicamente ativa nos postos de trabalho, fortificando a estagnação do mercado consumidor interno.

            O eixo central de todas estas alterações é o desmonte do Estado de Bem-Estar Social. Ainda que não seja possível caracterizar o estado social brasileiro nos moldes dos países europeus, berço do Wellfare State, pois é evidente a perspectiva que separa um e outro, pode-se afirmar que a adoção do projeto neoliberal pelo Brasil fez ruir drasticamente as mínimas garantias sociais existentes, e impossibilitou, de maneira brutal, a busca pela efetivação dos princípios sociais decorrentes do Estado Democrático de Direito, criando o cenário propicio para erguer-se um verdadeiro Estado Penal.

            Mas isso não foi verificado apenas em países subdesenvolvidos, tendo sido a principal medida adotada por governos estadunidenses desde início da década de 1990, com reflexos diretos na questão do emprego, com a sua precarização e conseqüente deterioração dos salários.

            Isto guarda relação direta com o novo senso de criminalidade e segurança pública que se constrói sob a égide neoliberal. Como bem asseverou Loic Wacquant9:

            Ao jogar sobre os segmentos periféricos do mercado de trabalho centenas de milhares de postulantes suplementares empregáveis por dois tostões, a "reforma" da assistência social vai reduzir o nível dos salários desqualificados e contribuir para engrossar os batalhões dos working poor (Wacquant, 1996b). A economia informal da rua tem, portanto, a garantia de que vai conhecer uma retomada de crescimento, e com ela a criminalidade e a insegurança que corroem o tecido da vida cotidiana do gueto. O nível de pessoas e famílias sem teto deve aumentar, assim como o de indigentes e de doentes que não recebem tratamento. As cidades poderão enfraquecer as últimas organizações salariais que ainda conservam um certo peso, os sindicatos de empregados municipais, substituindo progressivamente os funcionários locais empregados em postos subalternos de mão-de-obra gratuita dos programas de trabalho forçado (workfare) dos quais os assistidos são, doravante, obrigados a participar.

            A saída não será outra senão a criminalização da pobreza, com uma inflação legislativa incriminando as mínimas ações ligadas à mendicância, prostituição e vadiagem.

            Em Nova Iorque, o prefeito Rudolf Giuliane saiu na frente com o programa "Tolerância Zero", exatamente nestes termos, absoluta tolerância zero para com as mínimas ações que possam representar desvio do padrão burguês do trabalhador que, na falta de emprego, ou submete-se a trabalhos precários, com salários baixíssimos, ou ficará sem a assistência estatal, não sobrando outra alternativa senão submeter-se a condições tais que será inevitável o tratamento policial. Isto é essencial para compreender a lógica da criminalização neoliberal.

            Por um lado, retiram-se as mínimas garantias sociais, como condição para inserir-se competitvamente – em relação aos outros países subdesenvolvidos – na divisão internacional do trabalho e, como contrapartida, ou se submete a uma política previdenciária desumana – pois o aparelho estatal previdenciário está atrelado ao alcance de superávits primários, que estrangula o gargalo de quem dele pode beneficiar-se – ou, então, passa-se a viver em condições tais que será inevitável ir de encontro a práticas sociais propícias a serem apreendidas pelo sistema punitivo.

            Sobre a precarização do trabalho e novas formas pelas quais se configuram as relações de trabalho escreve Ricardo Antunes10:

            Esta forma flexibilizada de acumulação capitalista, baseada na reengenharia,na empresa enxuta, para lembrar algumas expressões do novo dicionário do capital, teve consequências enormes no mundo do trabalho. Podemos aqui tão somente indicar as mais importantes: 1)há uma crescente redução do proletariado fabril estável, que se desenvolveu na vigência do binômio taylorismo/fordismo e que vem diminuindo com a reestruturação, flexibilização e desconcrentração do espaço físico produtivo, típico da fase do toyotismo; 2) há um enorme incremento do novo proletariado, do subproletariado fabril e de serviços, o que tem sido denominado mundialmente de trabalho precarizado. São os "terceirizados", subcontratados, "part-time", entre tantas outras formas assemelhadas, que se expandem em inúmeras partes do mundo. Inicialmente, estes postos de trabalho foram preenchidos pelos imigrantes, como os g a s t a r b e i t e r s na Alemanha, o l a v o ro nero na Itália, os c h i c a n o s nos EUA, os d e k a s e g u i s no Japão etc. Mas hoje, sua expansão atinge também os trabalhadores especializados e remanescentes da era taylorista-fordista; 3) vivencia-se um aumento significativo do trabalho feminino, qua atinge mais de 40% da força de trabalho nos países avançados, e que tem sido preferencialmente absorvido pelo capital no universo do trabalho precarizado e desregulamentado; 4) há um incremento dos assalariados médios e de serviços, o que possibilitou um significativo incremento no sindicalismo destes setores, ainda que o setor de serviços já presencie também níveis de desemprego acentuado; 5) há exclusão dos jovens e dos idosos do mercado de trabalho dos países centrais: os primeiros acabam muitas vezes engrossando as fileiras de movimentos neonazistas e aqueles com cerca de 40 anos ou mais, quando desempregados e excluídos do trabalho, dificilmente conseguem o reingresso no mercado de trabalho; 6) há uma inclusão precoce e criminosa de crianças no mercado de trabalho, particularmente nos países de industrialização intermediária e subordinada, como nos países asiáticos, latino-americanos etc. 7) há uma expansão do que Marx chamou de trabalho social combinado (Marx, 1978), onde trabalhadores de diversas partes do mundo participam do processo de produção e de serviços. O que, é evidente, não caminha no sentido da eliminação da classe trabalhadora, mas da sua precarização e utilização de maneira ainda mais intensificada. Em outras palavras: aumentam os níveis de exploração do trabalho.

            Todo este novo quadro de reorganização do trabalho, para atender aos interesses do capital, retira garantias sociais historicamente conquistadas, pois a manutenção desta ordem exploratória pressupõe a uma ordem social flexível, isto significando uma ordem social mínima, como condição para uma ordem econômica máxima.

            Consequentemente, a uma intervenção social mínima segue-se uma conjuntura de instabilidade social, à qual se responde com o fortalecimento do Estado Penal, porquanto os efeitos concretos da falta de garantias sociais refletem-se na fragilização das relações sociais, das quais se extrai com facilidade condutas passíveis de criminalização.

            Por condutas passíveis de criminalização entende-se aquelas condutas que são potencialmente mais aptas a serem apreendidas pelo sistema punitivo. Não são, assim, potencialmente mais aptas, todas as condutas previstas na legislação penal, pois apenas abstratamente todas as condutas tipificadas como crime podem ser apreendidas pelo sistema punitivo.

            Quando se considera a atuação concreta do sistema punitivo, em conformidade com a estrutura social da qual faz parte, pode-se afirmar que algumas condutas, mais do que outras, são potencialmente mais aptas a serem apreendidas pelo sistema punitivo.

            Assim, a potencialidade deixa de ser apenas o que pode vir a ser, para se concretizar como certeza, quando a dinâmica das relações sociais, de onde provêm as condutas tipificadas, é direcionada para a concretização de fins essenciais para a conservação de uma estrutura social exploratória.


3. CONSTRUÇÃO histórica DA PUNIÇÃO

            3.1 O Brasil Colônia

            O objetivo deste capítulo é oferecer alguns apontamentos históricos que julgamos necessários para que se proceda a uma análise crítica do sistema punitivo brasileiro. Evidente que não se pretende aprofundar na análise da formação histórica e sócio-econômica brasileira, pois, além de não possuirmos suporte teórico sobre o tema, foge dos objetivos deste trabalho.

            Porém, é essencial que vislumbremos, ainda que de maneira superficial, os caminhos engendrados pela nossa formação social e que propiciaram a construção de um senso comum punitivo historicamente determinado, como veremos. Ter-se-á sempre em mente o característico da contradição como guia do desenvolvimento social brasileiro, que forjou novas manifestações sociais frente aos imperativos históricos colocados pela própria dinâmica das lutas sociais.

            O modo de produção capitalista pode ser considerado pelas suas forças produtivas e relações de produção daí derivadas, como categorias abstratas que nos permitem reconhecer, aqui e ali, as suas manifestações comuns como próprias de um sistema econômico dominante.

            Este caráter abstrato, no entanto, presta-se apenas para fins de formação do conhecimento sobre o modo de produção capitalista. Em um primeiro momento, a abstração integra-se como parte do processo de formação do conhecimento. Posteriormente, é necessário voltar-se para a base material das relações sociais, para que aquelas categorias abstratas qualifiquem-se pelo real e adquiram uma natureza concreta, determinando uma configuração específica do objeto.

            Dessa maneira, o modo de produção capitalista não se manifesta de uma única forma, antes se constrói de maneira específica em cada formação social, mas, sempre havendo uma ligação estrutural que possibilita uma consideração total deste modo de produção das condições materiais de existência do homem, a única perspectiva possível para sua análise, ou seja, a perspectiva que permite o entendimento de que o desenvolvimento dos atuais países industrializados deu-se na condição do subdesenvolvimento de outros.

            Isto é especialmente fecundo quando se conclui que, historicamente, um dos fatores que possibilitou o desenvolvimento da grande indústria e do mercado financeiro inglês foi o ouro explorado no Brasil por Portugal, e que era transferido para a Inglaterra como parte do acordo comercial luso-britânico, o tratado de Methuem, conformador de nossa condição de colônia mercantilista, próprio de toda a formação econômica da América Latina. Celso Furtado11 comenta que:

            Numa época dominada pelo mais estrito mercantilismo e em que era particularmente difícil desenvolver um comércio de manufaturas, a Inglaterra encontrou na economia luso-brasileira um mercado em rápida expansão e praticamente unilateral. Suas exportações eram saldadas em ouro, o que adjucava à economia inglesa uma excepcional flexibilidade para operar no mercado europeu. Encontrou-se a Inglaterra, assim, pela primeira vez, em condições de saldar o seu comércio de materiais de construção e outras matérias-primas, que recebia do norte da Europa, indiretamente com manufaturas. Dessa forma, a economia inglesa adquiriu maior flexibilidade e tendeu a concentrar suas inversões no setor manufatureiro, que era o mais indicado para uma rápida evolução tecnológica. Por outro lado, recebendo a maior parte do ouro que então se produzia no mundo, os bancos ingleses reforçaram mais e mais sua posição, operando-se a transferência do centro financeiro da Europa de Amsterdã para Londres. Segundo fontes inglesas, as entradas de ouro brasileiro em Londres chegaram a alcançar, em certa época, cinqüenta mil libras por semana, permitindo uma substancial acumulação de reservas metálicas, sem as quais a Grã-Bretanha dificilmente poderia haver atravessado as guerras napoleônicas.

            Assim, a formação colonial brasileira deve ser contextualizada, inserindo-a como uma das peças do então embrionário sistema capitalista. Esta totalidade imprimida à análise não pode deixar de concluir pela dependência de nosso desenvolvimento econômico, sempre atrelado a interesses externos. Porém, para que isto ocorresse, foi necessária uma adequação do colonizador português ao novo território, de maneira a possibilitar a criação de mecanismos que permitissem esta inserção econômica nos moldes em que foi construída a empresa colonial brasileira.

            O processo de colonização aqui efetivado foi de índole essencialmente exploratória, e os mecanismos sociais que sustentaram a tarefa colonizadora desenvolveram até as últimas consequências este caráter exploratório, pois, do contrário, a colônia seria praticamente inviável. Será a partir da necessidade de estruturar mecanismos sociais fortes o suficiente para propiciar uma colonização baseada na exploração que se erguerá o sistema punitivo brasileiro.

            Na verdade, neste momento, fica deficiente a própria expressão "sistema punitivo", na medida em que o sentido de sua atuação não era sistêmica, enquanto conjunto articulado de instituições cuja atuação era justificada e legitimada por um ordenamento jurídico-penal único.

            Embora houvesse a tentativa da metrópole de unificar sua atuação punitiva, a grande extensão territorial propiciava que cada local adequasse às suas necessidades as orientações que vinham de Portugal. Eugenio Raul Zaffaroni e Nilo Batista12 sobre a influência das legislações portuguesas na colônia informam-nos que:

            Diversamente das (Ordenações) Afonsinas, que não existiram para o Brasil, e das (Ordenações) Manuelinas, que não passaram de referência burocrática, casual e distante em face das práticas penais concretas (...), as Ordenações Filipinas constituíram o eixo da programação criminalizante de nossa etapa colonial tardia, sem embargo da subsistência paralela do direito penal doméstico que o escravismo necessariamente implica.(negrito nosso)

            Considerado na sua totalidade, o sistema punitivo brasileiro traz a marca da colonização, do território largado à própria sorte que, por caminhos próprios construiu um sistema punitivo específico para estas mesmas suas condições, apto a responder ao que necessitavam, seja pela não punição daqueles que de alguma forma poderiam contribuir com a tarefa colonizadora, seja pela punição daqueles considerados como a mácula do sistema.

            Sobre a utilização da punição conforme as circunstâncias, Luis Francisco Carvalho Filho13 destaca que:

            Os relatos da administração Tomé de Souza indicam que ele exerceu o poder de punir conforme as conveniências do momento. Ainda no ano da fundação de Salvador, morto um colono por um índio e exigida a entrega do "criminoso", este, por ordem do governador-geral, foi amarrado à boca de um canhão e atirado "pelos ares, desfeito em pedaços". O simbolismo do ato seria captado por Robert Southey:8 "Mais humano para o padecente, mais terrível para os espectadores, não há suplício imaginável. Encheu de terror os Tupinambás e foi útil lição aos colonos [...]". Porém, para dois franceses presos no sul do país, em 1550, por contrabando de pau brasil – atividade que a Coroa considerava intolerável –, o futuro seria diferente. Em carta ao rei, Tomé de Souza se justificaria depois: "Não os mandei enforcar porque tenho necessidade de gente que não me custe dinheiro", ressaltando, no entanto, que "daqui por diante se fará o que Vossa Alteza mandar.

            É interessante perceber que a manipulação de punições caso a caso, sem a centralização de um ordenamento penal demonstra o sentido de construção de uma cultura punitiva própria que será desenvolvida durante toda nossa história, e não será estranho concluir que o potencial ideológico daí derivado fará com que a tortura seja até hoje prática comum nos porões das delegacias. É claro que a prática da tortura está ligada à previsão legal da confissão como prova em nosso sistem processual penal. Mas, a despeito desta previsão legal, a tortura está intrinsicamente relacionada à noção de punição como prática do poder econômico, político e cultural. Assim, embora a justificação da punição esteja ligada à prática do poder econômico, político e cultural, sua manifestação concreta não se deu nos termos que do que se passava no continente europeu, que por essa época considerava a punição como vingança do soberano, pois a conduta que se concluía por crime era, em última instância, uma afronta ao soberano.

