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Ética e controle

Ética e controle

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A relação entre ética e controle é anunciada como novo paradigma, na medida em que se faz mais presente, no desenvolvimento das funções das Cortes de Contas, a permanente cobrança por valores como austeridade e exemplo de conduta.

Sumário: 1 Os valores tutelados pelo controle - 1.1 Legitimidade - 1.2 Economicidade - 1.3.Probidade administrativa e moralidade - 1.4 Agentes de controle - 2 Ética no julgamento pelo controle - 3 Exemplo e ação pedagógica do controle


            A relação entre ética e controle vem sendo anunciada como um novo paradigma de ação, na medida em que se faz mais presente, no desenvolvimento das funções das Cortes de Contas, a permanente cobrança da sociedade por valores como austeridade e exemplo de conduta.

            Há uma explicação lógica para a repercussão das exigências de valores éticos, porque o Tribunal de Contas trabalha no terreno que se expande além da fronteira da legalidade, alcançando a necessidade de aferição do ato legal, sob o aspecto da legitimidade e economicidade. Não é raro o uso de valores éticos na aferição da conduta do administrador público.

            Interessa notar que o desenvolvimento do tema ética e controle tem exigido a difusão de códigos, como que retornando à antiga e confusa interação entre ética (moral) e direito (leis).1

            As acepções de controle próximas às da atualidade, fiscalizando agentes da administração, nascem inseridas no Estado, nos principados, e se destinam a verificar se os súditos dos governantes realizam adequadamente o mister. Por esse motivo, revela a história, a gênese de controle é deturpada, vez que destinada a fiscalizar aqueles que não merecem a confiança direta do soberano, pessoas de menor importância na administração dos negócios do Rei.

            Estabelecido um conjunto de regras na ciência jurídica tão cônscia de sua autonomia como ciência pura e distante da moral, surgem duas questões no seu âmago, irredutível para a função do controle, cujo direito já estava assegurado, inclusive com feições de direito fundamental.

            A primeira delas é que as leis e normas não poderiam regular o amplo espectro de funções do Estado: por mais que avance a regulamentação no sentido de limitar a vontade do administrador, sempre restará um grande espaço que será regulado pela ética. Montesquieu alerta que "a degradação moral já matou muitos Estados" exatamente pela impossibilidade jurídica de enfeixar todas as ações possíveis e imagináveis no âmbito da lei.

            Pouco a pouco, encontrando-se já assentada a autonomia do Direito como ciência, vai se desenvolvendo o esforço pela tutela da ética, da moral, da probidade e, com tantas outras expressões, como será visto.

            No Direito Administrativo, portanto, inclusive com repercussão na esfera penal, a tutela da ética se faz com extrema intensidade.2 Anulam-se atos lesivos à moralidade, integram-se normas com base no princípio da probidade administrativa, pune-se o agente por violar o Código de Ética do Servidor Público.3

            Sobre a segunda questão, relacionando ética e controle, cabe recordar interessante passagem de um dos mais emblemáticos conselheiros: Maquiavel. No seu opúsculo sobre o poder, em aconselhamento ao príncipe para a instalação de um novo principado, assinala que: "Aquele que se dedica a tal empreendimento tem por inimigo todos quantos se beneficiavam das instituições antigas, e só acha tíbios

            defensores naqueles a quem seriam úteis as novas." Impossível não deixar de estabelecer um paralelo,guardadas as devidas proporções, com o exercício da função de controle num país em desenvolvimento.

            Os que gerem a coisa pública, antigos "detentores do poder", não querem o controle; aqueles que seriam beneficiados mostram-se tíbios nessa exigência: seja porque cuidam de forma egoística da própria vida, sem viverem a extensão do termo res publicae, seja por temerem a retaliação dos poderosos. Assim, como operacionalizar a feição ética do controle?

            Só o poder controla e limita o poder. Todo poder sem limites não poderá ser legítimo. Dos pensamentos de Montesquieu, usualmente referidos, estruturou-se o sistema de checks and balances, definindo-se de permeio entre os poderes delineados por aquele filósofo para assegurar o efetivo comando do dever de prestar contas. Nascia assim um órgão com feições diferenciadas, encarregado de fiscalizar, uma auditoria geral, um Tribunal de Contas. No outro segmento das garantias, forjavam-se os instrumentos jurídicos de defesa contra o abuso de direito em relação ao particular, assegurando-se os chamados direitos de primeira geração. Mais tarde, o ordenamento jurídico — Constituição do México (1917), da Alemanha de Weimar (1919) — vai definir nova categoria de direitos, de segunda geração, consistentes numa prestação de conteúdo obrigacional positiva, até que exsurgem os direitos difusos, sem titularidade determinada, destinados ao último grau de proteção.

