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Desestruturação familiar e criminalidade juvenil

reflexões sobre uma possível relação à luz de abordagens interdisciplinares

Desestruturação familiar e criminalidade juvenil: reflexões sobre uma possível relação à luz de abordagens interdisciplinares

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É possível defender que a desestruturação familiar é uma das origens da tendência à criminalidade observada em alguns adolescentes?

1 INTRODUÇÃO

A família é considerada a base da sociedade (art. 226 da Constituição Federal de 1988), e, em razão disso, possui especial atenção do Estado. Segundo concepção do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), família é o conjunto de pessoas que residem em um mesmo domicílio, ligadas por laços de parentesco, dependência doméstica ou normas de convivência (BERCOVICH; PEREIRA, 1997, p. 6).

O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECREAD), Lei Federal nº 8.069, de 13 de julho de 1990, imputa à família o local onde a criança e o adolescente devem se desenvolver física e psicologicamente, e receber educação necessária à vida, assegurando-lhe, desse modo, o direito à convivência familiar e comunitária e a completa formação como pessoa natural.

De fato, crianças e adolescentes são sujeitos de direitos e devem ser criados no seio de sua família e, excepcionalmente, em família substituta, cabendo aos pais o exercício dos deveres de sustento, guarda e educação dos filhos menores.

É perceptível a importância da instituição familiar, fundamental à própria vida social, cujas funções principais são de natureza educadora, socializadora e psicológica. Atribui-se à família a responsabilidade de adequar o comportamento de seus entes aos valores da sociedade, transmitindo-lhes hábitos, linguagem e cultura, bem como contribuir para o equilíbrio, desenvolvimento afetivo e segurança emocional de seus membros.

Na realidade, essas recomendações não fazem parte de todo convívio familiar, pois ocorrem situações de conflitos e violência intrafamiliar, motivadas por maus tratos físicos, violência psicológica, abuso sexual, negligência, abandono e até mesmo problemas causados por separação conjugal, que podem provocar transtornos emocionais e psíquicos e implicações negativas na formação basilar dos filhos. Logo, fica claro que essas situações trazem consequências negativas ao indivíduo em fase de desenvolvimento, pois

[...] As figuras centrais de autoridade e modelo para os filhos são os próprios pais. A adolescência é um período de importantes modificações psicológicas, familiares e sociais. Devido a modificações corporais internas, o púbere procura estabelecer referências externas fixas. Se o ambiente apresenta modificações, o púbere pode agravar a sua confusão (TIBA, 1998, p. 87, grifo nosso).

É imperioso destacar que o histórico familiar dos pais, como o envolvimento com alcoolismo, tabagismo, uso e abuso de drogas ilícitas, violência doméstica, omissão de cuidado e autoridade também podem acarretar influências negativas em larga escala na formação da personalidade dos filhos, cujo alcance pode originar a tendência voltada para a prática de condutas criminosas pelos adolescentes.

Consciente de que a violência é dos principais problemas sociais brasileiros e que este fenômeno é complexo e multicausal, a família configura-se como um dos contextos em que pode determinar e manifestar a violência, o que influenciou a escolha do tema para este trabalho. 

Em verdade, o problema, antes intrínseco à esfera privada, transforma-se em uma questão social e, por via de consequência, em razão do desvio de conduta, constitui em demanda à estrutura da Segurança Pública e Justiça Criminal. A prática de atos infracionais pode ser um reflexo da capacidade do adolescente de buscar no meio social aspectos que deveriam ter sido incorporados a sua personalidade, mas não foram por deficiências nas relações familiares.

Isto posto, sendo a família o alicerce do desenvolvimento da criança e do adolescente, fonte da formação da personalidade individual e do enfrentamento da complexidade da convivência social, é possível defender que a desestruturação familiar seria uma das origens da tendência à criminalidade praticada por adolescentes?

Nesse trabalho, a hipótese levantada é de que a desestruturação familiar é um fator da perda da base de sustentação afetiva e de estabilidade, fundamentais no processo de construção da subjetividade da criança e do adolescente. A prática de atos infracionais pode ser um reflexo da capacidade do adolescente de buscar no meio social aspectos que deveriam ter sido incorporados a sua personalidade, mas não foram por deficiências nas relações familiares.

Essa problemática é estudada através de uma perspectiva sociológica e psicológica, que auxiliarão no embasamento teórico do tema proposto e sobre as quais se explicará a influência da desestrutura familiar na formação da personalidade da criança e do adolescente, bem como na tendência voltada para a prática de atos infracionais praticada por adolescentes.


2 FAMÍLIA: A BASE DA SOCIEDADE

Nas últimas décadas, as sociedades ocidentais testemunham mudanças nos padrões familiares que seriam inimagináveis para gerações anteriores. Entre as principais observações em torno dos perfis familiares estão a formação e a dissolução de famílias e lares e a mudança crescente de expectativa no seio das relações pessoais dos indivíduos.

Outras temáticas também se inserem na discussão, tais como: a crise da nupcialidade, aumento do número de divórcios e de relações monoparentais, surgimento das “famílias reconstituídas” e das famílias homessexuais, crescimento da coabitação entre jovens (GIDDENS, 2005, p. 155).

Trata-se de uma controvérsia: embora a estrutura familiar tenha naturalmente sofrido mudanças no decorrer do tempo, a família continua, indiscutivelmente, considerada uma das bases mais significativas da sociedade.

É importante frisar que a família moderna pauta-se em um conceito mais amplo, de modo que abraça os vários arranjos familiares, e, especialmente, reconhece o elemento da afetividade, essencial ao desenvolvimento social e psíquico da pessoa humana. Nos dizeres do jurista Washington de Barros Monteiro (2004, p. 1), a família representa o núcleo fundamental da sociedade, onde “originam-se e desenvolvem-se hábitos, inclinações e sentimento que decidirão um dia a sorte do indivíduo”.

