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Universalismo x relativismo dos direitos humanos: um sincretismo possível?

Universalismo x relativismo dos direitos humanos: um sincretismo possível?

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O objetivo do artigo é tecer explicações sobre ambas as teses, bem como apontar as críticas comumente realizadas por seus defensores. Ao final, se espera indicar uma possível solução para o embate.

 

RESUMO

 

Com os regimes totalitários e o terror por estes provocado na Europa, sobretudo durante a Segunda Guerra Mundial, o homem percebeu a necessidade de um núcleo intangível de direitos e garantias universais, que impedissem que o ser humano voltasse a padecer de semelhantes violações. A Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948, veio atender à essa necessidade, afirmando a igualdade e a liberdade universais sob a égide da dignidade da pessoa humana, denominador comum de todos os seres humanos. Não obstante, ainda hoje se ampara o tratamento discriminatório e práticas desumanas são levadas a cabo em certos Estados e comunidades religiosas, que alegam a tradição e a religião como fonte legitimadora de sua cosmovisão e das atrocidades cometidas em seu nome. Nesse cenário, surge o embate entre o Universalismo e o Relativismo dos direitos humanos. O objetivo do artigo é tecer explicações sobre ambas as teses, bem como apontar as críticas comumente realizadas por seus defensores. Ao final, se espera indicar uma possível solução para o embate.

Palavras-chave: Direitos humanos. Universalismo. Relativismo. Religião. Liberdade.

 

 

1 INTRODUÇÃO

O objetivo do referido trabalho é desenvolver os principais aspectos atinentes aos direitos humanos, tais como sua origem e natureza, bem como a feição que lhes foi delineada na Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948, e a Declaração de Direitos Humanos de Viena, de 1993, além de analisar o atual embate entre o Universalismo e o Relativismo Cultural para a definição do conteúdo e do âmbito de incidência desses direitos.

Por fim, pretende-se expor as recentes ideias sobre as formas de superação desse entrave à universalização e internacionalização dos direitos humanos.

 

2 ORIGEM E NATUREZA DOS DIREITOS HUMANOS

Há grande controvérsia quanto à origem da ideia de direitos humanos, tanto do ponto de vista histórico como sob o aspecto filosófico ou cultural. A vasta literatura sobre o tema revela inúmeras tentativas de atribuí-la a uma determinada corrente filosófico-doutrinária, evento ou mesmo a um documento histórico. Assim, ao mesmo tempo em que há autores que pugnam pela sua origem bíblico-teológica, mediante a afirmação de que a inviolabilidade da dignidade humana decorre da semelhança humana com Deus, também há os que a veem na filosofia estoica e sua “noção ética de igualdade”, na Reforma Protestante e a defesa da liberdade de fé e religião e na Carta Magna de 1215, considerada fundamento dos direitos de liberdade dos ingleses (BIELEFELDT, 2000, p. 145-147).

Bielefeldt (2000, p. 144) observa que:

Como os direitos humanos não surgiram em uma terra de ninguém cultural, presume-se que sua gênese histórica, no Ocidente, possa ser encontrada, pelo menos parcialmente, em fontes religiosas, filosóficas e culturais da história do pensamento ocidental. De fato, é possível arrolar ideias emancipatórias, universalistas, igualitárias e críticas ao poder que, direta ou indiretamente, em tempos modernos, encontraram guarida nas demandas por direitos humanos.

adiante explanada, surgiram no período pós-guerra, quando as atrocidades perpetradas pelo nazismo conduziram à percepção da necessidade de um conteúdo existencial mínimo, de um “paradigma e referencial ético a orientar a ordem internacional contemporânea” (PIOVESAN, 2001, p. 2) e que impedisse que tais horrores voltassem a ocorrer. O que muitos autores apontam como antecedentes históricos e filosóficos dos direitos humanos são apenas ideias que, em virtude de seu caráter emancipatório, libertador e igualitário, permitem o estabelecimento de uma conexão com esses direitos, a partir de uma perspectiva moderna. Identificar nelas elementos de origem dos direitos humanos é não apenas um equívoco histórico-interpretativo, como conduz ao essencialismo cultural e à reivindicação exclusiva do ocidente sobre estes direitos – tendo em vista que tais ideias são eminentemente ocidentais –, o que contradiz seu pretendido caráter universal.

