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Alterações decorrentes da lei de abuso de autoridade.

Consequências fáticas e sociais

Alterações decorrentes da lei de abuso de autoridade. Consequências fáticas e sociais

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SUMÁRIO: RESUMO. 1 INTRODUÇÃO. 2 ANÁLISE HISTÓRICA DA LEI DE ABUSO DE AUTORIDADE. 2.1 Análise política na alteração da Lei de Abuso de Autoridade. 3 ANÁLISE SISTEMÁTICA DA NOVA LEI DE ABUSO DE AUTORIDADE. 3.1 Objeto e finalidade da Lei de Abuso de Autoridade. 3.2 Tipo subjetivo dos crimes de abuso de autoridade. 3.3 Vedação do crime de hermenêutica. 3.4 Novatio legis in pejus. 3.5 Sujeito ativo e passivo. 4 RESPONSABILIDADE PENAL, CIVIL E ADMINISTRATIVA. 4.1 Competência. 4.2 Ação Penal. 4.3 Efeitos extrapenais decorrentes da sentença penal condenatória. 4.5 Substituição das penas restritivas de liberdade por restritivas de direitos. 4.6 Ilicitude penal, civil e administrativa. 5 CONCLUSÃO. 6 REFERÊNCIAS.

RESUMO: A pesquisa tem como objetivo refletir sobre a real necessidade de inovação legislativa na Lei de Abuso de Autoridade e como se deu o processo de aprovação desta lei, que trata de um problema tão grave e que está presente no nosso sistema há muitos anos e mesmo assim ainda é uma questão muito atual, principalmente após a Operação Lava Jato que se utilizou de vários mecanismos para prender figuras importantes na política do país e por isso, o poder do Judiciário passou a ser ainda mais questionado e temido por alguns, que viram como solução a aprovação repentina de uma Lei que aparentemente buscava proporcionar um freio, mas que na realidade não se mostrou tão eficiente neste ponto, já que foram introduzidos mecanismos para proteger minimamente os operadores do Direito de responderem por apenas estarem cumprindo seu dever legal. O trabalho também vai tratar das formas em que os operadores do Direito podem ser responsabilizados administrativamente, civilmente e penalmente. Realizou-se uma pesquisa bibliográfica considerando as contribuições de autores como Renato Brasileiro Lima (2020) e Rogério Greco e Rogério Sanches Cunha (2020) e Cláudia Barros Portocarrero and Wilson Luiz Palermo Ferreira (2020), entre outros, procurando enfatizar que um novo diploma normativo acerca da matéria fosse necessário, porque a antiga Lei nº 4.898/65 já não se mostrava mais eficaz e rigorosa. Conclui-se que apesar da necessidade de uma legislação mais atual, a nova Lei de Abuso de Autoridade ainda é abstrata em alguns pontos, faltando clareza do legislador e incapaz de solucionar com eficiência alguns problemas enfrentados no plano fático, sendo assim, a Lei necessita de interpretação da jurisprudência.

Palavras-chave: Abuso de autoridade. Política. Lei nº.13.869. Legislação Extravagante.


1 INTRODUÇÃO

Os debates acerca do Abuso de Autoridade figuram como um dos temas mais antigos da sociedade, e paradoxalmente, estão presentes na atualidade como um dos temas mais relevantes para o Direito e para a manutenção da ordem democrática.

É importante para o âmbito do Direito, porque os abusos cometidos por autoridades públicas devem ser coibidos, não só para que haja a garantia dos direitos humanos, que estão assegurados por todas as constituições democráticas modernas, mas também porque estudar os abusos cometidos pelas autoridades no exercício de suas funções ou sobre o pretexto de exerce-las, é imergir em diversos ramos do Direito, como o Direito Constitucional, Direito Administrativo, Direito Civil, Direito Penal e as garantias conferidas pelo Direito Processual Penal.

O presente estudo volta-se à abordagem da temática dos Crimes de Abuso de Autoridade na atuação dos agentes de segurança pública, do Ministério Público e dos Magistrados quando realizam as várias atividades envolvidas no exercício de sua profissão, que corroboram a sua autoridade e sua liberdade de agir em determinada circunstancias mas que também são limitadas de forma cada vez mais severa e intimidadora pelo ordenamento jurídico. Essa realidade experimentada por diversos agente públicos, poderia ser descrita como viver no limite da legalidade e da ilegalidade.

Neste contexto, o objetivo primordial deste estudo é, pois, investigar qual foram as reais consequências experimentadas pelos operadores do Direito em razão da inovação legislativa.

De acordo com Lima (2020) a Lei de Abuso de Autoridade, contaminada por diversos tipos penais abertos e indeterminados, de duvidosa constitucionalidade, praticamente transformando o exercício de qualquer função pública, ainda que de maneira legítima, em uma verdadeira atividade de risco.

Analisar-se a o interesse político existente no plano de fundo dessa alteração legislativa que foi realiza sobre um regime de urgência, coincidentemente ou não, logo após toda a repercussão da "Operação Lava Jato" em que houve uma forte atuação da Polia Federal, do Ministério Público e do Magistrado e que obteve como resultado, a prisão de grandes e poderosas personalidades brasileiras.

Parece evidente que a lei foi elaborada com objetivo principal de conter e mesmo constranger delegados de polícia, juízes e procuradores no cumprimento de suas funções. Porém não alcançou esse objetivo, já que o texto final da lei exige, para a caracterização do abuso, além do dolo, o especial fim de prejudicar outrem ou beneficiar a si mesmo ou a terceiro ou, ainda, que o agente tenha atuado por motivos de capricho ou satisfação pessoal (PORTOCARRERO E FERREIRA, 2020).

Para alcançar os objetivos propostos, utilizou-se como recurso metodológico dedutivo, tendo em vista que será feita uma análise do momento histórico e político, para que se tenha surgido a necessidade de alterações na Lei de Abuso de Autoridade e como essas alterações resultaram em mudanças a diversos ordenamentos jurídicos, a sociedade, em especifico no exercício da função policial.

De acordo como Mezzaroba e Monteiro (2003), se por um lado, o método dedutivo possibilita levar o investigador do conhecido para o desconhecido com uma margem pequena de erro, por outro, esse mesmo método tem seu alcance bastante limitado, já que sua conclusão não pode em hipótese alguma ultrapassar o conteúdo enunciado nas premissas. 

A pesquisa classifica-se como bibliográfica, pois será realizada uma verificação e comparação acerca das alterações normativas nas Leis de Abuso de Autoridade.

Para Gil (2008), a pesquisa bibliográfica é desenvolvida a partir de material já elaborado, constituído principalmente de livros e artigos científicos. Embora em quase todos os estudos seja exigido algum tipo de trabalho desta natureza, há pesquisas desenvolvidas exclusivamente a partir de fontes bibliográficas.  

A pesquisa também se classifica como descritiva, em razão da analisa do momento historio e político que influenciou nas alterações da Lei e como essa nova Lei está sendo recepcionada pela sociedade.