            Poucos se aperceberam, mas o Direito Administrativo acolheu a ética como bem jurídico a ser tutelado e a assegurou definitivamente no seu arcabouço. Só no plano federal, entre leis e decretos, temos 256 ocorrências das palavras ética, moral, probidade e improbidade. Presentes nas normas as duas questões aqui lançadas: a primeira, o inegável fato de que a norma não conseguiu prever todos os possíveis fatos que poderiam ocorrer na atividade administrativa; a segunda, a definição de uma titularidade para o exercício do direito, em caráter subsidiário à iniciativa do cidadão.

            Há pelo menos três inter-relações entre a atividade de controle e a ética. A primeira é dirigida aos fundamentos do controle; a segunda, aos agentes do controle; a terceira, ao julgamento.


1 Os valores tutelados pelo controle

            Diferentemente do Poder Judiciário, que está adstrito ao exame da legalidade, o controle da Administração Pública fica mais distante das operações de subsunções lógicas da lei. Julga além da lei,4 porque tutela outros valores que dão suporte à gerência administrativa.

            Nesse julgamento, tanto o suporte legal pode ser exigência, pressuposto - por exemplo, quando o ato, embora revestido de legalidade, não atende ao parâmetro de legitimidade -, ou não ser essencial, como ocorre com a chamada falha estrutural.5

            Os vetores interferentes na formação desse juízo têm por centro da constelação, intimamente amalgamados, a moral (ethos) e a Justiça (justitia). Como uma lenda, assumindo, em cada momento, um personagem, um matiz diferente de uma mesma luz.

            A Constituição alemã em vigor,6 como parece pretender a brasileira, dá ênfase à regularidade, expressão também sem conteúdo jurídico predefinido a indicar a interação com a ética.

            Foi-se o tempo em que o julgamento das contas anuais limitava-se a verificar se os gastos efetivavam-se de acordo com a lei orçamentária anual; observavam os créditos; assinavam as despesas. No novo milênio, tal

            como já prevê a atual Lei Orgânica do Tribunal de Contas da União e de todas as esferas de governo, os Tribunais de Contas analisam a eficiência dos órgãos jurisdicionados. Basta ver o que estabelece, v.g.:

            art. 5º: definida a jurisdição, determina sua abrangência: representantes da União ou do Poder Público na Assembléia Geral das empresas estatais e sociedades anônimas, de cujo capital a União ou o Poder Público participem, solidariamente, com os membros dos Conselhos Fiscal e de Administração, os quais respondem pela prática de atos de gestão ruinosa ou liberalidade à custa das respectivas sociedades;

            art. 49: determina a avaliação das metas previstas no Plano Plurianual, a execução dos programas de governo e dos orçamentos da União e a comprovação da legalidade e avaliação dos resultados quanto à eficácia e à eficiência da gestão orçamentária, financeira e patrimonial, nos órgãos e entidades da Administração Federal, bem como da aplicação de recursos públicos por entidades de Direito Privado;

            art. 58: autoriza a aplicar multa pela prática de ato de gestão ilegítimo ou antieconômico, de que resulte injustificado dano ao Erário.

            Por esse motivo, no mundo inteiro, as entidades de fiscalização externa caminham por abandonar o controle contábil e buscar o controle gerencial, que não se limita a dizer se a despesa foi realizada de acordo com os critérios de validade da contabilidade, mas define a contabilidade analítica de custos e busca de resultados efetivos. Luz para o princípio da eficiência, colaborando com o processo decisório de políticas públicas, como o controle tradicionalmente estabelece o feedback para o sistema administrativo, o redirecionamento das ações programadas.

            Essa ambiciosa avaliação pressupõe o conhecimento, pelo controle, num hospital, por exemplo, do custo dos medicamentos e equipamentos, da equipe, da folha de pagamentos, das compras e serviços contratados, da aplicação da dotação orçamentária, de geração de receita, de êxitos em tratamentos médicos. Isso é controle!