Não obstante, é inegável que os direitos humanos possuem uma história. O engodo a ser evitado, uma vez aceita referida conclusão, é o de que tal característica é suficiente para permitir a conclusão de que aqueles são originários de determinada civilização ou cultura, pois, assim entendendo, estar-se-ia na contramão de uma das principais intenções das Declarações de Direitos Humanos que foram elaboradas no período pós-guerra: a de que esses direitos formem um núcleo essencial e inviolável de proteção do ser humano tão só em razão de sua condição, e independentemente de quaisquer outros fatores associados à nacionalidade, etnia, religião, gênero ou classe social. Em acertada passagem, TOSI (2005, p. 9) afirma que:

Em primeiro lugar, os direitos humanos são fruto de uma história. Ainda que existam discordâncias sobre o início desta história, é possível reconstruir a trajetória dos direitos humanos na cultura ocidental tomando por base dois ângulos de análise: a história social que enfatiza os acontecimentos, lutas, revoluções e movimentos sociais, que promoveram os direitos humanos, e a história conceitual que se debruça sobre as doutrinas filosóficas, éticas, políticas, religiosas que influenciaram e foram influenciados pelos acontecimentos históricos.

Como já dito, aos direitos humanos são conferidas hodiernamente duas qualidades essenciais, consagradas na Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948, e reiteradas na Declaração de Direitos Humanos de Viena, de 1993, quais sejam, a universalidade e a indivisibilidade. Com fulcro em Piovesan (2001, p. 2), tem-se que a universalidade desses direitos se deve à sua abrangência universal, posto que a condição de pessoa humana é o único requisito para a sua titularidade e a proteção da dignidade que os fundamenta, enquanto a indivisibilidade se deve à consideração de formarem um todo unitário, já que “a garantia dos direitos civis e políticos é condição para a observância dos direitos sociais, econômicos e culturais e vice-versa. Quando um deles é violado, os demais também o são”. O que é objeto de acirradas controvérsias é a universalidade de que, afirmam seus defensores, estes se revestem, ao que se contrapõem os defensores do relativismo cultural.

3 UNIVERSALISMO CULTURAL E RELATIVISMO CULTURAL

O Universalismo Cultural é a proposta de estabelecimento de um padrão universal de direitos humanos, aplicável a todos os povos e culturas indistintamente em decorrência tão-somente da condição de pessoa humana, independentemente de considerações acerca da “raça, cor, sexo, língua, religião, opinião, origem nacional ou social, riqueza, nascimento, ou qualquer outra circunstância” (SILVA e PEREIRA, 2013).

A tese do Universalismo Cultural consiste na defesa de que todo ser humano possui um valor intrínseco, corolário justamente de sua condição de pessoa humana, que é inalienável e de aplicação universal. A dignidade que advém da existência humana, por si só, justifica a proteção conferida pelos direitos humanos, um conjunto de liberdades e garantias consideradas essenciais a todo indivíduo, e que, portanto, perpassa as diferentes culturas e modelos de organização e estruturação sociais. Se a dignidade humana é o aspecto comum, o vínculo entre todas os seres humanos, formando uma comunidade universal, então as diferenças geográficas, étnicas, políticas, econômicas e religiosas são dispensáveis para a delimitação de seu âmbito de incidência.

