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Franz Kafka e o difícil acesso a proteção jurisdicional.

Uma releitura jurídica

Franz Kafka e o difícil acesso a proteção jurisdicional. Uma releitura jurídica

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I - Introdução

O objetivo do estudo se limita à análise de um capítulo da obra "O Processo" de FRANZ KAFKA, denominado pelo tradutor Modesto Carone de "Diante da Lei".

A orientação da Professora MARIA GARCIA é no sentido de que se deve analisar aquele texto do ponto de vista da linguagem (comunicação) e jurídico (constitucional), através dos autores e escolas de interpretação, citando-se fontes bibliográficas e dispositivos constitucionais.

Trata-se, como se vê, de tarefa das mais complexas, dada à dificuldade inerente à leitura e compreensão de FRANZ KAFKA, aliando-se isto à percepção de tudo que se estudou durante este semestre letivo (o que envolveu, quanto ao aspecto jurídico-lingüístico, inúmeros autores nacionais e estrangeiros).

Ao invés de fazermos um breve apanhado ou resumo do que se estudou, preferimos desenvolver, a partir do texto indicado pela nossa Professora, uma reflexão acerca de importante tema de direito constitucional, relacionado às dificuldades que surgem diariamente quanto ao acesso à jurisdição, garantia constitucional das mais importantes e destacadas.

Convém dizer que o estudo desenvolvido criou a necessidade de fazermos uma nova leitura de todo o material didático do semestre, o que nos levou a enfrentar, novamente, com muito gosto, obras de alto nível técnico, de autores respeitados, tais como CANOTILHO, HESSE, BONAVIDES, GORDILLO, TEMER, BASTOS, MAXIMILIANO, SICHES etc.

A fidelidade à escola filosófica da PUC/SP fez com que a maior parte das considerações desenvolvidas por HANS KELSEN (dogmática jurídica) fossem seguidas no estudo. Esta é a razão que nos levou a não aprofundarmos ou a não descer a minúcias ou detalhes sobre aspectos históricos, políticos ou sociológicos dos temas abordados.

Entendemos ser necessário enfrentar inicialmente o tema da hermenêutica jurídica para só depois analisar especificamente o texto de FRANZ KAFKA, vinculando-o, posteriormente, ao princípio constitucional do amplo acesso à jurisdição, alcançando-se, na etapa final, as conclusões que permitem uma compreensão ampla do que estudamos.


II - Interpretação jurídica (algumas noções)

É sabido que na base de todo e qualquer problema de natureza jurídica está a questão da interpretação . O professor, o magistrado, o advogado, enfim, todo e qualquer operador do Direito, para extrair alguma noção de uma ou mais normas jurídicas, precisa, de antemão, interpretá-las, fixando o sentido ou o significado jurídico das normas objeto de questionamento, visando demarcar o seu campo de incidência.

Eis a razão pela qual julgamos ser necessário constar do início de nosso estudo um espaço dedicado à interpretação das normas jurídicas, sendo certo, porém, que, por ser outro o objetivo principal de nossas indagações, apreciaremos o tema apenas para delinear algumas das linhas mestras da HERMENÊUTICA, naquilo que for aplicável ao nosso tema principal. 1

Partimos da premissa de que o intérprete se vê diante de várias significações possíveis para as normas analisadas, exatamente em razão do sentido verbal das mesmas não ser unívoco, pois o legislador, ao transformar em normas o fruto de suas valorações políticas, 2 utiliza-se da linguagem natural, que é caracterizada pela vagueza e ambigüidade, além de sua textura aberta, 3 razões pelas quais normalmente as prescrições legais são imprecisas, embaraçando, muitas vezes, a transmissão clara das mensagens normativas.

Correto parece ser, no labor científico, verificar, no interior do sistema, quais as normas que foram prestigiadas pelo legislador constituinte, para desvendar aquelas que foram erigidas em princípios gerais regentes desse mesmo sistema, 4 vetores estes que serão de grande utilidade para a solução dos questionamentos que levantaremos a propósito do texto de FRANZ KAFKA.

De algo, porém, estaremos sempre atentos, em razão disto ser uma das premissas básicas de todo e qualquer estudo científico, qual seja: o Direito, como ordem normativa da conduta humana, merece ser interpretado sem arbitrariedades, 5 onde o jurista dogmático, visando compreender suas normas para bem descrevê-las (pois não é sua tarefa julgar as normas do ordenamento), sempre deverá reter na memória a noção de que devem ser respeitados os limites oferecidos pela própria norma, no sentido de não se chegar a uma interpretação "contra legem". Sabemos que este limite não é claro, não estando nem muito menos delimitado com a precisão necessária, mas a questão é de não se ultrapassar o conteúdo jurídico oferecido pela normas interpretadas. 6

Referido destaque parece ser importante, na medida em que, na atualidade de nosso mundo jurídico, muitas são as teses e discussões doutrinárias que colocam o justo em situação de prevalência em face do Direito, o que supomos ser incorreto, principalmente quando essas mesmas teses acabam sendo aceitas por aqueles que transformam as normas gerais e abstratas em normas individuais e concretas, por intermédio das decisões e sentenças, que são os magistrados.

Com tal afirmação, queremos deixar certo que A NORMA JURÍDICA É A BALIZA DA ATIVIDADE INTERPRETATIVA DO JURISTA DOGMÁTICO, algo que é assim colocado para que se respeitem as vigas mestras do sistema jurídico pátrio, que são os princípios da certeza e da segurança jurídica, além do tradicional princípio da tripartição das funções estatais. 7

Tal posicionamento, longe de derivar de posições meramente opinativas, deflui do que sempre foi ensinado pela doutrina mais autorizada, como é o caso da seguinte lição de Carlos Maximiliano, "verbis":

"Cumpre evitar {o intérprete}, não só o demasiado apego à letra dos dispositivos, como também o excesso contrário, o de forçar a exegese e deste modo encaixar na regra escrita, graças à fantasia do hermeneuta, as teses pelas quais este se apaixonou, de sorte que vislumbra no texto idéias apenas existentes no próprio cérebro, ou no sentir individual, desvairado por ojerizas e pendores, entusiasmos e preconceitos. ‘A interpretação deve ser objetiva, desapaixonada, equilibrada, às vezes audaciosa, porém não revolucionária, aguda, mas sempre atenta respeitadora da lei’.