            Assim, se o controle avançar no campo da discricionariedade, pode contribuir decisivamente na estruturação de um modelo capaz de açambarcar as expectativas de controle da corrupção. Levado adiante, por que não considerar que compete também à função de controle a fiscalização do fluxo de capitais especulativos, da política monetária, das alterações cambiais, de empréstimos internacionais?

            Todos os anos, o Tribunal de Contas da União progride no controle dos programas de governo, e lança novos paradigmas, sem olvidar as atuais e menores competências.

            O código de ética e padrões de conduta profissional dos administradores da dívida pública7 também definiu condutas vedadas, entre elas a de receber presentes e utilizar informações privilegiadas para qualquer fim, em benefício próprio ou de terceiro.

            Esse amplo elenco de ações pretendidas, possíveis ou já efetivadas, revela os valores éticos a definir o campo de atuação do controle, para além da lei, mas em absoluta consonância com as pretensões da sociedade de controlar o poder discricionário do administrador público.

            1.1 Legitimidade

            A Constituição Federal emprega diferentemente os termos legalidade e legitimidade, definindo, a toda evidência, a necessidade de que sejam distinguidos.

            Manoel Gonçalves Ferreira Filho esclarece que a legitimidade diz respeito à substância do ato, revelando insuficiente ter sido adotada a forma prevista ou não de defesa em lei para exigir-se o ajustamento da substância à lei, assim como aos princípios da boa administração.8

            Tem a tentativa de conceito o mérito de destacar a existência de um valor não implícito na lei, embora como a imensa maioria não o situe na esfera do controle e da ética, perdendo, pois, a validade da especialização.

            Fernando Augusto Mello Guimarães9 e Ricardo Lobo Torres assinalam que o aspecto da legitimidade engloba os princípios orçamentários e financeiros, a apreciação de justiça, a apuração da relação custo/benefício e a segurança jurídica.

            Marcos Vinícios Vilaça, situando o tema na esfera do controle, assinala que a legitimidade apresenta duas acepções distintas: a primeira, formal, significa que as contas estão em conformidade com a lei; a segunda, substantiva, significa o bom uso dos recursos públicos, o uso socialmente desejado, tecnicamente factível e economicamente eficiente.10

            Foi preciso mesmo a experiência do controle para trazer essa dupla acepção aos nominados doutrinadores, no sentido de que há uma correlação para além da estrita legalidade, quando se refere a recursos públicos e sua regular aplicação. A legitimidade no plano jurídico é o atributo do ato que se conforma com a pretensão da lei, guarda conformidade com a forma, com o seu objetivo. Quando, porém, na esfera particular do controle, sem incorrer numa transladação de sentido, o termo vivifica o componente subjacente, a origem dos recursos públicos pode com esta se compatibilizar. Desse modo, não é legítimo o uso de recurso público que não vise à preservação do elemento intrínseco à origem, ou seja, que não emprega a finalidade pública. É o caso do gasto feito por um órgão em coquetel para o qual está prevista dotação orçamentária: legal, mas não legítimo. Diversamente, se o mesmo ocorre numa embaixada, que tem em sua natureza a atividade de representação, o fato pode ser legítimo.

            Compreende-se porque a legitimidade assume a feição ética, o agir virtuoso, a efetivação do bem e da Justiça.

            Sob o aspecto do controle a apreciação deontológica da legitimidade, encontra-se em íntima afinação com os princípios da razoabilidade — para alguns autores —, da proporcionalidade, da supremacia do interesse público sobre o privado.

            1.2 Economicidade

            Como regra, no direito, o exame da conveniência e da oportunidade do ato administrativo, terreno do mérito, é de competência exclusiva da autoridade administrativa. Nele não pode penetrar o judiciário.11 Por força de expressa previsão constitucional, porém, o Tribunal de Contas pode fazer o exame de mérito, apreciando inclusive a relação custo/benefício.

            É corolário da lição dos gregos de éthos: a distribuição eqüitativa ou proporcional do bem constitui o justo.

