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O júri civil norte-americano e a ordem pública no âmbito do Direito brasileiro

uma análise do caso Minpeco S/A

O júri civil norte-americano e a ordem pública no âmbito do Direito brasileiro: uma análise do caso Minpeco S/A

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Sumário: I – Introdução II – Relatório do Caso III – Resumo da Decisão IV – Comentário sobre a decisão


I - Introdução

            O presente artigo está dividido em três partes. Na primeira, procede-se a um relatório a respeito do caso em tela, a Sentença Estrangeira Contestada nº 4415-5, proveniente dos Estados Unidos da América, onde figuravam como partes a empresa peruana estatal Minpeco S/A e o senhor Naji Robert Nahas, que acabou por confirmar sentença condenatória oriunda de Nova Iorque, referente ao pagamento de 239 milhões de dólares, a título de indenização. Em um segundo momento, é efetuado um apanhado sobre os fundamentos que embasaram a decisão, sendo que em uma terceira fase são tecidos comentários sobre o procedimento, os princípios incidentes e demais fatores importantes para o amplo entendimento da questão.


II – Relatório do Caso

            Trata-se de sentença estrangeira contestada, junto ao Supremo Tribunal Federal – STF, pela empresa peruana estatal MINPECO S/A, figurando como requerido o empresário brasileiro Naji Robert Nahas, procedimento protocolado sob o número 4.415. O relator do caso foi o eminente Ministro Francisco Rezek, em julgamento ocorrido no dia 11 de dezembro de 1996, efetuado pelo pleno. A decisão foi publicada em 03 de abril de 1998.

            A sentença, originária do Tribunal Federal do Distrito Sul de Nova York condenou o empresário Nahas e demais pessoas, inclusive membros da família real saudita, em ação de perdas e danos, ajuizada pela empresa MINPECO S/A naquela jurisdição.

            O fato imputado ao empresário Najas foi o de agir em conluio no mercado de capitais, a fim de causar alta artificial no preço da prata junto à bolsa de valores. Com sua atitude, e considerando o montante de provas carreadas aos autos, o Tribunal Nova Iorquino entendeu que o requerido violou as seguintes leis: a) lei Sherman; b) lei da bolsa de mercadorias; c) os princípios de direito comum sobre fraude do Estado de Nova Iorque e d) a lei RICO – Racketeer Influenced and Corrupt Organizations.

            Assim, foi condenado, solidariamente, a pagar U$ 239.124.696,00 à empresa estatal MINPECO S/A.

            O requerido ofereceu contestação, argüindo, basicamente a) a incompetência do juízo prolator da decisão e b) ofensa à ordem pública [01]. A primeira alegação estaria baseada no fato de o réu - domiciliado no Brasil - ter recusado expressamente a jurisdição estrangeira. A ofensa à ordem pública estaria consubstanciada no fato de que a sentença prolatada nos Estados Unidos da América não estaria fundamentada, exigência de nosso ordenamento jurídico, conforme o inciso IX do art. 93 da CF 88 [02]. Tal ofensa também seria conseqüência de ter a decisão se originado de processo no qual júri civil decidiu sobre os fatos.


III – Resumo da Decisão

            O relator Rezek começa seu voto, ressaltando que o presente trata-se de sentença judicial, não sendo decisão arbitral, tão comum nesses casos, contendo peculiaridade que é estranha ao nosso direito, qual seja, a do júri civil.

            Sublinha o ministro que a sentença tem todos os requisitos exigidos e, à carta rogatória, concedeu-se exequatur, pelo presidente do Tribunal, Ministro Cordeiro Guerra, após citação da parte requerida.

            O Ministro Rezek registra que são duas as linhas mestras da contestação: A primeira, referente a incompetência de juízo, tendo em vista o réu ser domiciliado no Brasil e ser "insubmisso" ao foro de Nova York. A segunda, ofensa à ordem pública do Estado brasileiro, tendo em vista o instituto do júri civil norte-americano e a falta de fundamentação da decisão tomada por ele.

            Quanto à primeira alegação, registrou Rezek que a jurisdição é improrrogável apenas nos casos do art. 89, incisos I e II do CPC. Em outros casos, a competência é concorrente. Quanto a submissão, existem dois tipos: a aleatória e a necessária. A do presente caso é necessária, "quando resulta de um contrato, quando resulta de uma forma qualquer de atividade desenvolvida pela pessoa domiciliada no Brasil, no domínio espacial de uma soberania estrangeira, incluída a hipótese de responsabilidade por ato ilícito. Resulte então de contrato ou, à margem de contrato expresso, resulte de uma atividade desenvolvida pela parte domiciliada no Brasil no Estado estrangeiro, a submissão é necessária".