No entendimento de Silva & Menezes (2000), a pesquisa descritiva visa descrever as características de determinada população ou fenômeno ou o estabelecimento de relações entre variáveis. Envolve o uso de técnicas padronizadas de coleta de dados: questionário e observação sistemática. Assume, em geral, a forma de levantamento.


2 ANÁLISE HISTÓRICA DA LEI DE ABUSO DE AUTORIDADE

O abuso de poder estava previsto na legislação desde o Código Criminal do Império. Realmente, o artigo 181 do referido diploma listava, minuciosamente, no capítulo dos crimes contra a liberdade individual, diversas formas de abuso de poder. Posteriormente, o Código Penal (CP) de 1890, por sua vez, incluiu tais fatos como modalidades de prevaricação, no artigo 207 do referido diploma, no capítulo dos crimes contra a boa ordem e administração pública. Posteriormente, veio o artigo 350 do Código Penal, que elencou tal delito como crime contra a administração da justiça, parcialmente revogado pela Lei 4.898/65 e atualmente veio a lei 13.869/19.

A Lei nº 13. 869 em 05 de setembro de 2019, foi aprovada em edição extra do diário oficial, em regime de urgência e com votação simbólica, não nominal, ou seja, os parlamentares se manifestaram fisicamente, quem foi a favor da matéria, permaneceu sentado e quem foi contrário, se manifestou, ao contrário de uma votação nominal, em que ficam registrados os votantes e seus respectivos votos. Houve veto de 14 artigos e alguns incisos e parágrafos, fruto do projeto de Lei nº 7.596, de 2017, a nova lei alterou a Lei nº 7.960, de 21 de dezembro de 1989 (Prisão Temporária), a Lei nº 9.296, de 24 de julho de 1996 (Interceptação Telefônica), a Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990 (Estatuto da Criança e do Adolescente), e a Lei nº 8.906, de 4 de julho de 1994 (Estatuto da Advocacia e a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB); e revoga a Lei nº 4.898, de 9 de dezembro de 1965 (Antiga Lei de Abuso de Autoridade), e dispositivos do Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal). O prazo de vacatio legis da nova Lei de Abuso de Autoridade, para que entrasse em vigor foi após decorridos 120 (cento e vinte) dias de sua publicação oficial.

Vale ressaltar que o primeiro projeto de lei tratando sobre a atualização da Lei nº 4.898/1965, não foi o projeto de Lei nº 7.596/2017, que foi aprovado. Foi o projeto de Lei nº 280/2016 do Senador Renan Calheiros (PMDB) sob a justificativa de: É preciso acabar - de parte a parte - com a cultura do você sabe com quem está falando?, logo após teve o Projeto de Lei nº 85/2017 do Senador Randolfe Rodrigues, posteriormente, foi reiniciado na Câmara dos Deputados o projeto de lei de iniciativa popular conhecido como Dez Medidas contra a Corrupção, que prevê também a criminalização do abuso de autoridade cometido por magistrados e membros do Ministério Público (PLC 27/2017). O projeto original tratava das 10 Medidas Contra a Corrupção, de iniciativa popular, liderado pelo procurador da República Deltan Dallagnol, coordenador da força-tarefa Lava Jato. No congresso, deputados e senadores incluíram ao texto artigos punindo condutas abusivas de juízes e procuradores.

Apesar das inovações da atual lei, em um aspecto a antiga e a nova Lei de Abuso de Autoridade se assemelham, as duas possuem tipos penais abertos e não taxativos, é certo que o emprego de vocábulos ambíguos e incertos realmente deve ser evitado porque, segundo Hassemer (2005, p. 336), o legislador penal deve formular suas normas de forma precisa e definitiva, fornecendo ao juiz regras escritas cada vez mais extensas e determinadas, de modo impenetrável aos casos não imaginados. Ao contrário do que era esperado, a formulação de tipos menos abertos (diferentes daqueles presentes na legislação anterior). Contudo a nova legislação acabou também utilizando (e abusando) de expressões porosas, colocando em risco a taxatividade. Não sem razão, vários tipos, por esse e outros motivos, foram vetados pelo Presidente da República. Exatamente por isso a Lei foi objeto de muitas críticas e de ações diretas de inconstitucionalidade junto ao Supremo Tribunal Federal em que se alega que em razão da abertura e subjetividade dos tipos penais instituídos, é possível que policiais respondam criminalmente por inquirir e prender em flagrante, que promotores sejam punidos por investigar, processar e requerer providências judiciais, enquanto juízes poderiam praticar atividade criminosa ao realizarem a prestação jurisdicional requerida.[1] Entre outras alegações, impugnam a inconstitucionalidade de vários dispositivos da Lei por violação aos princípios da legalidade e taxatividade do direito penal, proporcionalidade e separação dos poderes visto que a lei criminaliza a atuação dos membros do Poder Judiciário mediante a criação de tipos penais que incidem sobre o exercício da prestação jurisdicional.

Apesar do que foi abordado até este ponto, em que foi relatado a não recepção da nova Lei de Abuso de Autoridade por boa parte do poder judiciário, por outro lado, um dos pontos positivos da nova lei foi que, diferente da lei anterior, que deixou a encargo da doutrina e jurisprudência, exigir, para configurar o abuso de autoridade, a finalidade específica de se exceder para prejudicar outrem, ou ainda, satisfazer a si mesmo, a Lei atual positivou esse elemento subjetivo já no seu primeiro artigo. Esse é um dos pontos que faz com que uma parte minoritária da doutrina considere que a atual e já vigente lei é muito mais garantista e protetora para o agente público.

A maior parte da doutrina, considera que o fato de a existência do crime de abuso de autoridade depender de o agente comportar-se abusivamente com a finalidade especifica de prejudicar outrem ou beneficiar a si mesmo ou a terceiro, ou, ainda, por mero capricho ou satisfação pessoal, ou seja, de um elemento subjetivo, foi algo benéfico, para que injustiças não seja feitas e para que agentes públicos não deixam de agir, de realizar sua função pública por medo de sofrer consequências, apesar de seu fim de agir não ser arbitrário. Como bem esclarece Souza (2020, p. 19) A análise acerca do elemento subjetivo tem elevada importância pratica para evitar que o servidor, temeroso de eventual responsabilização penal, deixe de cumprir seu dever de oficio, notadamente diante de uma circunstância que leve a crer que isso é exigido. Souza (2020), ainda corrobora dando exemplo de uma pessoa com um agasalho pesado em um dia ensolarado, andando nervosamente em frente a um banco. Nesse exemplo há uma causa provável a legitimar a atuação policial, mas a penumbra entre o estrito cumprimento do dever legal e o abuso de autoridade nesse caso, demonstra a quão tormentosa é a questão no dia a dia dos agentes públicos. Esse tipo de posicionamento nos faz acreditar, que a maior parte da doutrina, apesar de considerar o elemento subjetivo como um benefício, não considera a nova Lei de Abuso de Autoridade mais garantista e protetora para o agente público, pelo fato de a linha entre o cumprimento do estrito dever legal e do abuso de autoridade ainda ser muito tênue e pela lei ter muitos tipos penais abertos, que possibilitam que várias ações diferentes possam ser enquadradas em seus tipos penais.

