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A necessidade de regulamentação das uniões estáveis homossexuais

A necessidade de regulamentação das uniões estáveis homossexuais

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CAPÍTULO I – INTRODUÇÃO

            Este trabalho visa contribuir para o estudo da necessidade de regulamentação das uniões homossexuais como entidades familiares, tema ainda pouco abordado pela área acadêmica.

            Atualmente faz parte da realidade social brasileira a união entre pessoas do mesmo sexo, que estabelecem comunhão de vida baseada no afeto, assistência e respeito mútuos. Porém, tais uniões não são regulamentadas pela Constituição Federal, que as considera inexistentes, em total incoerência com os princípios da dignidade da pessoa humana, da igualdade e da liberdade.

            As uniões homossexuais são colocadas à margem do ordenamento jurídico nacional, sendo consideradas simples sociedades de fato regidas pelo Direito das Obrigações, e não pelo Direito de Família.

            Entretanto, a Constituição Federal deve ser interpretada de acordo com a realidade social, e não o contrário, pois a legislação é fruto de pretensão da sociedade, que se expressa através de seus representantes.

            Desse modo, conclui – se que há um descompasso entre o avanço do Direito de Família e a existência de algumas famílias de fato, que se mantêm à margem do ordenamento jurídico, como as famílias compostas por homossexuais.

            Portanto, sendo as uniões homossexuais uma realidade social, geram efeitos e, desse modo, devem ser regulamentadas pela ordem jurídica.

            O artigo 226, §3º da Constituição Federal dispõe: "Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento".

            O §7º do artigo 226 dispõe: "Fundado nos princípios da dignidade da pessoa humana e da paternidade responsável, o planejamento familiar é livre decisão do casal, competindo ao Estado propiciar recursos educacionais e científicos para o exercício desse direito, vedada qualquer forma coercitiva por parte de instituições oficiais ou privadas".

            A regulamentação das uniões homossexuais é possível mediante a interpretação analógica da norma do artigo 226, §3º da Constituição Federal e de sua integração à realidade social. Tal interpretação deve ser promovida tanto pelos operadores do Direito, ou seja, Juízes, Tribunais, doutrinadores, quanto pela sociedade, pois "as vontades populares acabam por levar a efeito uma interpretação da Constituição" [01]

            A falta de regulamentação é um dos fatores que criam o cenário propício para o preconceito e a marginalização.


CAPÍTULOII – AS UNIÕES HOMOSSEXUAIS E OS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS

            O Código Civil de 1916 expressava os valores da sociedade brasileira da época de sua elaboração, ou seja, uma sociedade paternalista, regida por relações patrimonializadas e individualistas.

            A família legítima somente era reconhecida pelo casamento, sendo o marido o chefe da sociedade conjugal, competindo – lhe a representação legal da família, o exercício do pátrio poder, o direito de fixar o domicílio da família e prover a manutenção da mesma. Tais funções eram exercidas com a colaboração da mulher.

            A Constituição Federal de 1988, acompanhando a evolução e mudança de valores da sociedade brasileira, baseou o Direito de Família em três eixos, quais sejam, igualdade entre homens e mulheres; entidade familiar; e vedação de discriminação entre filhos.

            O artigo 5º e inciso I da Constituição Federal dispõem sobre o princípio da igualdade.

            A Constituição também prevê, em seu artigo 1º, III, ser um dos fundamentos da República Federativa do Brasil a dignidade da pessoa humana, e em seu artigo 3º, IV, ser um dos objetivos da República Federativa do Brasil a promoção do bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação. Assim sendo, a Constituição prevê a liberdade de escolha de orientação sexual.

            Em seu artigo 226, a Constituição Federal consagra a família como sendo a decorrente do casamento, da união estável entre o homem e a mulher ou da comunidade formada por qualquer pai e seus descendentes. O §5º do dispositivo expressa a igualdade de direitos e deveres entre homens e mulheres na sociedade conjugal.

            Assim sendo, as uniões consagradas pela Constituição Federal como entidades familiares são formadas necessariamente de um homem e uma mulher.

            O Código Civil de 2.002 atendeu a grande parte dos objetivos da Constituição Federal, assegurando a igualdade entre os cônjuges; definindo e regulamentando a união estável entre homem e mulher; dando nova conformação ao casamento, cujo objetivo deixa de ser a constituição da família, que pode ser formada de outras maneiras, mas passa a ser o de estabelecer uma comunhão de vida entre os cônjuges; com relação à filiação, prevê igualdade entre os filhos, que passam a ser totalmente equiparados.

            Como ensina o Professor Miguel Reale, que presidiu a comissão idealizadora do Código Civil, seus princípios básicos são a eticidade, a operatividade e a sociabilidade, contrariando os costumes e a realidade que inspiraram o Código Civil de 1.916.

            Porém, afirmou Miguel Reale:

            "a união homossexual só pode ser discutida depois de alterada a Constituição. Há quem diga que o Código é atrasado por não tratar dos homossexuais. A culpa não é nossa. Não podemos mudar a Constituição. A união estável é entre um homem e uma mulher. Se querem estender esse direito aos homossexuais, que mudem primeiro a Constituição, com 3/5 dos votos do Congresso Nacional. Depois, o Código Civil poderá cuidar da matéria." [02].

