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A atividade empresária e a adaptação às disposições do Código Civil de 2002

A atividade empresária e a adaptação às disposições do Código Civil de 2002

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O Direito de Empresa pós-Código Civil de 2002 muda significativamente sua posição acadêmica, aderindo à teoria da empresa e posicionando-se cada vez mais perto do Direito das Obrigações em termos positivos.

SUMÁRIO. 1. Linhas gerais sobre a evolução histórica da atividade empresária 2. A personalidade jurídica e o registro 2.1. O empresário individual e a personalidade jurídica 2.2. O Cadastro Nacional da Pessoa Jurídica (CNPJ), as obrigações tributárias e a personalidade jurídica 3. A pequena empresa 3.1 Microempresa e Empresa de Pequeno Porte 3.2. O que é pequeno empresário? 3.3 O projeto de Lei Geral da Micro e Pequena Empresa 4. O contrato social antes e depois do novo diploma 4.1. Elementos essenciais e dispositivos 4.2 Critérios técnicos da Junta Comercial do Estado de São Paulo 5. A adaptação às disposições do Código Civil de 2002 5.1. O ato jurídico perfeito 5.2. O artigo nº 2.031 do Código Civil: há uma antinomia jurídica? 6. Conclusão


1. Linhas gerais sobre a evolução histórica da atividade empresária

            De fundamental importância para a concepção atual de empresário, através da difusão da Teoria da Empresa, é a análise histórica do desenvolvimento das atividades comerciais, bem como das primeiras formulações jurídicas sobre o tema, responsáveis pela maturização da definição que hoje vigora no Brasil por força da Lei nº 10.406/2002, o Código Civil. Propomo-nos, então, traçar alguns paralelos entre a atividade comercial no decorrer da história humana e o desenvolvimento do próprio Direito Comercial.

            Deve-se crer que, a partir do desenvolvimento da razão humana, tenha havido o Direito; em outras palavras, ubi societas, ibi ius. Dentre as regras rudimentares que predominavam nas civilizações antigas, baseadas no culto aos antepassados e, assim, com forte apelo à moral e ao temor individual, é altamente compreensível que tenha havido regras para a disciplina da atividade comercial. Assim, o Código de Manu (Índia) e o Código de Hamurábi (Babilônia), bem como as Lex Rhodia de Iactu romanas (acolhidas dos fenícios).

            Em Roma, a atividade comercial era praticada principalmente por estrangeiros, os quais respondiam perante o praetor peregrinus, que aplicava o jus gentium (direito das gentes). A atividade mercantil era considerada degradante, e era vedada aos senadores e patrícios; porém, durante a queda do Império Romano, mesmo estes vieram a praticá-la efetivamente, causando verdadeiro abrandamento no direito obrigacional romano. Após as invasões bárbaras, o Direito Romano cede ao territorial, ocorrendo às vezes fusão, às vezes sobreposição, de regras jurídicas. Não por acaso, as relações jurídicas feudais que se seguiram encontravam-se nele baseadas.

            A Baixa Idade Média significou a gradual queda do sistema feudal e a substituição da atividade auto-suficiente pelo comércio. A partir do século X, a Europa Ocidental conheceu um enorme crescimento demográfico, o que levou os senhores feudais a expulsar o excedente populacional de suas terras. Esta classe marginalizada, em maioria, estabelecia-se em aldeias e constituía incipientes pólos comerciais, fortalecidos ainda mais em decorrência das Cruzadas. A reconquista do Mar Mediterrâneo permitiu a retomada do contato com a porção oriental do continente, intensificando ainda mais as relações comerciais. Os comerciantes passaram a se organizar em classes, os chamados colégios, e as organizações de mercadores conheceram grande sucesso e alcançaram vitórias políticas de muita importância, obtendo autonomia para alguns centros comerciais, como Veneza, Florença e Gênova, cidades italianas que, por sua posição geográfica privilegiada, realizavam o maior volume de trocas comercias, em paralelo às feiras, pontos de comércio temporário (cita-se a feira de Champanhe e a de Flandres, na França). E este fenômeno repetiu-se por toda a Europa Ocidental, especialmente nas áreas de divisão territorial mais fragmentária. A partir do século XII, há a formação das hansas, associações comerciais constituídas entre cidades para a realização de trocas comerciais em larga escala (e cita-se a Hansa Teutônica, no Mar do Norte) e também o deslocamento da rota comercial marítima para o Mar Mediterrâneo, a partir da Itália em direção ao Oriente, fato responsável pela alta captação de recursos por parte de Portugal, que era verdadeiro "ponto de parada" aos navegantes.