Se considerarmos a história humana desde a antiguidade, é de fácil percepção o fato de que o homem sempre dependeu do outro para viver. É o contato com o grupo social que concede ao indivíduo a possibilidade de desenvolver as chamadas características humanas e aprimorar suas relações sociais. Por este motivo, as teorias sociológicas asseguraram que a sociedade precede o próprio indivíduo, sendo o ser humano um produto da interação social.

Nessa temática, é prudente explicar que as relações sociais desenvolvem-se por meio das instituições sociais, que incorporaram valores e procedimentos comuns e atendem a certas necessidades básicas da sociedade. Antes de explicitar a importância da família no processo de socialização do indivíduo, é válido mencionar as funções mais importantes exercidas pela instituição familiar, que são:

  1. Biológica: relacionada à reprodução da espécie e satisfação das necessidades sexuais.
  2. Socialização: refere-se à transmissão da herança social e cultural através da educação dos filhos (linguagem, usos, costumes, valores, crenças).
  3. Social: diz respeito ao papel que a família exerce ao determinar o status inicial do indivíduo. Cada criança começa a vida com o status de classe de sua família.
  4. Assistencial: relaciona-se a responsabilidade que a família tem perante a proteção física, econômica e psicológica de seus membros.
  5. Econômica: a família se constitui numa unidade de produção além do consumo (DIAS, 2006, p. 153-154).

É importante considerar que, em variados níveis, a família, se comparada a outras instituições sociais (escola, igreja), demonstra aspectos singulares. Não é cedo para asseverar que a família influencia não somente no desenvolvimento físico e psíquico das crianças, mas também é a base que fundamenta as atitudes, emoções e decisões humanas no período da adolescência, juventude, e por que não dizer por toda a vida.

2.1 O PAPEL DA FAMÍLIA NO PROCESSO DE SOCIALIZAÇÃO HUMANA

A exposição até aqui desenvolvida pretendeu comprovar a função basilar que a família possui em toda sociedade, muito embora venha assumindo no passar dos anos arranjos diferenciados, o seio familiar mostra-se como o parâmetro para a formação e desenvolvimento social e psíquico das pessoas. Nesta altura, aliado aos objetivos deste trabalho, constitui um dos interesses, explicar a relevância do papel da família no processo de socialização humana.  

Alguns atores são listados como os principais agentes de socialização: a família, a escola, os grupos de “status”, os meios de comunicação de massa e os grupos de referência. Todavia, atribui-se à família “o principal agente de socialização, é o agente básico e o mais importante no qual o indivíduo é influenciado num primeiro momento ao nascer, e mantém essa influência de alguma forma durante parte de sua vida” (DIAS, 2006, p. 72).

Em outras palavras, compreende-se que a socialização é um processo da vida humana no qual o indivíduo desenvolve a aprendizagem do modo de vida da sociedade - que inclui a cultura, moral, costumes, hábitos - e assimila a importância do seu papel-social enquanto indivíduo como membro do grupo social.

Anthony Giddens (2005, p. 42) leciona que a socialização é o processo pelo qual as crianças, ou outros novos membros, aprendem o modo de vida de sua sociedade e se tornam pessoas autoconscientes e instruídas, hábil da cultura na qual ela nasceu. A socialização é o principal canal para a transmissão da cultura através do tempo e das gerações.

Os sociólogos entendem que o processo de socialização divide-se em duas fases. A primeira delas, a chamada socialização primária, acontece na primeira infância, onde a família, principal agente de socialização, ensina a língua, moral e os padrões básicos de comportamento que formam a base para o aprendizado posterior; já a socialização secundária, ocorre mais tarde, ainda na infância, e maturidade, período em que as interações sociais auxiliam os indivíduos a aprenderem os valores, normas e crenças que constituem os padrões de sua cultura. Neste momento, há a necessidade de atuação de outros agentes na socialização, podendo ser listados: escolas, grupos de iguais, organizações, mídia e trabalho (GIDDENS, 2005, p. 42).

Por fim, fica claro que o processo de socialização humana deve pautar-se na afetividade da família, já que a educação recebida pela criança recobre vários objetivos, essenciais à aquisição de referências e formação da personalidade. Ademais, quando os laços familiares se fragilizam e – em casos extremos – se desintegram, condutas desviantes ou delinquentes podem surgir (FERRIOL; NORECH, 2007, p. 107-108).

2.2 A FAMÍLIA NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO

As Constituições brasileiras de 1891, 1934, 1937, 1946 e 1967 dedicaram atenção para a família, particularmente para definir a indissolubilidade do casamento e instituir a legitimidade da família, não reconhecendo outra forma senão a proveniente da celebração do matrimônio, civil ou religioso, com efeitos civis. O texto legal das disposições constitucionais citadas revelava uma sociedade patriarcal e submissa a autoridade paterna e marital (COUTO, 1999, p. 33).

A rigor, a legislação constitucional tornou-se menos discriminatória a partir do momento em que a sociedade foi mudando seu caráter. Dessa forma, a mulher ganhou papel igualitário no âmbito da atuação jurídica e social. Prova disso é o inciso primeiro do 5º. da Constituição Federal de 1988 (CF/88), que indica o direito a tratamento igualitário nas relações entre homens e mulheres. No mesmo sentido, o art. 226, parágrafo quinto, da CF/88, prevê que “os direitos e deveres referentes à sociedade conjugal são exercidos igualmente pelo homem e pela mulher”.

Com base nessas disposições legais, destoa que os princípios informadores do Direito consideram as relações jurídicas entre os sujeitos dissociadas da diferenciação dos sexos. De forma que tem caminhado junto com a ciência quanto à realidade nivelada da importância materna e paterna na formação sociológica e psicológica do indivíduo.

É de sumo valor entender que a obrigação de cuidar dos filhos é responsabilidade não somente dos pais, mas, em especial, a estes pertence. Daí porque falar da essência do seio familiar para o desenvolvimento da criança e do adolescente, lugar de onde ele extrai parâmetros de sua criação social e psíquica como pessoa humana.