            Citou casos em que outras espécies de citação não foram consideradas perfectibilizadas, segundo a opinião do STF. Somente a carta rogatória cumpre o objetivo de notificar alguém do processo, e foi o que ocorreu no presente caso.

            Quanto à segunda alegação, analisando as argumentações da defesa, sobre a falta de fundamentação da sentença estrangeira, registrou que apesar do júri civil [03] não ter embasado seu veredicto, a decisão do júri passou pelo fulcro de juiz togado, que externou seu entendimento em 9 laudas, o que inclusive foi considerado não usual pelo relator, habituado com a objetividade do direito norte-americano.

            Sobre a ofensa de ordem pública alegada destacou ainda a Carta Rogatória nº 4.274, em Agravo Regimental de julho de 1995, onde houve entendimento no sentido de que "o sistema de júri civil, adotado pela lei americana, não fere o princípio da ordem pública."

            Rezek ainda aduziu que a "nudez de motivação deve ser total" (p. 171 do inteiro teor) para configurar eventual ilegalidade para uma sentença estrangeira, o que não ocorreu no presente caso.

            No que se refere à questão da execução, levantada pelo advogado da parte requerida, asseverou Rezek que o valor de quase U$ 240 milhões de dólares é o teto indenizatório do processo, e apesar de várias pessoas físicas e jurídicas terem sido condenadas, esse é o valor máximo devido, podendo ser realizada a divisão dos valores entre os devedores solidários.. Tal questão fugia da análise do caso em tela.

            Por fim, votou o Ministro pelo deferimento da homologação requerida.

            O votos dos demais ministros que abordaram o caso, senhores Marco Aurélio, Carlos Velloso e Moreira Alves foram sempre com o relator, dissonando apenas na questão de estabelecimento de honorários advocatícios.


IV – Comentário sobre a decisão

            A questão em tela traz dois sistemas jurídicos diferentes: a Common Law [04], originária nos países de origem anglo-saxônica e a Civil Law, proveniente da Europa continental, que espalharam--se posteriormente aos países colonizados. Neste caso, houve sentença condenatória em ação ajuizada contra brasileiro, domiciliado no Brasil, versando sobre indenização, devido à prática de ato ilícito em território norte-americano. A querela foi apreciada por um júri civil, conforme os ditames do direito americano, especificamente, de Nova York.

            O entendimento do STF concentra-se no fato de que o júri civil, instituto estranho ao direito brasileiro, e, em grande parte, senão totalmente, aos demais países baseados na civil law ou ramo romano-germânico, não fulmina a ordem pública do Estado Brasileiro.

            Vislumbra-se, nessa decisão, os vetores pós-modernos do direito internacional, dentre eles a depeçaje [05], ou seja, a multiplicidade de fontes. Apesar de aprioristicamente diferentes, os dois sistemas de direito acima referidos possuem semelhanças, principalmente no que tange às bases principiológicas que sustentam ambos arcabouços jurídicos, tais como o due process law [06]

            Essa característica, de integração de sistemas, é conseqüência da nova concepção do direito, que rompe com a tradição cartesiana de ciência. Como ramo pioneiro nas relações entre os povos, o direito internacional configura-se como verdadeiro state of art [07] da ciência jurídica.

            Não há que se falar mais em sistemas obtusos, sistêmicos em demasia, fechados à interferência de fatores alienígenas. É fator natural nas sociedades humanas a interação, o choque de interesses, o conflito de ideologias. Fatal que uma criação humana também tenha essas características. Em suma: se foram obedecidos os procedimentos legais no país de origem, nos ditames da lei, não há ofensa à ordem pública brasileira, mesmo se adotado o júri cível.


Bibliografia Consultada:

            ALVAREZ e FILHO (2001:71). ALVAREZ, Anselmo Prieto e FILHO, Wladimir Novaes. A Constituição dos EUA Anotada São Paulo: LTR, 2001. p. 71

            CARRINGTON (2003). CARRINGTON, Paul D. The Civil Jury and American Democracy in Duke Journal of Comparative & International Law, Vol. 13, No. 3, p. 79-94., Summer 2003 Paul D. Carrington Duke University School of Law Date posted to database: October 30, 2003 Disponível em http://www.law.duke.edu/journals/djcil/articles/djcil13p079.htm. Data de Acesso: 20.02.2005

            CALIXTO (1987) Calixto, Negi.   Ordem publica : excecao a eficacia do direito estrangeiro.  Curitiba: Ed. Universidade Federal do Parana, 1987. 75 p.

            COMPARATO (2003:83) COMPARATO Fábio Konder. A afirmação histórica dos Direitos Humanos. 3ª. ed. rev. e ampl. – São Paulo: Saraiva, 2003. p. 83.

