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A Emenda Constitucional nº 45 e a jurisdição penal da Justiça do Trabalho

uma polêmica que já não pode ser ignorada

A Emenda Constitucional nº 45 e a jurisdição penal da Justiça do Trabalho: uma polêmica que já não pode ser ignorada

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Excetuadas as condutas criminais de repercussão geral na organização do trabalho tipificadas nos arts. 197 e seguintes do Código Penal, todos os demais ilícitos de cunho penal-trabalhista serão de competência da Justiça do Trabalho.

"A anomia, longe de representar, sociologicamente, a simples rejeição nilista de toda e qualquer norma, denuncia a polarização de novos projetos de positivação normativa, conquanto ainda existentes ou somente implícitos. (...) A anomia representa o prenúncio da mudança iminente na estrutura institucionalizada, quando esta entra em décalage com a corrente histórica." [01]


1 – BREVE ADVERTÊNCIA.

Logo no início do presente estudo, devo advertir que não me move a pretensão de ser original ou exauriente. Embora a maior parte das ponderações que adiante trarei sejam oriundas das minhas reflexões, outras tantas não passam de argumentos que tenho lido e ouvido, dos quais me apropriarei na perspectiva da re-elaboração dialética, de modo a organicamente contribuir para a construção de novos e mais avançados modos de se enxergar o Direito.

Assim, como não poderia deixar de ser, cumpre-me agradecer aos amigos de caminhada que me têm subsidiado com as suas argutas observações, vazadas em muitos textos já publicados sobre o assunto. Agradeço-os principalmente pelos reptos que me lançaram nas nossas listas internas de debates na Internet (especialmente na da AMATRA XXIII), neles reconhecendo uma poderosa instigação ao aperfeiçoamento deste arrazoado. [02]

Enfim, esclareço que tenho a plena consciência de que todas as vezes que nos lançamos a um debate intelectual, corremos o risco de defender idéias que não acolham o aplauso dos estudiosos da matéria tratada. Com efeito, nem de longe nutro a tola pretensão de me arvorar em guardião supremo da razão.

Como itinerário do estudo proposto, vou primeiramente explicitar os argumentos que me levam a concluir pela competência penal da Justiça do Trabalho, para depois elencar e buscar superar os raciocínios contrários à tese. Ao final, como não poderia deixar de ser, trarei algumas conclusões sobre o assunto.


2 - ARGUMENTOS FAVORÁVEIS À COMPETÊNCIA CRIMINAL DA JUSTIÇA DO TRABALHO.

2.1 – O Artigo 114, I, da CRFB: Competência da Justiça do Trabalho Para as Ações Oriundas da Relação de Trabalho.

Estabelece o novel artigo 114, I, da CRFB que "compete à Justiça do Trabalho processar e julgar as ações oriundas da relação de trabalho, abrangidos os entes de direito público externo e da administração pública direta e indireta da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios".

Para uma exata compreensão do incomensurável alcance da disposição contida na aludida formulação constitucional, faz-se necessária uma remissão à sua antiga redação (do artigo 114 da CRFB), outrora a dizer que competia "à Justiça do Trabalho conciliar e julgar os dissídios individuais e coletivos entre trabalhadores e empregadores (...)".

Pois bem. Mesmo me arriscando a propalar mera máxima acaciana, devo rememorar que a E.C 45 ampliou substancialmente a competência jurisdicional da Justiça do Trabalho. Mas não foi só...

Ocorre que a par do notável fortalecimento do aparelho judicial trabalhista, a E.C. 45 incrementou uma esplendorosa, porém silenciosa (e por isso pouco notada) revolução nas balizas competenciais da Justiça do Trabalho, transportando-as do campo subjetivo para o objetivo.

Assim, ao estabelecer no passado que à Especializada Laboral incumbia tão-somente o julgamento das ações que envolvessem empregados e empregadores, a CRFB estava a vedar, implicitamente, a competência penal deste ramo do Poder Judiciário, já que as ações criminais, ainda que imantadas de conteúdo trabalhista, não se desenvolveriam entre trabalhadores e patrões.