            A justifica para a punição era no sentido de manter condições úteis para a exploração da empresa colonial, seja no sentido de não punir a mão-de-obra necessária, seja no sentido de punir com toda sua força os sujeitos representativos da distância cultural com a metrópole. O sistema punitivo colonial, ao atrelar a punição ao fator econômico, construiu-se punindo eficazmente o escravo, o índio e o peão, as máculas do sistema, perfeitamente substituíveis como força produtiva.

            Das sesmarias produtoras de cana-de-açúcar emergiu uma autonomia punitiva própria dos segmentos sociais ali dominantes. Talvez a maior expressão disto seja o pelourinho das senzalas, onde eram açoitados os escravos que de alguma forma infligiam as regras de conduta social do engenho. A unidade produtiva da colônia, o engenho, foi o ambiente onde era exercida a punição.

            E, na esteira da delimitação das contradições produzidas por tal contexto, o Quilombo de Palmares foi a maior expressão da resistência a esta cultura punitiva e à exploração econômica, em contraposição a um entendimento histórico corrente segundo o qual haviam escravos que interagiam bem com a casa grande, adquirindo funções de confiança que implicavam atitudes mais condolentes do senhor de engenho para com eles. Este entendimento, porém, não pode pautar a análise do que almejava o negro quanto ao engenho.

            Evidente que não se deve procurar o sentido moderno da resistência empreendida pelos trabalhadores urbanos no século XIX e XX na reação do escravo ao senhor de engenho. Porém, a constituição de um núcleo de resistência do porte do Quilombo de Palmares demonstra que o estatuto jurídico da escravidão não encontrava uma base social sólida a se manter sem contestação alguma, o que implicava em seu questionamento absoluto, ao qual se respondia com uma violência sem limites.

            A punição na colônia era decorrência da necessidade de fincar pressupostos ideológicos úteis para a dominação do senhor de engenho, representante da coroa portuguesa. Pressupostos ideológicos estes intrinsecamente ligados à uma suposta inferioridade do negro frente ao homem europeu.

            Enquanto propriedade do senhor de engenho nenhum espanto causava toda sorte de flagelos pelos quais poderiam passar escravos transgressores. Mas a noção de punição daí derivada justificará penas cruéis a serem aplicadas conforme as circunstâncias, em consonância com a inferioridade jurídica – do escravo, enquanto propriedade – num primeiro momento, ou a inferioridade biológica, como veremos mais adiante, pela adoção do senso comum positivista lombrosiano como justificativa para a punição.

            Enfim, a punição na colônia demonstra a falta de legitimidade da estrutura jurídica que, ao desenvolver-se no calço da necessidade da exploração econômica das novas terras, aliado com a falta de mão obra – que propiciou a escravidão – interligados, estes dois elementos, por resquícios de uma cultura européia sem predicados próprios para se desenvolverem, não encontrou respaldo na realidade social, e a violência adquiriu a função específica de conter manifestações contrárias à ordem exploratória, da qual a estrutura jurídica é apenas um reflexo. No ato de punição do escravo estava concentrada toda a carga ideológica construída pelos portugueses encarregados da tarefa colonizadora. E o engenho foi o microcosmo desta empreitada.

            3.2 Do Brasil Império à Independência

            Fase Imperial

            Em 1808, a família imperial transfere-se para o Brasil, sob os riscos de Portugal ser invadido por Napoleão Bonaparte. No mesmo ano, os portos nacionais são abertos ao comércio mundial, sobre pressão de ingleses, franceses e holandeses.

            Eram as marcas do conflito que então começava a se instaurar entre a economia monopolista mercantil e as economias liberais. Caio Prado Júnior14, comentando o anacronismo histórico de Portugal e Espanha, afirma:

            OS DOMÍNIOS (sic) coloniais ibéricos, isto é, das coroas espanholas e portuguesas representam, pode-se dizer que desde o séc. XVII, mas sobretudo no seguinte, um anacronismo. As duas decadentes monarquias ainda conservavam a maior e melhor parte de seus imensos domínios (...). Situação anômala, porque não correspondia mais ao equilíbrio mundial de forças econômicas e políticas. Depois daquele passado já remoto do apogeu luso-espanhol, outras potências tinham vindo ocupar o primeiro lugar no plano internacional: os Países-Baixos, a Inglaterra, a França. No entanto, os domínios ibéricos ainda formavam os maiores impérios coloniais. Corpos imensos de cabeças pequenas...

            De um lado, os contornos próprios do absolutismo, concentrando no soberano todo o poder político. De outro, a burguesia, ascendendo politicamente com as Revoluções Inglesa, Francesa e Estadunidense, e pretendendo expandir-se por todo o planeta. Quem havia financiado as primeiras construções de Estados Nacionais no continente europeu, agora clamava para si o poder de Estado.

            Se no período colonial a indústria açucareira foi o principal motor da empresa colonial, já no século XVIII ela começa a falir em virtude, dentre outros fatores, da produção açucareira das Antilhas, financiada especialmente por franceses e holandeses.

            Como alternativa, desloca-se o eixo econômico do nordeste para o sudeste, com a exploração do café, especialmente em São Paulo e Minas Gerais. Neste último, o ouro surge como a mercadoria que Portugal almejava e até então não havia encontrado, e representou uma renovação dos anseios portugueses com a colônia. A partir desta tomada de fôlego com a empresa colonial, Portugal passa a tentar com mais pulso firme impor seu ordenamento jurídico-penal.

            De colônia mercantilista o Brasil passa a centro do império. Império este em absoluta decadência, mas que imprimirá às classes agrárias dominantes um sentimento de autonomia política até então nunca visto, confirmando um poder econômico que mais tarde propiciará a ruptura com Portugal, mas que, no início possibilitou um acordo político tácito entre as elites rurais e a coroa portuguesa.

            Assim, a centralização política na pessoa do imperador foi a marca da passagem da coroa portuguesa por terras brasileiras, ao menos nos centros urbanos. O que influiu decididamente na questão criminal. A partir de 1808 começam a serem estruturadas as primeiras instituições com funções punitivas.

            Constituem-se, desta maneira, duas instâncias punitivas. A primeira, herança dos tempos coloniais, na zona rural, em que predominava o poder do coronel na determinação do que poderia ser punido ou não. A constituição de um estado forte, necessário para estruturar-se condições de domínio para a coroa portuguesa, não impediu que nas áreas em que o coronel detinha todo o poder, resistissem raízes punitivas coloniais

            A segunda instância, sob a mão direta do estado imperial, construída nas cidades, a partir das influências de uma população urbana cada vez mais diversificada. Sobre isto Carlos Eduardo Moreira de Araújo15 comenta que:

            (...) o espaço ocupado pelo Estado na relação senhor – escravo foi uma ação deliberada de conquista do poder público no estabelecimento da ordem. Essa ação gerou resistências tanto dos senhores quanto dos escravos. Não foi uma simples ausência senhorial que fez com que o Estado ocupasse a fiscalização dos cativos nas ruas do Rio de do Janeiro, e sim as mudanças ocorridas no Estado português com o estabelecimento da administração de Pombal (1750 - 1777). O controle sobre as colônias se intensificou na tentativa de recuperar a economia do Império. Neste processo, entre outras medidas, o Estado optou por aumentar o controle sobre os escravos urbanos tomando para si a incumbência de castigá-los cobrando por este serviço.

            Ademais, ainda que começassem a influir ideais liberais, manifestados na adoção legislativa, por exemplo, do princípio da reserva legal, na Constituição do Império de 1824 e no Código Criminal do Império do Brasil de 1830, a maneira própria como começou a ser estruturado nosso sistema punitivo caminhou paripassu com o desenvolvimento de uma cultura punitiva privada, que pulverizava o poder punitivo nas mãos de autoridades locais16:

            O Código do Processo Criminal de Primeira Instância estruturou um sistema penal que concretamente concedia a administração do poder punitivo direta ou indiretamente às autoridades locais, dos juízes de paz ao júri, passando pelos inspetores de quarteirão, pelos promotores públicos e pelos juízes municipais. A criação da Guarda nacional, em 18 de agosto de 1831, obedeceu também ao modelo descentralizador, restando nas mãos dos grandes proprietários locais seu comando.

            E, ainda que tenha havido a centralização com a reforma do Código de Processo Criminal em 1841, esta não veio em absoluto para retirar o poder dos proprietários rurais, antes para constituir uma relação orgânica destes com o poder imperial.

            Assim, por mais que se fosse aos poucos crescendo o sentimento da emancipação política, o domínio dos latifundiários permitirá que por muito tempo os interesses da coroa sejam alinhados com os da economia agrária, pois para a economia agrária não importava se comerciavam apenas com Portugal ou com outras nações. E, na medida em que a escravidão representava a espinha dorsal deste modo de produção, a sua defesa pela monarquia portuguesa trouxe para si o apoio da elite rural.

            O que se mostra condizente com a manutenção do poder punitivo nas mãos dos proprietários rurais, pois "longe de terem sido destruídos pelo governo central, os chefes locais teriam se aliado a ele, com benefícios para os dois lados: o governo ganhava sustentação nas bases rurais, os senhores territoriais legitimavam seu domínio político em nível local". (Hamilton Mattos Monteiro, apud Zaffaroni e Batista, 2003, p.427)

            Mas também começavam a surgir as primeiras previsões normativas a respeito de condutas que pudessem importar de alguma maneira no questionamento do Império. O ambiente das cidades passou a sofrer a influência de ideologias trazidas da Europa pelos filhos da elite econômica que para lá iam estudar.

            Eram previsões de punição contra atitudes que indicassem anseios liberais e que tinham uma clara função política, de afastar destas terras idéias que de alguma forma pudessem representar ameaça para a coroa portuguesa. Zaffaroni e Batista17 destacam que:

            As razões de algumas leis penais deste período são facilmente identificáveis. Conhecido o fato de que lojas maçônicas discutiam e veiculavam idéias liberais, explica-se o alvará de D. João VI, de 30 de março de 1818, proibindo as sociedades secretas e tornando inafiançável o delito de delas participar.

            Começava a se estruturar no Brasil a função política direta do sistema punitivo que marcará posteriormente a perseguição de líderes de movimentos anarquistas e comunistas em fins do século XIX e início do XX.

            O confronto com movimentos insurrecionais e com a pressão internacional para a aderência ao liberalismo que se estruturava rapidamente trará conseqüências cruciais para o sistema punitivo brasileiro.

            Durante o período imperial o Brasil conheceu revoltas populares de norte a sul. Para citar apenas duas, pois expressam, ambas, os dois sentido destas revoltas, a Revolução Farroupilha, no Rio Grande do Sul, e a Revolta da Cabanagem, no Pará.

            A primeira foi levada à cabo pelas elites locais, descontentes com a centralização político-fiscal advindas do núcleo imperial. Movimentos deste tipo foram percebidos em vários locais, e representavam a ruína da empresa mercantil, que não tardaria por vir.

            A segunda, de cunho eminentemente popular, mesmo que não consciente de que sua luta travava-se contra toda a ordem de fatores que infligiam condições de vida degradantes, cujo início atrela-se ao passado colonial de exploração da mão-de-obra escrava e indígena, para a manutenção de uma estrutura econômico-social voltada para a sustentação do falido império português, demonstrou às elites o risco que corriam.

            Em contrapartida, radicaliza-se a ofensiva destes movimentos populares, fazendo destacar mais um elemento histórico para a constituição de nosso sistema punitivo, a sua militarização, pelo qual destaca-se as forças armadas para inibir manifestações populares identificadas diretamente com a criminalidade.

            Na medida em que o senso de criminalidade era necessariamente ligado à escravidão, a tomada de consciência política desguarnecida de uma base de apoio forte o suficiente para alastrar-se, permite que sejam identificados como caso de polícia, aos quais não resta outra alternativa senão o absoluto massacre.

            A Proclamação da República – O Primeiro Golpe Militar

            Com a guerra do Paraguai, os militares adquirem prestígio e alavancam o processo de derrocada do regime imperial. Veio a proclamação da República a 15 de novembro de 1889. O Brasil adquire autonomia política, sem necessariamente corresponder à autonomia econômica. De imediato, nossa história republicana inicia-se sob ditadura militar. Primeiro com o Marechal Floriano Peixoto, o marechal de ferro.

            Antes mesmo de proclamar-se a República, já começavam a se estruturar movimentos populares identificados com seus correlatos europeus, influenciados claramente com o anarquismo. Decorrência direta da leva de imigrantes europeus que para o Brasil começaram a se transferir em fins do século XIX e início do século XX. Uma indústria cada vez mais crescente necessitava de farta mão-de-obra, constituindo-se as primeiras aglomerações urbanas aptas a produzirem um movimento sindical forte.

            Boris Koval18 destaca que:

            Na história do movimento operário do Brasil e outros países latino-americanos um lugar especial ocupa o período em que as posições dominantes pertenciam à corrente anarco-sindicalista. O anarco-sindicalismo floresceu sobretudo nos primeiros 20 anos do século XX. (...). A principal arma dos operários – na opinião dos anarco-sindicalistas – deveria ser a greve, a "ação direta" transformando-se em revolta armada.

            Tal ação direta teve uma resposta clara do sistema punitivo brasileiro, enquadrando seus líderes como criminosos, contra a ordem e o progresso da então nascente República.

            A influência de doutrinas européias estritamente derivadas do positivismo lombrosiano trará para o Brasil – já no início da República – uma máquina estatal que desenvolverá ao máximo as tendências pretensamente científicas da identificação criminal por traços biológicos, transmutando-se consciência política em patologia, transtorno biológico-social.

            Ademais, se em 1888 a escravidão foi abolida, suas implicações estender-se-ão no tempo, oferecendo para esta abordagem positivista do crime um substrato social propício para operar-se a reprodução social da desigualdade, pois, será acrescido à correlação entre crime e patologias, o elemento racial.

            O positivismo adotado pelo agora mais bem estruturado sistema punitivo brasileiro relacionará intrinsecamente os seguintes elementos: a escravidão, a miséria, a consciência política e a militarização. Com a interligação de todos estes elementos pelo positivismo, estarão prontas as bases sobre as quais assentar-se-á o sistema punitivo brasileiro.


4. a questão criminológica

            Neste capítulo procederemos a uma breve retomada histórica das principais teorias criminológicas desenvolvidas desde as primeiras incursões que tentaram imprimir um caráter propriamente científico, ainda que, inicialmente, o tenha sido apenas quanto ao método, com um certo controle sobre a amostra de indivíduos da qual se extrairam conclusões, estas nem tanto científicas, como as do positivismo criminológico.