Sobre a dignidade da pessoa humana, cabe ressaltar ser inconteste sua posição na ordem jurídico-constitucional brasileira. Tendo sido erigido como um dos fundamentos da República (art. 1º, III, CR-88), o princípio é a pedra angular de todo o sistema normativo do país, sendo comum que se encontre a afirmação, em sede doutrinária, de que, no conflito entre princípios constitucionais – muitos dos quais preveem direitos fundamentais, equivalentes aos direitos humanos na ordem interna dos Estados-nações –, deve prevalecer o que indique a solução que melhor promova a dignidade da pessoa humana. Porém, como visto, não apenas na ordem jurídica interna a dignidade humana é fundamento de direitos. Também no Direito Internacional, como afirma Sarmento (2016, p. 78):

[…] tem-se igualmente reconhecido que a dignidade humana é o fundamento dos direitos humanos. É o que proclamam os preâmbulos dos dois mais importantes tratados sobre direitos humanos da ONU, o Pacto dos Direitos Civis e Políticos e o Pacto dos Direito Sociais Econômicos e Culturais, que afirmam, em textos idênticos, que tais direitos “decorrem da dignidade inerente à pessoa humana”.

Proposta das modernas declarações de direitos humanos do século XX, o Universalismo Cultural encontra forte resistência em alguns Estados devido à alegação de que são um conceito ocidental, além do individualismo e antropocentrismo de que estariam imbuídos os direitos humanos, expressão de uma cosmovisão ocidental que não é compartilhada por todos os povos (BIELEFELDT, 2000, p. 141). Nas regiões em que prevalecem uma visão teocêntrica do mundo, como é o caso dos países islâmicos, por exemplo, questiona-se a validade e a aplicação desses direitos, que amiúde entram em choque com os preceitos religiosos que governam essas sociedades.

De fato, Bielefeldt (2000, p. 142) aduz que:

Dificilmente pode-se contestar o fato de os direitos humanos [...] terem alcançado, historicamente, repercussão na Europa e na América do Norte, baseados na reivindicação política e jurídica por liberdade, igualdade e fraternidade numa perspectiva universalista. Esse fato tem por consequência que alguns traços específicos da história e da cultura ocidentais sejam essenciais para o reconhecimento desses direitos [...].

De fato, não se pode olvidar um forte argumento em favor da tese relativista: o de que os próprios direitos humanos ditos universais pelos defensores do Universalismo contém a liberdade de autodeterminação como um de seus mais caros princípios. Em tal ponto, encontram-se a liberdade política, religiosa, filosófica, de opção sexual, de opinião, de manifestação do pensamento, de informação, entre outras, que dão esteio aos relativistas no que tange à necessidade de respeito aos construtos culturais dos agrupamentos humanos (BENVENUTO, 2015, p. 123).

Se os direitos humanos forem considerados uma construção – e já defendia Hannah Arendt que estes não são um dado, mas um construído, uma invenção humana – ocidental, assim como os valores sobre os quais se erigem, dentre os quais exsurge a dignidade da pessoa humana, tem-se o risco de que sua proposta de universalização e internacionalização seja encarada como arma ideológica de um imperialismo cultural do ocidente. Essa é a visão compartilhada pelos defensores do denominado Relativismo Cultural.

O Relativismo Cultural rejeita a universalidade dos direitos humanos. Segundo essa corrente, a identidade e a diversidade culturais e os costumes dos povos devem ser respeitados no tocante ao especial modo de distribuição de direitos e liberdades individuais e coletivas que prevalece em determinado seio social. Na medida em que há culturas e sistemas morais distintos, é impossível o estabelecimento de “princípios morais de validade universal que comprometam todas as pessoas de uma mesma forma” (PIOVESAN, 2006 apud SILVA e PEREIRA, 2013). Em outros termos, “para os que aderem a esta posição, a cultura é a única fonte válida do direito e da moral, capaz de produzir seu próprio e particular entendimento sobre os direitos fundamentais” (SILVA e PEREIRA, 2013).

