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Criminalização da homofobia pelo STF.

Reflexões para além do debate público

Criminalização da homofobia pelo STF. Reflexões para além do debate público

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Examinam-se alguns efeitos do julgamento da ADI por omissão n. 26 e do MI n. 4733 pelo STF, que reconheceram a homofobia e a transfobia como espécies do crime de racismo.

Resumo: A criminalização das práticas discriminatórias contra a população LGBT não é novidade no debate público. Há muito se discute acerca da necessidade ou não do alargamento do Direito Penal para abarcar tais condutas. Essa discussão, no entanto, ganhou novo fôlego a partir de recente decisão histórica da Suprema Corte brasileira, que através do julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão nº 26 e do Mandado de Injunção nº 4733, reconheceu a omissão do Poder Legislativo em regulamentar a matéria. A referida decisão, contudo, não se limitou apenas a reconhecer a mora do Congresso Nacional brasileiro, mas também, passou a enquadrar as práticas de Homofobia e Transfobia nos diversos tipos penais trazidos pela Lei nº 7.716/89, que tipifica os crimes de racismo. O referido julgamento, por sua vez, não foi bem visto pelo Senado Federal, que considerou que o STF extrapolou os limites de sua atuação, usurpando a competência legislativa do Congresso Nacional. Neste contexto, o presente trabalho tem o condão de analisar, de modo crítico, o referido julgamento do STF, jogando luz sobre a fronteira invisível entre o Judiciário e o Legislativo, levando-se em conta os princípios norteadores do Direito Penal Constitucional, bem como, os riscos do desequilíbrio entre os poderes da república para o Estado democrático de direito.

Palavras chave: Homofobia e Transfobia. Criminalização. Poder Judiciário. Limites


INTRODUÇÃO

Em recente decisão histórica, proferida no dia 13/06/2019, o Supremo Tribunal Federal aprovou a criminalização da homofobia e da transfobia. Através da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 26 e do Mandado de Injunção nº 4733, unidos no mesmo julgamento em razão da equivalência das matérias, a suprema corte brasileira reconheceu a omissão do congresso nacional quanto a promulgação de legislação destinada a criminalizar práticas discriminatórias direcionadas a população LGBT.

O Ministro Celso de Melo, relator da ADO 26, em um extenso voto (155 páginas), justificado pela delicadeza e relevância da matéria, entendeu que a Lei nº 7.716/91 – que tipifica o crime de racismo – também deverá ser utilizada para tipificar os crimes de homofobia e transfobia.

Segundo o julgador, a decisão não se trata de uma interpretação analógica (e gravosa) das normas penais previstas na Lei nº 7.716/89, violando a vedação de analogia “in malam partem”, tão pouco, de formulação de tipos penais novos, usurpando a competência constitucional do Congresso Nacional ou o princípio basilar da separação dos poderes, mas apenas, “à mera subsunção de condutas homotransfóbicas aos diversos preceitos primários de incriminação definidos em legislação penal já existente [...]” considerando que “os atos de homofobia e transfobia constituem concretas manifestações de racismo, compreendido este em sua dimensão social: o denominado racismo social.”(BRASIL, 2019, p. 95)

O julgamento da Suprema Corte, contudo, parece não ter agradado a uma parcela do Congresso Nacional. O Senador Marcos Rogério (DEM/RO) manifestou-se contrário a decisão do STF, apresentando ao plenário do Senado Federal, no dia 18/06/2019, um Projeto de Decreto Legislativo, registrado sob o nº 404/2019, cujo objetivo é a sustação dos efeitos legislativos da ADO 26 e do MI 4733.

Na justificativa do projeto, o Senador revelou que o Decreto apresentado tem a intenção de “preservar a competência legislativa do Congresso Nacional, eis que, de forma clara e inequívoca, a decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal enuncia feitos legislativos. E, pior: de natureza penal (...)” o que seria expressamente vedado pela Carta Magna.