Pode- se citar Nucci (2019), como uma doutrina minoritária, que entende que a nova Lei de Abuso de Autoridade é uma autêntica blindagem aos operadores do Direito, inclusive Nucci relata que está lei deixou claro que um abuso de autoridade somente ocorre quanto manifestamente excessiva foi a atitude do agente público e que manifesta é algo notório, patente, inegável. Nada disso estava na Lei 4.898/65. E que em Direito, convenhamos que nada ou quase nada, pode ser tachado como manifesto. E que, portanto, a aplicação da nova Lei de Abuso de Autoridade é quase nula.

Além disto, Nucci (2019) defende que o fato de a lei rever um dolo específico, uma especial finalidade de prejudicar outrem ou beneficiar a si ou a terceiro, ou, ainda, por mero capricho ou satisfação pessoal. Nesse contexto, na atual lei 13.869/19 o agente público está amparado pelo escudo do elemento subjetivo específico, que é muito difícil de explorar e provar.

Pode-se sustentar que a lei 13.869/19 foi editada em momento impróprio porque, com o enfraquecimento da Operação Lava Jato, fornece a impressão de ser uma resposta vingativa do Parlamento aos operadores do direito. Porém em teoria, isto pode ser sustentado; já na prática, torna-se impossível. Por ser todo o conjunto da nova Lei de Abuso de Autoridade, favorável ao agente público (NUCCI, 2019).

2.1 Análise política na alteração da Lei de Abuso de Autoridade

A antiga Lei de Abuso de Autoridade era a Lei nº 4. 898 de 9 de dezembro de 1965, fruto do período militar, que de forma simbólica surgiu para combater os abusos de autoridades cometidos por agente públicos, porem possuía tipos penais abertos, vagos, conceitos trazidos pelo texto dificultavam sua aplicação, que por mais de 50 anos, disciplinou o abuso praticado por agentes públicos, então é inequívoco a real necessidade de ser feita uma nova legislação, já que a legislação existente até então, não possuía mais rigor capaz de coibir esta prática tão nociva, porque todos os seus tipos penais eram tratados como crimes de menor potencial ofensivo, previa penas de detenção, sendo assim, permitia a aplicação dos benefícios despenalizadores da Lei 9.099/1995, dos Juizados Especiais Criminais. Isso também contribuía para que a prescrição de crimes tão graves como esses que vamos nos referir neste trabalho, sofressem prescrição da pretensão punitiva, por volta de apenas 3 anos.

Dificilmente esses foram os reais motivos pelo qual o Poder Legislativo brasileiro aprovou a Lei nº 13. 869 /19, mas sim para impedir o pleno exercício das funções dos órgãos de soberania, como também realizar uma verdadeira vingança privada, a favor das pessoas que de alguma forma se sentiram incomodadas pela atuação dos órgãos de persecução penal, fiscal e administrativa., já que somente com a intensificação das ações contra a corrupção no país, que o Congresso passou a se empenhar na elaboração de um novo texto para a lei. De acordo com Lima (2020, p. 23), é ingênuo acreditar que o Congresso Nacional deliberou pela aprovação de uma nova Lei de Abuso de Autoridade tendo em vista única e exclusivamente o interesse da sociedade brasileira em coibir prática tão nefasta e odiosa quanto esta.

O Congresso Nacional inclusive era um alvo na operação Lava Jato, prova disso foi quando o Congresso derrubou 18 itens dos 33 vetados pelo Presidente da República, Jair Bolsonaro, que aconteceu apenas uma semana após o Ministro Luiz Roberto Barroso determinar o cumprimento de mandado de busca e apreensão no Congresso Nacional contra o então líder do governo, o Senador Fernando Bezerra e contra o Deputado Fernando Bezerra Filho, então fica clara uma nítida intenção de buscar uma forma de retaliação a esses agente públicos, visando o engessamento da atividade fim de instituições de Estado responsáveis pelo combate a corrupção. De acordo com Souza (2019), o grande desafio de uma norma penal como esta é encontrar um ponto de equilíbrio de modo a evitar que, com a justificativa de combater os abusos, de forma colateral, sejam diminuídos o desempenho de funções públicas ordenadoras da vida privada ou até mesmo que se torne ineficaz, funções públicas essas que são marcadamente impopulares e objeto de insatisfação dos destinatários alcançados pela ação Estatal. Souza (2019, p. 13), enfatiza ainda que o enfrentamento aos excessos, evidentemente necessário, não pode ser argumento usado como subterfúgio para retaliações ou perseguições, seja no plano legislativo, seja nos casos concretos.

Sendo assim, de acordo com a doutrina majoritária, a Lei nº 4.898/65 carecia de atualização. Todavia, a Lei nº 13.869/19 não foi tão bem recepcionada por boa parte da comunidade jurídica, tendo em vista que sua tramitação e posterior publicação se deu em meio a escândalos de corrupção por parte de membros do Poder Público, notadamente, no âmbito da denominada Operação Lava-jato", circunstância que, no entendimento de muitos, pode refletir como um instrumento de contenção às investigações envolvendo "crimes de colarinho branco" do que puramente uma atualização necessária da legislação até então em vigor. Greco e Cunha (2020), discorrem que a revisão que redundou na Lei 13.869/2019, no entanto, veio colorida de revanchismo, qualidade negativa presente abertamente nos discursos de boa parte dos parlamentares, gerando censuras e indisfarçável controvérsia na comunidade jurídica e na população em geral.


3 ANÁLISE SISTEMÁTICA DA NOVA LEI DE ABUSO DE AUTORIDADE

3.1 Objeto e finalidade da Lei de Abuso de Autoridade

De acordo com Lima (2020), estamos diante de um crime pluriofensivo, que tutela dois bens jurídicos distintos: em primeiro lugar direitos e garantias fundamentais do cidadão, como o direito de locomoção, a liberdade individual, direito a assistência do advogado, a intimidade ou a vida privada, em segundo, objetiva garantir o bom funcionamento da Administração Pública, bem como o dever do funcionário público de atuar com lealdade e probidade, para que sejam preservados os princípios base da Administração Pública, como legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência.

Lima (2020), ainda discorre que, a lei será aplicada quando o agente público exceder os limites de sua competência (excesso de poder) ou quando praticar um ato com finalidade diversa daquele que expressa a lei de forma explicita ou implícita (desvio de poder), em ambas as hipóteses, a aplicação da lei está condicionada a conduta do agente no exercício de sua função ou a pretexto de exercê-las.