            A união estável entre pessoas do mesmo sexo, que estabelecem uma comunhão de vida baseada no afeto, lealdade, assistência e respeito mútuos, com caráter duradouro e de notoriedade pública e continuidade não foi regulamentada pela Constituição Federal e pelo Código Civil de 2.002, que as consideram inexistentes. Desse modo, a Constituição Federal, em absoluta discordância com a sistemática constitucional vigente, que consagra como princípio fundamental a dignidade humana, fomenta a discriminação a pessoas que optam por viverem, com o objetivo de constituição de família, com outras do mesmo sexo.

            Do mesmo modo entende a Magistrada Dra. Maria Berenice Dias:

            "Subtrair direitos de alguns e gerar o enriquecimento injustificado de outros afronta o mais sagrado princípio constitucional: o da dignidade, e se a palavra de ordem é a cidadania e a inclusão dos excluídos, uma sociedade que se deseja aberta, justa, pluralista, solidária, fraterna e democrática não pode conviver com tal discriminação". [03]

            Conforme ensina Ricardo Fiúza:

            "o Estado não tem o direito de tutelar os sentimentos e as relações íntimas dos indivíduos. A abordagem legislativa da família tem de ser clara no estabelecimento de princípios e na definição de institutos e seus conteúdos, sem, contudo, apresentar fórmulas herméticas que desconheçam a dinâmica social" [04]

            Maria Claudia Crespo Brauner e Taysa Schiocchet entendem da mesma forma:

            "O desafio lançado ao novo Direito de Família consiste em aceitar o princípio democrático do pluralismo na formação das entidades familiares e respeitar as diferenças intrínsecas de cada uma delas, efetivando a proteção e provendo os meios para resguardar o interesse das partes, conciliando o respeito à dignidade humana, o direito à intimidade e à liberdade com os interesses sociais e, somente quando indispensável, recorrer à intervenção estatal para coibir abusos." [05]


CAPÍTULO III – INTERPRETAÇÃO CONSTITUCIONAL

            O ordenamento jurídico brasileiro reconhece e atribui o "status" de família às uniões entre homens e mulheres baseadas em vínculos de afeto e respeito.

            Porém, não reconhece as uniões homossexuais baseadas nos mesmos vínculos. Entretanto, tais uniões são uma realidade social que se impõe e reclama regulamentação jurídica.

            Em razão desse fato, tais relações sociais estão relegadas ao plano da irrelevância jurídica, com afronta aos princípios constitucionais da igualdade, da liberdade e da dignidade humana.

            Desse modo, conclui – se que há uma lacuna na Constituição.

            Celso Ribeiro Bastos questiona se não seria a Constituição imune à analogia, não comportando lacunas. Responde a tal indagação valendo – se dos ensinamentos de Loewenstein "que faz alusão a duas sortes de lacunas constitucionais, quais sejam, as descobertas e as ocultas. As primeiras se verificam quando o poder constituinte esteve consciente da necessidade de uma regulação jurídico – constitucional, mas, por determinadas razões, preferiu não fazê-la" [06].

            Apesar da evolução dos valores e da mudança de paradigmas, a sociedade brasileira continua conservadora, reprovando os comportamentos que se distanciam do padrão social de família tradicional, estabelecido há séculos atrás. Desse modo, o legislador constituinte de 1.988 optou por regulamentar novas formas de entidades familiares além da família tradicional baseada no matrimônio, mas, propositalmente, em razão do preconceito e do conservadorismo da sociedade brasileira, deixou de regulamentar a família formada por pessoas do mesmo sexo, apesar de consciente da necessidade de fazê-lo.

            Porém, tal opção do legislador constitucional infringiu também o princípio da unidade da Constituição, através do qual cada norma constitucional é considerada como um preceito integrado num sistema único de princípios e normas, harmônico e sincronizado. A Constituição Federal consagra como fundamento do Estado Democrático de Direito a dignidade da pessoa humana; como objetivo, a construção de uma sociedade livre, justa e solidária, sem preconceitos de sexo e quaisquer formas de discriminação; e como princípios fundamentais os direitos de liberdade e igualdade.

            Celso Ribeiro Bastos ensina:

            "Formando a Constituição um sistema, a significação de uma norma não é dada apenas pela sua interpretação, com desprezo de toda a Constituição. Em tese, todas as normas constitucionais podem influenciar outras normas constitucionais. E essa influência é mais acentuada quando é exercida a partir dos princípios sobre meras regras. Nunca será demais encarecer a particularidade que apresenta o Direito Constitucional de repousar grande parte em princípios, que são a fonte última da significação constitucional e, conseqüentemente, de suas regras, e que tanta atividade demandam do intérprete, visto que são fracos de significação pelo caráter abstrato de que se revestem.

            (...)

            O Direito evolui também por este caminho, pelo confronto com a realidade. Ele não se aplica a coisas mortas, mas a processos, em maior ou menor ritmo, em mutação. E deste entrechoque do fato com a norma, esta também resulta gradativamente alterada, e isto absolutamente desligado de qualquer necessidade de apelos ideológicos. O Texto Constitucional tem compromisso com valores, mas não com a escamoteação da verdade. Tudo que for feito para aclarar seus conteúdos estará no bom caminho da interpretação constitucional. Quem dela quiser se utilizar para seguir caminhos pessoais, estará certamente fazendo qualquer outra coisa, menos interpretação constitucional". [07]

            Assim sendo, em razão do caráter evolutivo do Direito, e para que o artigo 226, §3º da Constituição Federal não encerre verdadeira contradição e incoerência com princípios constitucionais, conclui – se que deve ser integrado, mediante a aplicação analógica às uniões homossexuais, para que estas também sejam reconhecidas como entidades familiares, desde que presentes os pressupostos para tanto, ou seja, desde que sejam verdadeiras comunhões de vida baseadas no afeto e respeito.