Delineando com clareza ímpar a tese em questão, leciona Piovesan (2013, p. 211) que:

Para os relativistas, a noção de direito está estritamente relacionada ao sistema político, econômico, cultural, social e moral vigente em determinada sociedade. Sob esse prisma, cada cultura possui seu próprio discurso acerca dos direitos fundamentais, que está relacionado às específicas circunstâncias culturais e históricas de cada sociedade. Nesse sentido, acreditam os relativistas, o pluralismo cultural impede a formação de uma moral universal, tornando-se necessário que se respeitem as diferenças culturais apresentadas por cada sociedade, bem como seu peculiar sistema moral. A título de exemplo, bastaria citar as diferenças de padrões morais e culturais entre o islamismo e o hinduísmo e o mundo ocidental, no que tange ao movimento de direitos humanos. Como ilustração, caberia mencionar a adoção da prática da clitorectomia e da mutilação feminina por muitas sociedades da cultura não ocidental.

O Relativismo Cultural também faz transparecer uma cosmovisão coletivista, uma vez que propugna pela leitura dos direitos humanos a partir das tradições culturais dos povos, que devem prevalecer quando contrários àqueles, ao contrário do Universalismo, radicado no individualismo que compreende cada ser humano como fim em si, dotado de valor intrínseco e que, portanto, exige tenha seus interesses preservados em face de arbitrariedades estatais ou imposições culturais. Afinal, poder-se-ia questionar a que nível a pretensão de resguardo de uma herança cultural e religiosa pode ser utilizada não para enriquecer a vida, mas para legitimar práticas discriminatórias e violatórias da dignidade humana, sobretudo as que impingem sofrimento ao homem. Nesse ponto, impossível não rememorar a sempre citada clitorectomia como canalizadora de tão acirrado debate. Apesar disso, para os relativistas, a universalidade dos direitos humanos nada mais é do que a expressão de odioso imperialismo cultural do modelo ocidental, repudiável, portanto.

A tese relativista encontra amparo, por exemplo, em Edmund Burke, citado por Bielefeldt (2000, p. 150-151). O filósofo irlandês acreditava que os direitos de liberdade seriam um direito de herança particular, transmitidos dentro de uma sociedade histórica concreta entre aqueles que vivem, viveram e ainda virão a viver. Não obstante, o Relativismo Cultural encontra relevância hodierna e importância prática quando se atenta para o fato de ser o principal argumento no mundo muçulmano para a inobservância dos direitos humanos.

No Islã, os direitos humanos são condicionados à Sharia, o Direito Islâmico fundado na tradição normativa extraída do Corão. Como se sabe, vigora nos países islâmicos uma cosmovisão teocêntrica: a religião informa todos os aspectos da convivência e as instituições sociais básicas, como o matrimônio e a constituição política. Essa influência deriva da crença de que o Corão, livro sagrado dos muçulmanos, é constituído de ordens divinas absolutas e inquestionáveis (SILVA e PEREIRA, 2013). A Sharia que, como já dito, baseia-se no Corão, seria então uma espécie de corpo de diretivas divinas, que contrariam padrões internacionais de direitos humanos em especial no que se refere à liberdade religiosa e à igualdade de direitos dos gêneros, mas também pela previsão de punições corporais (Bielefeldt, 2000, p. 161). A título de exemplo, enquanto às mulheres é vedado o casamento com homens não-muçulmanos, aos homens é permitido o casamento com mulheres de outras religiões, desde que monoteístas. A ambos é defeso, contudo, o casamento com ateus e politeístas. No que tange à liberdade religiosa, em alguns Estados o abandono do Islã e a conversão à outra religião ou ao ateísmo são punidos com a perda do poder familiar e a anulação do matrimônio (MAYER, 1991 apud BIELEFELDT, 2000, p. 162). Ademais, a Declaração dos Direitos Humanos no Islã, adotada no Cairo, em 1990, proíbe em seu décimo artigo o exercício de “qualquer forma de pressão sobre uma pessoa ou explorar sua pobreza ou ignorância para forçá-lo a mudar sua religião por outra ou pelo ateísmo”, o que na prática, embora não vede a mudança de religião, enfraquece a liberdade religiosa ao impedir qualquer atuação missionária nas comunidades islâmicas.