"‘Toda inclinação, simpática ou antipática, enfraquece a capacidade do intelecto para reconhecer a verdade, torna-o parcialmente cego. A ausência de paixão constitui um pré-requisito de todo pensamento científico’". 8

Não é nosso propósito, aqui, destacar todas as regras de interpretação das normas constitucionais 9 a serem objeto de análise. Limitaremos essas colocações iniciais somente àquilo que julgamos necessário à correta interpretação do texto de FRANZ KAFKA.

Ademais, em matéria de interpretação do Direito, não parece ser possível estabelecer princípios rígidos ou uma escala de precedência entre os diversos métodos existentes, pois não há subordinação ou hierarquia entre os vários recursos da hermenêutica, de vez que "a teoria da interpretação há de contentar-se com fornecer diretivas um pouco mais vagas e plásticas que, sem abandonarem o intérprete a um empirismo incontrolado, alguma coisa peçam todavia à delicadeza e à finura do seu senso jurídico". 10

Colocadas tais premissas hermenêuticas, convém delinear o que entendemos do texto de FRANZ KAFKA, para vinculá-lo posteriormente à questão constitucional destacada na introdução.


III – O saboroso texto de KAFKA

KAFKA, no capítulo denominado "Diante da Lei" por Modesto Carone, estabelece um interessante e intrigante diálogo entre K. (o personagem principal do livro "O Processo") e um determinado sacerdote.

Analisado o texto, constatamos que se trata de uma parábola em que se destaca a dificuldade que tem o cidadão comum para ter acesso ao Poder Judiciário. Isto é revelado pela imensa dificuldade em interpretar ou compreender a mensagem expressada pelo porteiro que estava diante da lei (ou tribunal).

O homem do campo que se dirigiu ao porteiro e pediu para entrar na lei recebeu como resposta que a entrada não seria admitida de imediato, sendo possível a admissão posteriormente. Como está referido no texto, "o homem do campo não esperava tais dificuldades: a lei deve ser acessível a todos e a qualquer hora, pensa ele".

O sacerdote, conversando com K., revelou-lhe que duas seriam as interpretações possíveis acerca da suposta negativa expressada pelo porteiro, a saber: uma primeira interpretação seria no sentido de que o porteiro (ao contrário do que K. pensou inicialmente) não haveria enganado o homem do campo, porque teria negado a ele apenas inicialmente o devido acesso à lei, de vez que ao final da conversa deixou dito que ninguém mais poderia ser admitido na porta da lei, pois esta entrada estava destinada somente a ele (homem do campo); já a segunda interpretação, que também contraria o entendimento inicialmente firmado por K., era no sentido de que o enganado seria justamente o porteiro, interpretação esta que parte da ingenuidade do porteiro, que não conhece o interior da lei, mas somente o caminho que precisa percorrer continuamente diante da entrada.

O que se constata do texto, pois, é a existência de mais de uma interpretação possível para a questão do acesso à Justiça.

Fato é que se o homem do campo tivesse interpretado corretamente a negativa inicial do porteiro, o que não ocorreu, teria tido acesso posterior à lei ou à justiça, pois o encerramento da parábola é no sentido de que ali ninguém mais poderia entrar a não ser o próprio homem do campo, dado que a ele estava reservado aquele espaço.

Como se vê, o texto revela as dificuldades que surgem nos relacionamentos humanos diariamente, tudo porque às vezes não desvendamos corretamente as mensagens transmitidas por nossos interlocutores.

Isto também ocorre com as mensagens normativas (até com bastante freqüência), razão pela qual resolvemos, a partir das idéias destacadas por KAFKA, apreciar criticamente o princípio constitucional explícito do amplo acesso à jurisdição, porquanto todo aquele que se achar DIANTE DA LEI deve ter acesso direto a ela, sob pena de não se viver, ainda que formalmente falando, em um regime de Estado de Direito.


IV - O resultado da interpretação jurídica será apenas um dos resultados possíveis

Como vimos acima, duas pelo menos eram as interpretação possíveis da mensagem transmitida pelo porteiro. Assim também ocorre com a interpretação de mensagens normativas, o que torna mais difícil e complexo o trabalho dos juristas (e o que leva à necessidade de sua existência e permanência).

Oportuno se torna dizer que, na linha da corrente filosófica que adotamos (HAHS KELSEN, Teoria Pura do Direito), o resultado das análises interpretativas que faremos será apenas um dos resultados possíveis, sendo que afastamos a intenção de fazer prevalecer a solução por nós adotada como se ela fosse a única solução correta para os problemas que surgirem no decorrer de nossa explanação.

Afigura-se-nos correta referida premissa, pois, segundo ensinamento do notável Hans Kelsen, "a questão de saber qual é, de entre as possibilidades que se apresentam nos quadros do Direito a aplicar, a ‘correta’, não é sequer -- segundo o próprio pressuposto de que se parte -- uma questão de conhecimento dirigido ao Direito positivo, não é um problema de teoria do Direito, mas um problema de política do Direito". 11

O resultado, portanto, de nossa tarefa interpretativa do texto de KAFKA e da Constituição, no aspecto que interessa ao presente estudo, será um resultado apenas possível, nunca um resultado que seja o único correto, por não ser permitido ao cientista do Direito valorar a norma a ponto de sustentar ser esta ou aquela interpretação a única aplicável ao caso sob análise. Isto decorre da convicção de que o Direito a aplicar forma "uma moldura dentro da qual existem várias possibilidades de aplicação, pelo que é conforme ao Direito todo o ato que mantenha dentro deste quadro ou moldura, que preencha esta moldura em qualquer sentido possível". 12

Também adotaremos neste estudo a noção de ser o Direito um conhecimento tecnológico, prático, voltado para a decidibilidade de conflitos, ainda que tais conflitos sejam meramente teóricos, porque são frutos da mente de quem estuda determinado assunto sob o nível da ciência jurídica "stricto sensu". Para tanto, sempre daremos um resultado para nossas pesquisas acerca do sentido das normas analisadas, sentido este que será apenas um dos possíveis sentidos a dar à questão posta.