            No caso em que a comunidade define o uso dos recursos públicos, é preciso que ele seja adequado, maximizando a relação custo/benefício. Referindo-se à ética do homem público, assinala Josaphat Marinho:

            "É a forma adequada de proceder, que vale como padrão para todo o corpo social."12

            Assim como na avaliação da legitimidade, os Tribunais de Contas aferem a correlação entre a origem e o destino, na economicidade aferem a relação entre o custo da medida e o benefício coletivo. O conteúdo ético seria enfraquecido, verdadeiramente empobrecido, se a Constituição Federal estabelecesse a aferição do menor custo ou, isoladamente, do maior benefício. No entanto, o estatuto político usou o termo mais nobre e compatível com a ética e o conteúdo axiológico da economia. Isso porque a aferição pretendida pelo constituinte não repousa necessariamente no aspecto limitado da economia. Deve-se recordar aqui um fato curioso ocorrido em Curitiba no qual uma autoridade administrativa provou que, sob o aspecto econômico, foi vantajosa a construção de um viaduto, computando o número de óbitos e acidentes e inferindo a receita tributária que deixaria de ser arrecadada. Tal perspectiva não deve ser parâmetro de conduta, valendo pela curiosidade o caso, pois as políticas públicas têm um retorno benefício sem expressão econômica, como é o caso da construção de uma calçada.

            A ética é orientada para exercitar a atividade mais alta que o "raciocínio possa consagrar-se, que é a theoria ou contemplação das realidades".13 A aplicação do princípio da economicidade só tem sentido nessa

            percepção do ethos, concebida pela abstração entre as possíveis alternativas existentes à época do fato e a escolhida. Releva obtemperar, porém, que em homenagem ao princípio da segregação das funções, o controlador não pode substituir a vontade do administrador,14 especialmente quando as opções postas no processo decisório têm todas em tese ou melhor, sobre a contingência do acaso, a que se referem os gregos (tyche), iguais riscos e/ou semelhantes vantagens, benefícios. Nesse caso, a aferição da economicidade, no processo de julgamento, deve dirigir-se apenas à correção futura do ato.

            1.3 Probidade administrativa e moralidade

            Celso Antônio Bandeira de Mello15 assere que, de acordo com o princípio da moralidade:

            [...] a Administração e seus agentes têm de atuar na conformidade de princípios éticos. Violálos implicará violação ao próprio Direito, configurando ilicitude que assujeita a conduta viciada à invalidação, porquanto tal princípio assumiu foros de pauta jurídica, na conformidade do art. 37da Constituição.

            Como foi assinalado anteriormente, a grande marca para o Direito Administrativo foi exatamente ter tutelado juridicamente o valor ética, transferindo-o para a órbita da validade do ato, impondo-o como pedra angular a sustentar a validade dos atos administrativos. Corresponde ao outro extremo da evolução de uma idéia: o Direito, para firmar-se como ciência, divorcia-se da moral; autônomo, com ela se reconcilia e a açambarca em sua estrutura como elemento integrador da validade da conduta.

            O problema seguinte à tutela da ética, promovida com estatura constitucional, é sua aferição. Diogenes Gasparini, referindo-se a Maurice Hauriou, após lembrar que o mesmo foi o sistematizador desse princípio, esclarece que o mesmo propõe seja extraído do "conjunto de regras que regulam o agir da Administração Pública; tira-se da boa e útil disciplina interna da Administração Pública".16

            Como explicação, o critério de Hauriou parece satisfatório; como elemento para definir a validade, para controlar a conduta, não. Klitgaard, em aprofundado estudo,17 observa que o contágio pela corrupção pode ser uma questão cultural, hipótese em que "o agir da Administração Pública" não estaria compatível com a moralidade.

            É novamente o precursor da ética, Aristóteles, na preciosa síntese de Henrique C. L. Vaz, que responde: o agir ético, tanto da comunidade como do indivíduo, compreendendo os costumes e hábitos, exprime a nossa situação fundamental como seres que habitam a morada do ethos. O agir é voltado a um fim, o que significa que é movido por razões, mas o fim na lição de Aristóteles é sempre o bem, aparente ou real, ou seja, apresenta-se sempre sob a razão do melhor.

            Daí que a exteriorização das razões do agir do administrador público integra a ética da conduta, constituindo-se em elemento fundamental para a atividade do controle. A produção, a posteriori da motivação — que ocorre porque os órgãos de controle devem garantir o primado da ampla defesa —, não é de todo suficiente para a aferição da conduta. Somente o será a prévia motivação, dever ao qual estão jungidos todos os administradores na prática do ato.

            É nessa concepção da theoria, extraída da contemplação e da busca racional do bem que pode ser aferida, sempre com o esforço da abstração, a moralidade administrativa para a efetivação do controle.

            D´´Entrève18 esclarece que a recuperação do liame entre legalidade e legitimidade, sob bases diferentes, deve ocorrer a partir do abandono da noção formal da primeira, visando à efetivação das condições necessárias para o desenvolvimento da dignidade humana, portanto, associada à moralidade.