A partir do princípio da proteção integral referenciado pela Constituição Federal pode-se interpretar, no mais, que “é dever de todos zelar pela dignidade da criança e do adolescente, pondo-os a salvo de qualquer tratamento desumano, violento, vexatório e constrangedor” (art. 18 do ECREAD).

Outro ponto a que se deve destacar é o direito à convivência familiar (art. 227 da CF/88 e art. 19 do ECREAD), que exalta a importância da família “para a criação e educação da criança e do adolescente, pois será justamente em companhia de seus pais e demais membros que eles terão condições de um melhor desenvolvimento” (NOGUEIRA, 1998, p. 34). O vínculo familiar torna-se tão imprescindível para o desenvolvimento físico e mental da criança e do adolescente que ganhou status de princípio no ordenamento jurídico brasileiro.

O art. 4º. do ECREAD disciplina o princípio da prioridade absoluta, que tem como ponto crucial o planejamento e a execução das políticas públicas, que precisam priorizar o atendimento e a preservação dos direitos da população infanto-juvenil. Da mesma forma, as normas e os operadores do Direito devem ter à frente o melhor interesse da criança e do adolescente.

Por fim, percebe-se que o arcabouço jurídico brasileiro preocupa-se em atribuir autonomia privada às relações jurídicas da família – a base da sociedade e fonte de desenvolvimento de qualquer indivíduo – não esquecendo que nessa discussão o que deve sempre prevalecer é o bem-estar da criança e do adolescente e proteção de seus interesses e direitos fundamentais tão especiais. 


3 DESESTRUTURAÇÃO FAMILIAR

Para situar, esta parte da pesquisa procurou cumprir com um dos objetivos específicos propostos pelo trabalho, que é o de identificar os principais elementos que caracterizam a desestruturação familiar e que podem tornar-se fatores de desequilíbrios emocionais e psíquicos à formação basilar das crianças e adolescentes.

Como diz Anthony Giddens (2005, p. 166), as relações familiares – entre marido e mulher, pais e filhos, irmãos e irmãs, ou entre parentes – podem ser ternas e gratificantes. Contudo, este cenário pode ser palco das mais acentuadas tensões, abusos e violências, o que pode transformar, a depender do grau e da permanência destes problemas, a situação de normalidade da família unida pelos laços de afetividade em uma família desestruturada. 

O que importa na análise deste trabalho é saber que, além do efeito da pauperização das famílias, o processo educativo e desenvolvimento psíquico aos quais são submetidas às crianças e adolescentes de famílias desestruturadas, é uma variável importante no desencadeamento de comportamentos anti-sociais (GOMIDE, 1990, p. 32).

Essas famílias são denominadas de “famílias em situação de violência”, e o tipo de violência, como de “violência intrafamiliar”. Os especialistas na área de Psicologia consideram que os danos na área sociopsicológica não se restringem somente à vítima direta da violência, mas também ao grupo familiar, criando um problema social de graves proporções (MUSZKAT, 2003, p. 188).

Entre as explicações que apontam as causas da violência intrafamiliar estão

[...] a combinação entre a intensidade emocional e a intimidade pessoal características da vida familiar. Os laços familiares estão normalmente carregados de fortes emoções, misturando amiúde amor e ódio. As brigas que surgem no ambiente familiar podem desencadear antagonismos que não seriam sentidos da mesma forma em outros contextos sociais. O que parece um incidente sem importância pode precipitar gigantescas hostilidades entre os cônjuges ou entre pais e filhos. Um segundo fator é a questão de que um bocado de violência dentro da família é na verdade tolerada e até mesmo aprovada. Embora a violência familiar socialmente sancionada seja de natureza relativamente confinada, ela pode facilmente propagar-se em formas mais severas de agressão (GIDDENS, 2005, p. 157).  

Como o tema da violência assumiu grande importância para a saúde pública em função de sua magnitude, gravidade, vulnerabilidade e impacto social sobre a saúde individual e coletiva, os elementos da desestruturação familiar que serão indicados aqui partem de um material compilado pelo Ministério da Saúde, intitulado “Caderno de Atenção Básica – Violência intrafamiliar: orientações para a prática em serviço”, que foi publicado em 2002 com o propósito de mobilizar e fortalecer as ações, serviços e profissionais de saúde na perspectiva de assumir uma nova atitude e colaboração em relação ao problema.

O material editado pelo Governo Federal, através do Ministério da Saúde, conceitua a violência intrafamiliar, como

[...] toda ação ou omissão que prejudique o bem-estar, a integridade física, psicológica ou a liberdade e o direito ao pleno desenvolvimento de outro membro da família. Pode ser cometida dentro ou fora de casa por algum membro da família, incluindo pessoas que passam a assumir função parental, ainda que sem laços de consangüinidade, e em relação de poder à outra (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2002, p. 15).

O Caderno de Atenção Básica, objeto do estudo, descreve que a violência intrafamiliar pode se manifestar de várias formas, em diferentes graus de severidade e periodicidade. Julga-se pertinente listar os tipos de violência intrafamiliar e algumas formas de manifestação, segundo o Ministério da Saúde (2002, p. 17-22):

a) Violência física: Tapas, empurrões, socos, mordidas, chutes, queimaduras, cortes, estrangulamento, lesões por armas ou objetos, obrigar a tomar medicamentos desnecessários ou inadequados, álcool, drogas ou outros, substâncias, inclusive alimentos, tirar de casa à força, amarrar, arrastar, arrancar a roupa, abandonar em lugares desconhecidos.

b) Violência sexual: Estupro, sexo forcado no casamento, abuso sexual na infância e/ou adolescência, abuso incestuoso, assédio sexual, carícias não desejadas, penetração oral, anal ou genital, com pênis ou objetos de forma forçada, exposição obrigatória à material pornográfico, exibicionismo e masturbação forçados, uso de linguagem erotizada.