Portocarrero e Ferreira (2020, p. 39), articulam que a objetividade jurídica do crime de abuso de autoridade é o interesse de preservar o normal funcionamento da administração pública e os direitos e garantias fundamentais do cidadão, previstos na CRFB/88.

3.2 Tipo subjetivo dos crimes de abuso de autoridade

Lima (2020) expressa em sua obra que, às vezes, o legislador introduz em determinados tipos penais, ao lado do dolo, uma série de características subjetivas que os integram ou os fundamentam. E que a doutrina clássica denominava, erroneamente, o elemento subjetivo geral do tipo de dolo genérico e o especial fim de agir de dolo específico. Mas apesar desse especial fim de agir ampliar a subjetividade do tipo, ele não integra e nem se confunde com o dolo. Visto que o especial fim de agir se esgota com a consciência e a vontade de realizar determinada conduta com finalidade de obter o resultado delituoso (dolo direto), ou assumindo o risco de produzi-lo (dolo eventual). Ou seja, o especial fim de agir que integra determinadas definições de delitos, constitui, assim, elemento subjetivo do tipo de ilícito, de maneira autônoma e independente do dolo. Sua ausência acaba por descaracterizar o tipo subjetivo, mesmo se houver a presença do dolo. A terminologia correta, portanto, é elemento subjetivo especial do tipo ou elemento subjetivo especial do injusto. Enquanto o dolo necessariamente deve se concretizar no fato típico, os elementos subjetivos especiais do tipo apenas tem o condão de especificar o dolo, sem que haja necessidade de efetivamente se concretizarem, sendo suficiente que existam no psiquismo do autor, ou seja, desde que a conduta do agente tenha sido orientada por essa finalidade especifica. Um exemplo que ilustra o que foi exposto:

Assim, se determinada pessoa foi sequestrada e o objetivo do criminoso era o de obter, para si ou para outrem, qualquer vantagem, como condição ou preço do resgate, ter-se-á caracterizado o crime de extorsão mediante sequestro (CP, art. 159), ainda que tal vantagem jamais seja obtida pelo agente. Do contrário, é dizer, se ausente esse especial fim de agir, que o crime será o de sequestro ou cárcere privado (CP, art. 148). (LIMA, 2020, p. 29)

No entendimento de Greco e Cunha (2020), o elemento subjetivo existente nos vários tipos incriminadores, restringe o alcance da norma de tal forma que, no ponto de vista dos autores, o dolo eventual fica descartado, considerando as especificidades dos artigos.

Referente a possibilidade de dolo eventual, Lima (2020), relata que o fato de o delito contemplar um especial fim de agir, como ocorreu nos crimes de abuso de autoridade, não afasta a possibilidade de o delito ser imputado ao agente a título de dolo eventual. Por isso, se restar comprovado que o agente público não queria o resultado (dolo direto), mas assumiu o risco de produzi-lo, deverá responder pelo crime de abuso de autoridade em questão a título de dolo eventual. A ressalva fica por conta dos tipos penais de abuso de autoridade cuja redação típica deixar entrever que o legislador deliberadamente quis afastar a possibilidade de imputação a título de dolo eventual. Quando faz uso de expressões como, por exemplo, que sabe ou que deveria saber, há certos crimes na nova Lei de Abuso de Autoridade cuja punição é admitida apenas a título de dolo direto.

Lima (2020), ainda corrobora que, parece não haver dúvida quanto à existência de um elemento subjetivo específico em relação aos crimes de abuso de autoridade, previstos na Lei n. 13.869/19, pelo menos em regra. Porque há a exceção do art. 29 da nova lei de Abuso de Autoridade que optou por restringir o elemento subjetivo especial do injusto constante no art. 1º, §1º da Lei 13.869/ 2019 que as condutas ali descritas constituem abuso de autoridade quanto praticadas pelo agente com à finalidade especifica de prejudicam outrem ou beneficiar a si mesmo ou a terceiro, ou, ainda por mero capricho ou satisfação pessoal. De fato, enquanto este, de aplicação genérica a todos os crimes de abuso de autoridade, o art. 29, em sua parte final, menciona apenas o fim de prejudicar interesse do investigado. Então, de acordo com o princípio da especialidade, o ideal é concluir que, em relação ao delito do art. 29, não se aplica a regra geral do art. 1º, §1º, da Lei, estando seu elemento subjetivo especial restrito a finalidade específica de prejudicar interesse do investigado. Se a conduta por pratica com a finalidade de beneficiar o investigado, não há o que falar em tipificação desse delito, dependendo do caso concreto, poderá ser tipificado a figura delituosa de prevaricação (CP, art. 319).

Greco e Cunha (2020), expressão ainda que, esse especial fim de agir, a finalidade especifica de prejudicam outrem ou beneficiar a si mesmo ou a terceiro, ou, ainda, por mero capricho ou satisfação pessoal deverá ser apontado, especificamente, na peça inaugural da ação penal, já que de acordo com o art. 41 do Código de Processo Penal, a denúncia ou a queixa conterá a exposição do fato criminoso, com todas as circunstancias, sendo assim, o elemento subjetivo, deverá ficar expressamente apontado na peça inicial de acusação. Caso não conste na inicial essa particular motivação, não poderá o réu defender-se das acusações contra ele formuladas e a denúncia ou a queixa deverão ser rejeitadas, com fundamento no inciso I do art. 395 do Código de Processo Penal, por motivo de ser a denúncia ou a queixa manifestamente inepta.

Nas palavras de Portocarrero e Ferreira (2020, p. 38), A natureza jurídica do §1º que se refere ao especial motivo ou finalidade de agir, indispensável para a caracterização do crime, cuida-se de hipótese em que restará afastada a própria tipicidade, ou seja, excludente de tipicidade.

3.3 Vedação do crime de hermenêutica

No entendimento de Portocarrero e Ferreira, o art. 1º, § 2º da Lei n. 13. 869/19 ao trazer a redação A divergência na interpretação da lei ou na avaliação de fatos e provas não configura abuso de autoridade determina que não se poderá reconhecer abuso quando houver divergência na interpretação de lei ou na avaliação de fatos e provas. Aquele que opera com o direito não pode ser responsabilizado por crime ao abraçar uma orientação que, posteriormente, venha a ser modificada por instância revisora superior. A independência da Magistratura e do Ministério Público não podem, em absoluto, ser submetida a punições penais em decorrência da interpretação possível que seus membros adotem.

De acordo com Lima (2020), o objetivo do dispositivo sob análise foi o de coibir aquilo que Rui Barbosa chama de crime de hermenêutica, assim compreendida como toda e qualquer figura delituosa que procure criminalizar a interpretação jurídica, fática ou probatória que o agente público dê aos fatos que lhe são trazidos para sua apreciação.