            Tem-se como referência a obra "Criminologia Crítica e Crítica do Direito Penal", de Alessandro Baratta, onde este autor, na primeira parte, identifica e delimita as várias teorias criminológicas desenvolvidas, partindo da Escola Clássica do Direito Penal e do Positivismo Criminológico, que estabeleceram as bases ideológicas sobre as quais se ergueu o sistema punitivo de diversos países, inclusive o Brasil. Passando por teorias como a psicanalítica, cuja origem remonta a Sigmund Freid, a estrutural-funcionalista de Émile Durkheim e Robert Merton, o autor as identifica como uma negação a cada um dos princípios que fundamentam a ideologia da Defesa Social, programa político para a área penal nascido de Escola Clássica do Direito Penal e do Positivismo Criminológico.

            4.1 O Debate Criminológico

            A criminologia sempre propiciou debates acerca de seu caráter científico, devido à suposta precariedade quanto às delimitações do objeto e do método a ser utilizado pelos seus pesquisadores. Questão infrutífera na verdade já que, sempre, qualquer contribuição nova representará novas possibilidades para o aprofundamento do entendimento de como se opera o processo de criminalização, seja em sua perspectiva macro ou microssociológica.

            Mas, durante muito tempo, questionou-se a validade da criminologia como ciência, sob o principal argumento de que, embora possam ser construídas as mais diversas perspectivas para o fenômeno do crime, psiquiátrica, psicológica, antropológica, cultural, etc, todas elas esbarram na delimitação imposta pelo Direito Penal, que define o que será passível de tornar-se crime.

            Diante disto, restaria à criminologia ater-se àquelas condutas que legalmente, e apenas legalmente, podem ser consideradas crimes. Além do que, a tipificação penal guia-se exclusivamente por critérios estritamente políticos, pois a tarefa de tipificar condutas é função do Poder Legislativo, que age guiado por interesses políticos, retirando-lhe qualquer possibilidade de se alcançar um status científico. O que, inevitavelmente, minimizaria o âmbito de atuação da criminologia, pois é certo que a sociedade, em toda sua complexidade, apresenta muito mais manifestações sociais aptas a serem captadas como crime, e entendidas no que possibilitam de reprodução social da desigualdade, do que pretende o Direito Penal.

            Os questionamentos daí derivados seriam cruciais. Como alçar a criminologia ao status de ciência, se seu objeto é derivado de uma abstração lógico-formal criada por critérios eminentemente políticos?

            Isto, porém, é falso. E vai de encontro à própria busca de superar os limites impostos pela estrutura jurídica. Pois, se o Direito Penal impõe à criminologia restrições que não lhe permitem desenvolver-se para além dos marcos regulatórios deste próprio Direito Penal, é essencial que esta mesma criminologia quebre suas amarras com a dogmática penal e demonstre que até mesmo este atrelamento ao que legalmente, e apenas legalmente, pode ser considerado crime é derivado da função ideológica exercida pelo Direito Penal, no sentido de não permitir às ciências tentar descobrir as causas do fenômeno do crime para além do que ele próprio preza como seu objeto.

            A ciência do dever-ser não pode prestar-se a compreender a sociedade com vistas à sua própria superação. Compreender no sentido científico que aqui se adota, de qualificar as ciências não apenas pela precisão de seus métodos para compreender o mundo, mas, antes de tudo – absolutamente exigível das ciências sociais – superar a realidade mesma de onde é produzida, procurando sempre não se ater ao que a realidade permite, mas ultrapassá-la para buscar o impossível frente ao que o status quo estabelece.

            De outro lado, a criminologia sempre se viu tentada, e sempre assim procedeu, a compartimentar os saberes elaborados por outras ciências quando aplicados ao seu objeto, e considerar que estes saberes produzem conhecimentos que, pelas peculiaridades próprias, não permitiriam totalizar o saber criminológico, antes desencadeariam visões específicas que não seriam passíveis de conciliação para o entendimento do crime, como se o saber produzido por um desqualificasse o saber produzido pelo outro.

            Sem entrar no mérito de cada saber aplicado à compreensão do crime, esta confusão e repulsa tornou-se também falsa e prejudicial para o próprio desenvolvimento da criminologia. Na verdade, pode-se dizer que a criminologia é uma ciência privilegiada exatamente por exigir a atuação de ciências específicas para a sua construção.

            Quer dizer, esta nova ciência, na medida em que se constitui dos trabalhos de várias outras ciências, traz a possibilidade da síntese tão necessária para a compreensão da realidade, pois articula saberes em perspectivas microssociológias e macrossociológicas, essencial para não se cair no erro de considerar a realidade como determinada por apenas uma variável. A tarefa da criminologia é especialmente profícua na medida em que traz a possibilidade de considerar seu objeto na totalidade própria que todos os objetos dos quais se pretende extrair conclusões científicas devem ser considerados.

            E nisto ela torna-se, por excelência, dialética, pois das contradições próprias a toda teoria científica a criminologia permite que se articule uma tentativa de síntese.

            4.2 Gênese do Pensamento Criminológico Moderno

            Historicamente, o Direito Penal fruto do movimento iluminista, imprimindo a marca da lei na definição do que seria crime, numa perspectiva defensiva em relação aos arbítrios do monarca absolutista, possibilitou, por um lado, o nascimento das garantias individuais, mas, por outro, estruturou as bases de fundamentação do que seja o "crime" a partir do que a lei estabelece como tal, individualizando-se o sujeito nas amarras do juridicamente indesejável.

            Foi a chamada Escola Liberal Clássica do Direito Penal, que buscou fundamentar filosoficamente uma concepção jurídica do delito, da responsabilidade penal e da pena. Em 1.764 Cesare Beccaria publica seu famoso "Dos delitos e da pena", e, em 1.859 Francesco Carrara lança o "Programa do Curso de Direito Criminal". Estas duas obras podem ser consideradas os pilares da moderna teoria jurídica do crime. A primeira, precipuamente, estabelece as bases filosóficas desta concepção jurídica do crime e, nas palavras de Alessandro Baratta19:

            A consequência resultante para a história da ciência penal, não só italiana mas européia, é a formulação pragmática dos pressupostos para uma teoria jurídica do delito e da pena, assim, como do processo, no quadro de uma concepção liberal do estado de direito, baseada no princípio utilitarista da maior felicidade para o amiro númeiro, e sobre as idéias do contrato social e da divisão de poderes.

            Planta-se, assim, o primado da legalidade jurídico-penal. No mesmo sentido, mas com a singularidade do soerguimento das bases lógicas sobre as quais se construiu esta legalidade jurídico-penal, está a obra de Carrara. Sobre isto afirmou Baratta20:

            Toda a elaboração da filosofia do direito penal italiano do iluminismo, nas diversas expressões que nela tomaram corpo, dos princípios iluminstas, racionalistas e jusnaturalistas, (...), encontra uma síntese logicamente harmônica na clássica construção de Francesco Carrara (...). Mas a importância histórica da obra grande mestre de Pisa não reside tanto em haver realizado e recolhido a tradição precedente da filosofia do direito penal, quanto melhor, em haver posto a base lógica para uma construção jurídica coerente do sistema penal.

            Essencialmente, a Escola Liberal Clássica do direito penal pautava as considerações sobre o crime pela sua existência apenas como ente jurídico, ou seja, isolado da conduta que lhe originou, para apresentar-se apenas pela sua estruturação jurídica, cuja única vinculação com o mundo exterior é a sua ligação a um ato de livre vontade de um sujeito. O crime, dessa perspectiva, é o resultado da mais completa abstração, própria de uma filosofia de cunho idealista e metafísico.

            Em 1.876 Cesare Lombroso publica "O Homem Delinquente", propondo novos caminhos para a compreensão do crime, com uma mudança crucial de objeto. É o positivismo criminológico, que deixa a compreensão abstrata e metafísica e, então, passa a focar o criminoso, amparado pelo arcabouço técnico oferecido pelas ciências naturais, pelo qual se pretendia extrair do comportamento dos criminosos leis gerais que poderiam explicar a razão de alguém praticar uma conduta que a lei penal considera como crime.

            O paradigma iluminista estruturou uma noção de crime estática, prevista apenas na lei penal, sem ligação alguma com a realidade, procurando encontrar na conduta os elementos jurídicos que lhe permitiriam justificar a pena. Nada mais além disto. Com os estudos de Lombroso muda-se o foco, e deixa-se de lado a lei penal para proceder-se ao estudo dos sujeitos que haviam sido alcançados pelo sistema penal. Utilizando-se dos resultados do processo de criminalização – os prisioneiros – tenta-se justificar sua condição por traços biológicos que permitiriam constatar uma natureza criminosa, segundo métodos pretensamente científicos.

            Apesar de ter representado um avanço em relação à escola clássica do direito penal, pois o positivismo criminológico tenta trazer a discussão para o terreno do que é diretamente perceptível, este paradigma peca pelo determinismo biológico que considera o crime como uma realidade ontologicamente determinada. Nas palavras de Nilo Batista21:

            A essa ‘falha política’ do positivismo (...) somam-se outras, que colocam em cheque o valor de suas premissas, seus métodos e conclusões. Simplificadamente, resumiremos essas falhas em: a) supor que na transcrição da objetividade cognoscível não se imprime a experiência do sujeito cognoscente; b) reduzir a objetividade cognoscível ao que nela for empírica e sensivelmente demonstrável; c) ter, portanto, na metodologia o centro e o limite inexorável de sua atividade científica; d) conceber de forma mecanicista os fatos sociais, produzindo explicações com base em relações causais.

            Destas duas concepções teóricas – a escola clássica do direito penal e o positivismo criminológico – estruturou-se, como síntese para a fundamentação política do sistema punitivo, a ideologia da defesa social. Segundo Alessandro Baratta22:

            (...) tanto a Escola Clássica quanto as escolas positivistas realizam um modelo de ciência penal integrada, ou seja, um modelo no qual ciência jurídica e concepção geral do homem e da sociedade estão estritamente ligadas. Ainda que suas respectivas concepções do homem e da sociedade sejam profundamente diferentes, em ambos os casos nos encontramos, salvo exceções, em presença da afirmação de uma ideologia da defesa social, como nós teórico e político fundamental do sistema científico.

            4.3 A Ideologia da Defesa Social

            Primeiramente, antes de comentarmos em que se baseia a ideologia da defesa social, cabe delimitar o sentido de ideologia aqui utilizado. Pois bem, a diversidade dos autores considera o termo ideologia por dois sentidos, um positivo e um negativo. Primeiro, num sentido positivo, como sendo um conjunto articulado de pensamentos que se constrói em torno de um campo de conhecimento e que propicia um programa de ação para aplicação dos resultados daí derivados.

            Este conceito se diz positivo em contraposição ao conceito de ideologia definido a partir das obras de Karl Marx, cujo conteúdo denota um sentido negativo, porquanto considera ideologia como sendo uma falsa consciência que se constrói para deturpar a realidade social23. Assim, ideologia seria o conjunto, também articulado, de construções de pensamento que se apresentam como gerais ao todo social, mas que não encontram correspondência na realidade concreta da dinâmica das relações sociais.

            As ideologias são decorrentes das contradições inevitáveis da sociedade, e possuem a função de legitimar uma determinada maneira de agir que mantem esta contradição imutável. A ideologia da defesa social24 surge, então, como o programa político burguês para o campo punitivo, alicerçado na racionalização do processo de determinação do caráter criminoso de uma conduta. Esta racionalização funda-se, precipuamente, nos seguintes pressupostos: primeiro, o crime é uma realidade ontológica, que existe em si mesma; segundo pressuposto, esta realidade ontológica expressa-se por caracteres biológicos, que direcionam o sujeito inevitavelmente; terceiro pressuposto, a estrutura do crime é estritamente jurídica, e sua identificação é o resultado de uma lógica abstrata e formal.

            A correlação entre estes três pressupostos é a base da qual erguer-se-á o conjunto de princípios que fundamentam a ideologia da defesa social, quais sejam: o princípio da legitimidade, o princípio do bem e do mal, o princípio da culpabilidade, o princípio da finalidade ou da prevenção, o princípio da igualdade.

            Prosseguiremos com o panorama histórico das teorias criminológicas posteriores ao positivismo e, ao mesmo tempo, mostraremos o contraponto que Alessandro Baratta identifica em cada uma delas em relação àqueles princípios da ideologia de defesa social, no sentido de que, apesar das limitações teóricas, os avanços destas teorias foram, principalmente, em ter oferecido argumentos contrários aos princípios da ideologia da defesa social.

            4.4 Teorias Criminológicas que Negam os Princípios da Ideologia da Defesa Social

            O princípio da legitimidade pretende fornecer ao sistema punitivo uma justificação para sua existência e atuação. O Estado, através de seus orgãos oficiais, está legitimado a agir punitivamente pois é a expressão da vontade social de querer ver punido o comportamento desviante, com vistas a fortalecer os valores e normas sociais.

            A primeira teoria que Alessandro Baratta identifica como negação a este princípio é a teoria psicanalítica. Na verdade, a teoria psicanalítica não se insere dentro do quadro geral das teorias sociológicas que buscaram compreender o crime e a criminalidade.

            Sua importância está em ter construído o entendimento segundo o qual a sociedade, ao reagir ao comportamento criminoso, confirma sua instintiva necessidade de reprimir aquilo que, dentro dela própria, é identificado com o que levou o sujeito a praticar um comportamento desviante. A repressão social – assim como a repressão interior do superego limita os instintos delituosos no indivíduo, e a punição torna-se um desejo que aplaca o sentimento de culpa pelo comportamento delituoso – cumpre um duplo papel, quais, sejam, de servir à "satisfação da necessidade inconsciente de punição que impele a uma ação proibida"25 e, também, satisfazer a "necessidade de punição da sociedade, através, de sua inconsciente identificação o delinquente"26.

            Assim, cai por terra a legitimidade baseada em um senso comum pelo qual o comportamento delituoso nega valores e normas sociais, pois este comportamento delituoso faz parte do mecanismo psicossocial pelo qual a sociedade se mantem coesa, pois, ao punir, ela nega a si própria sua identificação com o criminoso.

            O princípio do bem e do mal considera o crime como um dano à sociedade, boa em si mesma, representando, assim, o mal, posto que disfuncional à estrutura social. Em contraposição a este princípio, a teoria estrutural-funcionalista veio colocar o tema em bases propriamente sociológicas, para afirmar que o crime é um comportamento natural e necessário em qualquer formação social, e somente se torna um problema quando ultrapassa o limite em que se torna um empecilho para a existência e o desenvolvimento da estrutura social. O que está além deste limite é o que se denomina anomia. O crime, de uma certa forma, regula a vida social, pois faz a sociedade caminhar para caminhos contrários.

