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A fé pública é capaz de garantir a veracidade das provas digitais?

A fé pública é capaz de garantir a veracidade das provas digitais?

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A coleta de meios de provas digitais através dos cinco sentidos humanos realmente é uma solução adequada?

Leve um portador de fé pública para testemunhar um show de mágica e ele irá relatar que “um coelho se materializou em uma cartola vazia, uma pessoa foi cortada ao meio, depois recomposta sem danos físicos aparentes, e ao final, o mágico desapareceu do palco sem deixar vestígios”.

Apesar de o testemunho ter presunção de veracidade por lei, podemos afirmar que os fatos são verdadeiros?

O meio digital tem como principal característica seu dinamismo, consideravelmente maior que o mundo físico. Em caso recente, hackers israelenses foram capazes de invadir hackers russos, que por sua vez haviam invadido a NSA americana. Tal fato causou desconforto entre o governo dos Estados Unidos e a produtora de antivírus russa Kaspersky. Portanto, nem mesmo potências mundiais conseguem garantir 100% de segurança e certeza no ambiente digital. De maneira nenhuma isso torna o meio físico melhor, é impossível não contar com a agilidade e acessibilidade providas pelos dados digitais, e a cada dia a segurança é melhorada para tornar possível seu uso, entretanto, são necessárias novas habilidades para lidar com este meio.

Hoje, o uso do meio testemunhal para a coleta e preservação de fatos digitais seria o equivalente a testemunhar a “pureza de um copo de água”. Pode-se visualizar a transparência, cheirar e sentir o gosto, mas o resultado é um relato pessoal e impreciso sobre a potabilidade da água. O testemunho confiável tem sido útil há muito tempo, mas qual o sentido de usá-lo diante de décadas de estudos e métodos científicos, que conseguem ser absolutamente precisos e detalhados sobre a composição de determinada amostra de líquido?

O uso dos cinco sentidos humanos para aferições técnicas complexas acaba produzindo um resultado de baixa confiança e precisão, talvez inaceitável em situações onde há a necessidade do máximo de certeza possível.

Também existem anos de estudos relacionados ao tratamento de provas provenientes do meio digital, inclusive normatizados e validados internacionalmente através da ABNT NBR ISO/IEC 27037:2013. Em especial com relação à etapa de coleta e preservação, são necessárias medidas técnicas efetivas para: garantir a origem dos dados, evitar contaminação, registrar o máximo de detalhes técnicos possíveis (metadados) e preservar o material coletado por meio confiável de verificar integridade e existência.

Por outro lado, a Lei 13.105/15 determina que o portador de fé pública possui o poder de atestar a "existência e o modo de existir de algum fato" (art. 384), "em cujo favor milita a presunção legal de existência ou veracidade" (art. 374-IV). O que pode ser facilmente interpretado como o "poder de atestar a existência ou modo de existir de um fato com presunção de veracidade sobre o relato", ou seja, a veracidade do testemunho, não exatamente a veracidade dos fatos presenciados. O que foi testemunhado pode não ser exatamente o que ocorreu, situações muito comuns no meio digital.

As habilidades necessárias para lavrar documentos ou testemunhar fatos no mundo real não produzem informações suficientes para a preservação de provas em contextos técnicos complexos, ou podem ser fraudadas sem que a testemunha tenha consciência disto. Mas o meio jurídico as induziu para o meio de tecnologia sem uma avaliação mais aprofundada.

Adicionalmente, a confiança na veracidade da prova digital só tem fundamento se for condicionada aos procedimentos técnicos adequados, não sendo uma qualidade possível de ser imposta por lei. Notório também que não é possível ceder habilidades pessoais de perícia forense através de decreto a pessoas sem o conhecimento para tal. 

Neste cenário, podemos dizer que o testemunho da fé pública pode ser considerado verídico, mas a veracidade dos fatos digitais registrados é outra questão. A fé pública cumpriria o papel de gerar prova de existência, mas com baixa confiança na veracidade se forem usados métodos inadequados na coleta e preservação do fato digital.

Vale citar que a prova de existência também pode ser gerada por tecnologias confiáveis como a Blockchain ou o Carimbo de tempo ICP/Brasil (regulamentado pela MP 2200-2/2001).

Considerando a impossibilidade técnica de garantir a veracidade, outra questão relevante é a falta de auditabilidade da prova em função de metadados técnicos insuficientes, o que torna uma análise pericial conclusiva sobre o material quase impossível. Podemos levantar o impacto deste fato no direito de ampla defesa da parte contrária, previsto na constituição.

A situação soma-se a outros problemas relacionados ao direto do cidadão no ambiente digital. A falta de agilidade e o custos associados à fé pública tornam o serviço ineficiente ou inacessível em muitos casos. As informações disponíveis em redes sociais podem ser removidas em questão de minutos, enquanto o registro de uma ata notarial no estado de São Paulo pode facilmente ultrapassar 1.000 reais por apenas 5 páginas.

Fato interessante foi a constatação que a Polícia Civil do Paraná já possuía consciência destes problemas. Há mais de dois anos buscavam uma solução para possibilitar o registro confiável de provas digitais no atendimento de rotina nas delegacias de cibercrimes e proteção da mulher.  

Ou seja, apesar do agente possuir fé pública, foi constatada a necessidade de aprofundamento técnico no registro de provas digitais nos inquéritos de rotina, diminuindo a possibilidade de questionamentos por advogados “iniciados” em tecnologia.

Óbvio que a força policial já usava a fé pública associada aos métodos técnicos forenses em casos mais complexos. Porém, era inviável aplicar a mesma solução no atendimento de rotina nas duas delegacias, devido ao volume de ocorrências e a necessidade de agilidade. Diante desta situação, a corporação aceitou iniciar um projeto piloto com a startup Verifact.

O serviço online automatizou procedimentos forenses de coleta e preservação de provas digitais, permitindo que uma pessoa leiga em tecnologia realize registros técnicos adequados de fatos disponíveis em redes sociais, chats, sites de notícias, webmails e diversos outros sites. Tudo em um ambiente automatizado com alta segurança, sem intervenção manual da empresa, com medidas efetivas para impedir intervenção maliciosa no processo de registro, resultando em grande confiança na veracidade e imparcialidade do material coletado.

A Verifact foi concebida para que as próprias vítimas de crimes virtuais registrem provas de maneira rápida, fácil e barata. Além disso, a solução se mostrou efetiva também para diversas outras situações, inclusive aprofundando tecnicamente o registro realizado com fé pública.

Diante do crescente número de ilícitos no ambiente digital, não há outro caminho senão o uso de tecnologias e processos automatizados, que tornem o registro de provas digitais mais rápido e acessível para a população.

Finalizo esta exposição indicando outro problema desafiador com relação à veracidade em provas digitais. Atualmente consideramos como prova confiável o uso de um vídeo em alta definição com a possibilidade de reconhecimento claro dos autores e o ilícito cometido. Entretanto, segundo declaração de especialistas, logo será possível criar vídeos falsos impossíveis de serem detectados, ou seja, as deep fakes. A cada dia teremos o desafio de reavaliar nosso conceito de "veracidade" de acordo com o contexto que vivemos.


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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MUNHOZ, Alexandre João. A fé pública é capaz de garantir a veracidade das provas digitais?. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 26, n. 6437, 14 fev. 2021. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/79873. Acesso em: 28 mar. 2024.