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Defesa em processo disciplinar.

Quando o direito enfrenta a burocracia inútil

Defesa em processo disciplinar. Quando o direito enfrenta a burocracia inútil

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O texto é um alerta para os advogados de defesa que atuarem em processos disciplinares. O terreno é minado e o jogo nem sempre se dá às claras, com as cartas sobre a mesa.

O advogado, habituado às lides forenses, assusta-se quando assume o patrocínio da defesa em um processo administrativo de natureza disciplinar, seja pela singularidade do mérito, seja pelo improviso com o qual, em regra, a instrução é conduzida.

Tem-se no Brasil um confuso sistema no qual, de um lado equiparam-se na Constituição Federal os processos administrativos aos processos judiciais, para efeitos de segurança jurídica, assim como na mesma Carta é afirmado aos arguidos o devido processo legal; e, de outro turno, pouco se realiza no ambiente da legalidade. Implantou-se o modelo das comissões processantes que, em tese, seriam a garantia de que os funcionários teriam as suas condutas aferidas pelos seus pares, pelos seus iguais, pelos que vivem no seu meio e conhecem as suas rotinas. Um modelo aparentemente democrático, independente e com o rótulo da isenção. Na prática, não é esse o roteiro.

Pode-se fazer um mapa dos principais tipos de comissões:

  • As compostas por servidores que não têm a menor noção do que seja um processo disciplinar e, mesmo assim, são nomeados para instruir, aferir o valor das provas, examinar a defesa e produzir relatório jurídico;
  • Aquelas nas quais os encarregados da instrução se consideram representantes da administração e confundem o papel como sendo o de acusadores, iniciando os trabalhos com um juízo preconcebido sobre os fatos e as responsabilidades;
  • Os colegiados processantes nos quais os membros (ou pelo menos o presidente) resolve estabelecer um litígio com a defesa, desconsiderando as prerrogativas da advocacia e tratando o profissional como parte da causa.

Embora essa não seja a totalidade, é a generalidade do que se assiste quando se advoga nesse meio. Sobre uma corregedoria federal que tem seu escritório no Estado de São Paulo, é lícito afirmar que quem atua perante ela está apto a oficiar perante qualquer tribunal de exceção no mundo.

A difícil compreensão do rito

Para além do despreparo jurídico e os desvios produzidos pelo ego, verifica-se o desconhecimento do rito, da ordem lógica de uma ação administrativa. Por isso, valem os seguintes apontamentos:

  • Em processo não se apura, depura-se. Para apurar fatos, a administração conta com outros instrumentos, como investigação preliminar, inspeções, auditorias e sindicâncias. O processo disciplinar somente pode ser instaurado após o delineamento dos fatos e os sinais de autoria de infração disciplinar.
  • A função do processo não é investigar a ocorrência, mas aferir a responsabilidade do agente pelos fatos que foram identificados. Logo, não se admite que a comissão comece os trabalhos como quem inicia um inquérito, a procurar as provas por baixo dos tapetes e no fundo falso de armários e paredes. A autoridade colegiada já recebe um conjunto probatório mínimo, examina a qualidade desses elementos (sistema de repetição das provas), produz provas de ofício para dirimir dúvidas e abre prazo para a defesa apresentar as contraprovas.
  • O interrogatório é fase fundamental, que acontece depois de os autos possuírem esse conjunto: i) provas de acusação; ii) provas de ofício; iii) contraprovas do acusado
  • Com o interrogatório, a comissão completa a depuração dos fatos e forma o seu primeiro juízo de valor sobre a responsabilidade, indiciando ou não o arguido. Indiciar, no caso, significa confirmar a acusação.
  • Com a indiciação, o processo entra em segunda fase, que envolve as seguintes etapas: i) citação para apresentação de defesa escrita; ii) análise das razões de defesa; iii) produção eventual de provas complementares; iv) relatório.

