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Ódio divino: a intolerância religiosa disfarçada de cristianismo

Ódio divino: a intolerância religiosa disfarçada de cristianismo

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A intolerância religiosa tem uma cicatriz histórica no mundo, e vem sendo demonstrada em grandes proporções na sociedade brasileira. Portanto, o presente artigo visa apresentar a importância de medidas que venham a coibir tal prática preconceituosa.

INTRODUÇÃO

O inciso VI do artigo 5º da Constituição Federal prevê a liberdade religiosa, assegurando a inviolabilidade do exercício de crença e de cultos religiosos, bem como a proteção aos locais de culto e as suas liturgias, sendo dever do Estado – o qual é laico – de não favorecer, financiar ou atrapalhar o exercício de qualquer religião. Portanto, todos os indivíduos que se encontrarem em território brasileiro são livres para praticar a religião que bem entenderem, seja em ambiente doméstico ou público.

Trata-se de um direito fundamental, e desta forma, o governo é proibido em mostrar sua não laicidade, bem como desprezar ou rivalizar religiões dentro do território nacional, vindo a penalizar atos que visem desrespeitar qualquer crença ou o não seguimento destas, já que não se é obrigatório ter uma religião no Brasil devido à já comentada laicidade do Estado.

Porém, mesmo que isso seja garantido pela Constituição, não impede ataques de religiões de vertente cristãs contra àquelas que não versem sobre o assunto, sendo que o Brasil possui um catolicismo enraizado e sucessório, que veio a ser separado do Estado apenas quando o Brasil se tornou uma República, já que antes disso a Igreja possuía forte influência no país, mas que infelizmente continua a apontar dedos e queimar pessoas – não literalmente, mas socialmente.

Sendo assim, o presente artigo visa demonstrar a atual situação do Brasil perante outras religiões que não o cristianismo, tendo em vista a sua raiz cristã, bem como a contradição pelo qual essa vertente diz pôr em prática em contrapartida com os atos de seus fiéis, estudando o período da caça às bruxas, a catequização dos indígenas e a essência do cristão moderno em suas atitudes e a falta de uma resposta do Estado perante esse tipo de crime através do método teórico pela consulta em obras e artigos sobre o tema.


1. CICATRIZES HISTÓRICAS

A intolerância religiosa não é assunto novo no mundo, por isso devido ao seu vasto histórico, serão abordados apenas dois períodos. Tal prática centenária existe desde o fim da Idade Média, através de perseguições de cunho religioso – sendo o medo dos poderes do Diabo uma das principais causas da caça às bruxas, mesmo sendo esse personagem atribuído ao cristianismo, e não à bruxaria.

De todas essas acusações de bruxaria, as mais significativas são as de orgias sexuais, sacrifício de seres humanos, especialmente crianças, e canibalismo. Todas essas acusações são antigas. Os sírios fizeram-nas contra os judeus, os romanos contra os cristãos e os cristãos contra os gnósticos. (RUSSEL; ALEXANDER, 2019, Pág. 78)

Os contos da época em nada ajudavam, sendo que reforçavam a ideia demoníaca das bruxas. Com a teologia, autores cristãos dominaram a Europa – inicialmente no século XII – onde criaram razões e uma ideologia na qual os caçadores de bruxas poderiam se apoiar – como por exemplo o pacto com o Diabo, orgias e canibalismo – para perseguir mulheres – já que, de acordo com eles, a prática da bruxaria era uma tradição predominantemente feminina – e condena-las à morte na fogueira, a qual já havia sido determinada aos hereges a partir do século XI. (RUSSEL; ALEXANDER, 2019)

Do século XII para frente, a heresia foi sendo mais duramente punida tanto pelo direito civil quanto pelo canônico. Com o renascimento do direito romano, que impunha que homens e mulheres tinham que ser subordinados ao Estado, os códigos de Teodósio e Justiniano tinham imposto a heresia como um crime de lesa-majestade contra Deus, merecedor de castigo de morte, encorajando a caça às bruxas, que ficou mais forte a partir daí. (RUSSEL; ALEXANDER, 2019)