Sabedores, porém, de que a interpretação é um mero ato de vontade e de valoração, não cabendo à Ciência do Direito dizer qual é o sentido mais justo ou correto, mas apenas apontar as interpretações possíveis, 13 utilizaremos no presente estudo a Lógica do Razoável de Recasén Siches, para escolhermos, dentre as possíveis interpretações que se nos apresentarem, a que nos parecer mais razoável, por estar de acordo com as regras e princípios jurídicos sob questionamento. 14 Somente assim conseguiremos realizar trabalho com alguma finalidade prática, tarefa a que o jurista deve obrigatoriamente se submeter, pois de nada adiantará a elaboração de estudo desprovido de qualquer intenção de servir para a evolução do pensamento jurídico e para a decidibilidade de conflitos.


V – A importância da interpretação sistemática

Para conseguirmos extrair do Texto Constitucional os múltiplos relacionamentos com o texto de KAFKA, teremos que, desde o início, adotar como proposta exegética a consideração dos princípios e regras jurídicas em harmonia com o contexto geral do sistema constitucional. Com isto queremos dizer que, a despeito de não menosprezarmos nenhum dos conhecidos métodos interpretativos, a coordenação e o inter-relacionamento das normas constitucionais será buscado pela via da interpretação sistemática, considerada o método por excelência da hermenêutica jurídica por Paulo de Barros Carvalho, 15 em razão de permitir uma visão grandiosa do Direito.

Como observou o inesquecível Geraldo Ataliba, "qualquer proposta exegética, objetiva e imparcial, como convém a um trabalho científico, deve considerar as normas a serem estudadas, em harmonia com o contexto geral do sistema jurídico. Os preceitos normativos não podem ser corretamente entendidos isoladamente, mas, pelo contrário, haverão de ser considerados à luz das exigências globais do sistema, conspicuamente fixados em seus princípios. Em suma: somente a compreensão sistemática poderá conduzir a resultados seguros. É principalmente a circunstância de muitos intérpretes desprezarem tais postulados metodológicos que gera as disparidades constantemente registradas em matéria de propostas de interpretação". 16

Realmente, na perquirição do significado ou conteúdo de qualquer texto normativo, e especialmente quando o texto é a Constituição, 17 o intérprete, ao invés de atentar unicamente para regras isoladas, deverá voltar os olhos para o sistema constitucional, compreendido como um todo uno, harmônico e coerente. Com noção dessa natureza, nosso empenho deverá ser no sentido de fazer com que as normas constitucionais se ajustem umas às outras, fazendo com que eventuais antinomias sejam meramente aparentes, solucionáveis pelos critérios interpretativos existentes.

Sobre a interpretação sistemática, veja-se o que escreveu Luís Roberto Barroso:

"O método sistemático disputa com o teleológico a primazia no processo interpretativo. O direito objetivo não é um aglomerado aleatório de disposições legais, mas um organismo jurídico, um sistema de preceitos coordenados ou subordinados, que convivem harmonicamente. A interpretação sistemática é fruto da idéia de unidade do ordenamento jurídico. Através dela, o intérprete situa o dispositivo a ser interpretado dentro do contexto normativo geral e particular, estabelecendo as conexões internas que enlaçam as instituições e as normas jurídicas. Em bela passagem, registrou Capograssi que a interpretação não é senão a afirmação do todo, da unidade diante da particularidade e da fragmentaridade dos comandos singulares". 18

Verifique-se, inclusive, que uma das raríssimas intervenções do legislador constituinte em matéria de interpretação constitucional foi dada pelo texto da Constituição da Thecoslováquia, de 1948, quando nela restou estabelecido que "a interpretação das diversas partes da Constituição deve inspirar-se no seu conjunto e nos princípios gerais sobre os quais se alicerça". Vale a citação como notícia histórica, sendo que agiu correto nosso legislador constituinte em não adotar regra semelhante, já que o campo das prescrições impositivas, voltado para a disciplina do comportamento humano, é impróprio para as definições e estabelecimento de critérios interpretativos, algo que é encargo da doutrina, como se sabe.

Ao adotarmos tal premissa metodológica -- decorrente da estrita observância do método da interpretação sistemática, tal como posto pela melhor doutrina --, acreditamos operar no sentido da concretização do princípio da unidade da Constituição, que na pena do constitucionalista português Gomes Canotilho é considerado como princípio interpretativo, quando com ele se quer significar que o direito constitucional deve ser interpretado de forma a evitar contradições (antinomias, antagonismos) entre as suas normas, princípio este que acaba por obrigar o intérprete a considerar a Constituição na sua globalidade e a procurar harmonizar os espaços de tensão existentes entre as normas constitucionais a concretizar. 19

Do quanto ficou escrito, pode-se inferir que temos como pretensão básica a consecução do objetivo exegético delineado por Carlos Maximiliano, no sentido de que o Direito deve ser interpretado inteligentemente, "não de modo que a ordem legal envolva um absurdo, prescreva inconveniências, vá ter a conclusões inconsistentes ou impossíveis. Também se prefere a exegese de que resulte eficiente a providência legal ou válido o ato, à que torne aquela sem efeito, inócua, ou este, juridicamente nulo". 20


VI – A supremacia hierárquica das normas constitucionais

Quando se elege como objeto de estudo um tema extraído da Constituição deve ser esclarecida a necessária observância e perfeita compreensão da relevância da proposta, dado que se estará tirando conclusão do Texto Jurídico que domina o cenário jurídico, em razão da supremacia hierárquica das normas jurídicas ali estabelecidas.

É pacífico o entendimento de que a importância do estudo da Constituição reside na reconhecida superioridade hierárquica de suas normas em relação às demais normas que constam de nosso direito positivo ou do nosso sistema jurídico-positivo (conjunto de atos normativos expedidos pelo Estado).