Todavia a questão ganha contornos substancialmente distintos com a E.C 45, na medida em que a Constituição rompe com os estreitos limites subjetivos da matéria, para decididamente abraçar os dilatados contornos objetivos do assunto, passando a dizer que compete à Justiça do Trabalho julgar não apenas as causas entre empregados e empregadores, mas todas as ações decorrentes da relação de trabalho [03], sem qualquer distinção de natureza (trabalhista de sentido estrito, civil ou penal).

Absolutamente defensável, pois, a jurisdição penal da Justiça do Trabalho a partir de então.

2.2 – O Artigo 114, II, da CRFB: Competência da Justiça do Trabalho Para as Ações que Envolvam o Exercício do Direito de Greve. [04]

Estabelece hodiernamente o artigo 114, II, da CRFB, que "compete à Justiça do Trabalho processar e julgar as ações que envolvem o exercício do direito de greve".

Sublinhe-se, assim, que a previsão de competência remete o operador justrabalhista para as ações, sem distinção de natureza (mais uma vez), que envolvam exercício do direito de greve.

Portanto, não sem antes ressaltar o preceito comezinho de hermenêutica constitucional, a ditar que a Constituição deva ser interpretada sob o enfoque da máxima efetividade, com os olhos tão-somente voltados aos limites da concordância prática, será paradoxalmente necessária a remessa do leitor, num primeiro momento, à legislação infraconstitucional, a fim de se estabelecer a grandiosa abrangência do preceito à balha.

Cumprindo tal desiderato, é necessário se destacar que o artigo 15 da Lei 7.783-89 (Lei de Greve), apregoa que "a responsabilidade pelos atos praticados, ilícitos ou crimes cometidos, no curso da greve, será apurada, conforme o caso, segundo a legislação trabalhista, civil ou penal".

Ora, se a Constituição dirige a competência da Justiça do Trabalho, sem distinções, para a cognição e julgamento das ações oriundas do direito de greve, e se o direito de greve nos termos de sua lei própria será analisado pelos primas trabalhista, civil e penal, não se pode concluir de modo diverso, senão para se entender que a atribuição especializada será ampla.

Somente uma visão aferrada a dogmas do passado, incompatível com a atual quadra competencial traçada pela EC 45, é que será capaz de restringir esta possibilidade, pelo que me parece sensato proclamar que doravante estão reservadas à competência do Judiciário Laboral todas as ações que envolvam o exercício do direito de greve, independentemente do objeto trabalhista stricto, civil ou penal de que possam estar impregnadas.

2.3 - O Artigo 114, III, da CRFB: Competência da Justiça do Trabalho Para as Ações Sobre Representação Sindical.

Aqui, a bem da verdade, a questão é um tanto mais intrincada.

Ocorre que o inciso III do artigo 114 da CRFB, lastreado numa visão mais subjetiva do fenômeno competencial trabalhista, somente faz alusão às ações sobre representação sindical entre sindicatos, entre sindicatos e trabalhadores, e entre sindicatos e empregadores.

Ainda assim, diante da lógica abrangente e objetiva do sistema constitucional emergido da E.C 45, não chega a ser difícil de se enxergar a competência penal da Justiça do Trabalho no pertinente, desde que os nossos olhos estejam voltados ao tipo lógico-sistemático de hermenêutica.

Tanto é verdade, que até mesmo a Justiça Federal já se pronunciou dentro desta diretriz, fazendo-o, diga-se de passagem, a requerimento do Ministério Público Federal:

"Vistos, etc...

Trata-se de notícia crime onde o Ministério Público Federal requereu a remessa dos presentes autos à Justiça do Trabalho, entendendo ser esse o juízo competente para processar e julgar as irregularidades, em tese, na fundação do Sindicato dos Empregados do Comércio Varejista de Gêneros Alimentícios, Tecidos e Vestuário de Brusque.