            Outra corrente propugnou pela consideração do comportamento criminoso como consequência da "desproporção entre os fins culturalmente reconhecidos como válidos e os meios legítimos à disposição dos indivíduos para alcançá-los"27. Não havendo uma correspondência neste sentido, o indivíduo, para alcançar os fins culturais a que a sociedade se dispõe, mas para os quais não lhe foi oferecidos os meios também legítimos para alcançá-los, os comportamentos delituosos estarão presentes. Mas, aqui também, dentro de certos limites quantitativos, estes comportamentos apresentam-se como estruturais à sociedade.

            Esta teoria nega o princípio do bem e do mal pois considera o comportamento desviante como necessário. Assim, não há mal em uma conduta que é útil para a sociedade, dái o próprio nome desta teoria, estrutral-funcionalista, ou seja, a relação funcional que o crime possui com a estrutura social.

            Prosseguindo, a teoria das subculturas criminais é identificada como a negação do princípio da culpabilidade. É a primeira análise criminológica petinente à modelos de comportamento específicos. Há uma ligação estreita com a teoria vista anteriormente, no sentido de que os meios que os indivíduos lançam mão para cumprir as metas culturais colocadas pela sociedade dá origem às subculturas criminais. Não havendo meios legítimos para que parcelas da população usufrua dos metas culturais, e sendo estas metas culturais almejadas por quem não as alcança, lança-se mão de meios ilegítimos, cuja consecução dá origem a comportamentos desviantes do padrão médio da sociedade.

            O que a teoria das subculturas criminais enfatiza é que não há um conjunto de valores e normas sociais gerais que possa ser imposto como limite para se verificar o grau de culpabilidade. Existem valores e normas específicos de grupos sociais específicos que, construídos socialmente como são, derivam da dinâmica das relações sociais e, assim, não podem ser considerados em termos de conformidade ou desconformidade a um pretenso padrão social de comportamento, para que do descompasso retire a justificação para a punição nos termos do princípio da culpabilidade.

            Posteriormente, a teoria do labeling aproach veio trazer a negação do princípio do fim ou da prevenção. Esta teoria fundamenta-se nos trabalhos desenvolvidos por duas correntes teóricas denominadas "interacionismo simbólico" e "etnometodologia". Da primeira herdou a compreensão da sociedade como "constituída por uma infinidade de interações concretas entre indivíduos, aos quais um processo de tipificação confere um significado que se afasta das situações concretas e continuam e estender através da linguagem"28. Da etnometodologia veio entendimento segundo o qual a "sociedade não é uma realidade que possa conhecer sobre o plano objetivo, mas o produto de uma ‘construção social’, obtida graças a um processo de definição e de tipificação por parte de indivíduos e grupos diversos"29.

            Assim, o labeling aproach vem propor o questionamento do desvio como qualidade atribuída a comportamentos e indivíduos, e da identidade que se constrói pelo processo de criminalização. O ser crime é uma consequência da atuação do sistema punitivo, que imprime às condutas o caráter criminoso e ao indivíduo que a praticou a pecha de delinquente.

            A negação do princípio do fim da pena ou da prevenção ocorre quando se afirma que a identidade desviante decorrente da primeira incursão do sujeito no processo de criminalização lhe acompanhará nas interações sociais posteriores e, deste ponto em diante, não há como o indivíduo reeducar-se, pois à sua frente abrir-se-á apenas a chance de uma efetiva carreira criminosa.

            Alessandro Baratta aponta a recepção alemã da teoria do labeling aproach como a negação do princípio da igualdade, especialmente pelos questionamentos levantados referente à criminalidade de clarinho branco e à cifras negras.

            Estes temas trouxeram à cena criminológica questões cruciais como a que afirma que comportamentos passíveis de criminalização não estão restritos a grupos sociais específicos, mas a todos os setores sociais. No mesmo sentido, há um nível considerável de comportamentos passíveis de criminalização que não são apreendidos pelo sistema punitivo, seja por que quem os pratica pertencem a grupos sociais cultural, social, política, e economicamente fortes o suficiente para não se tornarem vulneráveis à atuação do sistema punitivo, seja por que, mesmo naqueles setores sociais mais fragilizados, onde a atuação do sistema punitivo pode ser percebida de maneria mais contundente, não há condições do sistema punitivo mostrar-se presente em todas as situações passíveis de criminalização.

            Diante desta inexorável realidade, não há argumento que sustente a igualdade pretendida pela ideologia da defesa social para fazer crer que as determinações jurídico-penais serão aplicadas onde quer que ocorra uma conduta passível de criminalização.

            4.5 A Criminologia Crítica

            Todo este desenvolvimento do pensamento criminológico ofereceu elementos contra a criminologia positivista identificada com o direito penal clássico, como vimos, procurando inserir a questão fora dos limites da legalidade penal, privilegiando as relações sociais e as contradições que lhe são inerentes.

            Em relação à criminologia positivista escreveu Baratta30:

            O equívoco que daí derivava era o de partir da criminalização de certos comportamentos e de certos sujeitos, considerando ter, por isso mesmo, o que fazer com uma realidade possuidora de caracteres e causas naturais específicas, como se o mecanimso social de seleção da população criminalizada devesse, por uma misteriosa harmonia preestabelecida, coincidir com uma seleção biológica. Desse modo, as teorias patológicas exercitam a sua função conservadora e racionalizante em face do sistema penal. A isto correspondia perfeitamente o modelo positivista de ciência penal integrada, no qual a criminologia tinha, dinate da dogmática jurídica, uma função auxiliar. (grifo no original)

            Inserindo a perspectiva sociológica as teorias desenvolvidas em contraposição à crimilogia positivista foram denominadas por Alessandro Baratta por criminologia liberal contemporânea, cujo esforço teórico possibilitou deixar de lado o suporte dogmático oferecido pelo direito penal e focar o fenômeno do crime a partir de uma definição sociológica do desvio, que necessita ampliar o contexto de investigação para a estrutura social como um todo.

            O ponto culminante da criminologia liberal contemporânea foi a teoria do labeling. Continuando com Baratta31:

            O ponto mais avançado desta consciência da autonomia do próprio obejto em face das definições legais é alcançado, na criminologia liberal contemporânea, pela teoria do labeling. Negando qualquer consistência ontológica à criminalidade, enquanto qualidade atribuída a comportamentos e a pessoas por instâncias detentoras de um correspondente poder de definição e de estigmatização, a teoria do labeling deslocou o foco da investigação criminológica para tal poder. O direiro penal torna-se, assim, (...) de ponto de partida para a definição do objeto da investigação criminológica, no objeto mesmo da investigação.

            Mas, apesar de indicar os avanços que representaram as teorias criminológicas liberais contemporâneas, Alessandro Baratta as identifica como incapazes de fornecerem o que ele chama de uma ideologia positiva, na medida em que elas mesmas representam uma mais "nova ideologia negativa racionalizante de um sistema repressivo mais atualizado (itálico no original) em relação ao nível alcançado pelo desenvolvimento da sociedade capitalista"32.

            Concluindo esta limitação prática das teorias liberais contemporâneas para oferecer uma prática socialmente justa, Alessandro Baratta33 conclui:

            O novo sistema de controle social do desvio, que a ideologia das teorias liberais racionaliza, como o demonstra a experiência prática, até hoje, dos países capitalistas mais avançados, pode ser interpretado como uma racionalização e uma integração do sistema penal e do sistema de controle social, em geral, com o fim de torná-lo mais eficaz e mais econômico em relação à sua função principal: contribuir para a reprodução das relações sociais de produção. Do ponto de vista da "visibilidade" sociológica, isto significa contribuir para a manutenção da escala social vertical, da estratificação e da desigualdade dos grupos sociais. A ideologia racionalizante se baseia, principalmente, na tese da universalidade (itálico no orginal) do fenômeno criminoso e da função punitiva.

            Inserindo a questão criminológica no debate interno às ciências sociais contemporâneas, Alessandro Baratta começa a esboçar a proposta da criminologia crítica. O caráter crítico estrutura-se para contrapor-se a uma ciência social que pretende ser neutra em relação à influência que seus resultados teóricos devam ter na realidade social.

            O caráter crítico surge na perspectiva de que qualquer ciência social que se pretenda crítica deve ter a correspondente inserção prática na realidade social de onde retira seu objeto e para onde deve voltar seus resultados, para que, em conjunto com os atores sociais diretamente interessados na superação de uma desigualdade estrutural, seja o suporte para práticas sociais emancipatórias. Segundo Baratta34:

            Somente uma ciência social comprometida, pensamos, pode desenvolver um papel de controle e de guia em relação à técnica jurídica. A natureza dialética (itálico no original) da mediação entre teoria e práxis, que caracteriza este modelo de ciência social, é a medida do caráter racional do seu compromisso cognoscitivo e prático. A mediação é dialética quando o interesse pela transformação da realidade guia a ciência na construção das próprias hipóteses e dos próprios instrumentos conceituais e, por outro lado, a reconstrução científica da realidade guia a práxis transformadora, desenvolvendo a consciência das contradições materiais e do movimento objetivo da realidade, como consciência dos grupos sociais materialmente interessados na transformação da realidade e na resolução positiva das suas conotradições e, portanto, historicamente portadores deste movimento da transformação. Isto significa que, em uma ciência dialeticamente comprometida no movimento de transformação da realidade, o ponto de partida, o interesse prático por este movimento, e o ponto de chagada, a práxis transformadora, estão situados não só na mente (itálico no original) dos operadores científicos, mas principalmente nos grupos sociais portadores do interesse e da força necessária para a transformação emancipadora.

            Este é, na essência, o sentido que se deve imprimir às ciências sociais, que não pode de maneira alguma se desvincular da realidade concreta. Este é, na essência, o sentido que se deve atribuir às ciências em geral, ou seja, uma racionalidade intrinsecamente articulada com a necessidade de superar condicionamentos históricos que subjulgam grande parte da população e não lhes permite reconhecer as contradições que assim lhes determina e, ao mesmo tempo, não lhes permite reconhecer as manifestações das contradições sociais que podem ser exploradas positivamente.


5. APONTAMENTOS SOBRE A REPRODUÇÃO SOCIAL DA DESIGUALDADE PELO SISTEMA PUNITIVO

            5.1 O Sistema Punitivo para Além da Legalidade

            O sistema punitivo é composto por uma série de instituições estatais às quais cumpre realizar a função de controle social, pela perspectiva institucional, necessariamente jurídica. Genericamente, pode-se agrupar todas as instituições componentes do sistema punitivo em três grandes estruturas, a saber: a estrutura policial, a estrutura judiciária e a estrutura penitenciária. As funções exercidas por cada uma destas estruturas são funções que, sob a ótica restrita da legalidade, delimitam as etapas indispensáveis para que se verifique o controle social pela perspectiva jurídica. É que a legalidade do Estado de Direito exige que a punibilidade estatal seja realizada por etapas, em um processo que, partindo da constatação de um fato que se suspeita crime, passe pelo julgamento de quem o praticou com consequente condenação e termine com o cumprimento da pena.

            Alessandro Baratta35 aponta para a existência de três momentos de verificação do processo de criminalização, nestes termos:

            O direito penal não é considerado, nesta crítica, somente como sistema estático de normas, mas como sistema dinâmico de funções, no qual se podem distinguir três mecanimso analisáveis separadamente: o mecanismo da produção das normas (criminalização primária), o mecanismo da aplicação das normas, isto é, o processo penal, compreendendo a ação dos orgãos de investigação e culminando com o juízo (criminalização secundária) e, enfim, o mecanismo da execução da pena ou das medidas de segurança.

            A predominância neste trabalho é quanto aos momentos posteriores à elaboração legislativa, ou seja, aos momentos de atução das estruturas policial, judiciária e penitenciária36.

            À estrutura policial cumpre a função de coibir a ocorrência de condutas passíveis de criminalização e, quando estas ocorrem, cumpre-lhe investigar a maneira como ocorreu, com vistas a construir o suporte fático-jurídico necessário para desencadear a atuação da estrutura judiciária.

            A esta cabe o julgamento da conduta apreendida pela estrutura policial, com o desenvolvimento do processo penal, cujo resultado será a condenação ou a absolvição do réu. Ainda que o complexo legislativo possua uma série de mecanismos processuais que importam em consequências específicas, isto não descaracteriza a função essencial da estrutura judiciária, principalmente para o objetivo aqui pretendido, de delimitar o sistema punitivo. Assim, basta afirmamos que à estrutura judiciária cumpre concluir pela condenação ou pela absolvição do réu.

            Por fim, se o resultado da atuação da estrutura judiciária for a condenação, entrará em cena a estrutura penitenciária, que dará cumprimento à execução punitiva, com a aplicação da principal pena – pois é a mais drástica – prevista pela ordem jurídica, qual seja, a pena privativa de liberdade. Insiste-se mais uma vez. Ainda que a ordem jurídica possua outras penas, como a multa a restrição de direitos, o que aqui interessa é a caracterização do sistema punitivo. Assim, se a pena privativa de liberdade é a principal forma de punição utilizada pelo sistema punitivo, para que ela possa ser aplicada é necessário que se construa instituições encarregadas da execução desta punição.

            Mas a atuação destas três estruturas não se verifica de maneira compartimentada, isolada, antes se associam, em uma dependência estrutural. E seus resultados não são percebidos apenas nos limites da legalidade, pois há uma superação que lhes encaminha para produzir efeitos diretos na dinâmica das relações sociais que ofereceram o substrato material para sua atuação.

            Como forma de controle de social, o sistema punitivo não é algo que está acima da dinâmica das relações sociais, reconhecível somente nos momentos jurídicos. Pelo contrário, o sistema punitivo possui uma realidade concreta, que permite inserí-lo como parte da dinâmica das relações sociais. Esta inserção, como se disse, é concreta, pois reconhecível no processo de criminalização. Conjungando a atuação destas três estruturas é possível retirar três perpectivas pelas quais pode se verificar a reprodução social da desigualdade.

            A primeira perpectiva é anterior à atuação direta do sistema punitivo, e caracteriza-se pela sua capacidade de criar um senso comum sobre a criminalidade que identifica grupos sociais específicos como aqueles dos quais não se pode esperar outra coisa senão comportamentos desviantes.

            Aqui, estamos diante daquilo que permite identificar os aspectos ideológicos da atuação do sistema punitivo, ou seja, a criação de um senso comum utilizado para descrever a realidade da criminalidade e oferecer respostas, muitas vezes identificadas com o clamor social, desprovido de razoabilidade, por uma atuação punitiva cada vez mais forte.

