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A PANDEMIA COVID-19 E A CARTA-PROTESTO

Releitura do art. 754 do Código Civil

A PANDEMIA COVID-19 E A CARTA-PROTESTO. Releitura do art. 754 do Código Civil

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Este ensaio trata da releitura do art. 754 do Código Civil em razão da crise pandêmica do Corona Vírus. Flexibilização da regra da carta-protesto pelos descumprimentos de obrigações contratuais de transportes de cargas.

A PANDEMIA COVID-19 E A CARTA-PROTESTO

Releitura do art. 754 do Código Civil

 

 

OPINIÃO LEGAL

 

 

 

 

            Mais uma vez a carta-protesto (art. 754, CC) é alvo das atenções do mercado segurador brasileiro, ao menos daqueles que trabalham diretamente com a carteira de seguro de transportes.            Muita gente nos perguntou sobre ela. As dúvidas recorrentes são:

1) é possível formalizar a carta-protesto por e-mail? 2) o prazo decadencial de dez dias pode ser relaxado?

 

            Respondo, lembrando que o Direito é dialético por excelência e que minha opinião não pode ser tida como líquida e certa. Confio, porém, nos argumentos que passarei a expor, e acredito que têm grande chance de prevalecer. Em nome do bom-senso peço apenas que seja encarado exatamente como o que é: uma opinião.

            Vamos lá:

 

 

 

I - PROTESTO POR E-MAIL

 

Sinto-me bem à vontade para dizer que a carta-protesto pode ser formalizada por e-mail.

 

 Aliás, sempre o defendi, mesmo fora do presente cenário: crise pandêmica com isolamento social.

A lei não especifica como a carta-protesto tem de ser efetivada, logo todo e qualquer meio idôneo é válido e eficaz. Tal afirmação reside na natureza ontológica do protesto e no princípio constitucional fundamental da legalidade: tudo o que não é expressamente proibido pela lei, pode ser feito.

 

Em outras palavras: se não há uma forma ideal, toda e qualquer forma, idônea, é possível.

O mundo atual é o da Quarta Revolução Industrial, da tecnologia de informática. Assim, não há motivo para não aceitar o correio eletrônico como veículo hábil para o protesto do recebedor.

Antes da crise, eu recomendava que o interessado em usar o protesto do recebedor por correio eletrônico se valesse de algum dispositivo capaz de identificar o recebimento (e, sendo possível, a certificação de visualização). Hoje, com a crise e a necessidade de isolamento, entendo que isso não se mostra tão importante.

 

Tratava-se, pois, de um cuidado a mais, um procedimento formal para evitar alegações de seu não recebimento. Diante da crise e da necessidade de novos comportamentos, sinto-me confiante em afirmar que o simples encaminhamento do e-mail é bastante para caracterizar o cumprimento do art. 754, CC.

 

Então, reafirmo, tenho certo para mim que a carta-protesto pode ser apresentada por e-mail, independentemente de maiores formalidades.

 

E vou além: não só pode, como deve, evitando a circulação de papel e respeitando mais o isolamento recomendado e por vezes exigido pelas autoridades.

Minha afirmação se funda nos princípios fundamentais e gerais do Direito, constitucionais ou supraconstitucionais, da proporcionalidade, da razoabilidade, da transparência, da regularidade das formas, da não surpresa, da isonomia e, nestes tempos difíceis, diferentes, extraordinários, até mesmo da dignidade da pessoa humana.

 

 

 

II- DA EVENTUAL FLEXIBILIDADE DO PRAZO DE DEZ DIAS

 

 

 

Esta é uma questão mais difícil de ser respondida. Afinal, prazo é algo normalmente tido como inflexível e impostergável, sobretudo neste que se anela ao conceito de decadência. Novamente ancorado nos princípios citados, contudo, imagino que a tendência será a de relativizar a decadência.

 

O Poder Judiciário tem se mostrado bem solidário e compreensível ao problema da pandemia.

Recentemente, em regime de urgência, o Presidente do STF assinou Projeto de Lei, ao lado do Presidente da República, para o Congresso Nacional agilizar a adoção de medidas urgentes e extraordinárias, a fim de proteger a sociedade brasileira em muitos campos.

 

Por isso, é de muito bom-senso o olhar diferenciado para o cumprimento de não poucas exigências legais.