Como aduziu o Parquet Federal, a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, em seu artigo 8°, inciso I, garantiu a liberdade para a formação de associações sindicais, sendo vedada a intervenção estatal em sua organização, litteram:

"Art. 8°. É livre a associação profissional ou sindical, observado o seguinte:

I – a lei não poderá exigir autorização do Estado para a fundação de sindicato, ressalvado o registro no órgão competente, vedadas ao Poder Público a interferência e a intervenção na organização sindical; (...)"

Entretanto, o inciso II deste dispositivo legal veda a criação de mais de uma organização sindical representativa de categoria profissional ou econômica na mesma base territorial, conforme teria ocorrido, em tese, no caso dos autos.

Todavia, tal irregularidade apontada pelo Parquet Federal não se constitui crime cujo processamento caiba à Justiça Federal, mas sim à Justiça do Trabalho, nos termos do art. 114, III, da CF/88 (Inciso incluído pela Emenda Constitucional n° 45/2004).

Assim, acolho as razões do Ministério Público Federal, e determino a remessa dos autos à Justiça do Trabalho de Brusque/SC, competente para processar e julgar o feito." [05]

Com efeito, embora a redação do preceptivo invocado (artigo 114, III, da CRFB) possa gerar alguma discussão, diante do vetusto viés subjetivo que aparentemente a inspira, não chega a ser impossível, também a partir dela, se reconhecer a competência criminal da Justiça do Trabalho.

2.4 - O Artigo 114, IV, da CRFB: Competência da Justiça do Trabalho Para o Conhecimento de habeas corpus.

De outra vertente, parece-me ainda que o inciso IV do artigo 114 da CRFB, que estabelece a competência do Judiciário Laboral para conhecimento dos "mandados de segurança, habeas corpus e a habeas data, quando o ato questionado envolver matéria sujeita à sua jurisdição", seja capaz de garantir a jurisdição penal aqui discutida.

Muito embora não se afigure adequado discutir sobre a natureza jurídica do habeas corpus neste breve ensaio, acredito que uma vez considerado tão-somente o ponto de vista do Supremo Tribunal Federal sobre a matéria [06], será forçoso concluir que o inciso IV do novo artigo 114 da CRFB trouxe competência criminal à Justiça do Trabalho.

Em tal diapasão, é de se ver que em recente decisão, datada de 28.06.2005 (portanto já ao tempo da E.C. 45), a ementa do julgamento ocorrido no âmbito da 1ª Turma do STF ficou assentada na seguinte pilastra:

"(...) firme a jurisprudência do Tribunal em que, sendo o habeas corpus uma ação de natureza penal, a competência para o seu julgamento será sempre de juízo criminal, ainda que a questão material subjacente seja de natureza civil (...)". [07] (sem destaque no original)

Sem dúvida alguma, o mencionado julgamento é paradigmático, na medida em que traz no seu bojo contundentes indícios de que o STF poderá reconhecer a jurisdição penal da Justiça do Trabalho, já que por certo manterá coerência futura para com a sua firme jurisprudência, no sentido de que sendo o habeas corpus uma ação de natureza penal, seu julgamento sempre se dará em órgãos revestidos de competência criminal.


3 – SUPERANDO OS ARGUMENTOS CONTRÁRIOS À COMPETÊNCIA CRIMINAL DA JUSTIÇA DO TRABALHO

Muitos daqueles que relutam em reconhecer a hodierna competência criminal da Justiça do Trabalho, arrimam seus pontos de vista em três argumentos básicos, a saber: a) que não teria sido intenção do constituinte derivado, por via da EC 45, atribuir esta competência à Justiça do Trabalho; b) que a função jurisdicional da Justiça do Trabalho não é a de se imiscuir nas questões criminais, devendo se restringir à pacificação das relações capital-trabalho; c) que o artigo 109, VI, da CRFB outorga essa competência expressamente à Justiça Federal, na medida em que este é o órgão ali indicado para o julgamento dos crimes contra a organização do trabalho.

Ao meu ver, embora ponderáveis e dignos de respeito, tais argumentos, data venia, não se sustentam. Será isso o que demonstrarei doravante.