Vale ressaltar que o Senado Federal, antes da decisão do STF, já havia se posicionado contrariamente à decisão do Supremo, chegando a apresentar requerimento direcionado do Min. Edson Fachin – relator do MI 4733 – pugnando pela extinção das ações constitucionais em testilha, asseverando que “Não se pode cogitar de mora deliberada quando no Parlamento a criminalização da homofobia é objeto de diversos e profícuos debates”, referindo-se ao Projeto de Lei nº 515/2017 em trâmite naquela Casa.

O caso em comento reascende, mais uma vez, o clássico debate acerca dos limites do Poder Judiciário face às competências e autonomia dos demais poderes da República, in casu, do Poder Legislativo. Desta vez, o impasse travado entre os poderes tem como “pano de fundo”, além das discussões acerca da judicialização da política e do ativismo judicial, a luta da população LGBT pela criminalização de práticas discriminatórias homofóbicas e transfóbicas, até então, não contempladas pelo ordenamento pátrio.

Neste cenário, enquanto não se vislumbra um ponto final no imbróglio constituído entre o STF e o Legislativo, este trabalho se propõe, sem qualquer pretensão de exaurir o tema, a uma análise acerca de alguns pontos importantes no âmbito do aludido julgamento, além de uma reflexão quanto aos limites da atuação do poder judiciário neste caso, quanto a aplicabilidade dos Principios Constitucionais do Direito Penal face a ampliação do conceito de racismo extraído da Lei 7.716/91, além dos eventuais desdobramentos e repercussões afetas aos pilares do sistema democrático brasileiro.


2. A ORIGEM HISTÓRICA DA HOMOFOBIA E DEMAIS PRÁTICAS ATENTATÓRIAS A LIBERDADE SEXUAL

A fim de melhor compreendermos a significância do julgamento trazido à baila, vale aqui fazer uma breve incursão histórica nas raízes do Estado brasileiro, desde o início de seu processo civilizatório, tomando como ponto de partida o Brasil Colônia.

A decisão proferia pela Suprema Corte, de forma bastante didática, recorda as primeiras legislações brasileiras, capitaneadas pela coroa portuguesa, relevando como a perseguição e a repressão às práticas homoafetivas eram institucionalizadas.

As Ordenações do Reino – as Ordenações Afonsinas (1446), as Ordenações Manuelinas (1521) e as Ordenações Filipinas (1603) – foram marcadas por uma latente hostilidade as práticas homoafetivas daquela época – os chamados atos de sodomia -, cominando sanções gravíssimas que viabilizavam, até mesmo, a imposição do “supplicium extremum” aos autores dessas práticas sexuais tidas por “desviantes”. (BRASIL, 2019, p.30).

Como revela VERONICA DE JESUS GOMES, em dissertação de mestrado intitulada “Vício dos Clérigos: A sodomia nas malhas do Tribunal do Santo Ofício de Lisboa” (GOMES, 2010):

As ‘Ordenações’ do Reino português foram rigorosas no julgamento do pecado/crime ao preverem penas bastante severas aos sodomitas, incluindo a morte, como já assinalavam, no século XV, as ‘Ordenações Afonsinas’. A pena capital foi confirmada pelas leis posteriores, quando houve melhor sistematização e recrudescimento das regras penais. As ‘Ordenações Manuelinas’ (1514/1521) mantiveram a fogueira para os transgressores, equipararam o crime de sodomia ao de lesa-majestade, ou seja, quem cometesse um ato sodomítico sofreria as mesmas sanções de quem traísse a pessoa do rei ou o seu real estado, declarando que ‘todos seus bens sejam confiscados pera a Coroa dos Nossos Reynos [...], assi propriamente como os daquelles, que cometem o crime da lesa Magestade contra seu Rey e Senhor’.

Além disso, condenou seus filhos e descendentes à infâmia, proibindo-lhes a ocupação de cargos públicos, além de incitar a delação, prometendo um terço da fazenda dos acusados aos que apontassem culpados, ‘em segredo ou em público’. Aquele que soubesse de algum ‘desviante’ e não o delatasse, qualquer que fosse sua pessoa, teria todos os bens confiscados e seria degredado para sempre dos reinos e senhorios portugueses.