            ITURRALDE SESMA(1995) ITURRALDE SESMA, Victoria. El precedente en el common law. 1. ed. Madrid: Civitas, 1995. 212 p.

            Larrouse de Poche: Dictionaire de la langue française et de la culture essentielle. Édition Mise à Jour. Paris: Larousse/VUEF, 2001.

            OPERTTI-BADAN(1981) Opertti-Badan, Didier.   La funcion del orden publico internacional. In: Organizacao dos Estados Americanos.Comite Juridico Interamericano. in Curso de derecho internacional. Washington : OEA, 1981. p. 448-474

            RIBEIRO (1966) Ribeiro, Elmo Pilla.   O Princípio da Ordem Pública em Direito Internacional Privado. 1966.

            PLUCKNETT (1956) Plucknett, Theodore F.T. A Concise History of the Common Law. Fifth Edition. Boston: Little, Brown and Company, 1956. Reprinted 2001 by The Lawbook Exchange, Ltd.

            SOARES (2000) SOARES, Guido Fernando Silva. Common law : introdução ao direito dos eua. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000. 197 p.

            TRIBE (1999). TRIBE, Laurence H. American Constitutional Law (University Textbook Series). 3rd edition. Boston: West Publishing Company, 1999.


Notas

            01 A literatura sobre "ordem pública" no direito internacional, é escassa. Pesquisa realizada junto às bibliotecas da UFRGS e da UNISINOS trouxe à tona alguns autores como (PILLA:1966); (OPERTTI-BADAN:1981) e (CALIXTO:1987).

            02 Art. 93 - Lei complementar, de iniciativa do Supremo Tribunal Federal, disporá sobre o Estatuto da Magistratura, observados os seguintes princípios: (...) IX - todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos, e fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade, podendo a lei, se o interesse público o exigir, limitar a presença, em determinados atos, às próprias partes e a seus advogados, ou somente a estes;

            03 Para maiores aprofundamentos sobre o instituto do júri civil no Direito Americano e sua relação com a democracia, vide o artigo do professor Paul D. CARRINGTON:2003, da universidade de Duke, na Carolina do Norte, Estados Unidos. Disponível em http://www.law.duke.edu/journals/djcil/articles/djcil13p079.htm. Data de Acesso: 20.02.2005

            04 Para um panorama geral da Common Law, consulte-se a clássica obra de (PLUCKNETT:1956). Sobre a questão do precedente, na Common Law, consulte-se (ITURRALDE SESMA:1995). O direito constitucional Americano é abordado, em profundidade, por (TRIBE:1999). A doutrina nacional possui uma introdução ao direito americano, como se vê em (SOARES:2000).

            05 O termo depeçaje é de origem francesa, provém do verbo dépecer, que significa picar, fragmentar, cortar em porções algo, normalmente carne animal. Fazendo o paralelo com o direito, podemos traduzi-lo como a fragmentação das fontes jurídicas, em um mundo cada vez mais dinâmico e integrador de sistemas jurídicos diversos.

            06 O due processo of law, ou, na tradução, devido processo legal é princípio basilar do direito, seja da Common Law ou da Civil Law, e suas origens remontam à Carta Magna de 1215, precisamente em seu artigo 39, que refere, na tradução de COMPARATO (2003:83) que "Nenhum homem livre será detido ou preso, nem privado de seus bens, banido ou exilado ou, de algum modo, prejudicado, nem agiremos ou mandaremos agir contra ele, senão mediante um juízo legal de seus pares ou segundo a lei da terra. A própria Constituição Norte-Americana consigna tal princípio, em sua 5ª Emenda, referida por ALVAREZ e FILHO (2001:71):"5º Emenda - Direitos em matéria criminal (1791) Ninguém será obrigado a responder por crime capital, ou por outro crime infamante, a não ser perante denúncia ou acusação de um grande júri, exceto tratando-se de casos que, em tempo de guerra ou perigo público, ocorram nas forças navais ou terrestres, ou na Guarda nacional, durante o serviço ativo; nem ninguém poderá ser, pelo mesmo crime, duas vezes ameaçado em sua vida ou saúde, nem ser obrigado a servir de testemunha contra si próprio em qualquer processo criminal, nem ser privado da vida, liberdade ou propriedade sem um devido processo legal (...)". Grifou-se.

            07 O termo state of art designa o mais alto nível de desenvolvimento, em determinada época, de certo ramo de ciência, atividade e/ou tecnologia.


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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

VIZZOTTO, Vinicius Diniz. O júri civil norte-americano e a ordem pública no âmbito do Direito brasileiro: uma análise do caso Minpeco S/A. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 11, n. 914, 3 jan. 2006. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/7768. Acesso em: 28 mar. 2024.