Lima (2020, p 38), ainda corrobora que, mesmo na vigência da revogada Lei de Abuso de Autoridade, a jurisprudência já rechaçava a possibilidade de se responsabilizar criminalmente o magistrado pela mera divergência de interpretação:

Faz parte da atividade jurisdicional proferir decisões com o vício in judicando e in procedendo razão por que, para a configuração do delito de abuso de autoridade há necessidade de demonstração de um mínimo de má-fé e de maldade por parte do julgador, que proferiu a decisão com a evidente intenção de causar dano à pessoa.[2]

3.4 Novatio legis in pejus

Respaldado no entendimento de Portocarrero e Ferreira (2020), a Lei n. 13.869/19 pode ser considerada como lex gravior, em razão de cuidar de forma mais contundente e severa de condutas anteriormente previstas que possuíam penas pouco rigorosas, além de ter sido uma novatio legis incriminadora, que criou tipos penais, neste caso a lei não retroagirá para atingir fatos pretéritos a sua vigência, em razão do princípio da irretroatividade penal, prevista no art. 5º, XL, da Constituição Federal. Por outro lado, alguns tipos penais não foram repetidos na lei atual, que deixou de considerar como abuso de autoridade o atentado ao sigilo da correspondência, a liberdade de consciência e de crença, ao livre exercício do culto religioso, a liberdade de associação, aos direitos e garantias legais assegurados ao exercício do voto, ao direito de reunião e aos direitos e garantias assegurados ao exercício profissional de várias categorias, que a atual lei só trata dos direitos e prerrogativas da advocacia, se omitindo quanto as tantas outras profissões que podem ser atingidas pelas arbitrariedades estatais. Em relação às omissões citadas, em que as hipóteses não encontram respaldos em outros tipos penais previstos no ordenamento jurídico brasileiro, terá ocorrido abolitio criminis, que extingue a punibilidade, deve neste caso, a lei retroagir para alcançar fatos anteriores à sua vigência.

3.5 Sujeito ativo e passivo

De acordo com o que feito exposto por Greco e Cunha (2020), sujeito ativo é aquele que pratica a conduta descrita no núcleo do tipo. A Lei 13.869/2019 apontou aqueles que poderiam figurar nessa condição, criando então, delitos considerados como próprios, pois o sujeito ativo tem que ter uma característica especial, isto é, os crimes só podem ser praticados por um determinado grupo de pessoas, que gozem da qualidade exigida pelo tipo. A preocupação em demonstrar seu caráter geral é tamanha que acabou sendo mais do que redundante, explicando, reexplicando e exemplificando.

O caput do art.2º da Lei 13. 869/2019, de forma suficiente, já diz ser sujeito ativo do crime de abuso de autoridade qualquer agente público, servidor ou não, da administração direta, indireta ou fundacional de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal, dos Municípios e de Território. Em seguida, num rol meramente exemplificativo, alerta que a norma, por obvio, não se limita a: I- servidores públicos e militares ou pessoas a eles equiparadas; II- membros do Poder Legislativo; III- membros do Poder Executivo; IV- membros do Ministério Público; VI- membros dos tribunais ou conselhos de contas. Como se não bastasse, o parágrafo único define agente público, para efeitos da Lei, como sendo todo aquele que exerce, ainda que transitoriamente ou sem remuneração, por eleição, nomeação, designação, contratação ou qualquer outra forma de investidura ou vinculo, mandato, cargo, emprego ou função em órgão ou entidade abrangido pelo caput (GRECO e CUNHA, 2020).

Conforme o entendimento de Lima (2020), é interessante notar que a nova Lei de Abuso de Autoridade não faz referência, como faz o Código Penal em seu art. 327, §1º ( que define quem considera-se funcionário público, para os efeitos penais), aos denominados funcionários públicos por equiparação, assim compreendido como aquele que exerce cargo, emprego ou função em entidade paraestatal, e quem trabalha para empresa prestadora de serviço contratada ou conveniada para a execução de atividade típica da administração. Sendo assim, atento ao princípio da especialidade, tal conceito não pode ser aplicado a nova Lei de Abuso de Autoridade. Repete-se então uma situação inusitada, que já existia na antiga Lei 4. 898/65. Enquanto aquele indivíduo que exerce atividade típica da administração pública (ex.: coleta de lixo) é considerado funcionário público no tocante aos crimes contra a Administração Pública, já que este funcionário é considerado funcionário público por equiparação pelo Código Penal para os efeitos penais, podendo por tanto responder por crimes como peculato e corrupção passiva, este mesmo funcionário público por equiparação não pode ser considerado agente público para efeito da nova Lei de Abuso de Autoridade, haja vista o silêncio da norma especial em relação aos funcionários públicos por equiparação e sendo inviável qualquer espécie de analogia, porque seria analogia in malam partem.

As férias ou licenças não desligam os vínculos jurídicos entre o agente público e o Estado, razão pela qual, desde que a autoridade se valha do cargo e cometa algum abuso, pode -se incorrer na Lei dos Crimes de Abuso de Autoridade. De outro lado, caso a conduta seja praticada com total desvinculação ao cargo, tal ato ligado essencialmente a vida privada do agente, não há que se falar em abuso de autoridade (SOUZA, 2020).

Segundo o exposto por Greco e Cunha (2020), é ensinamento predominante na doutrina que o funcionário aposentado não pode cometer o crime, pois se desvincula funcionalmente da Administração Pública.

Lima (2020), argumenta que subsistirá a infração penal, ainda que o agente não tenha assumido o cargo, mas já tenha sido, por exemplo, aprovado no concurso público ou nomeado formalmente para exercer determinada função, pois se enquadra no art. 1º da Lei que define como crime de abuso de autoridade aqueles cometidos por agente público, servidor ou não, que, no exercício de suas funções ou a pretexto de exercê-las, abuse do poder que lhe tenha sido atribuído. Noutro giro, não são considerados agente públicos aqueles que exercem apenas um munus público, como, por exemplo, os curadores e tutores dativos, os inventariantes judiciais, os administradores judiciais, os depositários judiciários, os leiloeiros dativos, havendo prevalência neste caso, nesses casos, do interesse privado. No caso especifico do advogado dativo, nomeados para exercer a defesa do acusado em locais onde a Defensoria Pública não tenha sido instituída, o Superior Tribunal de Justiça tem precedentes no sentido de que, apesar de não serem servidores públicos propriamente ditos, pois não são Defensores Públicos, devem ser considerados funcionários públicos para fins penais, nos termos do art. 327 do Código Penal, por este motivo hão de ser considerados agente púbicos a luz do art. 2º da Lei nº 13.869/19.

O sujeito ativo dos crimes de abuso de autoridade é o agente público, todavia, essa condição especial funciona como elementar desses delitos, então comunica-se ao particular que eventualmente concorra, na condição de coautor ou participe, para a prática do crime, nos termos do art. 30 do Código Penal, segundo o qual não se comunicam as circunstâncias e as condições de caráter pessoal, salvo quando elementares do crime. Sendo assim, é necessário que pelo menos um dos autores reúna a condição especial de agente público, podendo os outros não ostentar essa qualidade, porém os particulares que agirem em concurso de pessoa, precisam ter o consciência da qualidade especial de agente público do outro, caso não tenha esse conhecimento, não poderá responder pelo crime de abuso de autoridade, responderá por outros crimes diversos (LIMA, 2020).