Quanto aos parceiros dos sodomitas, o Código Manuelino previa que, em caso de delação, que culminasse na prisão do acusado, lhe fosse perdoada toda pena cível, ‘e crime contheudanesta Ordenaçam; (...)’. As disposições ali registradas valiam tanto para os que pecaram antes de sua promulgação quanto para os que, porventura, cometessem o dito crime dali em diante. As regras valiam também para a sodomia feminina, que, a partir de então, passou a configurar-se como um crime julgado pelas ordenações régias.

As Ordenações Filipinas (1603) confirmaram a pena capital aos sodomitas de qualquer qualidade, incluídas as mulheres, mantendo o confisco de bens e a infâmia de seus descendentes, da mesma maneira que o estabelecimento para os que cometessem o crime de lesa-majestade. Os delatores agora teriam direito à metade da fazenda do culpado. Em caso de delatados despossuídos, a Coroa pagaria cem cruzados ao ´descobridor’, quantia que seria devida apenas em caso de prisão do sodomita. Da mesma forma que as Manuelinas, condenavam ao confisco total de bens e ao degredo perpétuo os que não colaborassem com a justiça e reafirmavam a indulgência perante os que delatassem os parceiros.

A presença da Inquisição portuguesa no Brasil, entre os séculos XVI e XVIII, integrou o processo colonizador, e, nesse contexto, o Tribunal do Santo Ofício (também chamado de Santa Inquisição) foi um dos principais instrumentos de controle e coordenação da conduta dos católicos. Sendo o Brasil uma colônia lusitana, era inevitável que a Inquisição portuguesa estabelecesse seus vínculos também em terras coloniais.

Os registros históricos revelam que a questão da homossexualidade, desde o período colonial, foi tratada sob o signo da mais cruel das repressões, experimentando, a partir da dominação lusitana, tratamentos normativos que jamais se despojaram da eiva do preconceito e da discriminação. (MOTT, ano [?])

Fazendo um salto para o período contemporâneo, mais precisamente no século XIX, marcado pelas ideias positivistas, a ciência passou a ser o depositário dos anseios da humanidade, fazendo, inclusive, com que a homoafetividade mudasse de espectro. Antes ancorada a figura do pecado e do ilícito, sacramentada como um desvio moral e marcada pela forte repressão da Igreja Católica, as inclinações homossexuais passaram a ser enquadradas como doença de natureza psíquica. Saiu de cena o ´sodomita’ e entra em seu lugar a figura do ‘degenerado sexual’. (VECCHIATTI,2008, p.59).

Nessa época, muitos países europeus descriminalizaram a sodomia, porém as questões relativas às relações sexuais entre pessoas do mesmo sexo estavam longe de ser terreno pacífico nos campos do saber. No Brasil, mesmo havendo descriminalização, os sodomitas continuaram a ser punidos pelo sistema penal. A polícia tornou-se responsável por zelar pela moral e os bons costumes da sociedade brasileira. (LOBATO; SABINO e ABREU, 2008, p.317)

Esta mudança de paradigma deve-se, em grande medida, ao sexólogo Richard von Krafft-Ebing, que em 1886, em sua obra ´Psychopathia Sexualis´, propôs que a homossexualidade teria como causa uma "inversão congênita" que ocorria durante o nascimento ou era adquirida pelo indivíduo. Para definir a normalidade em relação à qual determinados comportamentos sexuais serão considerados desviantes, Krafft buscará recurso à noção biológica, portanto natural, de "preservação da espécie". O prazer obtido da relação sexual será natural na medida em que contribua para a reprodução. Todo erotismo praticado fora desse contexto deverá ser considerado como desviante. Sob esse prisma, deverão ser consideradas como "perversão sexual" todas as satisfações eróticas cujo objetivo não seja a preservação da espécie (LANTERI-LAURA, 1994, p. 39).