c) Violência psicológica: Insultos constantes, humilhação, desvalorização, chantagem, isolamento de amigos e familiares, ridicularização, rechaço, manipulação afetiva, exploração, negligência (atos de omissão a cuidados e proteção contra agravos evitáveis como situações de perigo, doenças, gravidez, alimentação, higiene, entre outros), ameaças.

d) Violência econômica ou financeira: Roubo, destruição de bens pessoais (roupas, objetos, documentos, animais de estimação e outros) ou de bens da sociedade conjugal (residência, móveis e utensílios domésticos, terras e outros), recusa de pagar a pensão alimentícia ou de participar nos gastos básicos para a sobrevivência do núcleo familiar, uso dos recursos econômicos de pessoa idosa, tutelada ou incapaz.

e) Violência institucional: Peregrinação por diversos serviços até receber atendimento; falta de escuta e tempo para a clientela, frieza, rispidez, falta de atenção, negligência, maus-tratos dos profissionais para com os usuários, motivados por discriminação, abrangendo questões de raça, idade, opção sexual, gênero, deficiência física, doença mental, violação dos direitos reprodutivos, desqualificação do saber prático, da experiência de vida, diante do saber científico, violência física (por exemplo, negar acesso à anestesia como forma de punição).

Pode-se perceber que a violência intrafamiliar apresenta-se sob diversas formas, com efeitos sintomáticos, de ordem física, sexual ou emocional, razão pela qual merecem demanda políticas e programas específicos de atendimento à família que possam atuar sobre as circunstâncias associadas ao ciclo da violência.

A violência física, do ponto de vista clínico, pode ser mais facilmente diagnosticada por uma equipe de saúde dado os sinais que provocam nos órgãos internos e externos do corpo, no entanto o que se deve apurar, concomitantemente, são as implicações emocionais que estes atos também podem causar. Cabe observar que, da mesma forma, as agressões sexuais podem ser apuradas pelas lesões nos órgãos sexuais e possíveis doenças sexualmente transmissíveis, gravidez, mas, além disso, tendem a influenciar o aparecimento de sintomas psicológicos.

A violência psicológica, que se manifesta através de insultos, humilhação, desvalorização, isolamento, pode ser traumática às vítimas, gerando inclusive efeitos sobre a saúde caso não sejam devidamente tradados por profissionais especializados.  As violências econômica/financeira e institucional caracterizam o estado de vulnerabilidade social ao qual está submetido a família, seja por falta ou carência de suprimentos econômicos, seja pela dificuldade ou problemas de acesso e atendimento aos serviços básicos e fundamentais à vida (saúde, educação, segurança). 

Outra informação importante demonstrada pelo documento do Ministério da Saúde é que o ambiente familiar muitas vezes revela a existência de condições particulares individuais, familiares e coletivas, que podem auxiliar na identificação de fatores de risco da violência intrafamiliar e, consequentemente, subsidiar o prognóstico e a prevenção do problema. Alguns dos fatores de risco elencados pelo Ministério da Saúde (BRASIL, 2002, p. 23-26) são:

1º) Na família: distribuição desigual de autoridade e poder; famílias cujas relações são centradas em papéis e funções rígidas; famílias sem diferenciação de papéis; famílias com alto nível de tensão; estrutura de funcionamento fechada; situação de crise, perdas (separação do casal, desemprego, morte); modelo familiar violento (maus tratos, abuso na infância e abandono); abuso de drogas; história de antecedentes criminais.

2º) Na relação do pais: indicativos de violência em relacionamentos anteriores; dinâmica agressiva, isolamento e fechamento da relação conjugal; elevado tempo de convivência em situação de violência; baixa capacidade de negociação frente a conflitos; elevado nível de dependência econômica e/ou emocional dos parceiros; baixa auto-estima dos parceiros; sentimento de posse exagerado; alcoolismo e/ou drogadição.

3º) Na criança: a) Referentes aos pais: histórico de maus-tratos, abuso sexual ou rejeição/abandono; gravidez na adolescência, não planejada, de risco; depressão na gravidez; pai/mãe com múltiplos parceiros; expectativas altas em relação à criança; ausência ou pouca manifestação de afeto; estilo disciplinar rigoroso; possessividade; b) Referentes à criança: Crianças separadas da mãe ao nascer por doença ou prematuridade; crianças nascidas com mal-formações congênitas ou doenças crônicas (retardo mental, hiperatividade); crianças com falta de vínculo parental nos primeiros anos de vida.

Sem dúvida, o trabalho de identificação dos tipos de violência intrafamiliar, as suas formas de manifestação e os fatores de risco determinaram a amplitude e gravidade da questão, e em especial, foram contundentes para demonstrar os elementos que abarcam a desestruturação familiar.

Sabe-se que a família é o espaço privilegiado para a garantia de desenvolvimento, proteção das crianças e demais membros, por isso que a questão da violência intrafamiliar deve ser tratada com rigor, ainda mais porque, como avalia o doutor em Educação Pedro Demo (2002, p. 199), a desagregação familiar

[...] é geralmente apontada como fator importante na proliferação de crianças e adolescentes em situação de rua, com realce para a condição de marginalização socioeconômica. Isso pode levar ao aumento de gravidez precoce, à valorização de ambientes arriscados fora da família ou do ambiente familiar, à formação de gangues e fenômenos similares, ao baixo desempenho escolar, a distanciamentos geracionais ainda maiores (grifo nosso).

Vê-se, assim, que a violência intrafamiliar é um problema social que merece contínuo acompanhamento, discussão e formação de redes sociais com a composição de diversos atores, nas várias esferas de poder, incluindo, neste caso, os profissionais de segurança pública, justiça criminal, saúde, psicólogos, assistentes sociais, membros do Poder Judiciário e do Ministério Público. 


4 CRIMINALIDADE JUVENIL

A Segurança Pública é o mais antigo campo de atuação e principal responsabilidade do Estado, sendo condição “sine qua non” para o atendimento dos demais valores sociais. Diz respeito à manutenção do aspecto específico da ordem interna de um determinado território e preservação da convivência pacífica e harmônica entre as pessoas.

