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A criminalização da homofobia.

Erros e acertos da decisão

A criminalização da homofobia. Erros e acertos da decisão

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Análise da decisão do STF de criminalização da homofobia: remédios constitucionais utilizados, separação dos poderes, princípio da reserva legal, analogia, interpretação analógica.

Em junho de 2019, o Supremo Tribunal Federal julgou procedentes a Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão nº 26/DF e o Mandado de Injunção nº 4733/DF, conforme as teses a seguir respectivamente transcritas, resultando na equiparação de condutas homofóbicas aos diversos tipos penais previstos na Lei nº 7716/89 e na caracterização dessas condutas como motivo torpe para qualificar homicídios. Vejamos:

O Tribunal, por unanimidade, conheceu parcialmente da ação direta de inconstitucionalidade por omissão. Por maioria e nessa extensão, julgou-a procedente, com eficácia geral e efeito vinculante, para:

a) reconhecer o estado de mora inconstitucional do Congresso Nacional na implementação da prestação legislativa destinada a cumprir o mandado de incriminação a que se referem os incisos XLI e XLII do art. 5º da Constituição, para efeito de proteção penal aos integrantes do grupo LGBT;

b) declarar, em consequência, a existência de omissão normativa inconstitucional do Poder Legislativo da União;

c) cientificar o Congresso Nacional, para os fins e efeitos a que se refere o art. 103, § 2º, da Constituição c/c o art. 12-H, caput, da Lei nº 9.868/99;

d) dar interpretação conforme à Constituição, em face dos mandados constitucionais de incriminação inscritos nos incisos XLI e XLII do art. 5º da Carta Política, para enquadrar a homofobia e a transfobia, qualquer que seja a forma de sua manifestação, nos diversos tipos penais definidos na Lei nº 7.716/89, até que sobrevenha legislação autônoma, editada pelo Congresso Nacional, seja por considerar-se, nos termos deste voto, que as práticas homotransfóbicas qualificam-se como espécies do gênero racismo, na dimensão de racismo social consagrada pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento plenário do HC 82.424/RS (caso Ellwanger), na medida em que tais condutas importam em atos de segregação que inferiorizam membros integrantes do grupo LGBT, em razão de sua orientação sexual ou de sua identidade de gênero, seja, ainda, porque tais comportamentos de homotransfobia ajustam-se ao conceito de atos de discriminação e de ofensa a direitos e liberdades fundamentais daqueles que compõem o grupo vulnerável em questão; e

e) declarar que os efeitos da interpretação conforme a que se refere a alínea “d” somente se aplicarão a partir da data em que se concluir o presente julgamento, nos termos do voto do Relator, vencidos os Ministros Ricardo Lewandowski e Dias Toffoli (Presidente), que julgavam parcialmente procedente a ação, e o Ministro Marco Aurélio, que a julgava improcedente.

Em seguida, por maioria, fixou-se a seguinte tese:

1. Até que sobrevenha lei emanada do Congresso Nacional destinada a implementar os mandados de criminalização definidos nos incisos XLI e XLII do art. 5º da Constituição da República, as condutas homofóbicas e transfóbicas, reais ou supostas, que envolvem aversão odiosa à orientação sexual ou à identidade de gênero de alguém, por traduzirem expressões de racismo, compreendido este em sua dimensão social, ajustam-se, por identidade de razão e mediante adequação típica, aos preceitos primários de incriminação definidos na Lei nº 7.716, de 08/01/1989, constituindo, também, na hipótese de homicídio doloso, circunstância que o qualifica, por configurar motivo torpe (Código Penal, art. 121, § 2º, I, “in fine”). [...]

3. O conceito de racismo, compreendido em sua dimensão social, projeta-se para além de aspectos estritamente biológicos ou fenotípicos, pois resulta, enquanto manifestação de poder, de uma construção de índole histórico-cultural motivada pelo objetivo de justificar a desigualdade e destinada ao controle ideológico, à dominação política, à subjugação social e à negação da alteridade, da dignidade e da humanidade daqueles que, por integrarem grupo vulnerável (LGBTI+) e por não pertencerem ao estamento que detém posição de hegemonia em uma dada estrutura social, são considerados estranhos e diferentes, degradados à condição de marginais do ordenamento jurídico, expostos, em consequência de odiosa inferiorização e de perversa estigmatização, a uma injusta e lesiva situação de exclusão do sistema geral de proteção do direito, vencido o Ministro Marco Aurélio, que não subscreveu a tese proposta.

Não participaram, justificadamente, da fixação da tese, os Ministros Roberto Barroso e Alexandre de Moraes. Plenário, 13.06.2019.