Não é demais recordar que Organização Mundial de Saúde chegou a incluir o homossexualismo na classificação internacional de doenças de 1977 (CID) como uma doença mental, contudo, na revisão da lista de doenças, no dia 17 de maio de 1990, a opção sexual foi retirada desse rol. Por este motivo, o dia 17 de maio ficou marcado como Dia Internacional contra a Homofobia. Apesar desta resolução internacional, cada país e cultura trata a questão da homossexualidade de maneira diferente. O Brasil, por exemplo, por meio do Conselho Federal de Psicologia deixou de considerar a opção sexual como doença ainda em 1985, antes mesmo da resolução da OMS. Por outro lado, a China tomou a atitude apenas em 2001. (SANTOS, 2016?)

A partir destes estudos e fatos históricos aqui relatados, não é de se estranhar que ainda hoje testemunhemos uma remanescente cultura do preconceito e da discriminação às populações LGBT, visto que desde a construção, ainda embrionária, da nossa identidade cultural, já se tinha uma forte e dominante influência dos valores morais herdados da Coroa Portuguesa, associada ao poder inquisitorial da Igreja Católica, que, por vários séculos, criminalizaram e condenaram as manifestações homoeróticas, tidas como práticas nefandas, perseguindo e punindo rigorosamente aqueles que fossem identificados como sodomitas e, posteriormente, homossexuais.


3. AS TENTATIVAS DE CRIMINALIZAÇÃO DA HOMOFOBIA QUE NÃO LOGRARAM ÊXITO

Um dos motivos que acentuou a divergência entre o Senado Federal acerca do julgamento da ADO 26 e do MI 4733, que terminou por reconhecer a omissão do Poder Legislativo quanto à criminalização de práticas discriminatórias em face da população LGBT, é o fato de que a matéria objeto de apreciação pela Suprema Corte também estava sendo objeto de um Projeto de Lei ainda em tramitação naquela Casa Legislativa.

O Projeto de Lei nº 515/2017, apresentado em 19 de dezembro de 2017 pela Comissão de Direitos Humanos e Legislação Participativa do Senado, que visa tornar crime as práticas discriminatórias relacionadas a identidade de gênero e a orientação sexual, ainda estava pendente de apreciação pela Comissão de Constituição e Justiça da referida casa quando o Suprema Corte brasileira determinou a inclusão das referidas ações na pauta de julgamento do dia 13.02.2019. (SENADO FEDERAL,2019)

Vale recordar que não é a primeira vez que o Poder Legislativo Federal trata da matéria. Em 2001, foi apresentado na Câmara dos Deputados um Projeto de Lei com o objetivo de regulamentar “os crimes resultantes de discriminação ou preconceito de gênero, sexo, orientação sexual ou identidade de gênero” (PL 2.001/2001), contudo, este somente veio a ser aprovado pela Casa Iniciadora em 23.11.2006, após mais de 5 (cinco) anos de tramitação, ocasião em que fora remetido ao Senado, sendo registrado como Projeto da Câmara nº 122/2006. (CAMARA DOS DEPUTADOS, 2019)

No âmbito da Casa Revisora (Senado Federal), o referido projeto de lei tramitou por mais de 8 (oito) anos, contudo, em razão do que dispõe o artigo 332, do Regimento Interno do Senado Federal (RISF), que prevê o arquivamento compulsório de proposição legislativa que se encontre em tramitação há mais de duas legislaturas, a matéria foi arquivada.

No início da legislatura seguinte, por meio do Requerimento nº 46/2011 de autoria da Senadora Marta Suplicy, o Projeto de Lei 122/2006 chegou a ser desarquivado, retornando à apreciação das comissões temáticas, contudo, em razão do Requerimento nº 1.443/2013, formulado pelo Senador Eduardo Lopes, a referida proposta legislativa fora apensada ao Projeto de Lei nº 236/2012, que visava a instituição do novo Código Penal.

Tendo em vista que o referido projeto (PL 236/2012), há mais de 7(sete) anos tramita naquela casa sem qualquer previsão de desfecho, o PL 122 não sobreviveu ao final de mais uma legislatura, sendo arquivado definitivamente por força do art. 332 do RISF.