Portocarrero e Ferreira (2020), entendem que serão sujeitos passivos os titulares dos bens jurídicos tutelados pela norma, ou seja, o Estado e a pessoa cujo direito ou garantia fundamental sofreu violação ou tentativa de violação. Sendo, o Estado (sujeito passivo formal, indireto, mediato e permanente de todos e qualquer crime) é, ainda sujeito passivo material, principal, direito e imediato, por ser o regular funcionamento da administração pública também objeto de tutela jurídica. Pelas razões acima expostas, não concordam com aqueles que reconhece o Estado apenas como sujeito passivo mediato e indireto do abuso de poder.

Em contrapartida Lima (2020), entende que os crimes de abuso de autoridade são delitos de dupla subjetividade passiva. Isso porque são condutas que atingem dois sujeitos passivos: de um lado, o Estado (Poder Público), que tem sua imagem, credibilidade e até seu patrimônio ofendidos quando um agente pratica um ato abusivo; do outro, a pessoa física ou jurídica diretamente atingida ou prejudicada pela conduta abusiva. Discorda-se de parte da doutrina, que costuma apontar o Estado como sujeito passivo principal ou imediato, e, na condição de sujeito passivo secundário (ou mediato), a pessoa física ou jurídica diretamente atingida pela conduta delituosa. Na verdade, não consegue visualizar nenhuma razão logica ou jurídica para se colocar o particular em segundo plano, ainda que se queira argumentar que estamos diante de crimes de responsabilidade em sentido amplo. Em síntese, o Estado é o sujeito passivo permanente de todos os crimes de abuso de autoridade, mas quando a conduta tiver lesado ou ofendido diretamente bem jurídico pertencente a alguma pessoa física ou jurídica, o Estado deve ser considerado como sujeito passivo secundário.


4 RESPONSABILIDADE PENAL, CIVIL E ADMINISTRATIVA

4.1 Competência

Na matéria em comento, a competência para processo e julgamento do abuso de autoridade será da Justiça Federal na hipótese de funcionário público federal praticar o ato delituoso. Será da competência da Justiça Estadual nos demais casos. Esse é o entendimento dos autores, que não conseguem vislumbrar hipótese em que funcionário público federal pudesse praticar conduta caracterizadora de crime de abuso de autoridade sem que tal fato comprometesse a honradez e a credibilidade dos serviços públicos da União e de suas autarquias. Entretanto, dando interpretação restritiva ao art. 109, IV da Constituição Federal, o STJ, nos autos do HC nº 10.2048-ES, vinculado no Informativo nº430, entendeu que a simples condição de agente público federal não implica que o crime seja de competência da Justiça Federal, o que só ocorrerá se forem comprometidos bens, serviços ou interesse da União e suas autarquias (PORTOCARRERO E FERREIRA, 2020).

4.2 Ação Penal

Os crimes previstos na Lei 13. 869/2019 são todos perseguidos mediante ação penal pública incondicionada, isto é, de ofício, não dependendo de qualquer pedido/autorização da vítima, tem como titula da ação o Ministério Público (GRECO e CUNHA, 2020).

É o que o art. 3º da lei 13. 869/2019 prevê

Art. 3º Os crimes previstos nesta Lei são de ação penal pública incondicionada (BRASIL, 2019).

4.3 Efeitos extrapenais decorrentes da sentença penal condenatória

Efeitos da condenação são todas as consequências que direta ou indiretamente atingiram a pessoa do condenado em razão da sentença penal transitada em julgado. Esses efeitos não se limitam a área penal, incidindo também na área civil, administrativa, trabalhista e político-eleitoral. De acordo com Lima (2020), os efeitos extrapenais da sentença condenatória são divididos em: efeitos extrapenais obrigatórios ou genéricos que estão presentes no art. 91 do Código Penal ou na Legislação Especial e são aplicáveis por força da lei, independe de manifestação por parte da autoridade judicial para se efetivar, uma vez que são inerentes a condenação, qualquer que seja a pena imposta. A única condição para o implemento desses efeitos é o trânsito em julgado da sentença penal condenatória. São aplicáveis em tese, a qualquer condenação criminal. E os efeitos extrapenais específicos, previstos no art. 92 do Código Penal ou na Legislação Especial, esses efeitos não são automáticos, eles demandam de manifestação expressa e fundamentada da autoridade judiciaria na sentença condenatória para se efetivarem.

Após fazer essa distinção, ao analisar o art. 4º, inciso I, da Lei nº 13.869, de 05 de setembro de 2019, tornar certa a obrigação de indenizar o dano causado pelo crime, devendo o juiz, a requerimento do ofendido, fixar na sentença o valor mínimo para reparação dos danos causados pela infração, considerando os prejuízos por ele sofridos. É um efeito extrapenal obrigatório em relação ao abuso de autoridade, ou seja, independe de manifestação da autoridade judiciaria na sentença condenatória, pois tem efeito automático (LIMA, 2020).

De acordo com Portocarrero e Ferreira (2020), em sentido diverso, os outros dois efeitos extrapenais listados no o art. 4º, inciso II e III, da Lei nº 13.869, de 05 de setembro de 2019, a inabilitação para o exercício de cargo, mandato ou função pública, pelo período de 1 (um) a 5 (cinco) anos; e a perda do cargo, do mandato ou da função pública. Devem ser considerados como efeitos específicos, que dependem da reincidência específica, em crime da Lei de Abuso de Autoridade e de expressa e fundamentada manifestação do judiciário para que sejam aplicados, não são efeitos automáticos. Prova disto esta expressamente no art. 4º, parágrafo único, da Lei nº 13.869, de 05 de setembro de 2019, Os efeitos previstos nos incisos II e III do caput deste artigo são condicionados à ocorrência de reincidência em crime de abuso de autoridade e não são automáticos, devendo ser declarados motivadamente na sentença.

O primeiro efeito extrapenal decorrente da sentença condenatória transitada em julgada e tornar certa a obrigação de indenizar o dano causado pelo crime, devendo o juiz, a requerimento do ofendido, fixar o valor mínimo para reparação dos danos causados pelo crime, na parte inicial , o dispositivo reproduz integralmente o art. 91, inciso I, do Código Penal, mas inova na parte final ao determinar que a requerimento do ofendido, o juiz da vara criminal, fixe na sentença o valor mínimo para reparação dos danos (GRECO E CUNHA, 2020).