            1.4 Agentes de controle

            A relação entre ética e controle também ilumina a situação dos agentes de controle externo. Não poderia ser diferente, até pelo fundamento lógico, eis que encarregados de formar juízo de valor sobre a moralidade dos atos praticados pela Administração Pública, sem ficarem restritos às fronteiras da legalidade.

            Para os membros julgadores de contas, a Constituição Federal exige, entre outros, o atributo da "idoneidade moral e reputação ilibada".

            Marcos Valério de Araújo, em estudo de direito comparado, assinala que, em alguns países, do candidato ao cargo máximo das entidades de fiscalização superior _ EFS _ é exigida conduta moral inquestionável, "o que significa nunca ter se envolvido em qualquer escândalo".19

            Tema que desperta debates é a inserção da ética enquanto componente dos procedimentos e critérios da escolha.

            Há diversos processos, cada um com suas vantagens e desvantagens.

            O Brasil, em particular, caminha numa história lenta, mas firme, rumo ao aperfeiçoamento, sendo possível inferir a inevitável concretização de novos critérios num prazo razoável, vez que reclamada por vários setores e freqüente nas iniciativas de parlamentares do Congresso Nacional.

            O elemento ético pode ser considerado no processo de escolha de dois modos: primeiro, a reflexão sobre a ética do próprio processo; segundo, como critério a ser aferido em relação à conduta do candidato ao cargo.


2 Ética no julgamento pelo controle

            A terceira inter-relação entre ética e controle diz respeito à aplicação de preceitos éticos como critério de julgamento.

            Os órgãos de controle têm uma função essencial na manutenção dos valores éticos de uma sociedade e podem alavancar a restauração dos mais nobres valores da cultura moral, inclusive servindo-se da indignação popular para colocá-la a serviço da dignidade.

            Nesse árido tema, mais do que em outros, a parcimônia e o equilíbrio de espírito se impõem.


3 Exemplo e ação pedagógica do controle

            Há um tipo específico de agentes sujeitos à ação do controle: agentes públicos ou particulares que, por lei ou contrato, passaram a ser responsáveis pela gestão de recursos públicos. São, pois, alvos permanentes da atenção do povo, mesmo onde a cultura da virtude não tem plena ressonância.

            E quel che fa il signore fanno poi molti, che nel signore son tutti gli occhi volti.20

            A força do exemplo, do mau exemplo, foi considerada por Maquiavel, nessa oração apontada numa referência à conduta corrupta de Lorenzo de Medici. Para esse estudioso do poder, o pior de todos os pecados seria a corrupção dos governantes pelo mau exemplo que dão à sociedade.

            É nesse sentido que assere Montesquieu à expressão anteriormente citada: "A degradação moral já matou muitos Estados",21 revelando que a violação da ética pelos governantes é um mal da civilização e um mal contagiante.

            A corrupção não beneficia a todos, mas a todos afeta, porque a uns espolia e de outros retira a tranqüilidade e a qualidade de vida pela miséria que, expandindo-se, circunda a esfera dos que dela sobrevivem. É a vantagem de poucos sobre muitos. Por isso, mais cedo ou mais tarde, a civilização corrompida entra em crise. Já foi dito, e com muita propriedade, que "insurreições armadas só eclodem quando malogram os esforços da política, ou falta coragem aos juízes" e que "a derrubada das tiranias, o mais das vezes, exige o tributo do sangue. Governos corruptos caem acossados pela voz irada do povo, e, sempre, pela ação das leis onde há democracia e instrumentos institucionais."22

            Por esse motivo, ao zelar pela ética na gestão pública, em mero cumprimento ao dever, no Brasil, os Tribunais de Contas contribuem para a justiça, para o bem, para a paz social.

            A corrupção não mais pode ser considerada nos restritos campos da criminologia. Antes, é no campo da moral, da filosofia, da antropologia cultural, que deve ser analisada e compreendida para ser combatida.

            Não existe um corrupto isolado, mas uma societas sceleris.23 Quanto mais elevado o posicionamento social, econômico ou hierárquico do portador da doença - corrupção -, mais larga a amplitude do seu contágio, mais nefastos seus efeitos, mais miséria semeia.

            A experiência revela que as maiores expressões desse mal, os doentes mais enfermos, nem sempre se encontram entre os menos privilegiados pela sorte ou pela intelectualidade.