Sobreleva notar, portanto, que, apesar das diversas investidas no âmbito do Poder Legislativo, a criminalização das práticas homotransfóbicas nunca veio a se tornar uma realidade, fazendo com que o Ministro Celso de Melo reconhecesse a flagrante omissão parlamentar mesmo havendo um Projeto de Lei em apreciação (PL 515/2017). Afirma o Relator da ADO em sua decisão que “ Não obstante respeitável o esforço dispensado pelo Congresso Nacional no sentido de instaurar o debate legislativo em torno da questão da criminalização da homofobia, revela-se inquestionável, no entanto, a ausência conspícua de qualquer providência efetiva (...)”. (BRASIL, 2019, p. 48)

O Ministro, inclusive, parece ter antevisto as críticas oriundas do Senado Federal acerca do empecilho de já existir uma proposta legislativa acerca da matéria, que, em tese, desnaturaria a omissão parlamentar, já que, em seu voto, o julgador assevera que a Suprema Corte já havia proferido entendimento assinalando que o estado de mora legislativa poderia se dar tanto na fase inaugural do processo de elaboração legislativa (“mora agendi”), quanto na fase de deliberação sobre as propostas já apresentadas (“mora deliberandi”). (BRASIL, 2019. p. 49).

A questão acerca da existência de Projeto de Lei em tramitação que se destina à criminalização de condutas discriminatórias relacionadas a práticas homotransfóbicas como óbice ao reconhecimento da omissão legislativa sinalizava o prelúdio da controvérsia que se instalaria entre o Senado Federal e o STF acerca do julgamento em questão.

Como já visto, a Suprema Corte considerou excessiva e ilegal a mora do Legislativo em regular a matéria no caso em apreço. Contudo, não há um critério objetivo que venha a distinguir o que seria para o judiciário o regular tempo de tramitação de uma matéria no âmbito do congresso nacional, gerando uma verdadeira zona cinzenta.

Vale dizer que a questão por ora discutida desagua em um problema ainda maior, qual seja, a linha invisível que tangencia os limites de atuação dos Poderes da República, de cuja harmonia depende o próprio Estado Democrático de Direito. No seguinte tópico, pretende-se colocar luz sobre a questão do julgamento das referidas ações constitucionais, em especial, acerca dos limites do judiciário em face às competências do legislativo e suas implicações.


4. ADO 26 E MI 4733: O JULGAMENTO DO STF E SUAS REPERCUSSÕES PARA ALÉM DO DEBATE PÚBLICO

A defesa das pautas dos movimentos LGBTs ainda é um tema polarizado e que suscita muitas paixões, o que não poderia ser diferente. Tomando por referência o breve e superficial relato histórico trazido à baila no início do presente trabalho, é possível perceber que, por traz do ‘preconceito nosso de cada dia’, aparentemente banal, existem séculos de perseguição, opressão e marginalização institucionalizada pelo próprio Estado às liberdades sexuais e de autodeterminação dos indivíduos que não se encaixavam nos padrões heteronomativos fixados.

Não há dúvidas de que a heteronormatividade – agora de natureza moral - ainda presente em nossa cultura é um reflexo direto do ódio institucionalizado de outras épocas e que privar o indivíduo do exercício de sua liberdade sexual e, mais ainda, de sua identidade de gênero, é uma violência sem precedentes, todavia, tais questões não são objeto do presente trabalho, que apenas tem o condão de jogar luz, sob o ponto de vista técnico-jurídico, na maneira que se deu a criminalização das práticas homotransfóbicas pelo Judiciário.

A decisão proferida pelo Supremo Tribunal, no julgamento da ADO 26 e do MI 4733, gravita em torno da linha invisível que separa os limites de atuação entre o Judiciário e o Legislativo. Vale salientar que as referidas ações constitucionais não foram unidas no mesmo julgamento à toa. Embora guardem suas diferenças, estas demandas se aproximam, essencialmente, por tratarem de omissão legislativa que, de algum modo, venham a violar a Constituição, impedindo-lhe de dar concretude a um direito previsto. (NEVES, 2018, p.158)