            Além disso, o §2º do artigo 5º da Constituição Federal dispõe: "Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte".

            Além da Declaração Universal dos Direitos do Homem, há vários tratados e convenções específicos, ratificados pelo Brasil, que primam pelos princípios da igualdade, liberdade, não discriminação, e pelos direitos sexuais e reprodutivos, entre outros.

            O artigo 4º da Lei de Introdução ao Código Civil dispõe: "Quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito".

            O artigo 5º dispõe: "Na aplicação da lei, o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum".

            A Mestre Maria Berenice Dias ensina:

            "O distanciamento dos parâmetros comportamentais majoritários ou socialmente aceitáveis não pode ser fonte geradora de favorecimentos. Ainda que certos relacionamentos sejam alvo do preconceito ou se originem de atitudes havidas por reprováveis, o magistrado não deve afastar-se do princípio ético que precisa nortear todas as suas decisões. Principalmente em sede de Direito das Famílias, deve estar atento para não substituir princípios éticos por ultrapassados moralismos conservadores já distanciados da realidade social. É preciso privilegiar a ética. A finalidade da lei não é imobilizar a vida, cristalizá-la, mas permanecer em contato com ela, segui-la em sua evolução e a ela se adaptar. O envelhecimento das leis frente a uma sociedade em rápida transformação e o constante surgimento de novos fenômenos sociais a reclamar a atenção do Direito contribuíram para deslocar ao juiz a solução de problemas e de incertezas que deveriam encontrar uma resposta na sede legislativa. O Direito tem um papel social a cumprir, e o juiz deve dele participar, interpretando as leis não somente segundo seu texto e suas palavras, mas consoante as necessidades sociais que é chamado a reger, segundo as exigências da justiça e da eqüidade que constituem seu fim. E, na ausência da lei, é mister que o juiz invoque os princípios constitucionais, cujo valor se encontra em sua universalidade e racionalidade e depende principalmente de uma condição ética". [08]

            Mediante a aplicação da analogia, a norma legal passa a abarcar uma hipótese não prevista expressamente, mas que se amolda perfeitamente a ela.

            "É dizer, é necessário que haja uma sensação de legitimidade consistente no fato de que não é razoável e muito menos justo que a norma interpretada abarque determinadas hipóteses e deixe de fora outras que têm as mesmas razões e motivos para constar em seu texto." [09]

            Portanto, a norma constitucional que dispõe sobre a união estável entre homem e mulher, com o objetivo de constituição de família, deve ser aplicada analogicamente às uniões entre pessoas do mesmo sexo, desde que se vislumbre na vida em comum os pressupostos de notoriedade, publicidade, fidelidade, sinais explícitos de uma verdadeira comunhão de vida.


CAPÍTULO IV – IDENTIDADE ENTRE UNIÃO ESTÁVEL HETEROSSEXUAL E UNIÃO HOMOSSEXUAL

            "As uniões estáveis heterossexuais sofreram idêntica resistência imposta atualmente às uniões estáveis entre pessoas do mesmo sexo." [10]

            Até o advento da CF/88, os casos envolvendo uniões estáveis eram tratados como sociedades de fato, tendo reflexos apenas patrimoniais, nos termos do artigo 1.363 do CC/16 e da Súmula 380 doSTF..

            A Constituição Federal reconheceu a pluralidade de formas de constituição de família, sem estabelecer hierarquia entre elas.

            A Lei 8.971, de 29 de dezembro de 1.994, disciplinou o direito dos companheiros a alimentos e à sucessão. A Lei 9.278, de 10 de maio de 1.996, regulamentou o artigo 226, §3º da Constituição, traçando os moldes da união estável entre homem e mulher.

            O Código Civil de 2.002, em seu artigo 1.723, reproduziu o disposto no artigo 1º da Lei 9.278/96, e estabeleceu os requisitos para reconhecimento da união estável, quais sejam: dualidade de sexos; convivência pública, contínua e duradoura; objetivo de constituição de família.

            No artigo 1.725, disciplina que o regime de bens na união estável será o mesmo regime legal do casamento, o da comunhão parcial, salvo contrato escrito em sentido diverso. Porém, nos artigos 1.790 e 1.845 regula a sucessão decorrente da união estável diversamente da sucessão decorrente do casamento.