O Tribunal, por maioria, conheceu do mandado de injunção, vencido o Ministro Marco Aurélio, que não admitia a via mandamental. Por maioria, julgou procedente o mandado de injunção para (i) reconhecer a mora inconstitucional do Congresso Nacional e; (ii) aplicar, com efeitos prospectivos, até que o Congresso Nacional venha a legislar a respeito, a Lei nº 7.716/89 a fim de estender a tipificação prevista para os crimes resultantes de discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional à discriminação por orientação sexual ou identidade de gênero, nos termos do voto do Relator, vencidos, em menor extensão, os Ministros Ricardo Lewandowski e Dias Toffoli (Presidente) e o Ministro Marco Aurélio, que julgava inadequada a via mandamental. Plenário, 13.06.2019.

Embora desejável e imprescindível a proteção estatal à dignidade de qualquer ser humano, que passa necessariamente pelo resguardo à integridade de pessoas em situação de vulnerabilidade, entendemos que a “criminalização da homofobia” somente pode ser realizada através de lei formal elaborada pelo Congresso Nacional.

Nessa linha de intelecção, é possível afirmar que o STF extrapolou suas funções judicantes e terminou por legislar sobre o tema em questão, desafiando a separação dos Poderes e o princípio da reserva legal em matéria criminal. Além disso, o Tribunal conferiu finalidades excessivas à Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão e inadequadamente admitiu o Mandado de Injunção como remédio para a matéria.

O artigo 5º da CF, em seu inciso XLI, determina que “a lei punirá qualquer discriminação atentatória dos direitos e liberdades fundamentais”. Obviamente, enquadra-se como atentado aos direitos e liberdades as condutas discriminatórias a pessoas em razão de sua orientação sexual ou identidade de gênero. Havendo omissão estatal (como há) em elaborar a lei punitiva determinada pela Constituição, especialmente face à atual proliferação de tais condutas, tornou-se urgente recorrer ao STF mediante Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão para que a lacuna legislativa fosse sanada.

Acertadamente procedeu o STF ao conhecer da ADO nº 26/DF e, de modo louvável, reconheceu a mora inconstitucional do Congresso Nacional em elaborar a lei punitiva às condutas homofóbicas, declarou a existência da omissão legislativa e cientificou o Congresso Nacional para que tomasse as providências necessárias para suprir a referida omissão (alíneas a, b e c da decisão acima transcrita).

Inobstante, os acertos param por aí. O STF foi além e extrapolou as finalidades da ADO ao determinar a equiparação das condutas homofóbicas aos crimes de racismo e ao motivo torpe enquanto qualificador do crime de homicídio. Isso porque a CF, em seu artigo 103, § 2º, limita o alcance da decisão de uma ADO, a saber: “declarada a inconstitucionalidade por omissão de medida para tornar efetiva norma constitucional, será dada ciência ao Poder competente para a adoção das providências necessárias e, em se tratando de órgão administrativo, para fazê-lo em trinta dias”. É possível perceber, portanto, que o STF não se reservou a apenas cientificar o Congresso Nacional sobre a omissão normativa, como determina a Constituição, mas também assumiu inadequadamente a função legislativa ao criar, ainda que por equiparação, uma figura penal, afrontando ao princípio da separação dos Poderes e à norma constitucional transcrita acima.

Além disso, a Suprema Corte, por maioria de votos, inadequadamente conheceu do Mandado de Injunção impetrado, cuja admissibilidade foi alvo de críticas do Ministro Marco Aurélio, por entender, acertadamente, como incabível o referido instrumento processual para os fins a que se propunha.

Isso porque a CF também delimita a utilização do mandado de injunção em seu artigo 5º, LXXI, a saber: “Conceder-se-á mandado de injunção sempre que a falta de norma reguladora torne inviável o exercício dos direitos e liberdades constitucionais e das prerrogativas inerentes à nacionalidade, à soberania e à cidadania”. Segundo a doutrina jurídica, o mandado de injunção é, portanto, indicado para os casos em que direitos subjetivos já garantidos pela Constituição Federal não possam ser exercidos por ausência de regulamentação normativa. Busca-se a realização concreta do direito. Não pode ser alvo do mandado de injunção a pretensão de comunicação ao Legislativo para que elabore uma lei penal visando criminalizar a “homofobia”.

Como exemplo, é possível citar o direito de greve dos servidores públicos. Este, sim, um direito subjetivo garantido pela Constituição e que, até o momento, não foi regulamentado pelo Legislativo, cuja falta foi devidamente suprida pelo STF através de mandado de injunção, pelo qual foi determinada a aplicação da legislação referente ao direito de greve dos trabalhadores da iniciativa privada aos servidores públicos. No caso do art. 5º, XLI, da CF, que serviu de base para a decisão do STF de “criminalizar a homofobia”, não há, nesse inciso, um direito subjetivo assegurado, concreto, mas uma determinação de elaboração de norma genérica, devendo ter sido admitida como remédio para eventual omissão apenas a ADO.