            Ao contrário, e por isso mesmo exige-se das estruturas de controle a percepção ética de que a busca da apenação é um dever inexorável da atividade.

            A postura pedagógica da ação do controle, tantas vezes enaltecida como finalidade mais nobre do controle, tem espaço, tempo e destinatário determinado. É possível sustentar que o efeito pedagógico também existe no combate à impunidade.

            A crença na capacidade do controle de orientar e do controlado de aprender é a percepção de que essa atividade — controle — constitui apenas uma etapa do processo decisório, a última que completa a ação, a primeira que redireciona os esforços. Por isso, a punição somente se evita quando ausente a má-fé, sendo possível e factível uma mudança. O ethos que aponta o caminho do bem; o controlador que tem motivo para ter esperança; o controlado com a vontade do aprimoramento; cada qual, a seu modo, com a percepção do

            interesse público e da sua menor dimensão frente ao todo.

            Mas há também a pedagogia do castigo, da punição. Aqui, um estreito caminho entre a possibilidade de resgatar a credibilidade de todos, pela punição dos que a merecem, ou o equívoco de aceitar o clamor público e satisfazê-lo, contribuindo para uma vingança coletiva.

            Se o controle tem o dever de prestar contas à sociedade, não é menos certo que deva julgar pela serenidade, de forma eqüidistante das paixões e sem medo de reprimendas quando efetiva a Justiça, mesmo que a muitos contrarie. Mahatma Ghandi ensina que na aplicação do "olho por olho" todos acabarão cegos, numa alusão ao resultado prático da vingança.

            É preciso, porém, não ignorar que a indignação da comunidade deve servir aos propósitos de restaurar a dignidade, o ethos coletivo.

            A proposta de aplicação da ética ao controle deve repousar em vertentes que compõem um mesmo todo. O rigor competente na apuração, a firmeza e a adequada fundamentação da acusação, a serenidade na garantia da defesa, o equilíbrio, a maturidade e a sabedoria no julgamento e a precisão na dosimetria da pena. Que tanto sirva ela como castigo que pelo exemplo educa a todos, quanto não sirva de instrumento de vingança destrutiva.

            Esse ciclo vital de controle, porém, resta absolutamente vazio de significado quando não se efetiva opportunus tempore. O tempo é serventia crucial da estratégia: tempo é prazo e oportunidade. Renato Jorge Brown Ribeiro revela que, em pesquisa promovida pelo Tribunal de Contas da União, "o problema da tempestividade é considerado crucial" pelos pesquisados.24

            Ética também pressupõe ajustamento entre o idealizado e o concreto. Pressupõe conhecimento da raiz, da causa, da origem, porque só pelos efeitos não se julga com sabedoria. Calheiros Bonfim assinala que "acossado pela fome, o homem sobrepõe o instinto de sobrevivência à razão, não respeita leis, costumes, moral, nem se detém diante de obstáculos materiais".25 Guardadas as devidas proporções, não se evidencia Justiça quando a apenação dirige-se para os que, submetidos a um esforço invencível e irrecusável, administraram com o que tinham, vivenciaram a carência dos organismos públicos mais pobres, sobrelevaram o espírito para fazer frente às necessidades da comunidade e do princípio da continuidade do serviço público. Não se podem julgar todas as conseqüências de fatos iguais pela mesma pena, quando lhe estão subjacentes causas diferentes. É preciso não se deixar seduzir pela igualdade dos resultados quando a semelhança desaparece pela investigação prudente. Essa é a forma de vivificar a Justiça muito mais do que com o emprego da estrita legalidade, que no plano ocidental valoriza efeitos antes do contexto. O éthos iter para tutum,26 flexível para percorrer com sabedoria e impor com rigor, até extremo rigor, que considera boa-fé e honestidade pressupostos da gestão pública e não qualidades excludentes de responsabilidade, que guia um combate efetivo e sem tréguas pela virtude, ao mesmo tempo em que pode esculpir em monólitos o caminho da Justiça que consome esforço e energia para o bem, permitindo que seja admitido descumprir a lei por desconhecimento, que uma falha estrutural27 possa ser invencível ao esforço humano.

            Por mais cépticos que se oponham a essa aquarela, no sentido de que é o controle a porta mais eficaz para a reconstrução das virtudes e da ética, é fato inconteste que existe um poderoso instrumental jurídico à espera de bons operadores do direito, considerado este complementado com a moral, com capacidade para fazer desta última baluarte e critério de julgamento.