            Zeno Veloso, comentando o artigo 1790 do Código Civil, entende da seguinte maneira:

            "o companheiro e a companheira ficam em situação de extrema inferioridade, quanto à sucessão, diante do marido e da mulher. (...) Creio ser de toda conveniência uma reforma legislativa, alterando o art. 1.790, para que a sucessão entre companheiros seja regulada de forma idêntica à sucessão entre cônjuges, dada a evidente paridade das situações. Reconheço, todavia, que essa paridade tem sido questionada, alegando alguns autores que não é de boa política legislativa igualar a situação dos cônjuges com a dos companheiros" [11]

            A família passou, em razão do surgimento de novos valores, a ser regulada como a comunhão de interesses e de vida baseada nos laços de afeto e solidariedade entre os indivíduos, e não mais no contrato, com funções procriacionais e patrimoniais. Porém, o legislador, apesar de reconhecer as uniões estáveis entre homem e mulher como entidades familiares, foi tímido ao estabelecer as conseqüências jurídicas de tais uniões, fazendo discriminação entre essas e as decorrentes do casamento.

            O Código Civil de 2.002 escolheu privilegiar o cônjuge com descendentes comuns ao companheiro, tratando discriminadamente as famílias advindas do casamento e as da união estável.

            Assim como a Constituição Federal não reconheceu como entidade familiar a união homossexual, ainda que presentes os pressupostos da união estável entre heterossexuais.

            Porém, "é necessário evitar que persista uma hierarquia entre os modelos familiares, de modo a retomar, novamente, como paradigma o casamento e, assim, ajustar arbitrariamente todas as outras entidades familiares aos seus pressupostos. A Constituição prevê a pluralidade de formas de constituir família e não estabelece qualquer hierarquia entre as mesmas. Além disso, os tipos familiares explicitados são meramente exemplificativos, uma vez que o "caput" do art. 226 da Constituição tem uma previsão aberta e genérica a partir do termo família". [12]

            Assim sendo, comprovada a existência de um relacionamento em que haja vida em comum, coabitação e laços afetivos, está – se à frente de uma entidade familiar que deve ser reconhecida, não se justificando a negação de direitos assegurados aos heterossexuais nas mesmas condições, somente pelo fato de os conviventes serem homossexuais.

            Do mesmo modo entende parte da doutrina brasileira.

            "Dúvida não padece que, ao se cumprir uma lei, todos os abrangidos por ela hão de receber tratamento parificado, sendo certo, ainda, que ao próprio ditame legal é interdito deferir disciplinas diversas para situações equivalentes." [13]

            "É que o amor e o afeto independem de sexo, cor ou raça, sendo preciso que se enfrente o problema, deixando de fazer vistas grossas a uma realidade que bate à porta da hodiernidade, e mesmo que a situação não se enquadre nos moldes da relação estável padronizada, não se abdica de atribuir à união homossexual os mesmos efeitos dela." [14]

            "No direito de família sempre repercutiu a estratificação histórica da desigualdade. Desigualdade entre filhos e, principalmente, desigualdade entre os cônjuges. É impressionante, para um olhar retrospectivo, como preconceitos arraigados converteram-se em regras de direito indiscutíveis. Mais impressionante é haver os que lastimam a evolução dos tempos, augurando o fim da família, ou da única entidade familiar que admitem, assentada em princípios que o tempo se encarregou de reduzir ou extinguir, a saber, o da exclusividade da família matrimonializada, o da legitimidade e o da primazia da origem biológica ou consangüínea. Ainda hoje, apesar de a Constituição Federal ter optado por normas abertas de tutela de quaisquer entidades afetivas e estáveis constituídas com finalidade de família, é forte a resistência à admissibilidade das entidades que não correspondam à matriz do casamento". [15]


CAPÍTULO V - DIREITO COMPARADO

            A questão da regulamentação das uniões homossexuais como entidades familiares tem sido debatida no mundo.

            Porém, a maioria dos países que admitem a união homossexual utiliza outra terminologia, que não seja casamento, para regulamentar tais uniões.

            "Dentre as críticas esboçadas a essa proposta, cumpre referir que a solução inserida na proposta dos pactos de parceria civil define a previsão jurídica, apenas, dos efeitos patrimoniais da relação afetiva homossexual, desviando, ou melhor, postergando o verdadeiro debate e enfrentamento político e cultural que representa a aceitação da união entre pessoas do mesmo sexo como sendo uma relação familiar." [16]

            A França reconheceu legalmente a união homossexual, pela Lei 99.944/99, que prescreve o pacto civil de solidariedade, garantindo direito à imigração, à sucessão e à declaração de renda conjunta, excetuada a adoção.

            A Holanda, mediante a Lei 26672, de dezembro de 2000, a Dinamarca, com a Lei 372/89, a Noruega, Lei 40/93 e a Suécia admitem a parceria registrada entre homossexuais, outorgando – lhes os mesmos direitos decorrentes do casamento efetivado entre heterossexuais, não lhes sendo permitida a adoção de crianças. O Parlamento Holandês, a partir de 1º de abril de 2.001, passou a aceitar o casamento de homossexuais com a possibilidade de adoção de crianças.

            Na Finlândia, é permitido o casamento entre homossexuais, regulamentado por Lei de 11 de março de 2.002.

            A união estável homossexual foi regulamentada na Alemanha em 2.001.

            Recentemente foi aprovada lei permitindo a união homossexual na Espanha.

            Em Portugal estuda – se legislação sobre casamento entre pessoas do mesmo sexo, reconhecimento de uniões homoeróticas e parceria registrada.

            O Des. José Carlos Teixeira Giorgis afirma:

            "No Canadá, a discriminação, com base na orientação sexual, viola a garantia constitucional da igualdade.

            (...)