O direito canônico ficou mais rigoroso, em parte por estar sob a influência do direito romano, em parte pela influência do método escolástico no âmbito das leis, que exigia cuidadosa organização e eficiência. Ensinara Santo Agostinho que o erro não tem direitos. São Tomás de Aquino insistia nos direitos da consciência individual, mas logo argumentaria também que a heresia era um pecado, visto que tal ignorância deve ser o resultado de negligencia criminosa. Todos os pactos com demônios, explícitos ou implícitos, equivaliam à apostasia da fé cristã, argumentou São Tomás, e essa doutrina de pacto “implícito” tornou-se uma das favoritas dos caçadores de bruxas. No pacto explícito, o indivíduo literalmente invocava o Diabo ou um demônio e celebrava um acordo com ele. No pacto implícito, tal acordo não era necessário. Qualquer um que professasse tenazmente a heresia estava, em princípio, submetido ao Diabo, independentemente se o tivesse convocado, se pretendesse fazê-lo ou até mesmo se pensasse ser isso possível. À sombra dessa doutrina, todos os heréticos eram considerados implicitamente conluiados com Satã, se não em termos de preceitos, pelo menos nas intenções. (RUSSEL; ALEXANDER, 2019, Pág. 89/90).

Entre os anos 1227 e 1235, houve a Inquisição papal – porque os papas começaram a exigir medidas mais severas contra a heresia –, e assim, assimilavam a feitiçaria com a heresia, usando os inquisidores essa brecha para justificar condenações em massa, manipulando totalmente a situação e estigmatizando a imagem das bruxas perante a sociedade, inaugurando a caça às bruxas na história – que duraria mais de duzentos anos. (RUSSEL; ALEXANDER, 2019)

A psicologia ajuda a explicar a perseguição. As pessoas projetam desejos e paixões perversos mais facilmente sobre indivíduos isolados e solitários, como viúvas idosas e velhotas enrugadas. Algumas das acusadas, impelidas pelo medo e pela culpa, acabam acreditando em sua própria culpabilidade. As freiras dementes de Louviers e Loudun acreditavam ter praticado amor com o Diabo. A caça às bruxas é um importante capítulo na história da maldade humana, comparável aos crimes do nazismo e do stalinismo no século XX. (RUSSEL; ALEXANDER, 2019, Pág. 94/95).

As sanções contra a bruxaria vinham piorando com o passar do tempo. A partir do século XV, distribuía-se folhetos que tratavam a bruxaria como algo diabólico, reforçando a ideia de que a prática tratava-se de uma conspiração contra a Igreja articulada por Lúcifer. (RUSSEL; ALEXANDER, 2019)

Os julgamentos passaram a ser padronizados, onde era apresentada uma lista de perguntas para o acusado que era torturado até confessar – mesmo que não tenha feito nada –, reforçando o estereotipo de bruxa criado na Inquisição e fazendo crescer o número de julgamentos, tendo em vista a sua probatória insignificante, – não sendo permitido a apresentação de defesa na grande maioria dos casos, como se tal apresentação fosse adiantar em alguma coisa – se acusado, era condenado. (RUSSEL; ALEXANDER, 2019)

Há quanto tempo você é bruxa? Por que se tornou bruxa? Como foi que se fez bruxa e o que aconteceu nessa ocasião? [Que demônio você escolheu para ser seu amante?] Qual era o nome dele? Qual era o nome do seu mestre entre os demônios? Que juramento você foi forçada a prestar-lhe? Como fez esse juramento e quais foram as suas condições?... Onde consumou a união com seu íncubo? Que demônios e que outros humanos participaram [no sabá]?... como foi organizado o banquete do sabá? Que marca do diabo seu íncubo deixou no seu corpo? Que danos você causou a tal e tal pessoa, e como foi que os infligiu?... Quem são as crianças que você enfeitiçou?... Quem são os seus cúmplices na prática do mal?... Qual é o unguento com que você esfrega o cabo de sua vassoura e como é preparado? Como faz para poder voar pelos ares? (ROBINS, 1959, Pág. 312-317 apud RUSSEL; ALEXANDER, 2019, Pág. 104).