Portanto, a decisão mais acertada teria sido o não conhecimento do Mandado de Injunção nº 4733/DF e a procedência parcial da ADO nº 26/DF apenas para reconhecer a omissão legislativa e cientificar o Congresso Nacional, admoestando-o a supri-la.

Ademais, a decisão do STF, equiparando por analogia as condutas homofóbicas aos crimes da Lei 7716/89, viola frontalmente o princípio da reserva legal preconizado pela própria Constituição em seu art. 5º, XXXIX: “Não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal”. Ora, a clareza do texto constitucional é solar: uma conduta somente pode ser considerada criminosa se estiver tipificada por lei, e lei formal, elaborada pelo Congresso Nacional. Matéria penal é de atribuição exclusiva do Poder Legislativo, e somente este pode criar tipos penais, mediante a elaboração de leis formais. No entanto, a decisão do STF criminaliza atos homofóbicos como crimes da Lei 7716/89 mediante a utilização de analogia.

Ora, em Direito Penal é vedada a analogia in malam partem, ou seja, para prejudicar o réu ou para criar tipos penais não previstos expressamente pela lei, sendo permitidas apenas as analogias in bonam partem, para beneficiar o réu. Perceba que a Lei 7716/89 sequer deixa margem para interpretação analógica (cabível em direito penal), sendo taxativa quanto às condutas que ela desejou criminalizar, a saber: “Serão punidos, na forma desta Lei, os crimes resultantes de discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional”.

Quando a lei admite a interpretação analógica, permitindo ao julgador inserir em determinado tipo penal uma conduta nova, não prevista expressamente, o legislador deixa em aberto a figura penal, trazendo expressões como “entre outros” ou “outro motivo”. Desse modo, é possível admitir, de acordo com a decisão do STF, que a homofobia seja interpretada como motivo torpe para fins de qualificar a conduta do homicídio, pois a própria norma penal traz a possibilidade de interpretação analógica, a saber: “Art. 121. Matar alguém. (...) § 2º Se o homicídio é cometido: I – mediante paga ou promessa de recompensa, ou por outro motivo torpe. Perceba, portanto, a abertura da figura penal, possibilitando a interpretação analógica pela expressão “outro motivo torpe”.

No entanto, a Lei 7716/89 é taxativa. Não há expressões que permitam a interpretação analógica dos seus tipos penais. Tampouco é possível inserir o conceito de orientação sexual ou identidade de gênero nos conceitos de raça, cor, etnia ou procedência nacional. A referida lei sequer trouxe a palavra racismo em seu bojo, tampouco o seu conceito, não sendo cabível ao STF a análise e/ou extensão do conceito de racismo para enquadrar em suas figuras penais as situações de homofobia.

Ora, se a Lei 7716/89 não permite sequer a interpretação analógica dos seus dispositivos, muito menos poderia permitir a utilização da analogia para a criação de uma figura penal. Quando utiliza a analogia para esses fins, o Judiciário legisla, extrapolando as suas funções. Portanto, a manobra realizada pelo STF é contrária ao ordenamento jurídico pátrio, viola a separação dos Poderes e fere o princípio da reserva legal, basilar do Estado Democrático de Direito.

Não se pode, ainda que pelo justo desejo de proteger satisfatoriamente os mais vulneráveis, desprezar o ordenamento jurídico, as normas e princípios constitucionais e atentar contra a harmonia dos poderes. Em que pese a urgência do tema debatido, ademais em um cenário no qual frequentemente o Legislativo se furta às funções primárias, a decisão da Suprema Corte promove a insegurança jurídica e cria um perigosíssimo precedente: hoje, a analogia pode ser sutilmente utilizada para que o Judiciário legisle a fim de atender a um anseio social legítimo; amanhã, para atender a desejos autoritários. Nesse cenário, os fins não devem justificar os meios. Em Direito, a forma é tão importante quanto a matéria. Afinal, o Direito deve ser manipulado enquanto Ciência, e não como paixão.


Autor

  • Thiago Meneses Rios

    Advogado. Pós-graduado em Direito Constitucional pelo Centro de Ensino Unificado de Teresina. Graduado em Direito pelo Centro de Ensino Unificado de Teresina. Experiência anterior como Assessor de Juiz em Vara Criminal. Experiência como estagiário da Defensoria Pública Estadual do Piauí.

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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

RIOS, Thiago Meneses. A criminalização da homofobia. Erros e acertos da decisão. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 28, n. 7345, 11 ago. 2023. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/79004. Acesso em: 29 mar. 2024.