            No Canadá, os benefícios de saúde foram estendidos aos parceiros do mesmo sexo, também admitindo que pudessem ser tratados como membros de uma união estável; o governo oferece benefício médico, dentário e oftalmológico aos parceiros dos empregados homossexuais.

            Ali, uma província reconheceu, em 1997, a possibilidade de tutela e adoção por homossexuais." [17]

            No Brasil existe o Projeto de Lei 1.151, de 1.995, de autoria da então Deputada Federal Marta Suplicy, que disciplina a união civil entre pessoas do mesmo sexo e dá outras providências, quanto a benefícios previdenciários e direitos sucessórios. Tal Projeto de Lei, apesar de estar pronto para ser votado, foi retirado de pauta em 31 de maio de 2.001, em razão de acordo entre os Líderes.


CAPÍTULO VI – JURISPRUDÊNCIA RELATIVA AO RECONHECIMENTO DAS UNIÕES ESTÁVEIS HOMOSSEXUAIS.

            A Jurisprudência nacional, nas constantes controvérsias judiciais que envolvem pares homossexuais, está dividida quanto à mudança de paradigma e ao reconhecimento do "status" de entidade familiar a tais relações.

            UNIÃO ENTRE PESSOAS DO MESMO SEXO – Coabitação – Situação que não gera nenhum direito entre as partes, independente do período de convivência.

            Ementa Oficial: A união de duas pessoas do mesmo sexo, por si só, não gera direito algum para qualquer delas, independentemente do período de coabitação.

            UNIÃO ENTRE PESSOAS DO MESMO SEXO – Dano moral – Indenização – Pessoa que coabitava com vítima de Aids e assumiu o tratamento do de cujus expondo – se publicamente – Reivindicação ao pai do falecido em face de sua omissão – Inadmissibilidade – Verba indevida.

            Ementa Oficial: Não cabe dano moral a ser reivindicado do pai e herdeiro universal do falecido, vítima de Aids, por pessoa que, tendo com este coabitado, houver assumido assistência ao doente, expondo – se publicamente, em face da omissão daquele, a quem não pode ser atribuída culpa pela enfermidade de que o filho foi acometido.

            (...)

            Finalmente, quanto ao recurso do apelante adesivo, gostaria de registrar que o fato de duas pessoas do mesmo sexo dividirem o mesmo teto, não importa por quanto tempo, não cria direito algum para qualquer deles e não cria laço algum senão o de amizade." (TJMG – 2ª Câm. – j. 03.12.1996 – rel. Juiz Carreira Machado – DJ 08.04.1997 – RT 742/393).

            EMENTA. SOCIEDADE DE FATO - Relação homossexual - Meação - Pretensão à extensão a todos os bens do falecido convivente - Simples sociedade de afeto mantida entre parceiros do mesmo sexo que não induz efeitos patrimoniais, à falta de normatização específica - Inexistência de respaldo a legitimar a aplicação analógica da Constituição da República de 1988 ou legislação ordinária que regulamente a união estável, de modo a conferir direito de herança ao apelante - Ruptura do liame informal que gera conseqüências meramente no âmbito do Direito das Obrigações - Presença dos pressupostos do artigo 1.363 do Código Civil - Necessidade da aferição da contribuição de cada um dos sócios para se proceder à partilha na proporção de seus esforços - Recurso parcialmente provido. (Apelação Cível n. 179.953-4 - TJSP - 10ª Câmara de Direito Privado - Relator: Paulo Dimas Mascaretti - 26.02.02 - V.U.)

            O Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul foi o primeiro a proferir decisão, em 17 de junho de 1.990, reconhecendo a união estável homossexual como entidade familiar.

            EMENTA: "Relações homossexuais. Competência para julgamento de separação de sociedade de fato dos casais formados por pessoas do mesmo sexo – Em se tratando de situações que envolvem relações de afeto, mostra – se competente para o julgamento da causa uma das Varas de Família, à semelhança das separações ocorridas entre casais heterossexuais. Agravo provido" (AI 599075496 – Oitava Câmara Cível – Rel. Des. Breno Moreira Mussi, j. 17.06.99).

            Atualmente, apesar de alguns julgadores não reconhecerem as uniões homossexuais como entidades familiares, o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul reconhece a existência de tais relações, suprindo a lacuna legal através da analogia, de maneira inovadora.

            EMENTA: UNIAO HOMOSSEXUAL. RECONHECIMENTO. PARTILHA DO PATRIMONIO. MEACAO PARADIGMA. Não se permite mais o farisaísmo de desconhecer a existência de uniões entre pessoas do mesmo sexo e a produção de efeitos jurídicos derivados dessas relações homoafetivas. Embora permeadas de preconceitos, são realidades que o Judiciário não pode ignorar, mesmo em sua natural atividade retardatária. Nelas remanescem conseqüências semelhantes às que vigoram nas relações de afeto, buscando – se sempre a aplicação da analogia e dos princípios gerais do direito, relevados sempre os princípios constitucionais da dignidade humana e da igualdade. Desta forma, o patrimônio adquirido na constância do relacionamento deve ser partilhado como na união estável, paradigma supletivo onde se debruça a melhor hermenêutica. Apelação Provida, em parte, por maioria, para assegurar a divisão do acervo entre os parceiros. (Apelação Cível Nº 70001388982, Sétima Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: José Carlos Teixeira Giorgis, Julgado em 14/03/2001)