A Reforma Protestante ocorrida no século XVI não abandonou a perseguição às bruxas, agindo com intolerância abrupta – sendo superados apenas pelos católicos no século seguinte –, que continuou a ser alimentada pela imprensa que sempre associavam-nas ao mal e à todos os estigmas criados pela sociedade cristã. Tal rixa entre católicos e protestantes contribuiu para as perseguições serem cada vez mais frequentes – onde pessoas simples eram mais acusadas do que as com status superior.

(...) O processo é simples. Morre um determinado número de crianças. A parteira é uma viúva solitária e impopular. A culpa pelas mortes recai sobre ela e toma contornos sobrenaturais. Portanto, ela deve ser uma bruxa. Mas é mais do que sabido que as bruxas voam à noite, fazem pactos com o Diabo e praticam outras espécies de demonolatria. Perguntas a respeito de tudo isso lhe são feitas sob tortura e, em sua agonia e terror, ela confessa. A confissão reforça a imagem aceita da bruxa. Infortúnios são interpretados como ações maléficas, as ações maléficas são vistas como feitiçaria, a feitiçaria é percebida como bruxaria, e mais um ser humano é torturado e morto. (RUSSEL; ALEXANDER, 2019, Pág. 108).

Mostra-se que a condenação à bruxaria era um delírio coletivo que incentivava comportamentos para construir uma verdade cínica, desempenhando um papel social de se responsabilizar alguém por desventuras cotidianas, indo desde a devastação de uma plantação até a impotência sexual, já que se era mais fácil culpar uma bruxa do que se difamar ou se virar contra “Deus”, já de acordo com Jeffrey B. Russel e Brooks Alexander em “História da Bruxaria” (2019), Pág. 136/137 “se Deus, ou o destino, causou alguma doença a alguém, não há meios para revidar; mas se a responsável for uma bruxa, poder-se-á rechaça-la ou neutralizar-lhe o poder”. (RUSSEL; ALEXANDER, 2019)

Desta forma, acreditava-se que se executassem uma bruxa, sua onda de azar desapareceria. O perfil em que as bruxas se encaixavam não era o da imagem sustentada por séculos de uma senhora velha e com verrugas pelo rosto, mas por traços como os de mendigar, resmungar, praguejar e altercar, sendo preferíveis as com idade dos cinquenta aos sessenta anos. (RUSSEL; ALEXANDER, 2019)

Por fim, resta esclarecer que existem – historicamente – três tipos de bruxos, os quais têm pouco em comum (2019): “o feiticeiro, que pratica a magia simples, encontrado no mundo inteiro; o herege, de quem se afirmava praticar diabolismo e que foi perseguido durante as caças às bruxas; e o neopagão”. A questão do satanismo levantada pela Igreja é falaciosa, tendo em vista que tais cristãos agiam de acordo com aquilo que acreditavam – mesmo sendo hipócrita e cruel –, causando a morte de cerca de sessenta mil pessoas inocentes. (RUSSEL; ALEXANDER, 2019)

(...). Essencialmente, as caças às bruxas atestam a presença de uma horrenda falha na natureza humana: o desejo de projetar o mal sobre os outros, de defini-los como excluídos e de então puni-los cruelmente. As condenações à fogueira em Bamberg e os enforcamentos de Salem são funcionalmente comparáveis aos fornos de Dachau, às brutalidades do Gulag e aos genocídios no Camboja e em Ruanda. A ideologia determina a forma a ser assumida pelo mal, mas o mal que se esconde por trás da forma é uma característica embutida na própria humanidade. A negação da existência do mal somente fortalece seu poder. (RUSSEL; ALEXANDER, 2019, Pág. 242/243).