3.1 – O Texto da Lei versus o Conteúdo da Norma: O Juiz é Somente a Boca da Lei?!

Não nego, de modo algum, que o constituinte derivado jamais esteve preocupado em atribuir jurisdição criminal ao Judiciário Trabalhista.

Todavia, à guisa de provocação, relembro que durante o processo de Reforma do Judiciário a questão da competência para julgamento das ações envolvendo acidente do trabalho foi expressamente discutida e votada, tendo o Poder Legislativo rechaçado a atribuição da Especializada Laboral para a cognição da matéria.

Nada obstante, tal fato não se constituiu em empecilho para que o pleno do STF, passado alguns meses de vigência da novel redação do artigo 114 da CRFB, reconhecesse, à unanimidade, que a competência para tais ações iniludivelmente pertence à Justiça do Trabalho.

Tal provocação não deve causar perplexidade ao operador jurídico contemporâneo, já que de há muito foi rompida a vetusta máxima liberal francesa, no sentido de que o juiz deveria se contentar em ser a boca da lei.

Aliás, todos aqueles que se embrenham pelo estudo da hermenêutica sabem que a lei, enquanto texto, é muito menor do que a norma, enquanto ideal de justiça. Vale dizer: é da interpretação do texto que se extraí o conteúdo da norma!

Não se trata de pregar o desrespeito ao constituinte derivado, mas de trabalhar pela ruptura de uma lógica arcaica, preocupada em amesquinhar o Poder Judiciário, a ponto de reduzi-lo ao precário papel de despachante do Legislativo.

Não por outra razão, ensina-nos o Ministro EROS ROBERTO GRAU, digno integrante do Supremo Tribunal Federal:

"A norma encontra-se em estado de potência, involucrada no texto. Mas ela se encontra assim nele involucrada apenas parcialmente, porque os fatos também a determinam – insisto nisso: a norma é produzida, pelo intérprete, não apenas a partir de elementos que se desprendem do texto (mundo do dever-ser), mas também a partir de elementos do caso ao qual será ela aplicada, isto é, a partir de elementos da realidade (mundo do ser). Interpreta-se também o caso, necessariamente, além dos textos e da realidade – no momento histórico no qual se opera a interpretação – em cujo contexto serão eles aplicados.

A norma encontra-se em estado de potência, involucrada no texto e o intérprete a desnuda. Neste sentido – isto é, no sentido do desvencilhamento da norma de seu invólucro: no sentido de fazê-la brotar do texto, do enunciado – é que afirmo que o intérprete produz a norma." [08]

No mesmo sentido, porém ainda mais enfáticas, são as palavras de AMILTON BUENO DE CARVALHO, com remissões aos juristas DALMO DE ABREU DALLARI e ANTÔNIO CARLOS WOLKMER:

"Se a função do Juiz é buscar a vontade do legislador, qual a razão de ser do Judiciário? Simples seria deixar ao próprio legislador a tarefa da aplicação, que o faria administrativamente. O intermediário Judiciário seria mera formalidade, a não ser que sua existência tivesse por fim a hipótese levantada por Dallari: esconder o legislador, o verdadeiro interessado, cabendo ao Judiciário fazer "um papel sujo, pois é quem garante a efetivação da injustiça".

Ora, "a função jurisdicional transcende a modesta função de servir aos caprichos e à vontade do legislador..." (Antônio Carlos Wolkmer, Revista Ajuris, 34/95).

O Judiciário é Poder do Estado e a ele cabe o compromisso, tão sério quanto o do Legislativo, de buscar o que é melhor para o povo. A lei é apenas um referencial, o mais importante, mas apenas referencial. A não ser que se dê a ela o condão de estancar o mundo." [09]

Dessarte, dentro de uma perspectiva mais ampla e arejada, não me parece que a vontade de constituinte derivado seja óbice instransponível ao reconhecimento da hodierna competência penal da Justiça do Trabalho.