Ocorre, porém, que a decisão proferida pelo Min. Celso de Melo na ADO 26 não se limitou apenas à reconhecer a existência de uma omissão normativa inconstitucional por parte do Poder Legislativo da União, mas também, estabeleceu uma interpretação conforme para enquadrar a homofobia e a transfobia, em qualquer de suas manifestações, nos diversos tipos penais definidos na Lei nº 7.716/89, que tipifica os crimes resultantes de preconceito de raça ou de cor. (BRASIL, 2019, p.154)

O Senado Federal, no entanto, considerou que a decisão do STF extrapolou os limites de atuação do judiciário, usurpando a competência legislativa privativa do Congresso Nacional para legislar em matéria penal, nos termos do artigo 22, inciso I, da Constituição Federal, razão pela qual, ingressou com o Projeto de Decreto Legislativo nº 404/2019 com o objetivo de sustar os efeitos da decisão prolatada pelo Supremo. (SENADO FEDERAL, 2019)

Além dos limites de atuação do Judiciário face ao Poder Legislativo, há outros aspectos no julgamento em questão que merecem um olhar mais atento, principalmente, por terem ficado à mingua de um enfrentamento adequado pela Suprema Corte. A inovação no âmbito criminal jamais pode perder de vista os Princípios Constitucionais do Direito Penal, sejam os implícitos ou os explícitos. Recorrendo aos ensinamentos de Guilherme de Souza Nucci, por se tratar da mais drástica opção estatal para regular os conflitos e aplicar as sanções, a aplicação da lei penal deve amoldar-se ao princípio regente da dignidade humana, bem como, ao princípio histórico do Devido Processo Legal, que guarda suas raízes no Princípio da Legalidade. (NUCCI, 2016, p. 71)

Segundo o Princípio da Legalidade (ou Reserva Legal), as normas penais incriminadoras somente podem ser criadas a partir da lei em sentido estrito, e com isso, diga-se aquelas emanadas do Poder Legislativo, devendo ser respeitado os procedimentos previsto no artigo 5º, XXXIX, da Constituição Federal, bem como, do artigo 1º do Código Penal brasileiro, segundo o qual “não há crime sem lei anterior que o defina, nem tão pouco, pena “sem prévia cominação legal”. (Idem. p.72)

Outro ponto que também evidencia o aparente afastamento dos princípios penais e das garantias constitucionais é a utilização da analogia para tipificar as práticas de homofobia e transfobia com os crimes contra a igualdade racial, tipificados pela Lei 7.716/89.  Como se sabe, a analogia é um procedimento autointegrativo do direito que cria uma norma jurídica onde, originalmente, não existe. Muito embora ela seja perfeitamente aplicável em vários ramos do direito, quando se trata de matéria penal, a analogia não poderá ser aplicada, pelo menos, ‘in malam partem’ (em prejuízo da parte), sob pena de flagrante mitigação do Princípio da Legalidade (ou Reserva Legal). (Idem. p.89)

Diante desses relevantes obstáculos à pretensão do STF de tornar crime as práticas de homofobia e transfobia, o Ministro Relator destacou que a referida decisão não se trataria de uma criação legislativa por parte do judiciário, nem tão pouco, de uma interpretação analógica ‘in malam partem’, mas sim, de uma “mera subsunção de condutas homotransfóbicas aos diversos preceitos primários de incriminação definidos em legislação penal já existente”, uma vez que tais práticas caracterizaram-se como uma modalidade de racismo; o ‘racismo social’.

Analisando melhor o conceito de subsunção, do ponto de vista semântico, esta pode ser compreendida como a ação ou efeito de subsumir, isto é, incluir (alguma coisa) em algo maior, mais amplo. Do ponto de vista jurídico, representa a adequação de fato jurídico naturalístico em sentido amplo (seja uma conduta humana, um fato da natureza ou algum fato intangível fisiologicamente, porém, relevante para o direito) à uma determinada norma jurídica. (DIREITONET, 2019)

Em matéria penal, a subsunção pode ser compreendida como o reconhecimento da tipicidade, que por sua vez, deve levar em conta o Princípio da Taxatividade, segundo o qual, as leis penais incriminadoras devem ser escritas de maneira suficientemente clara, evitando-se ambiguidades, imprecisão ou qualquer outro tipo de indeterminação semântica que venha a deixar em dúvida os destinatários da norma e os aplicadores do direito acerca do seu conteúdo, evitando-se diferentes e contrastantes aplicações do direito. (NUCCE, 2016, p.78)