No Brasil, os casos de intolerância religiosa começaram com a chegada dos portugueses em terras desconhecidas por expansões marítimas – a serviço da monarquia católica – que tinham o objetivo de encontrar as terras denominadas “Índias” para aumentar o número de fiéis, que foram influenciadas através da crise institucional da Igreja Católica e as reformas protestantes – que questionavam os dogmas católicos –, onde vieram a encontrar uma população classificada por eles como “selvagens” e que posteriormente viriam a ser catequisados pelos jesuítas, através da “Companhia de Jesus”, que visavam espalhar o catolicismo.

Apesar dos portugueses já terem experiência com a escravidão, em um primeiro momento, o contato com os serviços indígenas foi por meio do escambo – sistema de troca –, onde barganhava-se tal servidão através de objetos e produtos que aquele povo não detinha conhecimento. (PRIORE, 2016)

Os jesuítas faziam parte de uma ordem religiosa chamada “Companhia de Jesus”, fundada por Inácio de Loiola com objetivo de expandir a fé católica nos locais em que ela não existia – ou seja, nas terras que estavam sendo descobertas (Brasil) –, com a missão de converter os nativos para o catolicismo através da catequese, que foi uma série de procedimentos para transformar os índios em católicos, pois acreditavam ser a única crença válida, enxergando os índios como alienados oriundos de uma crença inválida; hereges que precisavam ter suas almas salvas.

Para a Igreja Católica e os jesuítas que logo vieram para o Brasil, o importante era destacar sua “humanidade” e seu pendor para a cristianização. Entusiasmado com a perspectiva de convertê-los ao catolicismo, padre Nóbrega, em 1563, gravou que, como “papel branco”, neles se poderia escrever à vontade. Muitos leigos ou religiosos discordavam de tal interpretação. E as dúvidas sobre sua disposição para abraçar a “verdadeira fé” veio logo depois. Para muitos, os índios não pronunciavam as letras “f”, “r” e “l” porque desconheciam leis, reis e fé. Canibalismo e feitiçaria alimentavam a crença de que eram simplesmente selvagens. Se eram “creaturas de Deus”, não passavam de seres inferiores que deveriam servir aos empreendimentos coloniais. Para evitar a maior degradação desses quase “animaes”, melhor seria escravizá-los. (DEL PRIORE, n/p, 2016)

Nessas missões foram criadas as primeiras escolas do Brasil, fazendo com que a Igreja tivesse o total controle sobre o conhecimento, e consequentemente com que a fé católica fosse predominante no país, além de costumes europeus, apagando pouco a pouco as raízes culturais do local, mesmo com forte resistência da tradição que era preservada pelos nativos. (PRIORE, 2016)

Não por acaso, Nóbrega fundava em São Vicente, em 1554, o primeiro colégio de catecúmenos que houve no Brasil, “ordenando que fosse confraria do Menino Jesus”. Ali, juntaram-se alguns órfãos e meninos abandonados vindos de Lisboa, mestiços da terra e “indiosícos”. Esses eram em geral egressos de uniões entre mães índias e pais portugueses. Ou vinham a pedido de algum “principal” ou cacique. O sentimento de valorização da criança enquanto ser cheio de graça e vulnerabilidade não estava ausente do coração dos jesuítas, que viam nas crianças “inocentes, mui elegantes e formosos”. Ou, ainda, “muchachos que quase criamos aos nossos peitos com o leite da doutrina cristã”. (PRIORE, 2016, n/p)

Tendo em vista a dificuldade de se escravizar indígenas devido à resistência indígena ao trabalho forçado, tendo baixa produtividade e encarecendo a mão de obra aos portugueses, isso fez com que o Tráfico Negreiro se expandisse lentamente para o Brasil, onde os negros também foram catequizados e acabaram por misturar as suas crenças com a do catolicismo, dando origem à novas ideologias – através da opressão sofrida junto com os indígenas – de nada mudando a situação dos indígenas, sendo que aconteciam “guerras justas” onde estes eram capturados e escravizados para trabalhar em engenhos de cana-de-açúcar. (PRIORE, 2016)

Deportados e feitos escravos pelo Império, os africanos foram forçados a obedecer às regras católicas, mas nunca abandonaram intimamente suas tradições. Em suas irmandades eles africanizaram o catolicismo, celebrando santos patronos com mascaradas, a percussão dos atabaques, das danças cheias de energia corporal, canções cantadas em línguas nativas e a eleição fictícia de reis e rainhas negros (ALENCASTRO E NOVAIS, 1997, p.101 apud COSTA, 2018, n/p).