3.2 – A Jurisdição Penal da Justiça do Trabalho Será Poderoso Instrumento de Fomento ao Respeito de Obrigações Trabalhistas Básicas Pelos Empregadores.

Atrevo-me ainda a discordar dos que asseveram que as questões penais-laborais não influenciariam diretamente na relação capital-trabalho, haja vista que não tenho dúvidas em afirmar que a impunidade penal nesta área, oriunda da pouca atenção que a Justiça e o Ministério Público comuns têm devotado à questão (obviamente que por razões de vocação, formação, tempo e prioridades; jamais de desídia), constitui-se no maior estímulo ao descumprimento de obrigações trabalhistas elementares por parte dos empregadores, abrindo ensanchas até mesmo à existência da vergonhosa prática do trabalho escravo no Brasil, em pleno século XXI.

Para exercício de comprovação do afirmado, basta-me relatar que nos últimos dias recebi a notícia da morte de dois trabalhadores rurais, que faleceram em virtude de terem manejado defensivos agrícolas sem contarem com a proteção de EPIs, que não lhes foram ofertados por pura omissão de seus empregadores, caso que configura, ao meu ver, hipótese típica de homicídio culposo.

Quero crer que se tais empregadores padecessem do receio de suportarem a partir daí uma condenação penal, muito provavelmente teriam cumprido com a obrigação contratual básica de garantir aos seus empregados um meio-ambiente de trabalho hígido, o que por certo teria preservado a vida de tais camponeses.

Com efeito, não sem antes solicitar vênias aos que pensam de modo diferente, creio que por via de condenações penais a Justiça do Trabalho poderá fazer muito pelo cumprimento da legislação trabalhista, interferindo positivamente na relação capital-trabalho.

E não se venha argumentar que para o cumprimento das regras de segurança e medicina do trabalho bastaria a imposição de pesadas punições cíveis, pois como é palmar em nosso pobre país, não são poucos os "empregadores" quase tão miseráveis quanto o próprio trabalhador, não havendo para eles, portanto, qualquer efeito pedagógico numa condenação pecuniária inexeqüível.

Assim, embora adepto das teses que propugnam pela existência de um direito penal mínimo, decididamente não fecho meus olhos para a perturbadora constatação de que a ciência criminal pode contribuir em muito para a civilização da selvagem relação capital-trabalho, até mesmo poupando vidas de operários.

Demais disso parece-me, sem que nisso vá qualquer desdouro aos Magistrados Comuns, que o Juiz do Trabalho, louvado na sua incomensurável experiência dos meandros insondáveis do mundo laboral, esteja mais apto a julgar, por exemplo, os ilícitos criminais supostamente cometidos durante o exercício do direito de greve, de modo a impedir que a aplicação fria do direito penal venha a inibir o exercício de um direito fundamental coletivo dos trabalhadores previsto na Magna Carta.

Aliás, no mundo civilizado europeu, principalmente na Itália, Espanha e França, ganha cada vez mais prestígio o estudo do "direito penal do trabalho", encarado enquanto ramo autônomo da ciência jurídica, sobretudo preocupado com a repressão de condutas anti-sindidicais.

Todas essas ponderações justificam, com efeito, o reconhecimento da competência criminal da Justiça do Trabalho.

3.3 – Os Ilícitos Penais-trabalhistas Não se Esgotam Nos Crimes Contra a Organização do Trabalho - O Artigo 109, VI, da CRFB Deve Ser Interpretado à Luz da Súmula 115 do TRF.

Enfim, hei de redargüir o argumento de que o artigo 109, VI, da CRFB embaraçaria a competência penal da Justiça do Trabalho, na medida em que, pela sua literalidade, os crimes contra a organização do trabalho são de atribuição cognitiva da Justiça Federal.

Por uma questão que tangencia a trivialidade, talvez seja esse o mais frágil argumento daqueles que pelejam contra a jurisdição penal do Judiciário Laboral.

Ocorre que nem todos os ilícitos penais-trabalhistas estão tipificados no titulo IV do Código Penal, que arrola os crimes contra a organização do trabalho somente a partir dos artigos 197 e seguintes.