Uma das maiores críticas do Universalismo ao Relativismo é a afirmação de que a cultura e a religião seriam utilizadas como fatores de legitimação de práticas e costumes abusivos e violadores de direitos humanos, como os supracitados. Porém, tem-se como o maior exemplo a mutilação genital feminina, realizada em certos Estados sob a crença de que reduz o risco de infidelidade e o desejo sexual, ou para preservar a virgindade das meninas. Em alguns locais, à mutilação ainda segue a infibulação, consistente no fechamento do orifício genital por uma sutura ou pela introdução de anel ou colchete a fim de impedir relações sexuais (SILVA e PEREIRA, 2013).

4 A INSUFICIÊNCIA DE UM SINCRETISMO ENTRE O UNIVERSALISMO E O RELATIVISMO CULTURAIS

Conforme já mencionado, o fundamento dos relativistas para negar a validade universal dos direitos humanos é o respeito à diversidade cultural, cujo arrimo é a alegação não apenas do caráter ocidental desses direitos, como do antropocentrismo e individualismo neles patente (BIELEFELDT, 2000, p. 141). Por seu turno, os universalistas acreditam que todos os homens possuem uma dignidade que deriva de sua própria condição de ser humano, e que os direitos humanos, portanto, como corolário dessa dignidade, seriam inerentes a todos, independentemente de quaisquer circunstâncias.

Argumentos há, diversos, em defesa da compatibilidade entre os direitos humanos e as diversas culturas, sobretudo as do Oriente Médio. Bielefeldt (2000, p. 180), por exemplo, alega que:

[...] o pensamento relativo aos direitos humanos não forma um esquema de dedução, do qual se extraem a priori modelos concretos de legítima comunhão ou sociabilização, mas refere-se a contextos sociais que precisam ser interpretados criticamente e que agem reformadoramente, à luz da liberdade, da igualdade e da solidariedade. Não há um modelo padrão universal de família, baseado nos direitos humanos, nem é possível deduzir em detalhes as formas de organização de uma comunidade religiosa ou o modo de organização de uma sociedade democrática, baseado nesses direitos.

Contra o argumento de que tratar-se-ia os direitos humanos de um conceito ocidental, expressão de uma cosmovisão tipicamente europeia e norte-americana, o mesmo autor infere que, qualquer seja o ponto de vista de fundamentação do surgimento e desenvolvimento dos direitos humanos – sociológico, jurídico-institucional, ou de desenvolvimento histórico das ideias, por exemplo –, o certo é que, enquanto forem considerados uma conquista essencialmente ocidental, sua aplicação com fins de validade global deve ser encarada como ilusória ou como imperialista (2000, p. 142). Sob esse aspecto, sugere seja a origem ocidental desses direitos encarada como fato meramente histórico, desde que seu surgimento, de um ponto de vista político e jurídico, se deu na América do Norte e na Europa (2000, p. 158).

Nesse sentido, surge a proposta de Boaventura de Souza Santos (1997), citado por Flávia Piovesan (2006, p. 13):

Os direitos humanos têm que ser reconceptualizados como multiculturais. O multiculturalismo, tal como eu o entendo, é pré-condição de uma relação equilibrada e mutuamente potenciadora entre a competência global e a legitimidade local, que constituem os dois atributos de uma política contra-hegemônica de direitos humanos no nosso tempo.

O autor propõe o abandono do infrutífero debate oriundo das teses universalista e relativista, e o estabelecimento de um diálogo intercultural, para fins de criação de uma concepção multicultural de direitos humanos (SANTOS, 1997 apud PIOVESAN, 2006). Se mostra necessário, para a efetiva internacionalização e universalização desses direitos, ou seja, para a fixação de um padrão de direitos humanos de validade global, que sua percepção seja alterada, que se entenda que, não sendo possível atingir um consenso nem ao menos sobre o valor mais basilar desses direitos, que é o princípio da dignidade da pessoa humana, os grupos em conflito precisam reconhecer as lacunas de suas próprias concepções. Se universalistas continuarem tencionando a aceitação plena dos direitos humanos como concebidos nas Declarações do século XX, ou relativistas a sua cessão em prol de aspectos religiosos e culturais, o que estar-se-á fazendo é o embate e tentativa de imposição recíprocas de cosmovisões conflitantes, e não a comunicação necessária à efetiva universalização desses direitos.