Se de um lado, um artigo 5º, inciso XLI, da Constituição Federal, ao dispor que “a lei punirá qualquer discriminação atentatória dos direitos e liberdades fundamentais” se mostra suficiente para o Supremo diagnosticar a mora do Congresso e criminalizar práticas discriminatórias homotransfóbicas, por outro lado, a decisão proferida também se mostra extremamente frágil e arbitrária ao ignorar os Princípios Constitucionais do Direito Penal e, de maneira artificiosa e semanticamente elástica, considerar a criminalização da homofobia e da transfobia uma mera subsunção de tais condutas aos preceitos incriminadores da Lei de Racismo.

Apresentado 100 (cem) anos após a abolição da escravidão pela Lei Áurea, o Projeto de Lei nº 668/89, que culminou na lei de crimes raciais, constitui um marco histórico na República do Brasil, não havendo quaisquer dúvidas quanto à intenção do legislador ao alcance pretendido com a norma incriminadora promulgada. Vale aqui destacar o seguinte trecho da justificação do referido PL que refuta a ideia de subsunção incorporada pela ADO 26 (CAMARA DOS DEPUTADOS, 2019):

“O negro deixou, sem dúvida, de ser escravo, mas não conquistou a cidadania. Ainda não tem acesso aos diferentes planos da vida econômica e política. É mais do que evidente que as desigualdades e discriminações raciais marcam a sociedade, o Estado e as relações econômicas em nosso País. Passados anos da Lei Áurea, esta é a situação real. Embora os valores culturais – em suma, a herança cultural africana – mantenham a capacidade de impregnar a vida do brasileiro, quaisquer que sejam os traços étnicos, o negro está privado do direito à cidadania em uma prática odienda do racismo. ”

É imperioso notar que, por traz de uma decisão que, aparentemente, parece atender ao clamor público de uma população vitimada pelas práticas discriminatórias homotransfóbicas, pode haver um risco a democracia constitucional, tendo em vista que não há legitimidade representativa quando o Poder Judiciário passa a legislar. Regimes totalitários, que representam a antítese da democracia, são comumente marcados por mecanismos e teorizações jurídico-políticas que enfraquecem o poder normativo da lei. (FERREIRA, 2018, p.148)

A questão da criminalização da homofobia ainda não possui um ponto final com o referido julgamento. Não se sabe ainda se os efeitos da decisão serão sustados pelo Projeto de Decreto Legislativo 404/2019, ou se a matéria será, em um futuro breve, regulamentada pelo Congresso, ou mesmo, se os Juízes de piso irão mitigar os princípios penais constitucionais para dar efetividade a tipificação realizada pelo STJ.

Todavia, o julgamento em análise conclama a uma reflexão acerca dos fins e dos meios quando se trata das exacerbações entre os Poderes da República, uma vez que, nem sempre, a falta de legitimidade do Judiciário estará em sintonia com o melhor interesse público, ou com os daqueles legitimados para representarem os interessas da população pelo exercício do voto.


5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Muito embora a referida decisão do Supremo Tribunal venha a se conciliar com os anseios da População LGBT, bem como de todos aqueles que defendem uma tutela penal específica para práticas discriminatórias homotransfóbicas, é preciso que se tenha um olhar cauteloso quanto ao modo de efetivação dessa inovação jurídica.

A separação dos poderes, assim como os Princípios Constitucionais do Direito Penal. são, essencialmente, pilares estruturantes do Estado Democrático de Direito. A história das civilizações não deixa dúvidas quanto aos riscos do desequilíbrio e da supressão do consagrado sistema de freios e contrapesos (ditaduras, regimes totalitários, abuso de poder), bem como, da inobservância das garantias individuais pelo Direito Penal.