            Desta maneira, o caráter ideológico do sistema punitivo quebra possibilidades emancipatórias ao não permitir a construção de relações comunitárias que sirvam de contraponto ao problema do crime. Maria Lúcia Karam37 é elucidativa quanto a esta função ideológica, ao comentar os efeitos da discussão acerca do combate às drogas no Brasil, que assumiu para si uma dimensão do problema que não corresponde ao que de fato ocorre:

            O encobrimento das razões históricas, econômicas e políticas determinantes das distinções entre drogas lícitas e ilícitas, distinção que pouco ou nada tem a ver com a maior ou menor potencialidade de dano de umas e outras e que envolve as drogas qualificadas de ilícitas numa capa de mistério e fantasia; o superdimensionamento do problema, tratado sob uma ótica definida nos países centrais, quando existem, nos paíse periféricos, problemas muito mais sérios em matéria de saúde pública; a utilização de fatores como o desenvolvimento de grandes organizações criminosas e a violência por elas gerada, que são apresentados como consequências da disseminação das drogas; tudo isso acaba por criar uma clima de pânico, de alarme social, seguido pela demanda de mais repressão, de maior ação policial, de penas mais rigorosas, como costume em situações que comovem e assustam o conjunto da sociedade.

            O segundo momento já se encontra no terreno da atuação direta do sistema punitivo, pelas estruturas policial, judiciária, e penitenciária, ainda que os casos concretos não passem por todas. Neste momento, deve-se voltar os olhos para o que efetivamente o sistema punitivo produz. Sobre esta atuação haverá influência direta do que se constrói socialmente acerca da criminalidade no primeiro momento identificado no parágrafo anterior, pois é certo que o senso comum que a ideologia da defesa social cria direciona o planejamento político-criminal, a refletir diretamente no que será apreendido pelo sistema punitivo.

            Também é neste segundo momento que são criminalizadas, de fato, condutas que, antes de serem meramente um comportamento típico, antijurídico e culpável, são decorrentes de relações sociais que se guiam por contradições inerentes ao modo de produção capitalista e que, assim sendo, possuem um conteúdo de desigualdade que propicia uma atuação direcionada do sistema punitivo.

            O terceiro momento encontra-se na posterior inserção do sujeito no sistema punitivo, ainda que ele não passe por todas as instâncias, e diz respeito às consequências daí derivadas para sua volta ao relacionamento social, com toda a carga negativa que alguém carrega consigo após ter sido iserido no processo de criminalização.

            A simples suspeita de que alguém possa ter praticado uma conduta passível de criminalização, ainda que não se venha a oferecer a denúncia necessária para a atuação da estrutura judiciária, bastará para que a estrutura policial já tenha agido e feito com que a comunidade à qual pertence o suspeito o olhe sob a mácula de "criminoso".

            Muitas vezes, até que se conclua a atuação judiciária, o réu já estará sendo privado de sua liberdade, e pouco importará se será julgado inocente, pois já se terá operado concretamente os efeitos maléficos de ser trancafiado em celas superlotadas. Pelo relatório do ILANUD apresentado, 80% das vítimas do massacre do carandiru ainda aguardavam julgamento.

            Segundo Zaffaroni38 isto é consequência da violação exercida pelo sistema punitivo à própria legalidade penal, e aponta os diferentes caminhos pelos quais isto se verifica:

            a)a duração extraordinária dos processoas penais provoca uma distorção cronológica que tem por resultado a conversão do auto de prisão em flagrante ou do despacho de prisão preventivas em autêntica sentença (a prisão provisória transmuta-se em penal), a conversão do despacho concessivo de liberdade provisória em verdadeira "absolvição" e a conversão da decisão final em recurso extraordinário. Considerando que a análise aprofundada dos limites da punibilidade ocorre no momento da decisão final, o nítido predomínio do "presos sem condenação" entre a população de toda a região não implica somente uma violação à legalidade processual, mas também à legalidade penal;

            (...)

            d) as agências executivas frequentemente atuam à margem dos critérios pautados para o exercício de poder pelos orgãos judiciais, de modo que, quando se produz a intervenção destes, já se consumaram efeitos punitivos irreversíveis sobre a pessoa selecionada.

            E, sob o ponto de vista do condenado, depois de cumprida a pena, integralmente, possivelmente a pessoa continuará presa, pois não lhe é oferecida assistência técnica para que se verifique sua situação processual e ele possa ser colocado em liberdade. Quando sair, é muito pouco provável que consiga inserir-se em seu meio social, seja no sentido de meramente adequar-se aos padrões sociais dominantes que exigem dele uma sociabilidade produtiva, seja no sentido de – aqui, com muito menos possibilidades – inserir-se autonomamente para empreender práticas sociais que quebrem as determinações históricas que lhe condicionam à níveis concretos de desigualdade, o que de uma forma ou de outra, potencializará a inserção em novas práticas de condutas passíveis de criminalização.

            Quer isto significar que o que define o sistema punitivo não é o que ideologia da defesa social declara como lhe sendo próprio, mas exatamente o que ele produz no sentido contrário do que pretende sua fundamentação. Isto é contraditório. E é justamente por isso que as bases sobre as quais se assenta a ideologia da defesa social são bases de caráter ideológico, portanto falsas.

            Assim, não se deve procurar os fundamentos do sistema punitivo no que toda ordem de fundamentações filosóficas e jurídico-penais pretende informar, mas sim naquilo que o processo de criminalização empreendido pelo sistema punitivo produz de concreto na dinâmica das relações sociais, pois a sua inserção numa realidade social marcada historicamente pela desigualdade lhe condicionará para estruturar-se como um dos muitos mecanismos de controle social que se utilizam desta desigualdade para manterem-se rígidos e reproduzir esta mesma desigualdade que assim lhes determinou.

            5.2 A Inevitável Contradição

            Desde que o atual sistema punitivo começou a se erguer, calcado, como vimos, nos matizes históricos decorrentes da colonização brasileira, uma marca inexorável mantem-se cada dia mais atual, qual seja, a de que há um abismo entre o que a ideologia da defesa social pretende oferecer e o que o sistema punitivo produz de concreto.

            Sobre esta contradição escreveu Zaffaroni39:

            Hoje, temos consciência de que a realidade operacional de nossos sistemas penais jamais poderá adequar-se à planificação do discurso jurídico-penal, e de que todos os sistemas penais apresentam características estruturais próprias de seu exercício de poder que cancelam o discurso jurídico-penal e que, por constiutírem marca de sua essência, não podem ser eliminadas sem a supressão dos próprios sistemas penais.

            Como bem enfatiza Zaffaroni, esta contradição é da essência do sistema punitivo, pois ele necessita de uma justificativa para legitimar sua prática real como necessária.

            Alessandro Baratta, por sua vez, extrai o conteúdo desta contradição, pelas seguintes proposições40:

            a)o direito penal não defende todos e somente os bens essenciais, nos quais estão igualmente interessados todos os cidadãos, e quando pune as ofensas aos bens essenciais o faz com intensidade desigual de modo fragmentário;

            b)a lei penal não é igual para todos, o status de criminoso é distribuído de modo desigual entre os indivíduos;

            c)o grau efetivo de tutela e a distribuição do status de criminoso é independente da danosidade social das ações e da gravidade das infrações à lei, no sentido de que estas não constituem a variável principal da reação criminalizante e de sua intensidade.

            Destas proposições é possível retirar-se alguns pressupostos, quais sejam: a) que a lei penal não é igual para todos; b) que o direito penal não defende todos os bens jurídicos que declara como essenciais e quando pune as ofensas aos bens essenciais o faz com intensidade desigual; c) que o status social de criminoso é distribuído de maneira desigual entre os indivíduos; d) que a danosidade social das ações e a gravidade das infrações à lei não determinam a reação criminalizante.

            Enquanto proposições abstratas, estas conclusões devem encontrar na realidade concreta relações sociais que permitam identificá-las como plausíveis, ou seja, algo que lhes dê validade do ponto de vista cientifíco, para que tais conclusões possam orientar corretamente a adoção de práticas sócio-jurídicas comprometidas com a própria superação do sistema punitivo.

            A conclusão de que a lei penal não é igual para todos é o resultado da conjugação das outras conclusões expostas por Alessandro Baratta, constituindo-se no último nível de abstração, ao qual se chega pelo desenvolvimento concreto das outras teses, ou seja, retira-se da realidade concreta da dinâmica das relações sociais elementos que, quando conjugados entre si, permitem concluir que a lei penal não é igual para todos.

            Mas, ao mesmo tempo, a própria constituição das teses anteriores só é possível quando se insere a questão para além dos marcos estritamente jurídicos, e se considera a inserção do sistema punitivo na estrutura social como um todo, dentro da qual ele destaca-se enquanto processo de criminalização, diretamente influenciado pelas contradições inevitáveis de uma formação social cujo fundamento é a exploração do trabalho humano.

            Neste sentido, conjugando aqueles pressupostos, retira-se dois momentos para a consideração do processo de criminalização, quais sejam, a reação criminalizante e a distribuição desigual do status social de criminoso, sobre os quais, Alessandro Baratta vem nos dizer, não influem a danosidade social das ações e a gravidade das infrações à lei, pois a essencialidade dos bens jurídicos pretendida para determinar a reação criminalizante e a desigualdade da distribuição do status social de criminoso não é jurídica.

            Sobre a reação criminalizante, cabe delimitar o seu sentido, para contrapô-lo à expressão "tutela penal", pois esta última nos impele a pensar na proteção que o sistema punitivo pode oferecer contra ofensas ou ameaças de ofensas aos bens jurídicos que são declarados como essenciais.

            Porém, esta tutela penal não existe, e sua consideração deve se dar em termos de reação punitiva, cujo efeito é a criminalização da conduta e a inserção do sujeito no processo de criminalização. Isto por que o sistema punitivo não oferece tutela, proteção, mas sim uma reação a ofensas ou ameças de ofensas já realizadas, por meio da punição e do manejo dos instrumentais jurídicos utilizados para conformar a sua atuação, através do processo de criminalização.

            Quanto à distribuição desigual do status social de criminoso, abrem-se dois caminhos para sua consideração. Primeiro, quanto ao status social de criminoso em si mesmo, para destacar que a construção social de um padrão de comportamento ao qual se associa efeitos negativos apresenta-se como uma condição essencial para o sistema punitivo desenvolver sua função de reprodução social da desigualdade, pois o processo de criminalização atribui a todos os que a ele são inseridos algo que torne o sujeito, em um primeiro momento, afastado do padrão de sociabilidade que se exige para se inserir produtivamente e, em um segundo momento, talvez o mais trágico, afastado de qualquer possibilidade de inserir-se no seu meio social por relações sociais emancipatórias.

            Assim, de uma forma ou de outra, seja para meramente adequar-se a padrões de sociabilidade que não permitem vislumbrar nada além da satisfação de necessidades básicas, o que inevitavelmente conforma as relações sociais à desigualdade estrutura que lhes permeia, seja para procurar estabelecer novas formas de sociabilidade que se pautem pela busca constante de superação da mesma desigualdade que assim lhes determinou, de uma forma ou de outra, a estigmatização resultante da inserção do sujeito no processo de criminalização, pela atribuição do status social de criminoso, desqualifica qualquer tentativa de sua própria superação.

            Porém, a mera atribuição do status social de criminoso não encerra, por si mesmo, todas as potencialidades de reprodução social da desigualdade. Pela segunda via que propomos para a análise do status social de criminoso, qual seja, a sua distribuição desigual, o sistema punitivo, pela atribuição do status social de criminoso de uma maneira direcionada para setores sociais frágeis, torna-se, agora sim, como um dos mecanismos mais eficazes de reprodução social da desigualdade.

            E, em segundo lugar, como a outra via de análise do status social de criminoso, a sua distribuição desigual, ou seja, o direcionamento, pela atuação concreta do sistema punitivo, da atribuição dos efeitos negativos decorrentes deste padrão comportamental a indivíduos claramente identificados com setores sociais frágeis, subjetiva e objetivamente.

            Neste sentido, demarcando o campo pelo o processo de criminalização concretiza-se na realidade da dinâmica das relações sociais, torna-se essencial que vislumbremos esta proposta a partir do que sugeriu Alessandro Baratta42, nos seguintes termos:

            A tomada de consciência das contradições e do movimento emancipador da realidade, desenvolvida e acelerada através da elaboração científica e da difusão dos seus resultados entre os grupos sociais materialmente interessados na liberação de tal movimento, faz desses grupos, no sentido político, uma classe capaz de transformar e reverter as relações de hegemonia e a sua atual mediação política. Na atual fase de desenvolvimento da sociedade capitalista, o interesse das classes subalternas é o ponto de vista a partir do qual se colcoa uma teoria social comprometida, não na conservação, mas na transformação positiva, ou seja, emancipadora, da realidade social. O interesse das classes subalternas e a força que elas são capazes de desenvolver são, de fato, o momento dinâmico material do movimento da realidade.

            Relacionando tais proposições abstratas com os elementos históricos que concluimos ser a base sobre a qual se assenta o sistema punitivo brasileiro, quais sejam, a miséria, a escravidão, a consciência política e a militarização, acreditamos poder extrair algumas conclusões acerca da reprodução social da desigualdade pelo sistema punitivo.

            Esta proposta visa identificar na dinâmica das relações sociais o quanto estes quatro elementos são o suporte pelo qual aquelas proposições se verificam, e como, deste relacionamento, a desigualdade é reproduzida pelo sistema punitivo.

            Não se pretende encerrar a questão apenas em uma variável, seja ela econômica, política, cultural, ou qualquer outra. Pretende-se apenas esboçar algumas possibilidades a partir do potencial teórico oferecido por Alessandro Baratta.

            5.3 Condicionamentos Históricos para a Reprodução da Desigualdade pelo Sistema Punitivo

            Firmado o entendimento de que o sistema punitivo supera as determinações jurídicas e se insere na dinâmica das relações sociais pelo processo de criminalização, adquirindo, assim, uma existência concreta, e que esta sua mesma existência concreta não corresponde ao que se oferece à sociedade como justificativa para sua legitimidade, gerando disto uma contradição que é da essência desta forma de controle social, conclui-se pela verificação de sua função de reprodução social da desigualdade em duas perspectivas, a saber: uma ideológica propriamente dita, na medida em que cria um senso comum que encobre suas reais funções, e outra objetiva, ou seja, a sua inserção direta na dinâmica das relações sociais, constituindo-se em um dos mecanismos sociais que não permitem a superação da desigualdade social, porquanto, ao criminalizar, imprime aos setores sociais que sofrem mais intensamente os efeitos do processo de criminalização o fortalecimento daqueles elementos históricos negativos que estão na origem desta mesma desigualdade, quais sejam, a escravidão, a miséria, a conscientização política e a militarização.

            Tais elementos históricos relacionam-se, assim, nestas duas perspectivas, subjetiva e objetiva – uns mais quanto ao primeiro, outros mais quanto ao segundo – mas, sempre, confluindo-se, todos, para constituirem-se como a base social sobre a qual o sistema punitivo, a partir das contradições inevitáveis de um modo de produção pautado na exploração do trabalho humano, constrói-se como um dos mecanismos de controle social que se utilizam da desigualdade que gerou sua necessidade para reproduzí-la, e não permite que a dinâmica das relações sociais se desenvolva naquilo que guardam de transformador.