À guisa de exemplo, aduzo que o principal dos crimes trabalhistas da atualidade, "Redução a Condição Análoga à de Escravo", está tipificado no artigo 149 do CP, que por sua vez está situado no título II do codex criminal, que trata dos "Crimes Contra a Pessoa", mais especificamente no seu capitulo VI, que abarca os "Crimes Contra a Liberdade Individual".

Logo, o artigo 109, VI, da CRFB nem de longe outorga competência à Justiça Federal para julgamento do crime de "Redução a Condição Análoga à de Escravo", sequer quando encarado o caso pelo prisma da grave violação dos direitos humanos, já que para tanto seria necessário que, nos termos do § 5º do mesmo artigo 109 do Diploma Maior, "o Procurador-Geral da República, com a finalidade de assegurar o cumprimento de obrigações decorrentes de tratados internacionais de direitos humanos dos quais o Brasil seja parte", suscitasse, "perante o Superior Tribunal de Justiça, em qualquer fase do inquérito ou processo, incidente de deslocamento de competência para a Justiça Federal", não sendo desmesurado lembrar que a Justiça Especializada do Trabalho é tão federal quanto a sua congênere comum.

Mas os exemplos não morrem por aí. Dizem os artigos 1º e 2º da Lei 9.029-95:

Art. 1º Fica proibida a adoção de qualquer prática discriminatória e limitativa para efeito de acesso a relação de emprego, ou sua manutenção, por motivo de sexo, origem, raça, cor, estado civil, situação familiar ou idade, ressalvadas, neste caso, as hipóteses de proteção ao menor previstas no inciso XXXIII do art. 7º da Constituição Federal.

Art. 2º Constituem crime as seguintes práticas discriminatórias:

I - a exigência de teste, exame, perícia, laudo, atestado, declaração ou qualquer outro procedimento relativo à esterilização ou a estado de gravidez;

II - a adoção de quaisquer medidas, de iniciativa do empregador, que configurem;

a) indução ou instigamento à esterilização genética;

b) promoção do controle de natalidade, assim não considerado o oferecimento de serviços e de aconselhamento ou planejamento familiar, realizados através de instituições públicas ou privadas, submetidas às normas do Sistema Único de Saúde (SUS).

Pena: detenção de um a dois anos e multa.

Parágrafo único. São sujeitos ativos dos crimes a que se refere este artigo:

I - a pessoa física empregadora;

II - o representante legal do empregador, como definido na legislação trabalhista.

III – O dirigente, direto ou por delegação, de órgãos públicos e entidades das administrações públicas direta, indireta e fundacional de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios.

Ora, às escâncaras tais crimes possuem inquebrantável natureza trabalhista, não estando, contudo, elencados no título do Código Penal que trata dos "Crimes Contra a Organização do Trabalho", até porque tipificados em legislação extravagante, sendo manifestamente equivocada, pois, a defesa da competência da Justiça Federal para deles conhecer.

Questão muito parecida é a prevista no inciso X, do artigo 7º, da Constituição, que prevê a "proteção do salário na forma da lei, constituindo crime a sua retenção dolosa".

Aqui, a bem da verdade, é existente plausível discussão em relação aos limites de eficácia da regra, não sendo poucos, entrementes, aqueles que defendem a sua plenitude. Transcrevo, no pertinente, as palavras de MAURÍCIO GODINHO DELGADO:

"(...) De fato, a Carta de 88 estipula que a retenção dolosa de salário constitui crime (art. 7º, X, CF/88). A norma insculpida na Constituição obviamente não pode merecer interpretação extensiva – como qualquer norma fixadora de ilícito ou punição. Desse modo, deve-se compreender no sentido da norma constitucional a idéia de retenção do salário stricto sensu. Nessa linha, excluem-se dessa noção de salário retido (para fins penais) as parcelas salariais acessórias e ainda as verbas salariais controvertidas (a controvérsia sobre o débito exclui o próprio dolo em tais casos).