Essa é a ordem lógica dos procedimentos, em breve exposição. Cada passo, todavia, tem uma forma ou uma formalidade a ser seguida. Os atos processuais são atos jurídicos e, portanto, não podem ser produzidos a critério de quem preside. A considerar que os estatutos são frágeis na descrição do rito e na maneira como se deve proceder em cada momento, sobreveem a necessidade do uso supletivo, nessa ordem, do Código de Processo Administrativo, do Código de Processo Penal e do Código de Processo Civil. O CPP é, por absoluto, a mais importante fonte, pela natureza penal especial dos processos disciplinares. Ali estão os requisitos para recolhimento das provas e os critérios para valoração de cada uma. O diploma processual civil, que é a matriz de todos os processos, completa os indicativos sobre provas, indeferimentos, requisitos, valor e enuncia princípios que fazem parte das modernas relações entre quem processa e quem é processado, aqui incluindo os patronos da defesa.

O advogado, por sua vez, evidentemente pauta a sua conduta pela boa-fé, pela ética profissional, pela colaboração com as autoridades; não descuida, entretanto, do valor do seu encargo. Não pode admitir ser a sobra do que restou do nada, como alguns funcionários mal informados o tentam reduzir.

Se os profissionais da advocacia atuarem com discernimento e esmero e se as comissões operarem dentro da técnica jurídica, não a confundindo com as rotinas burocráticas, o processo transcorrerá como um expediente técnico, legítimo, que atende ao interesse púbico e dignifica a todos quantos operarem nos autos.

Pareceres jurídicos

Os pareceristas do serviço público, que em tese fazem o patrulhamento da legalidade, precisam ter consciência de que são guardiões do direito; não é do seu papel tutelarem o arbítrio, rubricarem os arroubos de tirania que por vezes são praticados por prepostos da administração, despreparados inclusive sob o ponto de vista moral. Mesmo servidores íntegros, investidos da melhor vontade, cometem ilícitos pela ausência de prática com o trâmite desses processos, que são consideravelmente diferentes daqueles roteiros que passam nas suas mesas no dia a dia dos cargos que ocupam.

Se o consultor jurídico patrocinar a ilicitude, fechar os olhos para as advertências que a defesa fez, não só trai a sua responsabilidade ética e profissional como coloca a entidade pública na linha de risco. Invariavelmente, a falta de um rígido controle científico faz com que a causa engrosse o volume que se amontoa nos tribunais, travando o Judiciário, ofendendo a dignidade das pessoas e, não raramente, levando à administração a ressarcimentos de elevadas cifras no futuro.

A preparação do advogado

Está visto que o advogado que atuar nessa seara deve se preparar para além daquilo que precisa nos embates judiciais. Na Justiça, oficiam profissionais do direito; na administração, laboram geralmente leigos. No Judiciário, as regras são claras, delineadas nos respectivos códigos; nos processos administrativos, a legislação é parca, omissa, confusa, contraditória.

Entra aqui uma nota primordial: que o profissional compreenda que o Direito Disciplinar é um ramo específico da ciência jurídica; como tal, tem legislação, possui princípios informativos próprios e está sob o agasalho de considerável doutrina. O estudo, que é dever permanente dos profissionais da advocacia, deve ser redobrado nessas circunstâncias; e não é demasiado considerar as peculiaridades e vícios do sistema, porque o terreno é minado e o jogo nem sempre se dá às claras, com as cartas sobre a mesa.

Léo da Silva Alves é autor de dezenas de livros e conferencista sobre matéria disciplinar no Brasil e exterior. É advogado em Brasília.


Autor

  • Léo da Silva Alves

    Jurista, autor de 58 livros. Advogado especializado em responsabilidade de agentes públicos e responsabilidades de pessoas físicas e jurídicas. Atuação em Tribunais de Contas, Tribunais Superiores e inquéritos perante a Polícia Federal. Preside grupo internacional de juristas, com trabalhos científicos na América do Sul, Europa e África. É professor convidado junto a Escolas de Governo, Escolas de Magistratura e Academias de Polícia em 21 Estados.

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