            É nesta perspectiva que o sistema punitivo se insere na dinâmica das relações sociais, retirando da conjugação daqueles elementos pontos específicos que, quando inseridos no processo de criminalização, deixam de ser considerados como contradições que demonstram a desigualdade da estrutura social, e que, portanto, apresentam-se como a consequência da ordem exploratória, para constituirem-se no problema principal, ao qual se responde com toda a força punitiva, que não dá chances desta desigualdade ser superada, reproduzindo-a.

            O que mais no interessa neste ponto é destacar que as condutas que são comumentes identificadas como crimes representam um ponto específico de relações sociais amplas. Pontos específicos estes diretamente construídos socialmente, no que interessa ao sistema punitivo, pela conjugação histórica da miséria, da escravidão e da conscientização política, cuja resposta imediata configura-se pela militarização.

            5.4 A Escravidão

            A escravidão nos legou uma herança cultural de tal envergadura, que um dos maiores mitos que se construiu socialmente foi o de que um indivíduo "negro, de camiseta, bermuda e de chinelo nos pés" é, por si mesmo, suspeito, o que propicia uma abordagem policial, ainda que não haja de fato nenhuma suspeita fundada. Talvez a maior herança histórica da escravidão seja a construção do arquétipo social do criminoso, identificando-se no negro práticas sociais passíveis de criminalização, a ensejarem uma distribuição desigual do status de criminoso, intimamente ligado ao negro.

            Na perspectiva de Alessandro Baratta, o status social de criminoso é distribuído desigualmente entre os indivíduos e entre os setores sociais. A escravidão eleva-se à categoria de fundamento da atuação direcionada do sistema punitivo na medida em que sua herança histórica negativa é utilizada para constituir-se no critério de seleção de quem pode ser inserido mais facilmente no processo de criminalização.

            O que foi gerado pela desigualdade, ou seja, toda a carga negativa que se associa à escravidão, é fortalecida nesta negatividade quando o sistema punitivo utiliza-se dela para pautar sua atuação.

            Isto se verifica ao nível subjetivo, para compor o senso comum acerca da criminalidade, que é utilizado pelo sistema punitivo para justificar sua atuação direcionada, bem como ao nível objetivo, na medida em que grande parte da população é negra e condicionada a níveis concretos de desigualdade, constituindo-se no que já se chamou de clientela preferencial do sistema punitivo.

            Mas a escravidão, por si só, como herança histórica negativa, não é suficiente para oferecer uma sociabilidade sobre a qual possa o sistema punitivo agir para reproduzir a desigualdade social decorrente de uma formação capitalista incipiente. A potencialidade punitiva decorrente da escravidão se torna cada vez mais aguda quando associada à miséria.

            5.5 A Miséria

            A miséria é o produto histórico da exploração econômica empreendida em terras brasileiras desde a colônia. Ela pode ser medida pela concentração de riqueza, em que o Brasil figura como um dos países de maiores índices. Para citar um exemplo, na cidade de Belo Horizonte, em 1991, pelo "Atlas de Desenvolvimento Humano" 43 do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento, os 10% mais ricos concentravam 47,40% da renda. Ainda que se considere serem estes dados de 1991, é muito pouco provável que este índice tenha sido alterado para menos até os dias de hoje, porquanto não houve alterações econômicas significativas que possam de alguma forma ter distribuído com mais equidade a renda bruta produzida pela sociedade como um todo.

            A presença inexorável da miséria constitui-se em um entrave objetivo, que se fortifica ainda mais quando, sobre a dinâmica das relações sociais dela oriundas, lança-se o sistema punitivo, utilizando-se da fragilidade objetiva destas relações para sobre elas acrescentar-lhes a carga negativa própria do processo de criminalização.

            A miséria dá vazão a relações sociais frágeis, que não permitem àqueles que sofrem seus efeitos negativos constituirem relações sociais coesas o suficiente para superá-las. Um dos fatores que tornam frágeis as relações sociais que tem como ponto de partida a miséria é a potencialidade que elas possuem de oferecer ao sistema punitivo o substrato material necessário para desencadear a reação punitiva e o processo de criminalização, tendo em conta as condutas passíveis de criminalização existentes e a diversidade de fatores que determinam a estrutura social como desigual e exploratória.

            Vejamos, por exemplo, algumas estatísticas do Ministério da Justiça44 acerca do número de ocorrências registradas na Polícia Civil no ano de 2003, quanto aos crimes de roubo, furto, homicidio doloso e lesão corporal.

            Brasil e Regiões Geográficas

            Total da Regiões Geográficas

            Brasil e Regiões Geográficas (Capitais)

            Concentração Populacional nas Capitais (%)

            Concentração de Ocorrências referentes a Roubos nas Capitais (%)

            População

            Total de Ocorrências de Roubos

            Taxa por 100.000 Habitantes (2)

            Total das Capitais

            População

            Total de Ocorrências de Roubos

            Taxa por 100.000 Habitantes (2)

            Brasil

            176.876.251

            855.897

            483,9

            Brasil

            40.114.051

            463.005

            1.154,2

            22,7%

            54,1%

            Região Norte

            13.784.895

            60.034

            435,5

            Região Norte

            4.209.029

            41.648

            989,5

            30,5%

            69,4%

            Região Nordeste

            49.357.119

            99.133

            200,8

            Região Nordeste

            10.652.105

            65.630

            616,1

            21,6%

            66,2%

            Região Sudeste

            75.392.023

            511.309

            678,2

            Região Sudeste

            19.259.545

            284.257

            1.475,9

            25,5%

            55,6%

            Região Sul

            26.024.981

            112.642

            432,8

            Região Sul

            3.434.381

            42.377

            1.233,9

            13,2%

            37,6%

            Região
Centro-Oeste

            12.317.233

            72.779

            590,9

            Região Centro-Oeste

            2.558.991

            29.093

            1.136,9

            20,8%

            40,0%

            Fonte: Ministério da Justiça - MJ/ Secretaria Nacional de Segurança Pública - SENASP/ Secretarias Estaduais de Segurança Pública/ Departamento de Pesquisa, Análise da Informação e Desenvolvimento de Pessoal em Segurança Pública - Coordenação Geral de Pesquisa/ Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística - IBGE.

            1 - Nesta Tabela estão agregados os seguintes delitos: "Roubo à Residência", "Roubo de Carga", "Roubo de Estabelelcimento Bancário, "Roubo de Veículo", "Roubo a Coletivo", "Roubo a estabelecimento comercial", "Roubo Seguido de Morte" e "Outros roubos".

            2 - Cálculo feito com base nos Censos Demográficos, Contagem Populacional e MS/SE/Datasus, a partir de totais populacionais fornecidos pelo IBGE, para os anos intercensitários.

            

            Brasil e Regiões Geográficas

            Total da Regiões Geográficas

            Brasil e Regiões Geográficas (Capitais)

            Total das Capitais

            Concentração Populacional nas Capitais (%)

            Concentração de Ocorrências referentes a Furtos nas Capitais (%)

            População

            Total de Ocorrências de Furtos

            Taxa por 100.000 Habitantes

            (2)

            População

            Total de Ocorrências de Furtos

            Taxa por 100.000 Habitantes

            (2)

            Brasil

            176.876.251

            2.124.572

            1.201,2

            Brasil

            40.114.051

            696.309

            1.735,8

            22,7%

            32,8%

            Região Norte

            13.784.895

            135.876

            985,7

            Região Norte

            4.209.029

            88.089

            2.092,9

            30,5%

            64,8%

            Região Nordeste

            49.357.119

            263.053

            533,0

            Região Nordeste

            10.652.105

            127.633

            1.198,2

            21,6%

            48,5%

            Região Sudeste

            75.392.023

            977.005

            1.295,9

            Região Sudeste

            19.259.545

            284.588

            1.477,6

            25,5%

            29,1%

            Região Sul

            26.024.981

            519.928

            1.997,8

            Região Sul

            3.434.381

            121.731

            3.544,5

            13,2%

            23,4%

            Região Centro-Oeste

            12.317.233

            228.710

            1.856,8

            Região
Centro-Oeste

            2.558.991

            74.268

            2.902,2

            20,8%

            32,5%

            Fonte: Ministério da Justiça - MJ/ Secretaria Nacional de Segurança Pública - SENASP/ Secretarias Estaduais de Segurança Pública/ Departamento de Pesquisa, Análise da Informação e Desenvolvimento de Pessoal em Segurança Pública - Coordenação Geral de Pesquisa/ Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística - IBGE.

            1 - Nesta Tabela estão agregados os seguintes delitos: "Furto", "Furto a estabelecimento comercial", "Furto à residência", "Furto a transeunte", "Furto de veículos" e
"Outros furtos".

            2 - Cálculo feito com base nos Censos Demográficos, Contagem Populacional e MS/SE/Datasus, a partir de totais populacionais fornecidos pelo IBGE, para os anos intercensitários.

            

             

            Brasil e Regiões Geográficas

            Total da Regiões Geográficas

            Brasil e Regiões Geográficas (Capitais)

            Total das Capitais

            Concentração Populacional nas Capitais (%)

            Concentração de Ocorrências referentes a Homicídio Doloso nas Capitais (%)

            População

            Total de Ocorrências de Homicídio Doloso

            Taxa por 100.000 Habitantes (1)

            População

            Total de Ocorrências de Homicídio Doloso

            Taxa por 100.000 Habitantes (1)

            Brasil

            176.876.251

            40.630

            23,0

            Brasil

            40.114.051

            13.684

            34,1

            22,7%

            33,7%

            Região Norte

            13.784.895

            2.547

            18,5

            Região Norte

            4.209.029

            998

            23,7

            30,5%

            39,2%

            Região Nordeste

            49.357.119

            10.121

            20,5

            Região
Nordeste

            10.652.105

            3.409

            32,0

            21,6%

            33,7%

            Região
Sudeste

            75.392.023

            21.739

            28,8

            Região
Sudeste

            19.259.545

            7.892

            41,0

            25,5%

            36,3%

            Região Sul

            26.024.981

            3.499

            13,4

            Região Sul

            3.434.381

            853

            24,8

            13,2%

            24,4%

            Região
Centro-Oeste

            12.317.233

            2.724

            22,1

            Região
Centro-Oeste

            2.558.991

            532

            20,8

            20,8%

            19,5%

            Fonte: Ministério da Justiça - MJ/ Secretaria Nacional de Segurança Pública – SENASP/ Secretarias Estaduais de Segurança Pública/ Departamento de Pesquisa, Análise da Informação e Desenvolvimento de Pessoal em Segurança Pública - Coordenação Geral de Pesquisa/ Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística - IBGE.

            1 - Cálculo feito com base nos Censos Demográficos, Contagem Populacional e MS/SE/Datasus, a partir de totais populacionais fornecidos pelo IBGE, para os anos intercensitários.

            

            Brasil e Regiões Geográficas

            Total das Regiões Geográficas

            Brasil e Regiões Geográficas (Capitais)

            Total das Capitais

            Concentração Populacional nas Capitais (%)

            Concentração Populacional nas Capitais (%)

            População

            Total de Ocorrências

            De Lesões Corporais

            Brasil e Regiões Geográficas

            População

            Total de Ocorrências

            De Lesões Corporais

            Brasil e Regiões Geográficas

            Brasil

            176.876.251

            618.097

            349,5

            Brasil

            40.114.051

            156.713

            390,7

            22,7%

            25,4%

            Região Norte

            13.784.895

            52.000

            377,2

            Região Norte

            4.209.029

            32.491

            771,9

            30,5%

            62,5%

            Região
Nordeste

            49.357.119

            64.345

            130,4

            Região
Nordeste

            10.652.105

            27.204

            255,4

            21,6%

            42,3%

            Região
Sudeste

            75.392.023

            325.072

            431,2

            Região
Sudeste

            19.259.545

            68.304

            354,7

            25,5%

            21,0%

            Região Sul

            26.024.981

            133.065

            511,3

            Região Sul

            3.434.381

            20.944

            609,8

            13,2%

            15,7%

            Região
Centro-Oeste

            12.317.233

            43.615

            354,1

            Região
Centro-Oeste

            2.558.991

            7.770

            303,6

            20,8%

            17,8%

            Fonte: Ministério da Justiça - MJ/ Secretaria Nacional de Segurança Pública – SENASP/ Secretarias Estaduais de Segurança Pública/ Departamento de Pesquisa, Análise da Informação e Desenvolvimento de Pessoal em Segurança Pública - Coordenação Geral de Pesquisa/ Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística - IBGE.

            1 – Nesta tabela estão agregados os seguintes delitos: lesão corporal, lesão corporal dolosa, lesão corporal seguida de morte e outras lesões corporais.

            2 - Cálculo feito com base nos Censos Demográficos, Contagem Populacional e MS/SE/Datasus, a partir de totais populacionais fornecidos pelo IBGE, para os anos intercensitários.

            Por estas estatistícas do Ministério da Justiça, fica claro que as condutas passíveis de criminalização mais apreendidas pelo sistema punitivo são aquelas identificadas como crimes contra o patrimônio.

            No ano de 2003 foram registradas na Polícia Civil, na região sudeste, para os crimes de roubo, furto, homicídio doloso e lesão corporal, os respectivos números de ocorrências: 511.309, 977.005, 21.739, 325.072. Na região norte, ou números, nesta mesma ordem, foram os seguintes: 60.034, 135.876, 2.547, 52.000.

            Algumas considerações sobre estes números. Enfatiza-se as regiões norte e sudeste pois elas são representativas das regiões brasileiras, respectivamente, menos e mais urbanizadas e industrializadas. São dois pontos antagônicos de desenvolvimento econômico, o que não impede que, nas duas regiões, o total de ocorrências de condutas tipificadas como crimes contra o patrimônio seja muito superior ao total de ocorrências de condutas tipificadas como crime contra a vida.

            Em números absolutos, considerando o conjunto de roubos e furtos são exatamente 1.488.314 ocorrências para a região sudeste e 195.910 para a região norte. Enquanto para o conjunto de homicídios e lesões corporais, são 346.811 para a região sudeste e 54.547 para a região norte. A discrepância é enorme, o que nos indica que o campo de atuação do sistema punitivo integra-se, preferencialmente, pelas condutas tipificadas como crimes contra o patrimônio.

            Estes dados nos indicam apenas as condutas passíveis de criminalização que são mais perseguidas pelo sistema punitivo, e que possibilitam a inserção do indivíduo no processo de criminalização. Mas, quem são estes indivíduos que a prática concreta do sistema punitivo direciona em números muito superiores para o processo de criminalização? A resposta a esta questão pode ser buscada através destes tipos penais que mais são punidos, por um raciocínio que busque identificar nas condutas abstratas quem pode, com mais facilidade, ser inserido no processo de criminalização45.