A sociedade brasileira é ciente do panorama crítico da Segurança Pública do país, intensificado, nos últimos anos, pelos altos índices de criminalidade e violência, pelo sentimento de insegurança social e pela impunidade, que atingem, sem distinção todas as classes sociais, não mais se restringindo às áreas territoriais urbanas das cidades.

Insta admitir que a gravidade desta problemática pode ser enfatizada, em especial, quando se remete aos indicadores de criminalidade juvenil. O estudo mais recente e específico deste assunto, promovido pelo Instituto Sangari, denominado de “Mapa da Violência 2011 – Os Jovens do Brasil”[1], apontou que as estatísticas relacionadas ao número de homicídios na população jovem tem caráter de epidemia, sendo que a a taxa de homicídios entre os jovens passou de 30 (em 100 mil jovens), em 1980, para 52,9 no ano de 2008.

Cabe mencionar que o conceito de criminalidade e violência é impreciso e polêmico. A violência não se restringe ao crime, ela é mais ampla. Não há violência, mas violências que devem ser entendidas em seus contextos e situações particulares (LOCHE, 1999, p. 104).

A visão técnico-jurídica, comumente adotada por operadores do Direito, considera o crime como uma “ação típica, antijurídica, culpável e punível”. Este conceito que tipifica as condutas humanas de forma restrita e isolada restringe o crime à lógica penal, sem considerar os fatores que envolvem o crime, seus agentes e próprio mister do sistema de segurança pública (SILVA, 2003, p. 48).

Sob outro prisma mais abrangente, a criminologia crítica contemporânea reconhece o crime como um fenômeno social, intrínseco à convivência social, conforme estudo precursor de Émile Durkheim. Nesta diretriz, o estudo da criminalidade não se baseia em determinismos biológicos ou psicológicos, mas a analisa através de uma vertente sócio-político-histórico-cultural.

Nesse sentido, os autores Muniz e Zacchi (2004, p. 9) afirmam que o problema da criminalidade deve ser avaliado a partir da associação com outras variáveis sociais, a exemplo dos processos de urbanização e das dinâmicas de distribuição e acesso aos bens e serviços urbanos que constituem indicadores importantes quando se analisa a ocorrência de crimes.

Vê-se, pois, que a preocupação do Poder Público deve ser direcionada principalmente à população infanto-juvenil, já que o envolvimento destes em atividades criminosas tem manifestado certo crescimento. O perfil de vítimas de homicídios também assinala maior ocorrência nessa faixa etária.

Tão importante quanto analisar os fatores que envolvem o crime é entendê-los não de forma isolada, mas como um conjunto de relações que se estendem e se relacionam entre si. A violência e a criminalidade tratam-se, inegavelmente, de fenômenos conhecidos e intrínsecos a toda e qualquer sociedade, entretanto o desconhecido por alguns é que a raiz deste problema pode ser a desestruturação da instituição familiar. Isso torna-se perceptível na seguinte citação:

A Folha de São Paulo de 01/02/1992 publica em sua página 22 que o The New York Times divulgou um estudo do Departamento de Justiça dos Estados Unidos sobre a criminalidade, afirmando que esta pode ter sua origem na família. [...] mais da metade de todos os delinqüentes juvenis presos nos reformatórios estaduais e mais de um terço dos criminosos adultos em prisões estaduais têm algum membro próximo da família que também já esteve encarcerado. Terrie Moffitt, professora de Psicologia da Universidade de Wiscosin, declara que as estatísticas contradizem a tese de que os jovens se tornam delinqüentes por influência de amigos. Para ela, os jovens aprendem a ser criminosos com suas próprias famílias (CERVENY, 2000, p. 37, grifo nosso).

Portanto, observa-se a relevância da análise realizada neste trabalho, porquanto traz a reflexão acerca da fragilidade dos laços afetivos, ausência das funções de pai e/ou mãe e dos fatores que envolvem a desestruturação familiar como possível fonte da tendência voltada para a criminalidade praticada por adolescentes.


5 DIÁLOGO INTERDISCIPLINAR ENTRE A SOCIOLOGIA E PSICOLOGIA

5.1 A TEORIA DA ANOMIA SOCIAL DE ÉMILE DURKHEIM

Ao final do século XIX, Durkheim introduziu na história a corrente sociológica da teoria estrutural-funcionalista, mais tarde também estudada pelo sociólogo estadunidense Roberto Merton, que representou uma mudança profunda de paradigma na época, sendo a primeira alternativa clássica de superação à concepção biopsicológica na área da criminologia (BARATTA, 2002, p. 59).

Assim como outras teorias sociológicas, o funcionalismo menospreza por completo o componente biopsicológico individual em seu diagnóstico do problema criminal, apesar de que referido fator condiciona, ao menos, a transmissão de qualquer sistema de conduta. Como teoria macrossociológica, relaciona o crime com as estruturas sociais (MOLINA; GOMES, 2000, p. 286, grifo nosso).

Em oposição à ótica do indivíduo mórbido, Durkheim permitiu a reconceitualização da ideia como o resultado de um rompimento ou enfraquecimento de processos sociais que, de outra forma, produziriam conformidade aos padrões normais da sociedade. Certamente em toda sociedade, existem regras de convivência a serem seguidas, e por via de consequência, cada regra estabelece as condições necessárias para seu rompimento.

A respeito dos aspectos criminológicos, os juristas Luiz Flávio Gomes e Antônio García-Pablos de Molina (2000, p. 280) escrevem que os princípios da teoria estrutural-funcionalista são a normalidade e a funcionalidade do crime. Normal porque não teria sua origem em nenhuma patologia individual nem social, senão no normal e regular funcionamento de toda ordem social; e funcional, no sentido de que seria um fato necessário à estabilidade e mudança social.