O ofendido não é mais obrigado a promover a liquidação para apuração do valor a título de reparação, com o transito em julgado desta decisão, a vítima poderá promover, de imediato, no âmbito cível, a execução deste valor, caso entenda que o valor mínimo fixado pelo juiz ficará aquém do prejuízo efetivamente causado, o mesmo título executivo judicial poderá dar ensejo, simultaneamente, a execução de valor liquido e outro ilíquidos, após o último passar por previa liquidação (GRECO E CUNHA, 2020).

O segundo efeito extrapenal previsto na Lei de Abuso de Autoridade é a inabilitação para o exercício do cargo, mandato ou função pública, pelo período de 1 a 5 anos. Uma vez decorrido o período estabelecido na sentença condenatória, o agente público condenado volta a estar habilitado ao exercício das referidas atividades.

No art. 92, inciso I, o Código Penal prevê como efeito da condenação, a perda de cargo, função pública ou mandato eletivo nos casos em que forem aplicadas penas privativas de liberdades por tempo igual ou superior a um ano, nos crimes praticados com abuso de poder ou violação de dever para com a administração pública ou quando for aplicada pena privativa de liberdade por tempo superior a 4 anos, nos demais crimes. Diferentemente deste efeito da condenação, previsto no CP, a Lei de Abuso de Autoridade, que também prevê a perda do cargo, do mandato ou função pública, neste caso para que seja aplicado, basta que haja reincidência no crime de abuso de autoridade, nada determina sobre a quantidade ou o tipo de pena aplicada, então o art. 4, inciso III, da Lei nº 13. 869/ 19 funciona como norma especial em relação ao art. 92, inciso I, Código Penal, a aplicação motivada desse efeito poderá ocorrer independentemente do tipo de pena ou quantum de pena aplicada, desde que o agente seja reincidente específico em crime de abuso de autoridade. Mesmo se o funcionário viesse a se aposentar dias após a sentença condenatória fundamentada que determina a perda do cargo por crime cometido na atividade, é legitima a cassação da sua aposentadoria. A autoridade administrativa tem o dever de proceder a demissão do servidor ou cassação da aposentadoria, independente da instauração de processo administrativo disciplinar, que será desnecessário, porque qualquer que seja a conclusão em que chegar o processo administrativo, não terá condão para modificar o decreto penal condenatório. Inclusive se o administrador não cumprir a decisão, ele pode ser responsabilizado criminalmente pelos delitos de prevaricação e/ou desobediência. Neste efeito, não se possui um prazo, é um efeito permanente, o agente não só perde o cargo, como também fica impossibilitado de exercer outro cargo, função pública ou mandato, somente por meio de reabilitação criminal, que poderá readquirir sua capacidade de ocupar novo cargo, função ou mandato, desde que seja por nova investidura, sendo vedado o restabelecimento da situação anterior (LIMA, 2020).

Greco e Cunha (2020), expressão entendimento contrário de que se no curso do processo penal, o a gente pedir exoneração ou renunciar ao mandato ou se demitir, nesse caso, não será possível o juiz determina a perda do cargo, função ou mandato, entretanto será possível, motivadamente, que inviabilize que o referido agente volte a exercer qualquer outro cargo, função pública ou mandato pelo período de 1 a 5 anos.

Ao contrário do pensamento dos autores apresentados acima, Portocarrero e Ferreira (2020) entendem, que o efeito do inciso II é cumulativo com o do inciso III, jamais podendo se operar de forma dissociada da perda de cargo.

4.5 Substituição das penas restritivas de liberdade por restritivas de direitos

De acordo com Portocarrero e Ferreira (2020), a atual lei prevê as penas restritivas de direito que poderão ser aplicadas na hipótese de substituição. Por tanto, não poderão ser aplicadas, quanto ao abuso de autoridade, outras penas restritivas de direito porventura trazidas pelo Código Penal ou outras Leis Extravagantes. Como a Lei de Abuso de Autoridade não previu os requisitos necessários para substituição, de acordo com o art. 12 do CP, se aplica os requisitos do CP quando a lei especifica for omissa. Então no que tange aos requisitos para a substituição, todavia, serão os mesmos do art. 44, CP:

 Art. 44. As penas restritivas de direitos são autônomas e substituem as privativas de liberdade, quando:

I aplicada pena privativa de liberdade não superior a quatro anos e o crime não for cometido com violência ou grave ameaça à pessoa ou, qualquer que seja a pena aplicada, se o crime for culposo;

II o réu não for reincidente em crime doloso; 

III a culpabilidade, os antecedentes, a conduta social e a personalidade do condenado, bem como os motivos e as circunstâncias indicarem que essa substituição seja suficiente (BRASIL, 1984).

As espécies de penas restritivas de liberdade prevista pela Lei 13.869/2019 são as seguintes:

Art. 5º As penas restritivas de direitos substitutivas das privativas de liberdade previstas nesta Lei são:

I - Prestação de serviços à comunidade ou a entidades públicas;

II - Suspensão do exercício do cargo, da função ou do mandato, pelo prazo de 1 (um) a 6 (seis) meses, com a perda dos vencimentos e das vantagens (BRASIL, 2019).

A prestação de serviços à comunidade ou entidades públicas somente, de acordo com o Código Penal, será aplicada às condenações superiores a 6 meses de privação de liberdade (art. 46, caput, CP), sendo que até os 6 meses, poderão ser aplicadas as penas substitutivas previstas no inciso I (prestação pecuniária), II (perda de bens e valores), V (interdição temporária de direitos) e VI (limitação de final e semana) do art. 43 do CP, além de multa. Existe uma discussão sobre esse piso de 6 meses continuar na Lei de Abuso de Autoridade ou não, uma corrente entende que o silencio da lei especial elimina o requisito, podendo ser aplicada a prestação de serviços à comunidade mesmo para condenações inferiores a 6 meses. Para outros, o silêncio obriga o aplicador observar a norma geral, isto é o limite mínimo de 6 meses para que se aplica a pena de prestação de serviços à comunidade. O entendimento de Lima (2020) e Greco e Cunha (2020) é pela primeira corrente.

As referidas penas restritivas de direito podem ser aplicadas autônoma ou cumulativamente, o juízo que fundamentadamente determinará, analisando as circunstâncias do caso concreto e as condições pessoais do sentenciado. O descumprimento injustificado da pena restritiva de liberdade fará com que a pena alternativa seja convertida em privativa de liberdade (GRECO E CUNHA, 2020).

4.6 Ilicitude penal, civil e administrativa

A tríplice sanção, a lei 13. 869/2019 não apenas trata da responsabilidade penal, mas também da responsabilidade administrativa e civil daquele que pratica o abuso de autoridade. Não se pode falar em bis in idem caso o a gente seja condenado nas três esferas pois são distintas as naturezas da sanção. Contudo, restando decidido na esfera penal que o fato existiu e que o agente foi o seu autor, essas questões não poderão ser rediscutidas na esfera civil e administrativa, como do contrário também, se na esfera penal ficar decidido pela inexistência do fato ou que o agente não é o autor. Da mesma forma, que se a sentença penal reconhecer a presença de alguma das excludentes de ilicitude, o juiz civil e a autoridade administrativa também estarão vinculados a essa decisão (PORTOCARRERO E FERREIRA, 2020).