O Candomblé nasceu a partir da “importação” de diferentes cultos de origem africana, já a Umbanda trata-se da mistura das religiões indígenas, africanas e católica, ambas germinando como uma forma de resistir ao período colonial e ao catolicismo – o qual pregava que a única forma de salvar a alma dos negros era pela escravidão, de acordo com Roger Cipó. (D’ANGELO, 2017)

Os jesuítas catequizavam, portanto, os nativos para escraviza-los em nome da Coroa, e tal imposição do catolicismo seguiu-se com a opressão da cultura africana no período da escravidão, culminando com a raiz do preconceito em diferentes níveis, já que os indígenas e os negros eram considerados como coisa. Portanto, levando em conta esses dois períodos, vê-se que o cristianismo se ergueu perante a intolerância.

No início do século XX, entre 1950 e 1970, o pentecostalismo expandiu-se no Brasil, aumentando suas igrejas e ganhando maior visibilidade, centrando uma “batalha espiritual” contra as demais religiões – principalmente as afro-brasileiras e o espiritismo (e o fato de que juntas, segundo o IBGE de 200, tais religiões somavam apenas 1,7% da população não impediu a “demonização” e a perseguição dos “exércitos de Cristo” contra rituais afro-brasileiros e à terreiros).

Aqui os temas centrais da batalha espiritual estão postos: I) identificação das divindades do panteão afro com o demônio; 2) libertação pelo poder (maior) do sangue vivo de Jesus (em oposição ao sangue “seco” ou “fétido” da iniciação ou oferendas) e, em consequência da libertação; 3) a conversão (...). (SILVA, 2007, Pág. 196).


2. SITUAÇÃO DO BRASIL SOBRE INTOLERÂNCIA RELIGIOSA

O povo brasileiro – em sua maioria cristão – tende a menosprezar qualquer religião que tenha um viés ideológico diferente do cristianismo, e mesmo que tal situação seja fato típico na legislação brasileira, isto não intimida os ofensores, mesmo sendo o Brasil signatário da Declaração Universal dos Direitos Humanos, a qual coloca a liberdade religiosa como um dos direitos fundamentais da sociedade – tendo em vista a diversidade de convicções existentes.

O artigo 18 desta Declaração expõe que “Todo ser humano tem direito à liberdade de pensamento, consciência e religião; este direito inclui a liberdade de mudar de religião ou crença e a liberdade de manifestar essa religião ou crença, pelo ensino, pela prática, pelo culto e pela observância, em público ou em particular”.

Em relação à tipificação no Brasil, o Código Penal de 1890 previa como crime práticas de "curandeiros", "feiticeiros", "espiritistas" e "cartomantes" em seu artigo 157, fazendo com que houvesse perseguição contra adeptos, bem como a discriminação e até criminalização de tais religiões:

Art. 157. Praticar o espiritismo, a magia e seus sortilegios, usar de talismans e cartomancias para despertar sentimentos de odio ou amor, inculcar cura de molestias curaveis ou incuraveis, emfim, para fascinar e subjugar a credulidade publica:

Penas - de prisão cellular por um a seis mezes e multa de 100$ a 500$000.

§ 1º Si por influencia, ou em consequencia de qualquer destes meios, resultar ao paciente privação, ou alteração temporaria ou permanente, das faculdades psychicas:

Penas - de prisão cellular por um a seis annos e multa de 200$ a 500$000.

§ 2º Em igual pena, e mais na de privação do exercicio da profissão por tempo igual ao da condemnação, incorrerá o medico que directamente praticar qualquer dos actos acima referidos, ou assumir a responsabilidade delles. (BRASIL, 1890).