É notório que o esforço hermenêutico empregado pela Suprema Corte brasileira, no julgamento da ADO 26 e do MI 4733, para enquadrar as práticas discriminatórias de caráter homófobo e transmófobo na lei de crimes raciais, ultrapassou a linha que baliza a correta atuação do Poder Judiciário, em especial, quanto ao descompasso dos argumentos apresentados na fundamentação da decisão com os princípios constitucionais do direito penal que se aplicam, inclusive, ao próprio legislador.

A proteção jurídica do direito à liberdade sexual e de autodeterminação, embora necessária, não deve ser concretizada à revelia dos Princípios Constitucionais do Direito Penal, nem tampouco, de modo que venha a estremecer o equilíbrio entre os poderes da república. Enquanto ainda não se tem um desfecho definitivo, tendo em vista o pleito do Senado para sustar os efeitos da decisão, a tramitação do Projeto de Lei nº 515/2017, que também trata dos crimes tipificados pelo Judiciário e a repercussão do julgado perante os juízes de primeiro grau, é importante atentar-se para o papel institucional dos atores que compõem esta trama.


6. REFERÊNCIAS

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADO n. 26. Requerente: Partido Popular Socialista. Requerido: Congresso Nacional e Presidente do Senado Federal. Rel. Min. Celso de Melo. Brasília, DF, 13 de junho de 2019. Diário de Justiça Eletrônico, Brasília-DF, 28 de junho de 2019. Disponível em:< https://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=4515053>. Acesso em 21 de jul. 2019.

CAMARA DOS DEPUTADOS. Atividade Legislativa: PL 5003/2001. Disponível em:< https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=31842>. Acesso em 22 jul.2019.

CAMARA DOS DEPUTADOS. Atividade Legislativa: PL 668/1988. Disponível em:< https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=180567>. Acesso em 29 jul.2019.

DIREITONET. Dicionário jurídico: subsunção. Disponível em:< https://www.direitonet.com.br/dicionario/exibir/883/Subsuncao>. Acesso em 29 jul. 2019.

FERREIRA, Fábio Luiz Bragança. A possibilidade de superação da discricionariedade judicial positivista pelo abandono do livre convencimento no cpc/2015. Bahia: Juspodivum, 2018. 

GOMES, Verônica de Jesus. Vícios dos clérigos: a sodomia nas malhas do Tribunal do Santo Ofício em Lisboa. Niterói: UFL, 2010.

LANTERI-LAURA, George. Leitura das perversões: história de sua apropriação médica. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1994.

LOBATO, Wolney; SABINO, Claudia de Vilhena Sales Shayer; DE ABREU, João Francisco. Iniciação científica: destaques 2007 Voluma 1. Belo Horizonte: Ed. PUC Minas, 2008.

MOTT, Luiz. Sodomia na Bahia: o amor que não ousava dizer o nome. [SI]. Ano [?]. Disponível em:< https://luizmottblog.wordpress.com/artigos/sodomia-na-bahia-o-amor-que-nao-ousava-dizer-o-nome/>. Acesso em 22 jul.2019.

NEVES, Daniel Amorim Assumpção. Ações constitucionais: volume único. Salvador: Editora Juspodivum, 2018.

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SENADO FEDERAL. Atividade Legislativa: Projeto de Decreto Legislativo nº 404, de 2019. Disponível em:< https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/137328>. Acesso em 25 jul.2019.

VECCHIATTI, Paulo Roberto Iotti. Manual da Homoafetividade. Da possibilidade jurídica do casamento civil, da união estável e da adoção por casais homoafetivo. São Paulo: Método, 2008.


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Informações sobre o texto

O presente trabalho foi elaborado em razão do Edital de Convocação para Trabalhos Acadêmicos promovido pela Comissão de Diversidade Sexual e de Gênero da OAB/PE, sendo selecionado para compor o livro de comemoração dos seus 10 anos de atividade e pioneirismo intitulado: "Debates e Reflexões sobre Direitos da Diversidade Sexual e de Gênero".

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MIRANDA, Lucas Barbosa de. Criminalização da homofobia pelo STF. Reflexões para além do debate público. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 24, n. 5980, 15 nov. 2019. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/77774. Acesso em: 28 mar. 2024.