            EMENTA: "É possível o processamento e o reconhecimento de união estável entre os homossexuais, ante os princípios fundamentais insculpidos na Constituição Federal que vedam qualquer discriminação, inclusive quanto ao sexo, sendo descabida discriminação quanto à união homossexual e é justamente agora, quando uma onda renovadora se estende pelo mundo, com reflexos acentuados em nosso País, destruindo preconceitos arcaicos, modificando conceitos e impondo a serenidade científica da modernidade no trato das relações humanas, que as posições devem ser marcadas e amadurecidas, para que os avanços não sofram retrocesso e para que as individualidades e as coletividades, possam andar seguras na tão almejada busca da felicidade, direito fundamental de todos. Apelação provida". (TJRS, 8ª Câmara Cível, APC 598 362 655. Rel. Des. José Siqueira Trindade, j. 1/03/00).

            EMENTA: APELAÇÃO. UNIÃO HOMOSSEXUAL. RECONHECIMENTO DE UNIÃO ESTÁVEL. PARTILHA. Embora reconhecida na parte dispositiva da sentença a existência de sociedade de fato, os elementos probatórios dos autos indicam a existência de união estável. PARTILHA. A união homossexual merece proteção jurídica, porquanto traz em sua essência o afeto entre dois seres humanos com o intuito relacional. Caracterizada a união estável, impõe-se a partilha igualitária dos bens adquiridos na constância da união, prescindindo da demonstração de colaboração efetiva de um dos conviventes, somente exigidos nas hipóteses de sociedade de fato. NEGARAM PROVIMENTO. (Segredo de Justiça) (Apelação Cível Nº 70006542377, Oitava Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Rui Portanova, Julgado em 11/09/2003)

            Porém, a mesma Oitava Câmara do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul entendeu que a união homossexual constitui uma sociedade de fato, regulamentada pelo Direito das Obrigações, e não pelo Direito de Família, não podendo ser equiparada à união entre heterossexuais.

            EMENTA: APELAÇÃO CÍVEL. UNIÃO HOMOSSEXUAL. IMPOSSIBILIDADE DE EQUIPARAÇÃO À UNIÃO ESTÁVEL. O relacionamento homossexual entre duas mulheres não se constitui em união estável, de modo a merecer a proteção do Estado como entidade familiar, pois é claro o § 3º do art. 226 da Constituição Federal no sentido da diversidade de sexos, homem e mulher, como também está na Lei 8.971, de 29 de dezembro de 1994, bem como na Lei 9.278, de 10 de maio de 1996. Entretanto, embora não possa se aplicar ao caso a possibilidade de reconhecimento de união estável, em tendo restado comprovada a efetiva colaboração de ambas as partes para a aquisição do patrimônio, impõe-se a partilha do imóvel, nos moldes do reconhecimento de uma sociedade de fato. Apelo parcialmente provido. (Apelação Cível Nº 70007911001, Oitava Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Antônio Carlos Stangler Pereira, Julgado em 01/07/2004)

            Segundo entendimento do DD Juiz Roberto Arriada Lorea, da 2ª Vara de Família e Sucessões da Comarca de Porto Alegre, ao proferir sentença em 14 de fevereiro de 2.005, julgando procedente uma ação de dissolução de união estável entre casal homossexual, não só a união estável entre homossexuais é possível como também o casamento, pois "da leitura do art. 226, § 3º da CF, não decorre a conclusão ‘somente entre homens e mulheres’, ao contrário, não veda a possibilidade da proteção jurídica das relações estáveis entre pessoas do mesmo sexo. Assim, nos casos de vazio normativo, deve o juiz decidir de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais do Direito". A decisão registra o reconhecimento da união estável homossexual pelo Tribunal Superior Eleitoral: "Ementa: REGISTRO DE CANDIDATO. CANDIDATA AO CARGO DE PREFEITO. RELAÇÃO ESTÁVEL HOMOSSEXUAL COM A PREFEITA REELEITA DO MUNICÍPIO. INELEGIBILIDADE. ART. 14, § 7º, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. Os sujeitos de uma relação estável homossexual, à semelhança do que ocorre com os de relação estável, de concubinato e de casamento, submetem-se à regra de inelegibilidade prevista no art. 14, § 7º, da Constituição Federal. Recurso a que se dá provimento. Decisão: O Tribunal, por unanimidade, conheceu do recurso e lhe deu provimento, nos termos do voto do relator. (ACÓRDÃO 24564 VISEU - PA 01/10/2004 Relator(a) GILMAR FERREIRA MENDES Relator(a) designado(a) Publicação PSESS - Publicado em Sessão, Data 01/10/2004). E conclui da seguinte maneira: "atribuir-se tratamento diferenciado aos jurisdicionados homossexuais seria um desrespeito ao analisado princípio da igualdade. Nesse sentido, seria um absurdo aceitar que o Poder Judiciário fechasse seus olhos não só para as modificações de nossa sociedade, como para a Constituição Federal que rege nossa nação. Buscando na "falta de legislação expressa" razão suficiente para julgar injustamente fatos que ocorrem entre "minorias sociais" que já são constantemente discriminadas".