Um ponto é certo: a Constituição é o complexo de normas fundamentais de um dado ordenamento jurídico, ou a ordem jurídica fundamental da comunidade, como diz Konrad Hesse, acrescentando, ainda, que "a Constituição estabelece os pressupostos da criação, vigência e execução das normas do resto do ordenamento jurídico, determinando amplamente seu conteúdo, se converte em elemento de unidade do ordenamento jurídico da comunidade em seu conjunto, no seio do qual vem a impedir tanto o isolamento do Direito Constitucional de outras parcelas do Direito como a existência isolada dessas parcelas do Direito entre si mesmas". 21

Por ser a Constituição, vista aqui no seu conteúdo normativo, "aquele complexo de normas jurídicas fundamentais, escritas ou não escritas, capaz de traçar as linhas mestras do mesmo ordenamento", 22 é que se dá a ela a denominação de Lei Fundamental, porque nela é que estão exarados os pressupostos jurídicos básicos e necessários à organização do Estado, além da previsão das regras asseguradoras de inúmeros direitos aos cidadãos, colocando-se, em razão disso, como base, ponto de partida e fundamento de validade de todo o ordenamento jurídico pátrio.

É o que, com palavras bem mais precisas e elegantes, tem ensinado nosso mestre Celso Ribeiro Bastos, ao analisar a questão da inicialidade fundamentante das normas constitucionais:

"Como sobejamente conhecido, as normas constitucionais fundam o ordenamento jurídico. Inauguram a ordem jurídica de um dado povo soberano e se põem como suporte de validade de todas as demais regras de direito. São normas originárias, fundamentantes e referentes, enquanto que as demais se posicionam, perante elas, como derivadas, fundamentadas e referidas. Aquelas de hierarquia superior, e estas, logicamente de menor força vinculatória". 23

O jusfilósofo Hans Kelsen, por sua vez, ao dissertar sobre a Constituição no exercício do papel de fundamento imediato de validade da ordem jurídica, explica o porquê de tal raciocínio:

"O Direito possui a particularidade de regular a sua própria criação. Isso pode operar-se por forma a que uma norma apenas determine o processo por que outra norma é produzida. Mas também é possível que seja determinado ainda -- em certa medida -- o conteúdo da norma a produzir. Como, dado o caráter dinâmico do Direito, uma norma somente é válida porque e na medida em que foi produzida por uma determinada maneira, isto é, pela maneira determinada por uma outra norma, esta outra norma representa o fundamento imediato de validade daquela. A relação entre a norma que regula a produção de uma outra e a norma assim regularmente produzida pode ser figurada pela imagem espacial da supra-infra-ordenação. A norma que regula a produção é a norma superior; a norma produzida segundo as determinações daquela é a norma inferior". 24

Considerada dessa maneira, a Constituição é a referência obrigatória de todo o sistema jurídico, inclusive dela própria, uma vez que estabelece no seu próprio corpo as formas pelas quais poderá ser reformada (por intermédio do processo de emenda ou de revisão, na atual Carta Magna brasileira), daí surgindo a noção de hierarquia 25 entre as normas jurídicas, de tal sorte que normas de grau superior são as que constam das Constituições (Constituição Federal, Constituições dos Estados-Membros e Leis Orgânicas Municipais, sendo que as duas últimas também se submetem à primeira) e normas de grau inferior são as veiculadas por intermédio de leis ordinárias, leis complementares, medidas provisórias etc.

Em razão dessa superioridade, devem ser extirpados do ordenamento jurídico em que exista uma Constituição em vigor quaisquer atos contrários a ela que tenham a pretensão de produzir efeitos jurídicos, inexistindo lugar, inclusive, para regras jurídicas que pretendam ser superiores à própria Constituição ou que, sendo normas constitucionais originárias, sejam inconstitucionais. 26

Digno de menção é este trecho da lição de Gomes Canotilho e Vital Moreira:

"A Constituição ocupa o cimo da escala hierárquica no ordenamento jurídico. Isto quer dizer, por um lado, que ela não pode ser subordinada a qualquer outro parâmetro normativo supostamente anterior ou superior e, por outro lado, que todas as outras normas hão-de conformar-se com ela.

"................................

"A principal manifestação da preeminência normativa da Constituição consiste em que toda a ordem jurídica deve ser lida à luz dela e passada pelo seu crivo, de modo a eliminar as normas que se não conformem com ela". 27

Assim sendo, toda e qualquer norma, seja de direito público, seja de direito privado, que contrariar comando constitucional, será tida por inconstitucional, sendo norma inválida perante o sistema normativo, 28 devendo ser expulsa do mesmo de acordo com os mecanismos processuais existentes (controle da constitucionalidade difuso e concentrado). À supremacia das normas constitucionais todas as demais normas devem adequar-se.

Mais uma vez é Hans Kelsen quem bem explica a propalada superioridade hierárquica da Constituição, ensinando-nos que "a ordem jurídica não é um sistema de normas jurídicas ordenadas no mesmo plano, situadas umas ao lado das outras, mas é uma construção escalonada de diferentes camadas ou níveis de normas jurídicas. A sua unidade é produto da conexão de dependência que resulta do fato de a validade de uma norma, que foi produzida de acordo com outra norma, se apoiar sobre essa outra norma, cuja produção, por seu turno, é determinada por outra; e assim por diante, até abicar finalmente na norma fundamental pressuposta. A norma fundamental -- hipotética, nestes termos -- é, portanto, o fundamento de validade último que constitui a unidade desta interconexão criadora". 29


VII – O princípio constitucional do amplo acesso à jurisdição

Pois bem, o texto de KAFKA revelou a dificuldade do acesso à lei enquanto ato normativo gerador de direitos e obrigações, no seu aspecto dinâmico, porque o homem do campo visava ter acesso à aplicação concreta do Direito, visando solucionar algum problema que lhe afligia.

Isto acabou não sendo possível, em razão da equivocada interpretação dada à negativa inicial do porteiro em termos de acesso à lei.