Feitas tais ressalvas, não há por que se considerar ineficaz tal preceito constitucional. É que o tipo penal da apropriação indébita (art. 168, Código Pena) ajusta-se plenamente à hipótese (limitado, evidentemente, às situações de dolo), conferindo absoluta e cabal tipificação ao ilícito, nos casos de retenção dolosa do salário base incontroverso, por exemplo." [10] (sem destaque no original)

Com efeito, admitido o enquadramento da retenção dolosa de salários no tipo da apropriação indébita, previsto no artigo 168 do CP, topologicamente inserido no título II do codex respectivo, a tratar dos crimes contra o patrimônio, consoante apregoa o abalizado magistério do Professor GODINHO DELGADO, o argumento do artigo 109, VI, da CRFB se torna, mais uma vez, manifestamente estéril para neutralizar a competência penal da Justiça do Trabalho.

Em suma, os exemplos são infindáveis, razão pela qual não prosseguirei na enumeração, haja vista me conformar com o truísmo da impossibilidade de exaurimento das possibilidades, que por certo se multiplicarão na prática forense.

Por outra vertente, ad argumentandum, ainda que na dogmática criminal todos os ilícitos penais-trabalhistas fossem considerados como crimes contra a organização do trabalho, creio que nem mesmo assim a jurisdição criminal da Justiça do Trabalho estaria definitivamente afastada, já que no caso seria de se aplicar o critério da súmula 115 do TFR a dizer que "compete à Justiça Federal processar e julgar os crimes contra a organização do trabalho quando tenham por objeto a organização geral do trabalho, ou os direitos dos trabalhadores considerados coletivamente" (sem destaque no original).

Vale dizer, portanto, que somente quando o crime ofende coletivamente os direitos dos trabalhadores é que a competência da Justiça Federal se justifica. Caso contrário, a atribuição cognitiva que outrora pertencia à Justiça Estadual (e não à Federal), passa com o advento da E.C. 45 à Justiça do Trabalho.

Em tal diapasão, o escólio de JOSÉ EDUARDO DE RESENDE CHAVES JÚNIOR:

É importante sublinhar, ainda, que o disposto no art. 109, VI, da Constituição da República, que dispõe expressamente a competência da Justiça Federal para os crimes contra a organização do trabalho, não inibe as conclusões ora expedidas, senão vejamos.

É que a despeito da literalidade de tal dispositivo, a jurisprudência, consolidada na Súmula n. 115 do extinto Tribunal Federal de Recursos, consagrou que a competência da Justiça Federal, para essas hipóteses, somente se configura quando se trate de lesão penal de transcendência coletiva e com repercussão geral na organização do trabalho, concebida como sistema.

Em face disso, o que se sustenta aqui é que apenas os crimes contra a organização do trabalho, de aspecto individualizado, é que se deslocariam da competência da Justiça Estadual, para a Justiça do Trabalho.

Em face, contudo, da própria "adequação legítima" já acenada, é fundamental que o constituinte desloque ou revogue o mencionado inciso VI do art. 109 da Constituição, a fim de que o fenômeno trabalho tenha um tratamento penal holístico, inclusive do ponto de vista coletivo. [11]

Com efeito, excetuadas as condutas criminais de transcendência coletiva e com repercussão geral na organização do trabalho que estejam tipificadas nos artigos 197 e seguintes do CP, todos os demais ilícitos de cunho penal-trabalhista deverão ser doravante processados e julgados perante a Justiça do Trabalho.


4 – ÚLTIMAS PALAVRAS

Como já adverti alhures, em momento algum do presente articulado pretendi ser original ou exauriente. De outro tanto, como também asseverado, tenho a exata noção de que todas as vezes que nos lançamos a um debate intelectual, corremos o risco de defender idéias que não acolham o aplauso dos estudiosos da matéria tratada.

Ainda assim, contudo, me jogo com gosto à defesa da bandeira desfraldada. Sei que essa posição não é fácil de ser defendida, mas o fato é que as tarefas fáceis não fascinam o ser humano. Ademais, essa luta não me parece vã, já que começam a despontar os seus frutos, oriundos de precedentes jurisprudenciais emanados da primeira instância dos TRTs da 12ª e da 2ª Região.