            Assim, o questionamento não se resume a saber se a condição social do indivíduo torna-o mais propenso à prática de condutas passíveis de criminalização, mas vai além, para perquerir pelo conteúdo das relações sociais travadas por quem pratica uma conduta passível de criminalização do tipo crime contra o patrimônio e por que, por este conteúdo, a reação punitiva é direcionada.

            Os crimes contra o patrimônio pretendem oferecer uma racionalidade para a punição de condutas que de alguma forma lesem ou ameacem de lesão a propriedade privada46, antes de tudo uma relação social, porquanto ela só pode ser percebida pela exclusão do outro. O caráter privado que se atribui à propriedade é o exato conteúdo da exclusão que este caráter provoca. A esta exclusão corresponderá, sempre, uma desigualdade em relação àquilo do qual se exclui.

            Ao guardarem este conteúdo de desigualdade, a dinâmica das relações sociais será guiada pela busca constante da superação desta desigualdade por aqueles setores sociais que sofrem diretamente as suas consequências negativas, tornando o que abstratamente tem apenas a potencialidade de ser criminalizado, em concretude.

            Arriscamos, então, a afirmar que, dentro de uma estrutura social desigual, as condutas passíveis de criminalização como crimes contra o patrimônio, exatamente por guardarem este conteúdo de desigualdade, transformam o tomar para si coisa alheia em uma tentativa de superação desta exclusão, ainda que os indivíduos que as pratiquem não tenham a consciência do sentido desta superação, do sentido político desta superação.

            Superação esta que muitas vezes não encontra outros meios senão o caminho da prática de condutas que podem ser rotuladas como crimes contra o patrimônio, pois o que se toma possui um valor material apto a ser utilizado para suprir necessidades das mais variadas matizes, seja de interesses imediatos, relacionados à supressão de necessidades biológicas ou culturais, seja de interesses mediatos, quando o que se toma tem o fim de servir de suporte para o aperfeiçoamento de novas práticas sociais passíveis de criminalização.

            Porém, isto se limita às causas da prática de condutas passíveis de crimnalização e, neste sentido, nada nos diz a respeito da reprodução da desigualdade levada à cabo pelo sistema punitivo.

            Quanto a isto, a desigualdade que propicia, aos setores sociais fragilizados pela exclusão que a propriedade privada provoca, conduzirem-se no sentido de práticas sociais passíveis de criminalização como crimes contra o patrimônio encontrará na atuação direcionada do sistema punitivo a necessidade que a estrutura social possui de manter esta propriedade privada como a base de sustentação das condições que lhe são essenciais. Uma sociedade que se pauta pela exploração do trabalho alheio necessita de mecanismos sociais que mantenha insuperável a desigualdade que esta exploração provoca.

            Assim, ao afirmar-se que o sistema punitivo não pretende proteger todos os bens jurídicos que declara como essenciais, enfatiza-se que a essencialidade do bem jurídico não é jurídica. Esta essencialidade, considerando a estrutura social, está intimamente ligada à necessidade de se manterem incólumes as manifestações contraditórias desta estrutura social. Na medida em que estas contradições são inerentes à estrutura social, a sua reprodução é condição de existência para a conservação de sua base exploratória.

            O processo de criminalização fragmentário nascido desta necessidade, portanto, insere-se na dinâmica das relações sociais em seus momentos mais frágeis, para constituir-se em um dos mecanismos sociais que confirma e reproduz a desigualdade própria do modo de produção capitalista.

            A reação punitiva, portanto, será direcionada para os setores sociais que sofrem as consequências negativas das contradições social, política, econômica e cultural, pois para estes setores sociais estas contradições são o obstáculo a ser superado, no que se tornam potencialmente mais aptas a serem criminalizadas, porquanto a maneira concreta pela qual se manifestam encontram a correspondência exata em tipificações penais ligadas aos crimes contra o patrimônio.

            5.6 A Consciência Política

            Outro elemento histórico fruto da desigualdade e que se ergue contra ela, e que por isso torna-se potencialmente apta a ser apreendida como crime pelo sistema punitivo, é a consciência política, principalmente quando ela se materializa em práticas sociais coletivas que questionam os fundamentos da estrutura social. Pensemos nas ações políticas empreendidas pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), e que muitas vezes são criminalizadas.

            O MST, ao contestar a propriedade privada, ocupando-as, age no sentido de forçar a reforma agrária, sendo-lhe irrelevante o que possam afirmar sobre ser a propriedade privada um bem jurídico do interesse de toda a sociedade brasileira. Antes, ao utilizar a ocupação como forma de pressão política o MST está claramente dizendo: "não acreditamos na propriedade privada, sem que se cumpra sua função social, como condição para o desenvolvimento social brasileiro, por isto não aceitamos que o Brasil seja um país de latifundiários".

            Ora, num conflito agrário a propriedade privada é um bem jurídico essencial somente para quem a detém. Para aqueles que desejam a efetivação de sua função social, como o MST, o fato da propriedade ser privada oferece apenas o braço armado do Estado, ou mesmo do particular, contra sua ação política.

            Para o MST a propriedade privada como bem jurídico essencial que precisa ser protegido pelo sistema punitivo, e que justifica a atuação do sistema penal sobre seus líderes, considerando sua ação política como formação de quadrilha para a prática de crime contra o patrimônio, apresenta-se como um dos muitos obstáculos que devem ser superados para levar adiante seu projeto emancipatório.

            Ao considerar uma atuação política do porte da empreendida pelo MST como crime contra o patrimônio, ou formação de quadrilha, pelos seus líderes, o sistema punitivo propicia, ideologicamente, que se considere manifestações populares aptas a construir uma nova sociedade como caso de polícia.

            Na perspectiva aqui empreendida, as práticas sociais originadas do projeto político do MST tornam-se potencialmente aptas a serem inseridas no processo de criminalização, não no sentido de que os militantes deste movimento só querem baderna e não respeitam nada – como quer fazer crer setores dominantes dos meios de comunicação social – pelo que estariam, assim, dando razão à reação punitiva.

            O sentido de sua criminalização advém da postura política assumida frente a estrutura social desigual contra a qual lutam. Ao assumir tal postura política, expressada nas palavras de ordem "ocupar, resistir e produzir", os militantes do MST concretizam sua consciência política em práticas sociais que ameaçam a legitimidade da propriedade privada que não cumpre sua função social.

            Em um país historicamente fundamentado na grande propriedade latifundiária, a tais ações políticas responde-se com bala e com sangue. São inúmeros os conflitos entre policiais, proprietários e trabalhadores rurais sem terra. Eldorado dos Carajás, por exemplo. Qualquer radicalização neste sentido propicia a atuação do sistema punitivo.

            O que nos faz pensar na atualidade da autonomia punitiva construída desde os tempos coloniais, em virtude da constituição de grupos armados que atuam na esteira das forças estatais, quando grandes proprietários rurais armam capangas para proteger suas terras contra invasões do MST, demonstrando que a construção histórica da punição como algo privado mostra-se até hoje presente.

            Mas não é apenas no campo que a conscientização política dá vazão a práticas sociais que são absorvidas pelo sistem punitivo e inseridas no processo de criminalização, abortando possibilidades emancipatórias.

            Nos grandes centros urbanos isto também ocorre e, um dos exemplos marcantes é o do Movimento dos Sem Teto. No Brasil inteiro este movimento vem crescendo a cada ano, articulando ações de ocupação de prédios abandonados, sempre no mesmo sentido das ocupações feitas pelo MST, ou seja, chamar a atenção das autoridades públicas para o problema estrutural da falta de moradia. À suas ações se responde da mesma forma, ou seja, a bala e a sangue, sempre sob pretexto de cumprimento de mandados judiciais de reintegração de posse e meios jurídicos semelhantes.

            Tanto quanto ao MST, quanto ao Movimento dos Sem Teto, a lógica é a mesma. Contradições sociais criam, inevitavelmente, uma consciência política em certos setores sociais, em torno de um problema específico, que começa a se erguer como práticas sociais contestatórias. A efetivação destas práticas sociais é, então, apreendida pelo sistema punitivo, transformando o que pode ser uma alternativa contra a desigualdade estrutural em caso de polícia.

            É neste sentido que se afirma ser a consciência política um dos elementos históricos que permitem uma atuação direcionada do sistema punitivo. E é também neste sentido que o sistema punitivo reproduz a desigualdade, pois o que pode ser destacado como práticas sociais transformadoras e emancipatórias torna-se crime, retirando a possibildade da população reconhecer tais práticas como legítimas, porquanto está sempre associada à criminalidade e, de outro lado, mas no mesmo sentido, representa o uso direto da força. De onde não há como não concluir o sistema punitivo como braço armado do Estado, utilizado para conter manifestações das contradições estruturais do sistema econômico, político, cultural e social.

            5.7 A Militarização

            Por fim, a militarização representa a resposta objetiva e subjetiva criada pelo sistema punitivo contra a criminalidade. Ao nível subjetivo, articulam-se discursos de acordo com as circunstâncias, mas que no seu conjunto podem ser identificados (estes discursos) com uma pretensa guerra à criminalidade, com o auxílio de segmentos da imprensa identificados com esta prática, principalmente nos grandes centros urbanos.

            Zaffaroni e Nilo Batista47 comentam que:

            A civilização industrial implica uma inquestionável cultura bélica e violente. É inevitável que, apesar de não ser formulada hoje em temros doutrinários nem teóricos, a comunicação de massas e grande parte dos operadores das agências do sistema penal tratem de projetar o exercício do poder punitivo como uma guerra à criminalidade e aos criminosos.

            Ao nível objetivo esta guerra à criminalidade chega a manifestar-se concretamente, com a utilização de tropas do exercíto brasileiro no combate a conflitos potencialmente penais. Veja-se algumas reportagens do jornal Folha de São Paulo sobre isso:

            As tropas militares envolvidas na operação de combate à violência no campo no Pará poderão superar os 2.000 homens anunciados ontem pelo Palácio do Planalto. Em nota à imprensa, o Comando do Exército informou no início da noite de hoje que, no desenvolvimento das operações no Pará, poderão ser empregadas tropas do Comando Militar do Nordeste, sediado em Recife (PE), da Brigada de Infantaria Pára-quedista, do Rio de Janeiro (RJ), da Brigada de Operações Especiais, de Goiânia (GO) e do Comando de Aviação do Exército, de Taubaté (SP), além dos 2.000 militares acionados inicialmente em Marabá e Belém (PA), e em Manaus (AM). Os militares atuarão no Estado em conjunto com os ministérios da Justiça, do Meio Ambiente e os órgãos de Segurança Pública estadual. O objetivo, segundo o Comando do Exército, é "desenvolver operações de Garantia da Lei e da Ordem no Estado do Pará". O comando da operação, a cargo do General-de-Brigada Jairo César Nass, atual Comandante da 23ª Brigada de Infantaria de Selva, será feito a partir de Altamira (PA). A ação do Exército é uma reação do governo aos assassinatos ocorridos desde o fim-de-semana, motivados por conflitos de terra no Pará. Entre os executados, estavam a missionária americana, Dorothy Stang, que trabalhava em defesa dos trabalhadores rurais e da preservação ambiental.48

            A 11ª Brigada de Infantaria do Exército, com sede em Campinas (95 km de SP), será a primeira unidade no país a ser adaptada para oferecer treinamento a militares que atuarão em problemas com a segurança pública, fazendo o trabalho de polícia estadual. A tropa de Campinas contará com 4.500 homens. Há no país, além de companhias da Polícia do Exército, outros nove batalhões que possuem treinamentos semelhantes, mas não específicos para a atuação do Exército nas ruas. O plano do Exército é treinar os homens em Campinas para atuar em casos de greve de policiais estaduais e também no auxílio da Polícia Militar, para o controle da ordem pública --como os bloqueios de estradas. A alteração faz parte do plano de reestruturação do Exército brasileiro e deve começar a ser implementada em dezembro deste ano. O processo deve ser concluído em 2007. Para atender à determinação do Comando do Exército, em Brasília, a 11ª Brigada de Campinas elaborou um projeto que prevê, por exemplo, a compra de novos armamentos. Saem os fuzis e as munições letais e agregam-se capacetes, armas de baixo calibre e munições de borracha. De acordo com o Comando do Exército, o número de solicitações de atuação militar em grandes centros urbanos tem crescido. Só neste ano, o Exército já foi solicitado em três casos. No Rio de Janeiro, o Exército brasileiro foi convocado pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) para atuar com força de polícia estadual.A cidade vivia, há dois meses, uma guerra entre traficantes de morros rivais. O Exército foi acionado e cercou os morros. Nas outras duas ocasiões, o Exército interveio a pedido dos governadores e sob a ordem da Presidência da República em situações de greve de policiais militares. Uma foi no Piauí e a outra foi em Minas Gerais, na semana passada. A paralisação da PM mineira foi suspensa anteontem pelo comando de greve depois que saiu uma decisão judicial que considerou a greve ilegal. A atuação do Exército como polícia é prevista no artigo 142 da Constituição Federal. No entanto as tropas não tinham treinamento específico para tal fim. Segundo o Comando do Exército em Brasília, não se trata de criar uma nova grande unidade, e sim aproveitar a reestruturação em curso para também atender às novas demandas, de ações de garantia da lei e da ordem.49

            Vende-se uma sensação de segurança que não existe, pois a utilização de tropas militares em assuntos de segurança pública demonstra apenas que as contradições sociais estão sendo cada vez mais acentuadas, propiciando uma verdadeira guerra civil, ainda que velada.

            O que Zigmund Baumam identifica como modernidade líquida, que não se curva a nenhuma forma de controle e que se escoa ao menor sinal de solidez, mostra-se, de fato, condizente com o que se passa nos dias de hoje. E, exatamente por esta liquidez corroer qualquer tentativa de construção de práticas sociais emancipatórias, o sistema punitivo eleva-se como a resposta mais sólida e concreta a ser oferecida aos efeitos maléficos desta modernidade líquida. Na base de tudo isto está a desigualdade decorrente da exploração do homem pelo homem, que o sistema punitivo presta-se como um dos mecanismos sociais mais eficazes.


6. CONCLUSÃO

            A tônica empreendida neste texto foi a de destacar a contradição entre a ideologia da defesa social e a prática concreta do sistema punitivo. Esta falta de compasso não foi considerada como simples falta de adequação entre o que a estrutura jurídica possibilita em termos abstratos e o que de fato ocorre.

            Esta falta de compasso é estrutural ao sistema, na medida em que a reação punitiva é determinada pelo nível das contradições sociais, para manifestar-se sobre os pontos mais frágeis da dinâmica das relações sociais, exatamente aqueles setores sociais que mais facilmente podem encaminhar-se para a realização de condutas derivadas da precarização do trabalho e de condições sociais que não lhes permitem desenvolverem-se autonomamente.