            Em março de 2.004, parecer da Corregedoria Geral de Justiça do Estado de Rio Grande do Sul, publicado no Diário de Justiça, autorizou os municípios gaúchos a aceitarem os registros de pedidos feitos por casais homossexuais que queiram comprovar sua união, impedindo a negativa dos cartórios sob a alegação de falta de previsão legal, orientação e jurisprudência.

            O Tribunal Regional Federal da Quarta Região reconhece a eficácia do princípio da igualdade de tratamento entre homossexuais e heterossexuais na hipótese de pensão estatutária.

            EMENTA CONSTITUCIONAL PREVIDENCIÁRIO. PENSÃO POR MORTE. CONCESSÃO. COMPANHEIRO. UNIÃO HOMOSSEXUAL. REALIDADE FÁTICA. TRANSFORMAÇÕES SOCIAIS. EVOLUÇÃO DO DIREITO. PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS DE IGUALDADE. ARTIGOS 3º, IV E 5º. DEPENDÊNCIA ECONÔMICA PRESUMIDA. CORREÇÃO MONETÁRIA. JUROS DE MORA. HONORÁRIOS ADVOCATÍCIOS.

            1. A realidade social atual revela a existência de pessoas do mesmo sexo convivendo na condição de companheiros, como se casados fossem.

            2. O vácuo normativo não pode ser considerado obstáculo intransponível para o reconhecimento de uma relação jurídica emergente de fato público e notório. 3. O princípio da igualdade consagrado na Constituição Federal de 1988, inscrito nos artigos 3º, IV, e 5º, aboliram definitivamente qualquer forma de discriminação.

            4. A evolução do direito deve acompanhar as transformações sociais, a partir de casos concretos que configurem novas realidades nas relações interpessoais.

            5. A dependência econômica do companheiro é presumida, nos termos do § 4º do art. 16 da Lei nº 8.213/91. 6. Estando comprovada a qualidade de segurado do de cujus na data do óbito, bem como a condição de dependente do autor, tem este o direito ao benefício de pensão por morte, o qual é devido desde a data do ajuizamento da ação, uma vez que o óbito ocorreu na vigência da Lei nº 9.528/97.

            8. As parcelas vencidas deverão ser corrigidas monetariamente desde quando devidas, pelo IGP-DI (Medida Provisória nº 1.415/96).

            9. Juros de mora de 6% ao ano, a contar da citação.

            10. Honorários advocatícios fixados em 10% sobre o valor da condenação, nesta compreendidas as parcelas vencidas até a execução do julgado.

            11. Apelações providas. (Apelação Cível 2000.04.01.073643-8/RS, 6ª Turma, v.u., Rel. Juiz Nylson Paim de Abreu, j. 21.11.2.000, DJ 10.01.2001, p.373)

            Maria Cláudia Crespo Brauner e Taysa Schiocchet informam que "em 2.000, o Tribunal Regional Federal da Quarta Região confirmou liminar em ação civil pública destinada a reconhecer, em todo o território nacional, direitos previdenciários aos companheiros homossexuais" [18]

            Em janeiro de 2.005, o Procurador do Ministério Público Federal, João Gilberto Gonçalves Filho, propôs ação civil pública, que tramita na Justiça Federal de Guaratinguetá, Estado de São Paulo, para legalização da união civil entre pessoas do mesmo sexo no território nacional. De acordo com o Procurador, "Os governadores dos Estados podem, se quiserem e independentemente de qualquer ação judicial, concordar com os termos da ação e fazer um acordo com o Ministério Público. A partir daí, o casamento entre homossexuais já estaria autorizado nos respectivos Estados, mesmo que a ação seja indeferida na Justiça." [19]

            Assim sendo, tais precedentes da jurisprudência, notadamente do Rio Grande do Sul, provam que o Brasil está caminhando para uma mudança de paradigma e para o avanço na regulamentação da união entre pessoas do mesmo sexo.


VII – CONCLUSÃO

            A Constituição Federal de 1.988 prevê outras formas de entidades familiares além da família baseada no matrimônio, acompanhando a evolução dos valores da sociedade brasileira ao longo do tempo. O Código Civil de 2.002 atendeu a grande parte dos objetivos da Constituição Federal, regulamentando as uniões entre um homem e uma mulher, baseadas no afeto e no objetivo de comunhão de vida.

            Porém, o ordenamento jurídico não acompanhou totalmente a mudança e evolução dos valores da sociedade brasileira.

            Apesar de as entidades formadas entre pessoas do mesmo sexo, que vivem com o objetivo de comunhão de vida baseada no afeto e respeito mútuos ser uma realidade consolidada na sociedade brasileira, a Constituição Federal as ignora, fazendo com que tais pessoas, em razão da orientação sexual, fiquem à margem do ordenamento jurídico.

            O artigo 226 da Constituição Federal prevê como requisito para a união estável ser considerada entidade familiar, passível de regulamentação pelo Direito de Família, a diversidade de sexos.

            Porém, o rol das entidades familiares previstas pela Constituição Federal, em seu artigo 226, não é taxativo, pois, se assim considerado, tal dispositivo estaria em confronto com a própria Constituição Federal, que dispõe, no artigo 1º, III, sobre o princípio da dignidade humana; no artigo 5º, sobre o princípio da igualdade; no artigo 3º, I e IV, sobre o princípio democrático, que se consolida através da convivência numa sociedade livre, justa, solidária e pluralista, pressupondo a possibilidade de convivência de interesses diferentes, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.