A partir desta situação artificialmente criada por KAFKA, compete-nos a análise do acesso à jurisdição em território pátrio.

O ponto de partida em termos dogmáticos reside no inciso XXXV do art. 5º da Constituição Federal de 1988, que estabelece que "A LEI NÃO EXCLUIRÁ DA APRECIAÇÃO DO PODER JUDICIÁRIO LESÃO OU AMEAÇA A DIREITO".

Trata-se de previsão constitucional das mais relevantes para o regime de Estado de Direito mantido no Brasil, dado que se garante a efetiva prestação jurisdicional, envolvendo atos de governantes e governados, inclusive nos casos de ameaça de futura lesão de direitos.

Este preceito constitucional acaba por revelar que nem mesmo uma equivocada interpretação poderá levar à vedação do acesso a uma prestação jurisdicional rápida, eficaz e justa. Isto decorre da utilização inicial da palavra LEI. Se nem o legislador poderá estabelecer limitações não previstas na Constituição, muito menos será admitido que o intérprete, o magistrado ou qualquer outro operador do Direito venha a enxergar limitações diante da plenitude do que se estabeleceu a título de direito ou garantia fundamental, que dificilmente poderia ser suprimido por Emenda (conf. art. 60, § 4º, inciso IV).

Conforme destacou Nelson Nery Junior, "embora o destinatário principal desta norma seja o legislador, o comando constitucional atinge a todos indistintamente, vale dizer, não pode o legislador e ninguém mais impedir que o jurisdicionado vá a juízo deduzir pretensão". 30

Transportada a questão revelada por KAFKA para o território pátrio, tem-se que a Constituição se apresenta como elemento impeditivo de toda e qualquer atuação particular ou governamental que possa significar vedação ao acesso que todos têm ao Poder Judiciário.

Entendimento contrário violaria a interpretação sistemática da Constituição, que aponta realmente na direção de garantir no Brasil o amplo acesso à jurisdição, com os meios e recursos inerentes ao ato.

A compreensão exata do texto de KAFKA leva o estudioso a entender que não basta a previsão constitucional para o acesso à justiça se revelar como algo efetivo e concreto. Isto é assim porque também se faz necessário todo um delineamento infraconstitucional, por via da legislação ordinária, como forma de serem estabelecidas as leis de natureza processual que facilitem e incentivem a distribuição de um maior volume de demandas judiciais.

Ocorre que no Brasil o investimento realizado junto ao Judiciário é pequeno e insatisfatório, o que prejudica em muito a satisfação das pessoas que por um motivo qualquer estão em litígio. O preceito constitucional sob análise está diretamente vinculado a investimentos mais importantes quanto ao Poder Judiciário, pois de nada adianta a previsão geral e abstrata se não existem soluções administrativas e legislativas concretas e eficientes para viabilizar uma prestação jurisdicional rápida, eficiente e justa. Este é o ideal a ser buscado, ainda não alcançado no Brasil.

Só assim poderemos passar a visualizar ou a interpretar o princípio do amplo acesso à jurisdição de forma a dele extrair noções mais eficazes e que solucionem de forma mais imediata os conflitos de interesse qualificados por pretensões resistidas.


VIII – Conclusões

Com o objetivo de sintetizar o que foi visto ao longo do estudo, elencaremos, em seguida, sob a forma de itens, as principais conclusões a que chegamos.

1. Por conter normas que dão estrutura (organização) ao Estado, normas que estabelecem a forma de elaboração das outras normas e que fixam os direitos e as responsabilidades dos indivíduos, é que a Constituição passa a ser reconhecida como Lei Fundamental, por ser a base de todo o direito positivo da comunidade que a adote, em especial naqueles países que possuem um sistema baseado na lei escrita, sobrepondo-se, inclusive, em relação aos demais atos normativos por estar situada no vértice da pirâmide jurídica que representa idealmente o conjunto de normas jurídicas vigentes em determinado espaço territorial.

2. A Constituição Federal serve como referência obrigatória de todo o sistema jurídico, que ela própria inaugura, pondo-se como suporte de validade de todas as normas jurídicas da comunidade e sendo a matriz de toda e qualquer manifestação normativa estatal.

3. Por ocupar o cimo da escala hierárquica no ordenamento jurídico, todas as demais normas deverão conformar-se com a Constituição Federal. À supremacia das normas constitucionais todas as demais normas devem adequar-se.

4. O estudioso do Direito, em especial o jurista dogmático, não deve se afastar do conteúdo jurídico das normas a serem interpretadas, respeitando os limites oferecidos pela própria norma, visando unicamente compreendê-las para bem descrevê-las, pois não é sua tarefa julgar as normas do sistema.

5. A norma jurídica é a baliza da atividade interpretativa do jurista dogmático, algo que é assim colocado para que se respeitem as vigas mestras do sistema jurídico pátrio, que são os princípios da certeza e da segurança jurídica, além do tradicional princípio da tripartição das funções estatais.

6. O resultado das análises interpretativas realizadas neste estudo é apenas um dos resultados possíveis, nunca um resultado que seja o único correto, por não ser permitido ao cientista do Direito valorar a norma a ponto de sustentar ser esta ou aquela interpretação a única aplicável ao caso sob análise.

7. A coordenação e o inter-relacionamento das normas constitucionais sempre deverá ser buscado pela via da interpretação sistemática, em razão deste método da hermenêutica jurídica permitir uma visão grandiosa do Direito, pois não se deve atentar unicamente para regras jurídicas isoladas, mas sim voltar-se os olhos para o sistema constitucional, compreendido como um todo uno, harmônico e coerente.

8. O sentido jurídico da Constituição é o único sentido possível e válido de ser estudado pelo jurista dogmático, por ser este o sentido que aproxima o estudioso da característica própria do Direito – e, por conseqüência, das próprias normas constitucionais --, que é a imperatividade, que se traduz na obrigatoriedade do cumprimento dos preceitos normativos por parte daqueles a quem os mesmos são dirigidos.