Piovesan (2013, p. 213), com percuciência, lembra que:

A Declaração de Viena, adotada em 25 de junho de 1993, buscou responder a esse debate quando estabeleceu, em seu § 5º: “Todos os direitos humanos são universais, indivisíveis, interdependentes e inter-relacionados. A comunidade internacional deve tratar os direitos humanos globalmente, de maneira justa e equânime, com os mesmos parâmetros e com a mesma ênfase. As particularidades nacionais e regionais e bases históricas, culturais e religiosas devem ser consideradas, mas é obrigação dos Estados, independentemente de seu sistema político, econômico e cultural, promover e proteger todos os direitos humanos e liberdades fundamentais”69. Na avaliação de Antônio Augusto Cançado Trindade: “Compreendeu-se finalmente que a universalidade é enriquecida pela diversidade cultural, a qual jamais pode ser invocada para justificar a denegação ou violação dos direitos humanos”70.

A visão multiculturalista de Santos visa demonstrar que não há verdadeira incompatibilidade entre a universalidade dos direitos humanos e o Relativismo Cultural. Com rara felicidade, e compartilhando do multiculturalismo, Gugel (2014, p. 213-214) analisa o porquê da rejeição dos universalistas à tese relativista:

Para que se possa adentar no campo do multiculturalismo, antes de tudo é preciso abordar acerca da política do reconhecimento. A partir do século 18, o pensamento filosófico passou a mostrar que o reconhecimento está intimamente ligado à noção de identidade; melhor dizendo, o modo de cada ser humano sentir-se como tal, enquanto ser integrante de determinada cultura. Com a perspectiva do reconhecimento, observa-se que as pessoas podem reconhecer ou não a identidade de outro grupo, julgá-lo correto ou incorreto. Ocorre que, por exemplo, quando um grupo dominador julga incorreto o sistema de crenças e a dignidade do grupo dominado, não os respeita, enquanto o grupo dominado, ao ser depreciado, altera o julgamento sobre si mesmo, passa a sentir-se, consequentemente, inferior (deixa de acreditar na sua própria dignidade) e, por conseguinte, subjuga-se ou revolta-se contra aquele (Taylor, 1998, p. 45-46).

Para uma política do reconhecimento do ser humano, a partir da noção de identidade que perpassa as diferentes culturas, necessita-se esclarecer que existem capacidades humanas que são inerentes a essa condição (humana), independente da cultura. Ou seja, todo o ser humano possui “capacidade de pensar, raciocinar, utilizar a linguagem para comunicar-se, de escolher, de julgar, de sonhar, de imaginar, de imaginar projetos de uma vida plena, e de estabelecer relações com os seus semelhantes, pautadas em critérios morais”. Todas essas particularidades fazem parte do ser humano e o distinguem dos demais seres vivos e, por isso, ao serem comuns, pode-se afirmar que o ser humano pertence a uma comunidade universal. É evidente que em cada cultura as características suprarreferidas terão uma forma de tratamento diferenciada, contudo, não deixam de identificar o ser humano em si. Pode-se referir que isso forma o se denomina identidade humana (Barreto, 2010, p. 249-251). Como se observa, o conhecimento da identidade é importante para o ser humano, e, por isso, envolve esses diferentes graus de percepção, pois a identidade pode referir-se a uma característica que qualifica o ser humano como tal dentro de uma cultura, mas também pode identificá-lo como ser humano dentro da comunidade humana, atribuindo-lhe uma identidade universal.