Fica claro que Durkheim não minimiza a possível gravidade de um ato criminoso ou se solidariza com ele; ao contrário, é exatamente esse o ponto de inflexão da análise. Ao dizer que o crime é um fenômeno normal da sociedade, Durkheim reforça a ideia de que o crime não é algo que pode ser atribuído, enquanto fenômeno sociológico, a um indivíduo particular. O olhar sociológico durkheiniano aponta determinado estado da estrutura social como veículo preferencial para a facilitação da ocorrência de um crime: o estado de anomia social.

A palavra anomia tem origem etimológica do grego “anomos”, que representa ausência, inexistência, privação de; e “nomos”, lei, norma. Em sua estrita significação, portanto, anomia significa falta de lei, ou falta de norma de conduta (ROSA, 1993, p. 97). Vale elencar em face das diferentes acepções que a palavra “anomia” contempla, três diferentes ideias que são importantes para este estudo:

a) A situação existente de transgressão das normas por quem pratica ilegalidades – é o caso do delinqüente.

b) A existência de um conflito de normas claras, que tornam difícil a adequação do indivíduo aos padrões sociais.

c) A existência de um movimento contestatório que descortina a inexistência de normas que vinculem as pessoas num contexto social. É a chamada crise de valores, causadora das grandes mudanças comportamentais de nosso tempo (SHECAIRA, 2004, p. 215).

Importa observar que, seja qual for a acepção tomada, o foco da questão será a ausência de normas sociais de referência que acarreta uma ruptura dos padrões sociais de conduta, produzindo uma situação de pouca coesão social (SHECARIA, 2004, p. 216).

Portanto, um estado anômico refere-se à condição especial da sociedade que produz no indivíduo uma deficiência de controles normativos. Essa lacuna pode permitir, por meio do enfraquecimento da moralidade – isto é, os valores solidários da coletividade –, a escolha de um caminho seja desviante.

Outra questão relevante do assunto é a reflexão que Durkheim faz sobre os motivos que levam a sociedade ao estado anômico. É válido lembrar que, na realidade, a dinâmica da estrutura social constrói a coesão por intermédio da solidariedade, ou seja, da adequação individual e coletiva a determinadas regras e valores.

O doutor em Direito Penal, Sérgio Salomão Shecaria (2004, p. 216) explica que nas sociedades arcaicas ou primitivas a solidariedade está mais presente, pois a consciência coletiva abrange a maior parte das consciências individuais. Esta solidariedade foi então denominada por Durkheim de “solidariedade mecânica”.

Diferentemente, nas sociedades contemporâneas, a diferenciação das profissões e a multiplicação das atividades industriais exprimem as características sociais que Durkheim define como ensejadoras da “solidariedade orgânica”. Como característica, os indivíduos tem liberdade de crer, querer e agir, conforme suas preferências. Logo, nas sociedades em que há solidariedade orgânica ocorre uma redução da esfera da consciência coletiva, em razão do enfraquecimento das reações coletivas contra a violação das proibições e, sobretudo, uma margem mais ampla na interpretação individual dos imperativos sociais (SHECARIA, 2004, p. 217).

O ponto categórico deste debate é a constatação de que nas sociedades de solidariedade orgânica há também a dissolução progressiva dos laços sociais, o que introduz a noção de anomia, seja por ausência de regras, ou porque as que existem já não conseguem impor-se face a uma nova forma de organização social. Aliás, verifica-se ainda que prevalece uma menor indignação social do grupo perante os comportamentos desviantes (FERNAMBUCO, 2005).

De fato, o foco da Sociologia durkheimneana na explicação de todo esse processo recai sobre as instituições responsáveis pela socialização dos indivíduos, neste caso, a família, escola, religião, profissão, responsáveis pela transmissão dos valores e normas da sociedade.

Nesse sentido, Durkheim (apud AVELLAR, 2007, p. 35) ensina que

Se ao desempenharmos qualquer papel social cumprimos os compromissos que existiam antes de nós, definidos no direito e nos costumes, a interiorização dessas normas e valores se dá por meio do processo de socialização, desenvolvido pelas diversas instituições sociais, entre elas a família, a quem cabe o “esforço inicial e contínuo para impor à criança maneiras de ver, sentir e agir, às quais ela não chegaria espontaneamente (grifo nosso). 

Desse modo, a investigação se concentra sobre em que sentido essas instituições falharam em sua missão de normatizar o que as pessoas querem de suas vidas e, principalmente, como se espera que elas se comportem para alcançar estes objetivos. Quanto à família, a dúvida é em que ponto houve falha no processo de socialização do indivíduo, quais foram as deficiências no desenvolvimento físico e psíquico da pessoa, pois são estes que fundamentam as atitudes, emoções e decisões humanas.

Pela exposição até aqui apresentada, fica clara a importância da análise da teoria da anomia proposta por Durkheim, haja vista que o estado anômico surge quando o indivíduo perde as referências sociais, que orientam seu contato com os demais membros da sociedade. Em sendo a família instituição primordial no processo de socialização, no qual o indivíduo aprende o modo de vida da sociedade e forma a base de suas convicções e equilíbrio emocional, a desestruturação familiar se materializaria como o estado de anomia desta instituição, já que os elementos daí advindos resumem-se ao rompimento dos vínculos afetivos e abalo na assimilação de normas, estabilidade psíquica e formação da personalidade de seus membros.

Conforme já demonstrado, Durkheim atribui à falha do controle normativo do indivíduo e de valores de solidariedade coletiva, que significa o estado anômico, a fonte do surgimento de condutas desviantes e criminosas. Eis, pois, o mérito do pensamento de Durkheim que vai ao encontro da hipótese levantada pela pesquisa: a desestruturação familiar afeta de tal forma o processo de desenvolvimento emocional dos indivíduos, em especial das crianças e dos adolescentes, que o desequilíbrio e a destituição dos vínculos sociais podem favorecer a tendência destes a prática de atos ilegais.