            Essa é a virtude da coragem de julgamento, que cala canhões, ressuscita a Justiça, ensina pelo exemplo, orienta pela oportunidade, abate a letargia, vivifica a temperança e resgata, na crise, o caminho do bem.


Notas

            1 Na relação entre moral e direito, aproveitando a lição de Paulo Dourado de Gusmão podemos distinguir, de forma muito singela, para fins acadêmicos, uma ampla corrente de pensamentos com seus extremos e uma infinidade de matizes: — os que reconhecem uma influência mínima da ética sobre o direito, como Jellinek e Wundt; — os que, no outro extremo, pecam pelo excesso, considerando como a moral sancionada pelo poder público, ou como a moral codificada, na perspectiva de Maggiore, ou como o máximo ético, no pensamento de Schmoller. GUSMÃO, Paulo Dourado de. 4. ed. Filosofia do Direito. Rio de Janeiro: Forense, 1998, p. 63. Mais recentemente, entre outros, Jürgen Habermas ocupou-se de resolver a intricada questão de em que sentido e de que maneira podem ser fundamentados os mandamentos e normas morais. HABERMAS, Jürgen. Consciência Moral e Agir Comunicativo. Trad. Guido A. de Almeida. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1989, p. 78.

            2 Ruppert assinala que entre a regra jurídica e a moral não há diferença de domínio, de natureza e de fim. Aliás não pode mesmo haver "porque direito deve realizar a Justiça e a idéia de justo é uma idéia moral". Exemplifica a íntima relação com as obrigações do direito civil, como a teoria contratual que nega proteção ao sujeito que agiu de má-fé, com malícia ou fraude; com o princípio do enriquecimento sem causa, e outros. Na doutrina pátria, encontram-se iguais representantes como Washington de Barros Monteiro, Sílvio Rodrigues e Pontes de Miranda.

            3 BRASIL. Decreto nº 1.171, de 22 de junho de 1994. Aprova o Código de Ética Profissional do Servidor Público Civil do Poder Executivo Federal. Diário Oficial da União, Poder Executivo, Brasília, DF, 23 jun. 1994.

            4 FERNANDES, Jorge Ulisses Jacoby: Julgar além da Lei. Correio Braziliense, 14 maio 1997. Suplemento de Direito e Justiça, p. 4; Revista do Tribunal de Contas do Estado de Minas Gerais, n. 3, p. 75/81; Revista do Tribunal de Contas do Estado do Rio Grande do Sul, ano XV, n. 27, 2º semestre de 1997, p. 251/253; Informativo Notícias, Tribunal de Contas do Estado de Goiás, 1998, m. 03/98, ano IV, n. 17, 1998, p. 4-5.

            5 FERNANDES, Jorge Ulisses Jacoby. Tomada de Contas Especial. 2. ed. Brasília: Brasília Jurídica, 1998, p. 333 e 358.

            6 ALENCAR, Ana Valderez A. N.; CERQUEIRA, Laudicene de Paula de. Constituição do Brasil e Constituições Estrangeiras/textos, Índice Temático Comparativo. Brasília: Senado Federal, Subsecretaria de Edições Técnicas, 1987, v. 1, p. 170, art. 114.

            7 BRASIL. Portaria nº 44, de 20 de fevereiro de 2001. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 21 fev. 2001, p. 13.

            8 FERREIRA Filho, Manoel Gonçalves. Comentários à Constituição Brasileira de 1988. 2. ed. atual. e rev. São Paulo: Saraiva, 1992, 1. v.

            9 GUIMARÃES, Fernando Augusto Mello. Julgamento das Contas Anuais pelo Tribunal de Contas. Revista do Tribunal de Contas do Estado do Paraná, v. 117, jan./mar. 1996, p. 71-91.

            10 VILAÇA, Marcos Vinícios: Contas Públicas e Descentralização. Jornal do Brasil, 30 maio 1988.

            11 CRETELLA Jr., José. Dos Atos Administrativos Especiais. Rio de Janeiro: Forense, 1995, p. 488.

            12 MARINHO, Josaphat: Ética e Justiça; PINHEIRO, Pe. José Ernane et al. Reflexões sobre a Reforma do Judiciário. Petrópolis: Vozes, 1996, p. 125-132.