A intolerância religiosa passou a ser discutida apenas em 1989, onde a Lei 7.716/89 – conhecida também como Lei Caó – punia os crimes que envolviam discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional com um a três anos de reclusão ou multa, sendo tais crimes asseverados a partir da Lei 9.459/97, que passou a punir de dois a cinco anos de reclusão algumas hipóteses do artigo 20, além de acrescentar o parágrafo §3º no artigo 140 do Código Penal – que trata sobre a injúria –. Em 2007, a Lei 11.645/07 modificou o artigo 26-A da Lei 9.394/96, passando a exigir o estudo da história e cultura afro-brasileira e indígena nos estabelecimentos de ensino fundamental e médio.

Há ainda a discussão da intolerância religiosa ser englobada pelo crime de racismo, o qual é inafiançável e imprescritível de acordo com o inciso XLII do artigo 5º da Constituição Federal, por ser uma prática discriminatória contra todos os indivíduos de determinada crença ou religião – ou pela ausência delas.

Além disso, o artigo 3º da Constituição Federal determina que o Estado deve garantir o bem de todos sem qualquer forma de preconceito ou discriminação, já que mesmo que a liberdade de expressão seja garantida no país, ela não pode ferir nenhum outro direito assegurado pela Constituição o que impede o desrespeito, agressão ou ofensa contra qualquer outra pessoa com o disfarce em tal garantia.

O Código Penal também prevê crime contra sentimento religioso o ultraje a culto e impedimento ou perturbação de ato a ele relativo em seu artigo 208, o qual relata:

Art. 208 - Escarnecer de alguém publicamente, por motivo de crença ou função religiosa; impedir ou perturbar cerimônia ou prática de culto religioso; vilipendiar publicamente ato ou objeto de culto religioso:

Pena - detenção, de um mês a um ano, ou multa.

Parágrafo único - Se há emprego de violência, a pena é aumentada de um terço, sem prejuízo da correspondente à violência. (BRASIL, 1940)

Portanto, os bens jurídicos protegidos por este artigo é a liberdade de crença, religião e de culto, devendo o agente humilhar publicamente, impedir ou atrapalhar cerimonia ou prática de culto religioso ou menosprezar publicamente ato ou objeto de culto religioso para ser tipificado no crime – sendo tais modalidades apenas previstas na categoria dolosa –, podendo sofrer aumento de pena em um terço caso ocorra violência, podendo ocorrer concurso de crime com este artigo cumulado com o relativo a violência. Se a ofensa não for pública, configura o crime de injúria, previsto no artigo 140 do mesmo Código. (AZEVEDO; SALIM, 2018)

Porém, apesar de ser previsto como crime em território nacional – inafiançável e imprescritível, inclusive – a intolerância religiosa vem cada dia mais colecionando cicatrizes na sociedade atual, mesmo tal modalidade não tendo proteção da liberdade de expressão quando se utilizam desta com o intuito de agressão ou ofensa.

Qualquer religião que não segue a vertente cristã é vista como adoradora do “Diabo” – sendo este “ser” associado a deuses de outras religiões, o que não faz sentido nenhum, já que tal personagem fora criado pelo Cristianismo, só tendo local de fala nesta religião, portanto –, e quando não assimilam a religião ao mal, usam-na como termo pejorativo.

Desta forma, surge a expressão “Cristofascimo”, criada pela teóloga alemã Dotrothee Sölle que notou que o nazismo se utilizou de termos cristãos para sua composição, o que faz cair por terra o simbolismo de amor, misericórdia ou paz que faziam a fama de Deus ou até mesmo Jesus – o qual dá o nome à uma vertente religiosa –; formando um novo propósito que pauta ódio, violência, discriminação e racismo produzindo uma irracionalidade predominante.