5.2 ABORDAGEM PSICOLÓGICA: A AFETIVIDADE NOS COMPLEXOS FAMILIARES

Jean Piaget, biólogo por formação, dedicou sua vida profissional a investigar a origem e desenvolvimento do conhecimento humano. O seu estudo especificou quatro fatores responsáveis pela psicogênese (formação dos processos mentais) do intelecto infantil: o fator biológico, o exercício e experiência física, as interações e transmissões sociais e o fator de equilibração (sic) das ações (PALANGANA, 1998, p. 22).

Na linguagem de Piaget, a criança nasce provida de um aparato biológico que lhe mantém a sobrevivência e, a partir da interação dos reflexos inatos com o meio, é que se desenvolvem os elementos centrais na constituição da estrutura cognitiva do indivíduo. Sendo assim, “[...] o indivíduo não é um ser social ao nascer, mas torna-se progressivamente social” e “o comportamento do bebê é condicionado desde o início por fatores sociais” (PIAGET, apud WADSWORTH, 1997, p. 74).

A influência do meio social surte efeitos na formação da personalidade do homem, pois como D’ANDREA (2003, p. 10) disserta, neste processo devem ser considerados os aspectos biopsicológicos herdados, o meio (condições ambientais, sociais e culturais nas quais o indivíduo se desenvolve) e as características e condições de funcionamento do indivíduo nessa interação.

Personalidade é a resultante psicofísica da interação da hereditariedade com o meio, manifestada através do comportamento. A personalidade, obviamente, existe em função de um meio no qual procura adaptar-se e, pertencendo a um ser vivo, tem que sofrer um processo de desenvolvimento (D’ANDREA, 2003, p. 10, grifo nosso).

Notadamente, Piaget (WADSWORTH, 1997, p. 12), reconheceu a função dos fatores sociais no desenvolvimento intelectual. Nesta visão, as interações sociais são consideradas como uma fonte do conflito cognitivo, portanto, de desequilibração (sic) e, consequentemente, de desenvolvimento. O meio social é então primordial à construção do conhecimento social.

Em paralelo ao desenvolvimento cognitivo, intelectual e da formação da personalidade do indivíduo está o desenvolvimento afetivo. O afeto, neste caso, engloba sentimentos, interesses, desejos, tendências, valores e emoções. É válido dizer que o aspecto afetivo tem uma profunda influência sobre o desenvolvimento intelectual, podendo acelerar ou diminuir o ritmo deste processo (WADSWORTH, 1997, p. 37).

Piaget (WADSWORTH, 1997, p. 97) aprofunda a análise ao corroborar que à medida que a criança interage com os pais, molda-se o conhecimento social, bem como favorece o seu desenvolvimento cognitivo e afetivo. O estudioso percebe que

[...] é nas vivências que a criança realiza com outras pessoas que ela supera a fase do egocentrismo, constrói a noção do eu e do outro como referência. A afetividade é considerada a energia que move as ações humanas, ou seja, sem afetividade não há interesse nem motivação (PIAGET, apud SILVA; SCHNEIDER, 2007, p. 83, grifo nosso).

Neste ponto, ao saber que a afetividade é um composto essencial às relações interpessoais e fundamental ao processo de desenvolvimento psíquico da criança, as assertivas de Piaget muito contribuem para a essência deste trabalho e acrescenta à defesa de que o bem-estar e a completa formação do indivíduo estão diretamente atreladas ao convívio familiar sadio.

Para Piaget (apud SILVA; SCHNEIDER, 2007, p. 84), o desenvolvimento afetivo está relacionado e ocorre concomitantemente ao desenvolvimento moral. Ao perceber a importância que existe as interações com as outras pessoas, a criança consegue através da afetividade superar uma fase egocêntrica.

Também preocupado com esta temática, o psicólogo russo Lev Vygotsky (apud SILVA; SCHNEIDER, 2007, p. 83), classificou os afetos em positivos, quando se referem a emoções positivas de alta energia, como o entusiasmo e a excitação, e de baixa energia, como a calma e a tranqüilidade; e, negativos, ligados às emoções negativas, como a ansiedade, raiva, culpa e tristeza.

Pode-se entender com Piaget (apud SILVA; SCHNEIDER, 2007, p. 85) que a transmissão de afetos positivos ou negativos e a própria formação da consciência e dos sentimentos morais infantis são fruto da relação afetiva da criança com os pais, o que enaltece nesta discussão a importância das interações afetivas no convívio familiar.

Sabe-se que a família é a instância de solicialização de primeira grandeza, fonte vital de proteção, educação e apoio ao desenvolvimento completo do indivíduo, onde a criança estabelece seus primeiros convívios e orienta suas relações com o meio social. Nas palavras de Piaget (apud SILVA; SCHNEIDER, 2007, p. 85), a afetividade é a princípio centrada nos complexos familiais e se amplia com a multiplicação de relações sociais.

Em consonância com o entendimento de Piaget (apud SILVA; SCHNEIDER, 2007, p. 85) percebe-se que é por meio das relações familiares que a criança “forma seus primeiros juízos morais e de valor”, podendo então a depender do grau e qualidade desta interação, receber e interiorizar afetos positivos e negativos. De acordo com a abordagem piagetiana, a afetividade tem sua importância selada em cada etapa do desenvolvimento cognitivo e afetivo infantil, como se observa:

a) Estágio sensório-motor (0-2 anos): a criança passa por um momento de transição do eu para o social. Nessa fase de desenvolvimento, sobressaem as trocas afetivas e contágios com a criança em detrimento da diferenciação das pessoas e coisas.

b) Estágio pré-operatório (2-7 anos): marca a etapa da mobilidade mental da evolução afetivo-social da criança, período que prevalece o jogo simbólico e linguagem, valorização pessoal e independência em relação ao objeto afetivo da criança.

c) Operações concretas (7-11 anos): a criança passa a ter uma personalidade individualizada que constitui novas relações interindividuais que promovem novas trocas afetivas e cognitivas equilibradas.

d) Operações formais (11-15 anos): último estágio de desenvolvimento, que corresponde à adolescência, o pensamento já está formado e se amplia com as interações afetivas, a mudança social e a construção de novos valores, entre outros (PIAGET, apud SILVA; SCHNEIDER, 2007, p. 85).