9. O texto de KAFKA aponta para uma dificuldade de interpretação de alguém que pretendia ter acesso à Justiça, não tendo alcançado este objetivo em razão da equivocada interpretação da mensagem expedida por um agente estatal.

10. Fato é que se o homem do campo tivesse interpretado corretamente a negativa inicial do porteiro, o que não ocorreu, teria tido acesso posterior à lei ou à justiça, pois o encerramento da parábola é no sentido de que ali ninguém mais poderia entrar a não ser o próprio homem do campo, dado que a ele estava reservado aquele espaço.

11. O texto revela as dificuldades que surgem nos relacionamentos humanos, tudo porque às vezes não conseguimos desvendar com precisão as mensagens transmitidas por nossos interlocutores, algo muito freqüente em termos de transmissão de mensagens normativas.

12. O princípio do amplo acesso à jurisdição se revela como previsão constitucional das mais relevantes parra o regime de Estado de Direito mantido no Brasil, dado que se garante a efetiva prestação jurisdicional, envolvendo atos de governantes e governados, inclusive nos casos de ameaça de futura lesão de direitos.

13. Transportada a questão revelada por KAFKA para o território pátrio, tem-se que a Constituição se apresenta como elemento impeditivo de toda e qualquer atuação particular ou governamental que possa significar vedação ao acesso que todos têm ao Poder Judiciário.

14. A compreensão exata do texto de KAFKA leva o estudioso a entender que não basta a previsão constitucional para o acesso à Justiça se revelar como algo efetivo e concreto. É que também se faz necessário todo um delineamento infraconstitucional, por via da legislação ordinária, além de um necessário investimento material, algo que viria a incrementar a solução de conflitos de interesses qualificados por pretensões resistidas.


NOTAS

  1. Foram publicadas recentemente duas obras jurídicas de grande relevância para os que se preocupam com a interpretação da Constituição, a saber: Interpretação e Aplicação da Constituição, de Luís Roberto Barroso (Ed. Saraiva, 1996) e Manual de Interpretação Constitucional, de Uadi Lammêgo Bulos (Ed. Saraiva, 1997). É recomendável a leitura dessas duas obras, escritas por juristas que conhecem bem os mecanismos de interpretação constitucional.

  2. Aliás, como demonstrou Fran Figueiredo, principalmente quando o documento jurídico a ser interpretado é a Constituição, "não se pode contar com uma linguagem jurídica escorreita, isenta de equívocos e de variações. Resultando da transação de distintas tendências ideológicas e políticas, é natural que não se possa apresentar em uma linguagem jurídica uniforme, tecnicamente rigorosa, apresentando muitas vezes até nítidos contrastes interiores" (Introdução à Teoria da Interpretação Constitucional, pp. 175/200).

  3. Segundo Agustin Gordillo, "...a linguagem natural tem como característica o que se denominou textura aberta, em razão da qual não se pode lograr uma precisão absoluta nas definições, nas palavras ou nos símbolos, a menos que construamos uma linguagem nova e totalmente artificial. Isso é o que foi feito pelas ciências exatas e o que até agora não pôde fazer o Direito: em conseqüência não pôde alcançar a precisão que caracteriza as chamadas ciências exatas" (Princípios Gerais de Direito Público, pp. 2-3).

  4. Michel Temer, Elementos de Direito Constitucional, p. 24.

  5. A respeito do arbítrio na interpretação do Direito, destaque-se o estudo realizado por Maury R. de Macedo (A Lei e o Arbítrio à Luz da Hermenêutica, Rio de Janeiro, Ed. Forense, 1981).

  6. Na seara do direito constitucional sempre é importante observar, com Luís Roberto Barroso, que "A interpretação da Constituição, a despeito do caráter político do objeto e dos agentes que a levam a efeito, é uma tarefa jurídica, e não política. Sujeita-se, assim, aos cânones de racionalidade, objetividade e motivação exigíveis das decisões proferidas pelo Poder Judiciário. Uma Corte Constitucional não deve ser cega ou indiferente às conseqüências políticas de suas decisões, inclusive para impedir resultados injustos ou danosos ao bem comum. Mas somente pode agir dentro dos limites e das possibilidades abertas pelo ordenamento. CONTRA O DIREITO O JUIZ NÃO DEVE DECIDIR JAMAIS. EM CASO DE CONFLITO ENTRE O DIREITO E A POLÍTICA, O JUIZ ESTÁ VINCULADO AO DIREITO" (Interpretação e Aplicação da Constituição, p. 106, sem destaques no original).

  7. Não é outra a lição de Carlos Maximiliano, seguramente o mais notável cientista que se preocupou com o estudo da Hermenêutica Jurídica em território pátrio, que deixou averbado o seguinte: "Substituir a lei (vontade geral) pelo juiz (critério individual), conforme pretende a corte chefiada pelo Professor Kantorowicz, seria retrogradar; a evolução realizou-se no sentido inverso, no de sobrepor a vontade coletiva à de um só" (Hermenêutica e Aplicação do Direito, p. 79, sem destaque no original).