É verdade, porém, que a obtenção de um consenso possa exigir concessões recíprocas dos que hoje adotam concepções discrepantes sobre a validade universal dos direitos humanos. Nesse sentido, Bielefeldt levanta a possibilidade de uma releitura da Sharia, do Direito Islâmico. Sobre a hipótese de uma reforma pragmática na Sharia, escreve Bielefeldt (2000, p. 170):

Mesmo na legislação referente ao matrimônio e à família, que é a parte central das normas jurídicas da Chária, certa flexibilidade é possível, para suplantar as diferenças concepcionais entre o direito islâmico e os modernos direitos humanos. James Norman Anderson apresenta inúmeros comprovantes disso em seu extenso estudo intitulado Law Reform in the Muslim World (Reforma da Lei no mundo islâmico) (1976). Sem aumentar formalmente a baixa idade para o casamento da mulher prevista na Chária, no Egito, por volta de 1920 estabeleceu-se que matrimônios com parceiras menores de idade não receberiam registro civil. Dessa forma, em caso de posterior discussão jurídica, a família da menor não encontra amparo legal algum. Isso deve desestimular os casamentos precoces [...]. O direito de família osmânico de 1917 oferece outro exemplo para demonstrar que é possível haver reformas tendentes a melhorar a posição jurídica da mulher, sem haver ruptura formal com a Chária. Através dele, as cortes foram instruídas a observar a inclusão de cláusulas facultativas nos contratos de casamento como, por exemplo, a que assegura à esposa o direito de requerer o divórcio em caso de o marido casar-se com outra mulher.

Não obstante, pensa-se que não há necessidade de tanto. A universalidade dos direitos humanos não precisa vir à custa do respeito à cultura, à religião e à moral de um determinado povo, ou mesmo de uma “releitura” destas, que nada mais seria do que, justamente, uma sugestão decorrente de uma impossibilidade identificação e, por conseguinte, de reconhecimento da cultura alheia.

A pluralidade de valores, costumes e crenças não constitui óbice à garantia dos direitos humanos a todos os povos, porquanto, conforme Barreto (2010, p. 239-240 apud Gugel, 2014, p. 215), “existem necessidades que são iguais em todas as culturas, haja vista que a natureza humana impera e identifica os outros como seus semelhantes”. Afinal, como conclui Gugel (2014, p. 215), “os seres humanos pertencem à comunidade humana. O que pode ser diferente é o sistema de crenças, ou seja, o modo como determinado fato é valorizado pela comunidade”.

5 CONCLUSÃO

O dissídio hoje existente entre as visões universalista e relativista dos direitos humanos é de superação necessária para que se estabeleça um padrão universal de direitos humanos, que transcenda as diferentes culturas, costumes e religiões sem que com estas entre em conflito. Se as práticas de uma determinada comunidade histórica são essenciais para a conservação de sua própria identidade, também o é o respeito ao ser humano, independentemente de quaisquer circunstâncias pessoais ou do meio em que se encontre.

De fato, não há justificativa bastante para práticas como a mutilação genital feminina, que inflige inenarrável dor e sofrimento às mulheres a ela submetidas. Impende oportunizar a todos o conhecimento necessário para o exercício de seu livre-arbítrio, conscientizar todos os povos de formas de vida outras que não as que permitem a violação da integridade física e moral do ser humano.

 

REFERÊNCIAS

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BIELEFELDT, Heiner. Filosofia dos Direitos Humanos. São Leopoldo: Editora Unisinos, 2000.

TESSER GUGEL, Gabrielle. O DIÁLOGO INTERCULTURAL: UNIVERSALISMO DOS DIREITOS HUMANOS PARA ALÉM DO RELATIVISMO CULTURAL. Revista Direitos Humanos e Democracia, v. 3, n. 5, p. 210-234, 23 dez. 2014.

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SARMENTO, Daniel. Dignidade da pessoa humana: conteúdo, trajetórias e metodologia. Belo Horizonte: Fórum, 2016.

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