Vê-se, dessa forma, que as relações familiares influenciam demasiadamente o desenvolvimento cognitivo, intelectual e afetivo da criança e do adolescente, de tal maneira que a transmissão de valores, emoções e normas determinam suas interações com outras pessoas. Pode-se pressupor que, do contrário, o desequilíbrio afetivo no convívio familiar compromete o processo de formação humana deste público.


6 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao término deste trabalho, foi possível concluir que a família é fundamental a toda e qualquer sociedade, pois enquanto instituição protetora e provedora, é responsável pela transmissão de cultura, valores, costumes e práticas ideológicas aos seus membros. Pode-se perceber que, mesmo com o passar da história - ao longo dos anos a família assumiu diferentes modelos e características -, do patriarcalismo aos novos arranjos familiares da atualidade, permanece intacta a função socializadora da família.

O arcabouço jurídico brasileiro, como reflexo do interesse da sociedade, atribui à família a base da sociedade, e, por conta disso, possui especial proteção do Estado. A Constituição Federal de 1988 emanou uma ordem jurídica democrática ao país, tendo consagrado princípios importantes para reger as relações familiares, entre os principais destacam-se a igualdade de direitos e deveres entre homens e mulheres e a proteção integral às crianças e aos adolescentes.

Os pais são responsáveis solidariamente pela criação e educação dos seus filhos menores de idade, devendo zelar pela integridade física e moral destes. É direito da criança e do adolescente o convívio familiar, seja pela família natural ou substituta, como estabelece o art. 19 do Estatuto da Criança e do Adolescente, o que testemunha então a necessidade do vínculo familiar, essencial ao desenvolvimento físico e psíquico e formação como pessoa natural.

O problema ocorre quando o seio familiar é abalado pela violência intrafamiliar, um fenômeno complexo e com uma multiplicidade de causas, que assume vários tipos (físico, sexual, psicológico, econômico ou financeiro, institucional) e formas de manifestação. De fato, a desestruturação familiar causa efeitos de ordem física, moral e psicológica em seus membros, em especial sobre a formação das crianças e adolescentes, seres em estado de desenvolvimento humano. Neste ponto, então, permeou a estrutura e a dialética promovida pela pesquisa, verificando se esta questão social, intrínseca à esfera privada, constitui um dos fatores que geram a tendência À prática de criminalidade cometida por adolescentes.

Vale mencionar que as abordagens sociológica e psicológica apresentadas pelo trabalho não pretenderam esgotar o assunto ou tomar conclusões irredutíveis. As teorias foram confrontadas à hipótese de que a desestruturação familiar tem papel determinante na formação da personalidade do indivíduo e em, por conseguinte, na tendência à prática de atos infracionais pelos adolescentes.   

Sob a perspectiva sociológica, Émile Durkheim ensina que o estado de anomia social induz um estado de desorganização ou de ausência de regras, que acarreta na ruptura dos laços de solidariedade social. O sociólogo atribui às instituições sociais a responsabilidade por ter, em algum momento, falhado no seu mister de socialização do indivíduo, e, consequentemente, abalado seus aportes psíquicos, afetivos e normativos. Sendo assim, o crime não seria resultado de anomalias do sujeito, mas de deficiências provocadas pela estrutura social, que não atuou suficientemente sobre a formação psíquica e transmissão de normas a seus membros.

Para Jean Piaget, as relações familiares devem ser preenchidas pelo princípio da afetividade, pois a depender do grau e qualidade das interações, o desenvolvimento da criança pode ser influenciado positiva ou negativamente. Logo, o desequilíbrio nos complexos familiares tem potencial para implicar sobre a formação cognitiva, intelectual e afetiva da criança e do adolescente, bem como determinar o modo de interação futura do indivíduo com a sociedade.

Diante do exposto pelo trabalho, conclui-se que a relação existente entre a desestruturação familiar e a criminalidade juvenil é de causa e consequência. Ficou claro, pelos embasamentos teóricos, que o ambiente familiar e a própria instituição familiar é, por excelência, responsável por transmitir aos indivíduos os elementos necessários para a convivência em sociedade e por dar o suporte adequado ao seu desenvolvimento por completo enquanto ser humano. As disfunções (violência intrafamiliar) que ocorrem neste cenário além que romperem com o vínculo e os laços de solidariedade entre os membros, tem efeito direto sobre a tendência a prática de atos infracionais pelos adolescentes. 

Isto posto, é preciso dizer ainda que, embora tenha sido comprovada, a hipótese defendida pelo estudo não é absoluta. No entanto, o que restou evidente é que as teorias, quando confrontadas, permitiram afirmar o papel determinante que a família tem na formação da personalidade do indivíduo e na influência à criminalidade praticada por adolescentes.

Em verdade, o Poder Público e a sociedade civil deveriam concentrar esforços para a estruturação, alinhamento e execução de políticas públicas em atenção às famílias e ao público infanto-juvenil, principalmente àqueles em situação de vulnerabilidade social, pois, diante da violência que assola o país, a instituição familiar pode desempenhar uma missão ainda mais fundamental: a prevenção da delinquência juvenil.


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Nota

[1] O Instituto Sangari adotou as definições da Organização Pan-Americana da Saúde e da Organização Mundial da Saúde – OPS/OMS para definir o conceito juventude, que se resume uma categoria essencialmente sociológica, a qual indica o processo de preparação para o indivíduo assumir o papel de adulto na sociedade, tanto no plano familiar quanto no profissional, estendendo-se dos 15 aos 24 anos.


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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

FIGUEIREDO, Sabrina Oliveira de. Desestruturação familiar e criminalidade juvenil: reflexões sobre uma possível relação à luz de abordagens interdisciplinares. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 25, n. 6099, 13 mar. 2020. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/79709. Acesso em: 29 mar. 2024.