            Desta maneira, a cultura punitiva que se cria foge de qualquer possibilidade de racionalização, e a sua conservação não pode se dar senão criando-se fundamentações teóricas coerentes em si mesmas, mas que, quando confrontadas com a realiadade dos fatos, não se sustentam.

            Esta contradição, como se disse, é essencial para o sistema punitivo, pois a sua atuação perversa não teria meios de justificar não fosse por princípios falsos acerca de um fenômeno social muito mais complexo do que pretende a ideologia da defesa social.

            Tais princípios falsos constituem-se em um senso comum acerca da criminalidade que é consumido pelos próprios setores sociais de onde o sistema punitivo retira o substrato material para empreender o processo de criminalização. A partir daí, o que possibilitaria alternativas à criminalidade, ou seja, a constituição de relações sociais comunitárias emancipatórias, restam sem a base social necessária para se verificarem, pois ideologicamente estes setores sociais encontram-se atrelados ao que lhes é repassado pelos meios de controle social formais e informais.

            Não se criam, assim, respostas que tenham como ponto de partida a própria realidade destes setores sociais marginalizados, o que, por fim, os mantêm sob a mesma exploração que lhes condicionou a simplesmente consumirem e fortalecerem o caráter ideológico da justificativa punitiva.

            Por outro lado, a inserção do sujeito no processo de criminalização, objetivamente considerado, quando decorrente de relações sociais que guardam um conteúdo de desigualdade em sua origem, sofrerá na sua constituição social, ou seja, no modo como é percebido e como se percebe no meio social do qual faz parte, as influências negativas concretas do sistema punitivo, que não possibilitarão a superação da desigualdade que lhe encaminhou para ser apreendido pelo sistema punitivo.

            No mesmo sentido, em uma perspectiva mais ampla, a realidade concreta do sistema punitivo demonstra que as condutas mais perseguidas pelo sistema punitivo guardam uma relação estreita com estrutura desigual da sociedade, o que nos permite afirmar que as condutas mais aptas a serem apreendidas pelo sistema punitivo e o sujeito que as praticou inserido no processo de criminalização, são condutas que representam as manifestações concretas das contradições inerentes e inevitáveis do sistema capitalista. O sistema punitivo, ao agir, reage punitivamente somente sobre aqueles momentos da dinâmica das relações sociais que representam uma contradição levada às suas últimas consequências.

            Inicialmente, considerávamos que a única saída possível para este estado de coisas seria simplesmente a abolição do sistema punitivo. Com o decorrer do tempo, fomos passando a considerar, em termos pragmáticos, que isto talvez não seja possível, por dois motivos.

            Primeiro, que não há possibilidade desta alternativa se verificar, pelas próprias relações de poder que historicamente foram sendo construídas em torno da punição para chegar aos dias de hoje como relações que estão por demais enraizadas para se permitir sua simples eliminação.

            Em segundo lugar, e isso constitui uma das principais conclusões deste trabalho, a questão não é eliminar um aparelho estatal ainda que sabidamente repressor de setores sociais marginalizados, pois a criminalidade constitui-se em um problema social que aí está e continuará presente, porquanto fruto das contradições econômicas, políticas, sociais e culturais inevitáveis do modo de produção capitalista. Os efeitos negativos da criminalidade, independentemente desta ser construída socialmente pela própria atuação do sistema punitivo, serão sempre sentidos, e deles não há como nos afastarmos. É preciso sim oferecer uma resposta.

            Mas, ao mesmo tempo, ainda que afastada a possibilidade abolicionista, restam as possibilidades de desenvolvimento de alternativas que se pautem pela constante busca de sua abolição, ainda que isto não seja imediato, ainda que no sentido de fim estratégico. Isto não quer dizer sua abrupta abolição, mas sim uma gradual deslegitimação de sua necessidade, por práticas sociais oriundas da base, dos setores sociais que sofrem seus efeitos concretos, negativos em si mesmos.

            Neste sentido, saltam como primordiais práticas sociais emancipatórias, perpassadas por uma subjetividade que se contraponha à pura e simples adequação ao senso comum acerca da criminalidade, para que, deste ponto, os próprios setores sociais que historicamente são alvo da repressão punitiva consigam erguerem-se autonomamente.

            É certo que a superação das desigualdades relaciona-se à superação do modo de produção capitalista. E, talvez, seja certo que uma das vias de ação para buscar novas formas de sociabilidade que preserve o ser humano passe por superar o sistema punitivo.

            O sistema punitivo brasileiro, ao ser o produto histórico do desenvolvimento da noção de punição contra o antropologicamente inferior e o politicamente consciente da exploração do modo de produção econômica, e que a ele se contrapõe, marcou-se continuamente pela necessidade de construção de uma organização estatal pautada por buscar, sempre, a estabilidade política para que se mantivessem incólumes suas condições, objetivas e subjetivas, de existência. Procurar estabilidade política significa aplacar o poder tranformador que as contradições sociais possuem.

            Ao agir sobre condutas que são a síntese histórica da conjugação da miséria, da escravidão e da consciência política, submetendo-a ao processo de criminalização, o sistema punitivo transforma as contradições capitalistas em crime, e as reproduzir em sua desigualdade. O que a desigualdade tratou de produzir torna-se potencialmente apto a ser apreendido pelo sistema punitivo e reproduzido exatamente nesta mesma desigualdade.


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NOTAS

            nt Relatório elaborado pelo ILANUD, Instituto Latino Americano das Nações Unidas para Prevenção do Delito e Tratamento do Delinquente, acessado pelo sítio www.ilanud.org.br, em 11 de maio de 2005.

            1 Ao se privilegiar as contradições sociais como critério para uma perspectiva crítica da concepção de Estado Democrático de Direito está-se privilegiando o critério da prática, que nos permite reconhecer qualquer manifestação do pensamento naquilo que guarda de coerência com a realidade das relações sociais, seja por que são das relações sociais que brotam todos os elementos articulados pelo pensamento, em nível abstrato, dando origem às diversas concepções acerca do mundo, seja por que a realidade das relações sociais demonstra o quão potencial é uma concepção de mundo para a transformação deste. Ao se afirmar que as contradições sociais trazem no seu desenvolvimento potencialidades para avanços e recuos, quer-se dizer que tudo dependerá do modo como estão dispostos os segmentos sociais e sua necessária correlação, a depender da subjetividade predominante numa certa época histórica, e do modo como a objetividade das relações sociais mesmas trabalha com esta subjetividade, seja pautando seu desenvolvimento, seja construindo-se a partir desta objetividade.

            2 Talvez novas formas de poder desvinculadas da lógica eleitoral, que pretende encerrar a questão democrática como o mero acesso ao voto, intimamente ligado ao domínio do aparelho de Estado por setores sociais que compartilham de objetivos materiais e ideológicos, permitissem pensar em novas formas jurídicas que, ainda que vinculadas como são à existência do Estado, reconheça sua necessidade estratégica, com vistas à sua própria superação, pois reconhece-o como a manifestação de contradições sociais insolúveis.

            3 FILHO, Roberto Lira. O que é Direito. São Paulo: Brasiliense, 1994, p. 86.

            4 Em 14 de setembro de 2002 o Complexo do Carandiru foi desativado e, em 09 de dezembro do mesmo ano, implodido.

            5 A ausência no campo social depende, fundamentalmente, de uma decisão política tomada no âmbito estatal, via parlamento, pois é necessário, nos países subdesenvolvidos, que se quebre toda uma estrutura de proteção social, ainda que incipiente.

            6 BENJAMIN, Cézar. A opção brasileira...[et. al]. Rio de Janeiro: Contraponto, 1998, p. 37.

            7 BAUMAN, Zigmund. Modernidade Líquida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editores, 2001, p. 21/22.

            8 Cézar Benjamin, op.cit, p.40.

            9 WAIQUANT, Loïc. Punir os pobres: a nova gestão da miséria nos Estados Unidos. Rio de Janeiro: Instituto Carioca de Criminologia – Freitas Bastos, 2001, p.48.

            10 ANTUNES, Ricardo. A cidadania negada. Acessado pelo sítio http://168.96.200.17/ar/libros/educacion/antunes.pdf, em 30 de maio de 2005.

            11 FURTADO, Celso. Formação Econômica do Brasil. São Paulo: Nacional, 1977, p. 83.

            12 ZAFFARONI, Eugênio Raul e BATISTA, Nilo. Direito Penal Brasileiro.Rio de Janeiro: Revan, 2003, p. 417.

            13 Filho, Luis Francisco Carvalho. Impunidade no Brasil – Colônia e Império. Acessado pelo sítio http://www.scielo.br/pdf/ea/v18n51/a11v1851.pdf, em 20 de novembro de 2004.

            14 JÚNIOR, Caio Prado. História Econômica do Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1979, p. 123.

            15 ARAÚJO, Carlos Eduardo Moreira. O Duplo Cativeiro: Escravidão urbana e o sistema prisional no Rio de Janeiro - 1790 – 1821.Rio de Janeiro, 2004, p 12. Dissertação de mestrado apresentada ao Programa de Pós-graduação em História Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro, acessada pelo sítio www.2.liphis.com, em 12 de abril de 2005.

            16 Zaffaroni e Batista, op cit, pp. 426 e 427

            17 Zaffaroni e Batista, op cit, pp. 421 e 422.

            18 KOVAL, Boris. História do Proletariado Brasileiro: 1857 a 1967.São Paulo: Alfa-Ômega, 1982, p. 99.

            19 BARATTA, Alessandro. Criminologia Crítica e Crítica ao Direito Penal. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1999, p.33.

            20 Alessandro Baratta, op cit, p 35.

            21 Nilo Batista, op cit, p 31.

            22 Alessandro Baratta, op cit, p 41.

            23 Será este o conceito de ideologia adotado, pois um dos pressupostos que assumimos é o de que toda a construção jurídico-filosófica que fundamenta a atuação do sistema punitivo não corresponde ao que de fato ocorre com a realidade concreta deste sistema punitivo. E, neste sentido, não interessa se se atribui um sentido negativo a este conceito de ideologia. Na verdade, são válidos os dois sentidos comentados de ideologia, ou seja, é válido o sentido de conjunto articulado de pensamentos que orientam um programa de ação, como também é válido o outro sentido, ainda mais considerando o sistema punitivo, que talvez se apresente como a maior manifestação de que há validade neste conceito "negativo" de idelogia, assumindo toda a discussão em uma mera questão terminológica. Mas não é isso o que nos propomos, sendo suficiente afirmar-se que se adota o sentido "negativo" de ideologia.

            24 A ideologia da defesa social adquire caráter ideológico pois possui como fundamentos certos princípios que não corresposdem ao que a realidade social e a realidade do sistema punitivo, em particular, apresentam de concreto. Não havendo uma correspondência entre fundamentação e justificação da prática e o que a prática efetivamente produz, outro não pode ser o sentido senão fornecer uma base ideológica a partir da qual a prática real possa se manter como necessária, apesar de seus insucessos.

            25 Alessandro Baratta, op cit, p. 51.

            26 Alessandro Baratta, op cit, p 51.

            27 Alessandro Baratta, op cit, p 63.

            28 Alessandro Baratta, op cit, p 87.

            29 Alessandro Baratta, op cit, p 87.

            30 Alessandro Baratta, op cit, p 147/148.

            31 Alessandro Baratta, op cit, p 148/149.

            32 Alessandro Baratta, op cit, p 150.

            33 Alessandro Baratta, op cit, p 150.

            34 Alessandro Baratta, op cit, p 157.

            35 Baratta, op cit, p 161.

            36 Optamos por não utilizar a terminologia adotada por Alessandro Baratta quanto à criminalização primária e secundária, pois considera-se a inserção do mecanismo de execução da pena e das medidas de segurança também como criminalização secundária, a par da divisão feita por aquele autor. Da mesma forma não nos deteremos na problemática das medidas de segurança, pois isto ampliaria por demais o campo de investigação deste trabalho.

            37 KARAM, Maria Lúcia. De Crimes, Penas e Fantasias. Niterói: Luam Editora, 1993, p 22.

            38 ZAFFARONI, Eugênio Raul. Em busca das penas perdidas. Rio de Janeiro: Revan, 1996, p 27/28.

            39 Zaffaroni, op cit, p 15.

            40 Baratta, op cit, p.162.

            42 Baratta, op cit, p. 158/159

            43 Atlas de Desenvolvimento Humano – Publicação do "Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento", acessado pelo sítio www.pnud.org.br/atlas, em 10 de abril de 2005.

            44 Dados acessados pelo sítio http://www.mj.gov.br/senasp/pesquisas_aplicadas/mapa/index_regioes.htm, em 17 de abril de 2005. Considera-se que estes números são apenas um indicativo do que realmente ocorre, seja para mais ou para menos. Assim, ainda que possa haver falhas na coleta destas informações, elas podem nos oferecer alguns dados, principalmente para justificar a delimitação da atuação do sistema punitivo quanto àquelas condutas tipificadas como "crimes contra o patrimônio".

            45 É preciso enfatizar que esta proposta não parte do princípio de que alguns indivíduos possuem uma tendência maior que outros de praticar condutas passíveis de criminalização, ainda que conforme a posição que ocupem na estrutura social, nos moldes da perspectiva positivista. Esta proposta considera a posição social que cada indivíduo ocupa na estrutura social em um país de capitalismo tardio como o Brasil, onde a contradição capital-trabalho constrói um abismo entre as classes sociais, além de determinar materialmente o conteúdo das relações sociais que serão travadas por cada indivíduo, se um conteúdo que permite sua autonomia, ou se um conteúdo de desigualdade que se perpetua, do qual a inserção no sistema punitivo será consequência.

            46 Uma propriedade privada não qualificada efetivamente pela função social que a Constituição da República tratou de assegurar não representa outra coisa senão a completa submissão da maioria da população à realização de interesses de uma minoria, que não eferece a esta maioria da população caminhos para que ela se constitua socialmente apta a direcionar seus ideais de vida por si mesmos, estando sempre atrelados às possibilidades determinadas pela miséria que esta submissão provoca, e da qual somente permite sua reprodução.

            47 Zaffaroni e Batista, op cit, p 57/58.

            48 Jornal Folha de São Paulo, reportagem "Em nota, Exército admite que pode usar mais de 2.000 militares no Pará", do dia 16 de fevereiro de 2005, acessado pelo sítio www.folha.com.br, no dia 22 de abril de 2005.

            49 Jornal Folha de São Paulo, reportagem "Exército prepara tropa para atuar nas ruas", do dia 24 de junho de 2004, acessada pelo sítio www.folha.com.br, no dia 22 de abril de 2005.



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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

OLIVEIRA, André Luiz Corrêa de. Pressupostos para uma análise crítica do sistema punitivo. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 10, n. 872, 22 nov. 2005. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/7612. Acesso em: 28 mar. 2024.