5 CONCLUSÃO

Diante do exposto, conclui-se que a inovação na Lei de Abuso de Autoridade era realmente necessária, em razão da lei anterior se mostrar insuficiente para punir com efetividade um crime tão nefasto, além da lei está ultrapassada e com penas insignificantes, ela também possuía muitos tipos penais abertos e abstratos, o que causa insegurança jurídica, sendo assim, vários assuntos eram solidificados e definidos pela jurisprudência.

Conclui-se ainda que a necessidade acima relatada e a expectativas dos doutrinadores e dos operados do Direito em relação a uma Lei mais rigorosa e com tipos penais mais claros e concretos, não foi o motivo que impulsionou o Congresso Nacional a aprovar a nova Lei de Abuso de Autoridade. O que ficou demonstrado pelas circunstâncias do momento político em que a lei foi aprovada, é que a intenção do Legislativo era de promover uma retaliação ao Poder Judiciário, por causa da operação Lava Jato e de alguns políticos estarem sendo alvo da operação.

Mesmo não tendo os motivos ideias, para aprovação de uma lei, pelo menos se esperava uma lei completa, com penas mais rígidas, o que no ponto de vista de muitos doutrinadores não aconteceu, a lei atual ainda apresenta muitos termos abertos e de difícil precisão, o que prejudica a atuação dos operadores do Direito, torna o serviço da polícia complexo, porque a linha entre o estrito cumprimento do dever legal e o agir ilegal é muito tênue, por esse motivo conclui-se nesse trabalho que o elemento especifico finalidade especifica de prejudicam outrem ou beneficiar a si mesmo ou a terceiro, ou, ainda por mero capricho ou satisfação pessoal é imprescindível para que a lei não torne a atividade do Poder Judiciário totalmente invalida e perigosa do ponto de vista legal.

Conclui-se ainda que a solução mais pratica é moldar os limites da atual lei através da jurisprudência, pela interpretação dos nossos Ministros, é mais viável no plano fático do que uma nova alteração legislativa. Essa interpretação se faz necessária para dar mais clareza a alguns termos da lei que possuem mais de um significado e também para limitar o alcance da lei, já que é uma lei muito ampla, trazendo mais segurança jurídica e possibilitando que o Poder Judiciário e a polícia atuem efetividade sem medo de se enquadrar nos tipos penais da nova lei de abuso de autoridade, quando na verdade só estaria agindo de acordo com o seu dever.


6 REFERÊNCIAS

BRASIL. Lei nº 13.869, de 05 de setembro de 2019. Dispõe sobre Abuso de Autoridade. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2019/lei/L13869.htm. Acesso em: 01, julho, 2020.

CUNHA, Rogério Sanches, GRECO, Rogério. Abuso de Autoridade: Lei 13. 869/2019: comentada artigo por artigo/ Rogério Sanches Cunha, Rogério Greco 2. ed. rev., atual. e ampl. Salvador: Editora Juspodivm, 2020.

GIL, Antônio Carlos. Métodos e técnicas de pesquisa social / Antônio Carlos Gil 6. ed. São Paulo: Atlas, 2008.

HASSEMER, Winfried. Introdução aos fundamentos do direito penal. Porto Alegre: SA Fabris, 2005.

LIMA, Renato Brasileiro de. Nova Lei de Abuso de Autoridade / Renato Brasileiro de Lima Salvador: Editora JusPodivm, 2020.

LIMA, Renato Brasileiro de. Legislação Criminal Especial Comentada Volume Único / Renato Brasileiro de Lima 8. ed. rev., atual. e ampl. Salvador: Editora JusPodivm, 2020.

MEZZAROBA, Orides; MONTEIRO, Cláudia Servilha. Manual de metodologia da pesquisa no Direito 1. ed. São Paulo: Saraiva, 2004

NUCCI, Guilherme. A nova lei de abuso de autoridade. 2019. Disponível em: http://guilhermenucci.com.br/sem-categoria/a-nova-lei-de-abuso-de-autoridade. Acesso em: 14/09/2020.

PROTOCARRETO, Cláudia Barros, FERREIRA, Wilson Luiz Palermo. Leis Penais Extravagantes: Teoria, jurisprudência e questões comentadas / Cláudia Barros Portocarreto e Wilson Luiz Palermo Ferreira 5. ed. rev., atual. e ampl. Salvador: Ed. JusPodivm, 2020.

SILVA, E. L.; MENEZES, E. M. Metodologia da pesquisa e elaboração de dissertação. Florianópolis: UFSC/PPGEP/LED, 2000.

SOUZA, Renee do Ó. Comentários à nova lei de abuso de autoridade. Salvador: Editora JusPodivm, 2020.


Notas

  1. As ações diretas de inconstitucionalidade foram propostas pela Associação Nacional dos Auditores Fiscais de Tributos dos Municípios e Distrito Federal (Anafisco) (Adin n.º 6234), pela Associação dos Magistrados do Brasil (AMB) (Adin n.º 6236), outra pela Associação Nacional dos Membros do Ministério Público (CONAMP), Associação Nacional dos Procuradores do Trabalho (ANPT), e Associação Nacional dos Procuradores da República (ANPR) (Adin n.º 6238) e, por fim, pela Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe) (Adin n.º 6239).
  2. STJ, Corte Especial, APn 858/DF, Rel. Min. Maria Thereza de Assis Moura, j. 24/10/2018, DJe 21/11/2018.

ABSTRACT: The research aims to reflect on the real need for legislative innovation in the Law of Abuse of Authority and how the process of passing this law took place, which deals with such a serious problem and has been present in our system for many years and yet it is still a very current issue, mainly after the Operation Lava Jato that used several mechanisms to arrest important figures in the country's politics and for that reason, the power of the Judiciary started to be even more questioned and feared by some, who saw as a solution, the sudden approval of a Law that apparently sought to provide a brake, but that in reality was not so efficient in this point, since mechanisms were introduced to minimally protect the operators of the Right to answer for just being fulfilling their legal duty. The work will also address the ways in which Law operators can be held accountable administratively, civilly and criminally. A bibliographic research was carried out considering the contributions of authors such as Renato Brasileiro Lima (2020) and Rogério Greco and Rogério Sanches Cunha (2020) and Cláudia Barros Portocarrero and Wilson Luiz Palermo Ferreira (2020), among others, trying to emphasize that a new diploma normative about the matter was necessary, because the old Law nº 4.898 / 65 was no longer proving more effective and rigorous. It is concluded that despite the need for more current legislation, the new Law of Abuse of Authority is still abstract in some points, lacking clarity from the legislator and unable to efficiently solve some problems faced in the factual plan, therefore, the Law needs interpretation of jurisprudence.


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