Um dia foi difícil defender a competência da Justiça do Trabalho para as ações que envolviam a discussão de dano moral, mas hoje ela é uma realidade.

Por igual, foi árduo esgrimar a competência do Judiciário Trabalhista para as ações de indenização por danos morais, materiais e estéticos oriundos de acidente do trabalho, mas hoje ela é uma realidade.

Também não foi tranqüilo o debate acerca da pertinência das ações civis públicas no processo do trabalho, mas hodiernamente elas estão cada vez mais presentes no nosso cotidiano.

A vida profissional é mesmo assim. Cheia de desafios estimulantes. Alguns superamos, outros não. Mas o fundamental é que nós, operadores do direito, assumamos com entusiasmo o nosso papel de notáveis agentes políticos, comprometidos com a construção de um verdadeiro Estado Democrático Direito, onde prevaleçam os fundamentos republicanos da cidadania, da dignidade da pessoa humana, dos valores sociais do trabalho e da função social da propriedade.


NOTAS

01 Roberto Lyra Filho, apud Wilson Ramos Filho, in Lições de Direito Alternativo do Trabalho, 1ª ed., São Paulo: Editora Acadêmica, 1993, p. 41.

02 Em especial agradeço ao Procurador do Trabalho Marcelo José Ferlin D’Ambroso, pioneiro na provocação jurisdicional da Justiça do Trabalho na esfera criminal, e aos juízes José Eduardo de Resende Chaves Júnior, Nilton Rangel Barreto Paim, Rodrigo Dias da Fonseca, Ivan José Tessaro, Ângelo Henrique Peres Cestari e Jorge Luiz Souto Maior.

03 Não é demasiado lembrar aqui, que todos aqueles que possuem alguma intimidade com a ciência juslaboral, mínima que seja, sabem que a expressão "relação de trabalho" é um gênero, do qual o termo "relação de emprego" é mera espécie.

04 Cumpre-me esclarecer aqui, que as reflexões que agora trago sobre o tema estão originalmente traçadas em artigo da minha lavra, intitulado "COMPETÊNCIA PARA AS AÇÕES QUE ENVOLVAM O EXERCÍCIO DO DIREITO DE GREVE", publicado em livro coordenado pelo meu dileto amigo ALEXANDRE AUGUSTO CAMPANA PINHEIRO, denominado COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO: Aspectos Materiais e Processuais, 1ª ed., São Paulo: LTr, 2005, pp. 83/95.

05 Decisão proferida na data de 01 de fevereiro de 2005, nos autos do Processo nº 2004.72.05.004394-8.

06 Não posso deixar de lembrar que, ao fim e ao cabo, quem dirimirá a celeuma instaurada sobre a competência criminal da Justiça do Trabalho será o STF.

07 HC 85096 / MG - MINAS GERAIS, Relator: Min. SEPÚLVEDA PERTENCE, Julgamento em 28/06/2005, Órgão Julgador: Primeira Turma, Publicação: DJ 14-10-2005 PP-00011 EMENT VOL-02205-2 PP-00307.

08 Ensaio e Discurso Sobre a Interpretação/Aplicação do Direito, 3ª ed., São Paulo: Malheiros Editores, 2005, p.28.

09 Magistratura e Direito Alternativo, 5ª ed., Rio de Janeiro: Luam, 1997, pp. 30/31.

10 Curso de Direito do Trabalho, 2ª ed., São Paulo: LTr, 2003, p.763.

11 Nova Competência da Justiça do Trabalho, 1ª ed., São Paulo: LTr, 2005, p. 233.


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Informações sobre o texto

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CESÁRIO, João Humberto. A Emenda Constitucional nº 45 e a jurisdição penal da Justiça do Trabalho: uma polêmica que já não pode ser ignorada. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 11, n. 951, 9 fev. 2006. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/7917. Acesso em: 28 mar. 2024.