Sendo assim, a pessoa que se mostra intolerante à religião vizinha, tem grandes chances de ser intolerante à outras coisas também, como a orientação sexual, etnia, questões políticas ou até mesmo classe social, não encontrando em sua própria religião valores que os façam ter uma mudança ideológica, mas muito pelo contrário: acaba encontrando motivos que alimentam a intolerância como um todo e criando um modelo que acredita que deve ser seguido, sendo intolerante à todos os que forem contrários à este, mostrando-se incompatíveis para uma possível convivência entre diferenças.

De acordo com Vitória Régia da Silva, repórter da “Gênero e Número”, foram registrados 6.324 casos de intolerância religiosa em 2017 e 2018, sendo a metade dos casos classificada como o crime de injúria e 16% como difamação, onde religiões de matriz africana são os principais alvos – 59% do total de casos entre 2011 e 2018 são contra religiões de matrizes africanas, como a umbanda e o candomblé.

O Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos divulgou no dia 13 de junho de 2019 um balanço sobre denúncias de discriminação religiosa feitas pelo “Disque 100” – plataforma para denunciar este tipo de crime e outros – onde consta 506 casos registrados em 2018, sendo a umbanda, o candomblé e outras religiões de matrizes africanas os mais prejudicados.

A frequência com que tais ataques acontecem pode aglomerar vários tipos penais – como o de ameaça, agressão física, difamação, danos como a destruição de objetos sagrados ou de terreiros em geral, piorando quando ocorrem tentativas de homicídio, ou sua consumação –, os quais podem ser considerados como terrorismo caso enquadrados apropriadamente; sendo muitas vezes praticados por traficantes, transbordando perfídia. Como eles gostariam de ser reconhecidos? Traficantes de Cristo?

O fato de o Brasil ter escravizado negros e agora querer oprimir religiões de matrizes africana escancara o racismo estrutural como um dos principais motivos para utilizar o cristianismo como explicação para se achar no direito de ser intolerante – provando que o Estado não tem mecanismos para evitar o ódio em relação ao problema social, e que o fato das igrejas neopentecostais estarem crescendo excessivamente e midiaticamente, ao mesmo tempo que bancadas evangélicas ganham relevância na política de um estado laico, de nada ajuda na situação.


CONCLUSÃO

A formação da identidade nacional no Brasil é baseada na hibridez dos povos ocorrida no período colonial, onde indígenas, europeus e africanos contribuíram para os costumes brasileiros através da cultura de cada um, não fazendo sentido, portanto, haver preconceitos com a questão religiosa em um país plural como o Brasil.

Levando em contraste aspectos históricos com a sociedade atual, os adeptos ao cristianismo mostram-se dispostos a continuar perseguindo e executando todos aqueles que não se encontram inseridos em um contexto aceitável pela vertente religiosa, ocasionando uma segregação social– mas claro que até como uma forma de se evitar a hipocrisia no presente artigo: em toda regra, há exceções.

Mesmo que haja tipificação de tal conduta preconceituosa e garantias constitucionais como a de liberdade de crença e culto ou até mesmo a laicidade e não intervenção estatal, há uma constante luta para exterminar tal intolerância construída ao longo da história.

Um Estado laico tem o dever de separar Estado e religião e de proteger a liberdade religiosa como consequência, já que o país é rico em diversidade, garantindo o direito de pessoas de qualquer crença serem aceitos na sociedade sem chance de qualquer preconceito – que como já demonstrado o Brasil apenas diz fazer, mas não cumpre.

Portanto, medidas que visem a harmonia e a não discriminação entre cidadãos com religiões diferentes deveriam ser garantidas para evitar infortúnios e abalos sociais, como a constante difamação que crenças minoritárias sofrem – tanto dos cidadãos, quanto do governo, o qual se colocou no poder graças à falácias e preconceitos que os adeptos à tal tipo de discriminação se identificam, ficando demonstrado que a liberdade religiosa também encara desafios.

Em razão disso que uma maior atenção com os crimes de intolerância religiosa deve ser cobrada, sendo que na maioria das vezes acaba-se por configurar crime de injúria ao invés de tipificar a conduta como deveria acontecer, causado perdas na sociedade e tornando-se necessário conter a situação.