 

De todo modo, se o prazo não for flexibilizado, é quase certo que aquilo que gravita em torno dele o seja. Falo, por exemplo, do início da contagem do termo inicial do prazo de dez dias. Mais do que nunca este início será o do efetivo conhecimento do dano, não o da mera descarga.

 

Outra coisa que posso afirmar, agora com bastante segurança, é que a tese de substituição do protesto por outros meios de prova, ainda que menos específicos, ganhará mais musculatura.

Há tempos defendemos a substituição da carta-protesto por instrumentos como o Mantra, o Termo de Faltas e Avarias, o Convite para Vistoria Particular Conjunta e o Boletim de Ocorrência, entre outros.

 

Com a crise em andamento, questão de saúde pública e ordem social, entendo que a tendência será a de abraçar essa tese.

 

Não raro, ao lado dos meus sócios, litigando defesa de seguradoras contra transportadores, em ações regressivas de ressarcimento, conseguimos vitórias judiciais expressivas, argumentando que outros instrumentos jurídicos, ainda que generalistas, fazem as vezes da carta-protesto, inibindo a decadência.

 

 

III - CONCLUSÃO

 

 

Diante das considerações, posso dizer:

 

1)     A carta-protesto pode, sim, ser efetivada por e-mail, dispensando, ao menos por enquanto, maiores formalidades;

 

2)     É juridicamente razoável supor a flexibilização do prazo de dez dias, sobretudo em relação ao início de sua contagem e da possível substituição por outros meios de prova.

 

 

Em nome da boa-fé observo que isso é válido tanto para as relações entre segurados e seguradoras quanto para as relações entre seguradoras sub-rogadas e transportadores de cargas.

Da mesma forma que se espera uma nova visão nos pleitos de ressarcimento em regresso entre seguradoras sub-rogadas e transportadores, é de se esperar o mesmo entre segurados e seguradoras nas regulações de sinistro. A despeito de casuísmos legais, o Direito é fortemente influenciado pelo bom-senso; e este, ao contrário do que se pensa, não é tão subjetivo assim.

 

A melhor forma de encarar a situação é ter em viva memória a definição de Direito do antigo Código Justiniano (Direito Romano): “Direito é dar a cada um o que é seu”. Conceito em que Direito e Justiça são efetivamente faces da mesma moeda.

 

 

 

Por fim, em nome de toda equipe MCLG, desejo a proteção de Deus para todos os amigos. E que possamos, juntos, com fé, sabedoria, coragem, paciência, disciplina e consciência, vencer a crise e voltar às nossas vidas normais.

 

Não duvido: sairemos desse episódio agonizante homens e mulheres melhores. Agonia, é bom lembrar, conforme a raiz grega, significa LUTA. Miguel de Unamuno, famoso intelectual espanhol, disse certa vez, mais ou menos com estas palavras: a vida é agonia, é uma luta eterna, cheia de incertezas e que é mais bem travada pelos bravos de espírito.

Lutar e vencer.

 

Se você estiver passando pelo inferno, continue caminhando

Winston Churchill

 

 

Santos, 19 de março de 2020 (Annus Horribilis)

Dia de São José, protetor das famílias

 

PAULO HENRIQUE CREMONEZE

           

 


Autor

  • Paulo Henrique Cremoneze

    Sócio fundador de Machado, Cremoneze, Lima e Gotas – Advogados Associados, mestre em Direito Internacional pela Universidade Católica de Santos, especialista em Direito do Seguro e em Contratos e Danos pela Universidade de Salamanca (Espanha), acadêmico da ANSP – Academia Nacional de Seguros e Previdência, autor de livros jurídicos, membro efetivo do IASP – Instituto dos Advogados de São Paulo e da AIDA – Associação Internacional de Direito do Seguro, diretor jurídico do CIST – Clube Internacional de Seguro de Transporte, membro da “Ius Civile Salmanticense” (Espanha e América Latina), associado (conselheiro) da Sociedade Visconde de São Leopoldo (entidade mantenedora da Universidade Católica de Santos), patrono do Tribunal Eclesiástico da Diocese de Santos, laureado pela OAB Santos pelo exercício ético e exemplar da advocacia, professor convidado da ENS – Escola Nacional de Seguros e colunista do Caderno Porto & Mar do Jornal A Tribuna (de Santos).

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