  8. Carlos Maximiliano, ob. cit., p. 103, sem destaques no original.

  9. Como exemplo dessas regras, podem ser citadas as que foram coligidas por Linares Quintana, que procurou sistematizar as conclusões da jurisprudência em geral: a) Na interpretação constitucional deve sempre prevalecer o conteúdo teleológico da Constituição, que é instrumento de governo, além de ser instrumento de restrição de poderes de amparo à liberdade individual; b) a finalidade suprema e última da norma constitucional é a proteção e a garantia da liberdade e dignidade do homem; c) a interpretação da lei fundamental deve orientar-se, sempre, para esta meta suprema; d) em caso de aparente conflito entre a liberdade e o interesse do governo, aquela deve prevalecer sempre sobre este último, pois a ação estatal manifestada através de normas constitucionais, não pode ser incompatível com a liberdade; e) o fim último do Estado é exercer o mandato dentro de seus limites (Teoría de la Ciencia del Derecho Constitucional Argentino y Comparado, apud José Alfredo de Oliveira Baracho, Hermenêutica Constitucional, in RDP 59-60/46). Também é oportuno, somente para ilustrar o estudo, citar as regras para a interpretação constitucional enumeradas por Henry Campbell Black (que foram expostas no estudo de Uadi Lammêgo Bulos, Manual de Interpretação Constitucional, pp. 58-90): "1) O Texto Constitucional deve ser interpretado de acordo com princípios técnicos, mas também literalmente, conforme as linhas gerais, estatuídas para efetivar os grandes princípios de governo; 2) uma Constituição deve ser interpretada para tornar efetiva a intenção do povo que a adotou; 3) a Constituição, em caso de ambigüidade, deve ser examinada na sua totalidade, objetivando a determinação do sentido de suas partes; 4) uma Constituição deve ser interpretada de acordo com a legislação previamente existente no Estado, a qual deverá compatibilizar-se com as normas constitucionais; 5) a norma constitucional não deve ser interpretada com efeito retroativo, salvo disposição expressa na Constituição; 6) os dispositivos de uma Constituição são quase que invariavelmente imperativos; 7) tudo que for necessário para efetivar uma norma constitucional deve ser considerado implícito ou subentendido – seja uma proibição, restrição ou uma concessão de poder; 8) o preâmbulo da Constituição e os títulos de seus vários artigos ou seções podem fornecer alguma prova de seu sentido e intenção, embora os argumentos deduzidos daí tenham valor apenas relativo; 9) não é permitido desobedecer ou interpretar um dispositivo de modo a negar-lhe aplicação somente porque possa ela parecer injusto, ou conduzir a conseqüências julgadas nocivas, ou a injustas discriminações; 10) havendo ambigüidade, que não possa ser esclarecida pelo exame da própria Constituição, deve-se recorrer a fatos e elementos extrínsecos, tais como a legislação anterior, o mal a ser remediado, as circunstâncias históricas contemporâneas e as discussões da Assembléia Constituinte; 11) as disposições transitórias não podem revogar ou transgredir a parte permanente da Constituição; 12) a interpretação judicial, após deliberadamente firmada, não deve ser abandonada sem graves razões; 13) os preceitos relativos á liberdade, ou que abrem exceção às normas gerais firmadas pela Constituição, devem interpretar-se de modo restrito; 14) a interpretação poderá recorrer ao Direito Constitucional Comparado, a preceitos de outras constituições, de caráter semelhante".

  10. Manuel A. Domingues de Andrade, Ensaio sobre a Teoria da Interpretação das Leis, p. 31.

  11. Teoria Pura do Direito, p. 469. É do mesmo autor a seguinte observação: "A interpretação jurídico-científica tem de evitar, com o máximo cuidado, a ficção de que uma norma jurídica apenas permite, sempre e em todos os casos, uma só interpretação: a interpretação ‘correta’. Isto é uma ficção de que se serve a jurisprudência tradicional para consolidar o ideal da segurança jurídica. Em vista da plurissignificação da maioria das normas jurídicas, este ideal somente é realizável aproximativamente" (ob. cit., pp. 472-473).

  12. Kelsen, ob. cit., pp. 466-467.

  13. Paulo de Barros Carvalho, Curso de Direito Tributário, p. 77.

  14. Acerca dos estudos desenvolvidos por Luís Recaséns Siches, conferir: Lídia Reis de Almeida Prado, "A lógica do razoável na interpretação jurídica", in Revista Justiça e Democracia, Ed. RT, nº 2, p. 122. O estudo do princípio da razoabilidade ou da proporcionalidade já conta com boa doutrina entre nós: Carlos Roberto de Siqueira Castro, O Devido Processo Legal e a Razoabilidade das Leis na Nova Constituição do Brasil, Ed. Forense, 1989; Raquel Denize Stumm, Princípio da Proporcionalidade no Direito Constitucional Brasileiro, Ed. Livraria do Advogado, 1995; Suzana de Toledo Barros, O Princípio da Proporcionalidade e o Controle de Constitucionalidade das Leis Restritivas de Direitos Fundamentais, Ed. Brasília Jurídica, 1996.

  15. Ob. cit., p. 76.

  16. República e Constituição, p. 152. É conhecida e bastante divulgada a lição de Stammler, que se aplica à questão da interpretação sistemática, a saber: "Quando alguém aplica um artigo do Código, aplica todo o Código. Poder-se-ia dizer ainda mais, ou seja, ao aplicar um artigo do Código, aplica-se todo o Direito" (tradução de Eduardo Marcial Ferreira Jardim, Microempresa ao Lume do Regime Jurídico Tributário, p. 33).

  17. Devemos esclarecer que, ainda que não se possa falar em uma "teoria da interpretação constitucional", é certo que os métodos interpretativos a serem aplicados à Constituição revestem-se de atributos próprios. Isto se dá em razão dos traços típicos ou das notas caracterizadoras das normas constitucionais, tão bem ressaltadas por Celso Ribeiro Bastos e Calos Ayres de Brito, que são as seguintes: a) inicialidade, pertinentemente à formação originária do ordenamento jurídico, em grau de superioridade constitucional; b) conteúdo marcantemente político de suas normas; c) estrutura de linguagem caracterizada pela síntese e coloquialidade; d) predominância das normas de estrutura, que têm por destinatário habitual o próprio legislador ordinário (Interpretação e Aplicabilidade das Normas Constitucionais, p. 12).

  18. Luís Roberto Barroso, ob. cit., pp. 127-128.

  19. J. J. Gomes Canotilho, Direito Constitucional, p. 232.

  20. Ob. cit., p. 166.

  21. Escritos del Derecho Constitucional, p. 17 (traduzimos o trecho citado).

  22. Paolo Biscaretti di Ruffia, Direito Constitucional, p. 86.

  23. Celso Ribeiro Bastos e Carlos Ayres de Brito, Interpretação e Aplicabilidade das Normas Constitucionais, p. 13.

  24. Teoria Pura do Direito, pp. 309-310.

  25. Segundo Michel Temer, hierarquia, "para o Direito, é a circunstância de uma norma encontrar sua nascente, sua fonte geradora, seu ser, seu engate lógico, seu fundamento de validade numa norma superior. A lei é hierarquicamente inferior à Constituição porque encontra nesta o seu fundamento de validade" (Elementos de Direito Constitucional, p. 140).