            13 ARISTÓTELES: Ética Nic., X, cap. 6-9 apud VAZ, Henrique C. de Lima: Ética e Justiça: Filosofia do Agir Humano; PINHEIRO, Pe. José Ernane et al. Ética, Justiça e Direito Reflexões sobre a Reforma do Judiciário. Petrópolis: Vozes, 1996, p. 19-40.

            14 No mesmo sentido, com o uso de outras expressões: MEDAUAR, Odete. Controle da Administração Pública pelo Tribunal de Contas. Revista de Informação Legislativa, Brasília, ano 27, n. 108, out./dez. 1990, p. 18-19.

            15 MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 9. ed. São Paulo: Malheiros, 1997. Grifos do original.

            16 GASPARINI, Diogenes. Direito Administrativo. 6. ed. rev., atual. e aumentada. São Paulo: Saraiva, 1995, p. 9.

            17 KLITGAARD, Robert. Controlando la Corrupción - una Indagación Práctica para el Gran Problema Social de Fin de Siglo. Traducción de Emilio M. Sierra Ochoa. Buenos Aires: Sudamericana, 1994.

            18 Apud SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 9. ed., 2. tiragem. São Paulo: Malheiros, 1993, p. 371.

            19 ARAÚJO, Marcos Valério. Como Controlar o Estado: Reflexões e Propostas sobre o Controle Externo nas Américas, Portugal e Espanha. Brasília: UNITEC, 1992, p. 22.

            20 Em vernáculo: Aquilo que fazes, fazem também os outros, depois de ti, porque sobre o senhor todos os olhos se voltam.

            21 MONTESQUIEU. Grandeza e Decadência dos Romanos. Trad. Gílson César Cardoso de Sousa. Ed. Paumape, apud AMARAL, Luiz Otávio O. Endemia Nacional Corrupção Generalizada. Revista Jurídica Consulex, Brasília, ano III, v. I, n. 33, 30 set. 1999, p. 26-29.

            22 Na apresentação do Relatório Final da Comissão Parlamentar de Inquérito, criada pelo Requerimento n° 151/93-CN, destinada a apurar os fatos contidos nas denúncias do Sr. José Carlos Alves dos Santos, referente às atividades de parlamentares, membros do governo e representantes de empresas envolvidas na destinação de recursos do Orçamento da União.

            23 Sociedade de celerados (fins criminosos).

            24 RIBEIRO, Renato Jorge Brown. Controle Externo da Administração Pública Federal no Brasil: O Tribunal de Contas da União - uma Análise Jurídicoadministrativa. Rio de Janeiro: América Jurídica, 2002, p. 98.

            25 BONFIM, B. Calheiros. Pensamentos Selecionados. 2. ed. Rio de Janeiro: Destaque, p. 108.

            26 Em vernáculo: prepara o caminho seguro.

            27 Consultar no Capítulo IV, que trata da Defesa nos Tribunais de Contas, o subtítulo 5.3.4.: falhas estruturais.

            Jorge Ulisses Jacoby Fernandes - Mestre em Direito Público. Professor de Direito Administrativo. Conferencista. Autor de várias obras na área de Direito Administrativo, entre as quais Tribunais de Contas do Brasil - Jurisdição e Competência, a obra mais completa sobre Tribunais de Contas escrita em língua portuguesa, e o Vade-Mécum de Licitações e Contratos Administrativos Publicação: Editora Fórum, Revista Fórum Administrativo de Direito Público, Belo Horizonte, MG, ano 5. nº 55, setembro de 2005.


Autor

  • Jorge Ulisses Jacoby Fernandes

    É professor de Direito Administrativo, mestre em Direito Público e advogado. Consultor cadastrado no Banco Mundial. Foi advogado e administrador postal na ECT; Juiz do Trabalho no TRT 10ª Região, Procurador, Procurador-Geral do Ministério Público e Conselheiro no TCDF.Autor de 13 livros e 6 coletâneas de leis. Tem mais de 8.000 horas de cursos ministrados nas áreas de controle. É membro vitalício da Academia Brasileira de Ciências, Artes, História e Literatura, como acadêmico efetivo imortal em ciências jurídicas, ocupando a cadeira nº 7, cujo patrono é Hely Lopes Meirelles.

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FERNANDES, Jorge Ulisses Jacoby. Ética e controle. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 10, n. 893, 13 dez. 2005. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/7695. Acesso em: 29 mar. 2024.