            A Constituição Federal deve ser interpretada como um sistema de normas e princípios, sendo as normas influenciadas pelos princípios.

            Assim sendo, o artigo 226, §3º da Constituição Federal deve ser aplicado, através da interpretação analógica, às uniões estáveis entre pessoas do mesmo sexo, para que sejam garantidas a vigência e a eficácia dos princípios constitucionais fundamentais de igualdade, de dignidade da pessoa humana e de liberdade.

            A vontade do legislador deve adaptar – se, através da interpretação dinâmica, à realidade social em que está inserida, sob pena de marginalização de estruturações familiares existentes e, consequentemente, de descumprimento de princípios constitucionais fundamentais.

            A definição de padrões sociais familiares ultrapassados, ideologias pessoais e preconceitos são fatores que não podem discriminar situações existentes.

            A Jurisprudência, notadamente do Estado do Rio Grande do Sul, vem decidindo pela adaptação do ordenamento jurídico, através da interpretação analógica do artigo 226, § 3º às uniões homossexuais.

            Porém, tal tema ainda é pouco abordado e debatido pela doutrina, que mostra – se tímida na discussão sobre a violação de direitos fundamentais, decorrentes da falta de regulamentação das uniões homossexuais.

            Assim sendo, e visando contribuir para o estudo da necessidade de regulamentação das uniões homossexuais como entidades familiares, regulamentadas pelo Direito de Família, entendemos que à doutrina e à jurisprudência brasileiras cabe o relevante papel de suprir a lacuna encontrada na Constituição Federal, através da interpretação sistemática e analógica com a união estável heterossexual.

            A Constituição Federal representa um marco histórico do fim de uma época em que a discriminação, a injustiça e os atentados às liberdades e aos direitos fundamentais eram legítimos no Brasil; representa a transformação do País e da sociedade, e tem como objetivo "assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem – estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias".

            O legislador constituinte originário não dispôs sobre a união homossexual como entidade familiar, passível de regulamentação pelo Direito de Família, em virtude da pressão da sociedade brasileira da época, que mantinha –se conservadora e apegada aos valores de um Estado não democrático.

            Porém, após quase vinte anos da promulgação da Constituição Federal, não há mais espaço para preconceitos e para a discriminação em virtude da orientação sexual. Assim sendo, cabe aos operadores do Direito e à sociedade o debate e a interpretação dinâmica da Constituição Federal, para adapta-la à realidade social em que está inserida, que é diversa da realidade social da época em que foi promulgada.


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NOTAS

            01 BASTOS, Celso Ribeiro. Hermenêutica e Interpretação Constitucional, 3ª edição, Editora Celso Bastos, pág. 141.

            02 Apud, FUGIE, Érica Harumi, Inconstitucionalidade do Artigo 226, §3º, da Constituição Federal? Revista de Direito de Família, Vol. 15, Editora Síntese, pág. 140, nota de rodapé 33.

            03 Apud, GIORGIS, José Carlos Teixeira, A Relação Homoerótica e a Partilha de Bens, Revista Brasileira de Direito de Família, vol. 09, pág. 150

            04 FIUZA, Ricardo, Novo Código Civil Comentado, Editora Saraiva, 1ª edição, 3ª tiragem, pág. 21.

            05 BRAUNER, Maria Cláudia Crespo e SCHIOCCHET, Taysa, O Reconhecimento Jurídico das Uniões Estáveis Homoafetivas no Direito de Família Brasileiro, Questões Controvertidas no direito de família e das sucessões, Editora Método, pág. 319.

            06 Op. cit., pág. 73.

            07 Op.cit., pág. 300.

            08 DIAS, Maria Berenice, A ética do afeto, Disponível em http:// www.flaviotartuce.adv.br/Artigos de Convidados.

            09 BASTOS, Celso Ribeiro, Ob. cit., pág. 72.

            10 BRAUNER, Maria Cláudia Crespo e SCHIOCCET, Taysa, Ob. cit., pág. 317.

            11 VELOSO, Zeno, Comentários ao Novo Código Civil, Editora Saraiva, 1ª edição, 3ª tiragem, pág. 1604.

            12 BRAUNER, Maria Claudia Crespo e SHIOCCHET, Taysa, Op. cit., pág. 321.

            13 MELLO, Celso Antonio Bandeira de, Conteúdo Jurídico de Igualdade, Editora Malheiros, 3ª edição, págs. 9-10.

            14 GIORGIS, José Carlos Teixeira, Op. cit., pág. 153.

            15 LOBO, Paulo Luiz Netto, As vicissitudes da igualdade e dos deveres conjugais no direito brasileiro, disponível em http://www.jusnavegandi.com.br/doutrina.

            16 BRAUNER, Maria Cláudia Crespo e SCHIOCCHET Taysa, Ob. cit., pág 326.

            17 GIORGIS, José Carlos Teixeira, Ob. Cit., 149.

            18 Ob. Cit., pág. 329.

            19 Jornal Folha de São Paulo, edição de 20 de janeiro de 2.005, disponível em http:// www.ibdfam.com.br, acesso em 27 de julho de 2.005.


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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SANTORO, Claudia. A necessidade de regulamentação das uniões estáveis homossexuais. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 10, n. 875, 25 nov. 2005. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/7625. Acesso em: 16 maio 2024.