Sendo assim, mesmo que pessoas não sejam mais assassinadas ou catequizadas à força, aqueles que não seguem a vertente cristã não deixaram de ser perseguidos, e de certa forma, continuam a serem queimados – só que desta vez socialmente, onde quando a intolerância é feita contra uma crença cristã, a comoção proporcionada é de nível nacional, enquanto as demais religiões são tratadas com inferioridade e indiferença.

O que resta a ser esclarecido é que nenhuma religião é absoluta, todas têm suas falhas e dúvidas e por isso que nenhuma deve ser superior à outra – ou à falta de religião. Não há um deus soberano, e mesmo se houvesse, este não é apresentado misericordioso pelos seus seguidores como a fé o ressalta, já que aqueles que não o reconhecem são imediatamente empurrados para o “inferno”. Portanto de duas uma: ou todas as religiões estão erradas; ou todas estão certas – sem meio termo.

Por isso que a liberdade religiosa se mostra extremamente importante, já que cada indivíduo é livre para escolher qual crença irá seguir baseado no seu bem-estar e conforto quanto à filosofia de vida de cada um, e não na do seu próximo, devendo esta ser assegurada e protegida pelo Estado de maneira a garantir que todas as pessoas sejam respeitadas, vindo a cumprir o seu papel quanto à imparcialidade em assuntos religiosos, construindo uma sociedade humanitária e justa.

E o Estado deveria garantir qualquer prejuízo contra qualquer religião, já que várias religiões de matrizes africanas sofrem danos contra seus locais de culto, como a imposição de multa para qualquer ato de intolerância ou até mesmo o ressarcimento dos danos causados através dos ataques recorrentes à locais de culto ou até símbolos religiosos.

A alienação e o fanatismo de muitos evoluem para intolerância e preconceito, ocasionando uma lavagem cerebral e padronização de um senso comum ultrapassado que contribui para alimentar uma massa de manobra que desrespeita a ética universal que tem o intuito de manter a harmonia e a paz na sociedade. Essa ideologia de que há apenas um “Deus” soberano e que é o único apto a ser adorado, desprezando qualquer outro tipo de crença ou religião é hostil.

A hierarquização de que apenas os valores “brancos europeus” tem relação com o que é válido – que é a crença tida como única e universal há muito tempo, empurrando o cristianismo goela abaixo como pílulas em um centro de reabilitação – contribui com a estigmatização de práticas religiosas que não tenham ligação com essa vertente e gerando um ódio inconveniente que diverge com os “princípios cristãos” que não deveriam ter tal sentimento como foco devida à ampla publicidade de amor que tal religião diz praticar – mas que tem por trás questões políticas que demonizam minorias pela necessidade de se sentirem superiores.

Por isso que torna-se necessário curar essa obsessão da sociedade promovendo uma transformação de mentalidade da população através de campanhas, projetos escolares, mecanismos de coibição do preconceito – como algum meio que impeça comentários de má índole em publicações ou postagens na internet – para ampliar a discussão sobre a tolerância às diferenças e à pluralidade cultural e religiosa existente no país, preservando a paz entre culturas para que haja uma cordialidade nas relações sociais – as quais contribuem para criar impressões da realidade –, como forma de conscientizar a população sobre o assunto e mostrando que é possível conviver respeitando as diversidades.


REFERÊNCIAS

ALVES, Chico. “Picham ‘Jesus é o dono do lugar’ e siglas de facções”. 2019. Projeto Colabora. Disponível em: <https://projetocolabora.com.br/ods16/picham-jesus-e-o-dono-do-lugar-e-siglas-de-faccoes/>. Acesso em: 25 de julho de 2019.

AZEVEDO, Marcelo André de; SALIM, Alexandre. Direito Penal: Parte Especial – Dos crimes contra a pessoa aos crimes contra a família. Coleção Sinopses para Concursos. Salvador, Editora Juspodvm, 2016, 5ª ed.

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