  26. Não há como, ao contrário do que alguns têm sustentado (cf. Alfredo Buzaid, É constitucional o artigo 33 do Ato das Disposições Transitórias da Constituição de 1988 ?, in RT 669/7; Rui Stoco, A aposentadoria compulsória dos magistrados aos 70 anos de idade - inconstitucionalidade do art. 93, VI da CF, in RT 705/63), em obediência ao princípio da unidade normativa da Constituição, sustentar a correção da tese segundo a qual no interior da própria Constituição existiriam normas inconstitucionais. Com efeito, segundo recente e bem fundamentada decisão do STF, de lavra do Min. Moreira Alves, "A tese de que há hierarquia entre normas constitucionais originárias dando azo à declaração de inconstitucionalidade de umas em face de outras é incompossível com o sistema de Constituição rígida. Na atual Carta Magna `compete ao Supremo Tribunal Federal, precipuamente, a guarda da Constituição´ (artigo 102, `caput´), o que implica dizer que essa jurisdição lhe é atribuída para impedir que se desrespeite a Constituição como um todo, e não para, com relação a ela, exercer o papel de fiscal do Poder Constituinte originário, a fim de verificar se este teria, ou não, violado os princípios de direito suprapositivo que ele próprio havia incluído no texto da mesma Constituição. Por outro lado, as cláusulas pétreas não podem ser invocadas para sustentação da tese da inconstitucionalidade de normas constitucionais inferiores em face de normas constitucionais superiores, porquanto a Constituição as prevê apenas como limites ao Poder Constituinte derivado ao rever ou ao emendar a Constituição elaborada pelo Poder Constituinte originário, e não como abarcando normas cuja observância se impôs ao próprio Poder Constituinte originário com relação às outras que não sejam consideradas como cláusulas pétreas, e, portanto, possam ser emendadas" (in JSTF-LEX 213/16). Sobre o que não podem restar dúvidas, porém, é quanto à possibilidade do controle da constitucionalidade atingir as normas oriundas do Poder de Reforma da Constituição. A propósito, em estudo que elaboramos (Controle da Constitucionalidade dos Atos Normativos, monografia do curso de Mestrado da PUC/SP, 1993, inédito), consta a seguinte passagem: "Assim, as normas constitucionais oriundas do Poder Constituinte Derivado (aquele que é instituído para alterar a Constituição) não estão isentas do exame da sua constitucionalidade. No caso das emendas, por exemplo, seus limites explícitos, suas barreiras intransponíveis, são as cláusulas pétreas relacionadas no § 4º do art. 60 da CF/88. Qualquer proposta de emenda à Constituição que viole uma daquelas cláusulas será tida por inconstitucional, até porque a proposta sequer poderá ser objeto de deliberação. A questão do controle da constitucionalidade das emendas constitucionais coloca-se como justificável, em termos formais, pelo fato da própria Constituição ter estabelecido o procedimento a ser adotado para a sua reforma e também porque, em termos materiais, a Constituição prevê o seu cerne irreformável, consistente nas matérias de natureza inalterável pelo Poder Constituinte Reformador (conf. art. 60, § 4º, da CF/88)". Apenas na Alemanha, segundo observou Gilmar Ferreira Mendes (Jurisdição Constitucional, p. 115), é que se considerou, num julgado isolado e tendo por base teoria elaborada por Otto Bachof (Normas Constitucionais Inconstitucionais ?, Coimbra, Ed. Atlântica) , que o Tribunal Constitucional detinha competência para aferir a validade de normas constitucionais com base em parâmetros suprapositivos, sendo-lhe facultado declarar a nulidade da norma constitucional inconstitucional nos casos fundamentais para a preservação do Estado de Direito.

  27. Fundamentos da Constituição, p. 45.

  28. Norma inconstitucional, como se sabe, é norma nula, não operando (ou não podendo operar) nenhum efeito juridicamente válido. Esta é a lição que consta de voto do eminente Ministro Celso de Mello, que tem valorizado sobremaneira sua atuação junto à nossa Suprema Corte: "Impõe-se ressaltar que o valor jurídico do ato inconstitucional é nenhum. É ele desprovido de qualquer eficácia no plano do Direito. `Uma conseqüência primária da inconstitucionalidade´ -- acentua Marcelo Rebelo de Souza (`O Valor Jurídico do Acto Inconstitucional´, vol. I/15-19, 1988, Lisboa) -- `é, em regra, a desvalorização da conduta inconstitucional, sem a qual a garantia da Constituição não existiria. Para que o princípio da constitucionalidade, expressão suprema e qualitativamente mais exigente do princípio da legalidade em sentido amplo, vigore, é essencial que, em regra, uma conduta contrária à Constituição não possa produzir cabalmente os exactos efeitos jurídicos que, em termos normais, lhe corresponderiam´. A lei inconstitucional, por ser nula e, conseqüentemente, ineficaz, reveste-se de absoluta inaplicabilidade. Falecendo-lhe legitimidade constitucional, a lei se apresenta desprovida de aptidão para gerar e operar qualquer efeito jurídico. `Sendo inconstitucional, a regra jurídica é nula´ (RTJ 102/671)" (RE nº 136.215-4/210/RJ, Rel. Min. Octávio Galloti, in JSTF-LEX 177/212).

  29. Ob. cit., p. 310.

  30. Princípios do Processo Civil na Constituição Federal, p. 92.


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Informações sobre o texto

Texto baseado em trabalho do curso de Doutorado em Direito Constitucional da PUC/SP, objetivando uma releitura de texto de Franz Kafka frente à realidade jurídica atual

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BORGES NETTO, André Luiz. Franz Kafka e o difícil acesso a proteção jurisdicional. Uma releitura jurídica. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 5, n. -1278, 1 jan. 2000. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/773. Acesso em: 28 mar. 2024.