            Por volta do século XIV, grande parte da população européia já se dedicava ao comércio e os centros urbanos tomavam impulso, com a formação dos burgos, cidades fortificadas por muralhas, presentes em regiões feudais e aliadas aos reis para a concessão de independência. As cidades que se emancipavam constituíam-se sob as cartas de franquia, que formalizavam seus direitos, e que não raro se confundiam, e eram até sobrepostas, pelos estatutos das corporações, de mercadores e de ofício. Aqui surge o capitalismo e a necessidade de fortalecimento das monarquias nacionais para que se aniquilasse o feudalismo europeu.

            E também começa a se cristalizar o Direito Comercial, deduzido diretamente das regras corporativas e dos assentos jurisprudenciais das decisões dos juízes designados pela corporação para dirimir as questões oriundas da atividade comercial que realizavam, os cônsules, que se apoiavam em um direito costumeiro, a despeito das instituições romanas remanescentes. É um direito subjetivista, corporativo, profissional, especial, autônomo e consuetudinário. Mas aqui se evidenciava a necessidade de definição de um conceito que abrangesse a matéria de comércio, posto que esta era a única abarcada pelos tribunais consulares.

            A transposição do sistema subjetivo do Direito Comercial para o sistema objetivo, o do ato de comércio, é cristalizada pelo Código de Savary, de 1673, por ordenança de Colbert. Posteriormente, o Código Napoleônico de 1807, traduzindo os objetivos da Revolução Francesa de 1789, trouxe a formulação da teoria do ato de comércio, assegurando a plena liberdade profissional e a extinção dos privilégios de classe acumulados pelas corporações, afastando a idéia de ato de comércio da pessoa do comerciante. Mas o desenvolvimento da tendência de mercantilização do Direito Civil acaba por minar a idéia de ato de comércio como baseada no fito especulativo e na intenção de lucro, especialmente nos últimos tempos. E empresário, no Código Napoleônico, era aquele que se dedicava à repetição em cadeia de atos de comércio, daí a "dupla noção" a qual se refere a doutrina. A partir de então, buscou-se um conceito subjetivo-moderno do Direito Comercial, através da Teoria da Empresa. O primeiro passo foi o Código Comercial alemão, de 1897, que classificou atos de comércio como os atos praticados pelo comerciante no desenvolvimento de sua atividade comercial.

            No Brasil, as relações jurídicas comercias se pautavam nas Ordenações Filipinas do Reino de Portugal, alteradas posteriormente por leis como a de Abertura dos Portos, de 1808. Após a proclamação da Independência, e posta a necessidade interna de auto-afirmação da soberania nacional, convocou-se uma comissão para elaborar o Código Comercial brasileiro, que foi morosamente debatido, até ser promulgado em 1850 e regulamentado no mesmo ano pelo Regulamento 737. Valorizou-se, sobremaneira, o termo mercancia, o exercício de profissões de natureza mercantil, mas que não é sinônimo de ato de comércio. Evidenciava-se, desde o início do século XX, a necessidade de reforma do Código pátrio.

            A Teoria da Empresa, sobretudo e principalmente na figura do italiano Alberto Asquini, que sugeriu a empresa como fenômeno econômico poliédrico, composta pelos perfis subjetivo (empresário), funcional (atividade), objetivo (estabelecimento) e corporativo (instituição), é recepcionada, embora não em sua totalidade, pelo Código Civil de 2002. Evidencia-se que não se reconhece um conceito unitário de empresa, nem doutrinariamente e nem positivamente, embora se possa considerá-la, no dizer do mestre italiano, como um fenômeno puramente econômico, passível de ser analisado juridicamente em diversas facetas [01].

            Nestas linhas, nos referiremos à empresa como atividade, enfatizando sobretudo a pequena empresa, maioria absoluta e mola da realidade econômica brasileira.


2. A personalidade jurídica e o registro

            Para o desempenho da atividade econômica, o Código Civil exige que o empresário lato sensu venha a se registrar no órgão competente (Registro Público de Empresas Mercantis ou Registro Civil das Pessoas Jurídicas da sede), conforme o que se depreende da leitura dos artigos 967, 982 e 998 do diploma.

            A sociedade, definida em termos objetivos no artigo 982 do Código Civil, é pessoa jurídica de direito privado, isto é, constitui pessoa distinta da pessoa dos sócios, como resultado da existência da affectio societatis (união de vontades dirigidas a um mesmo fim). Tudo isto nos é dado pelo artigo 44, inciso II, do diploma. E o artigo 45 traz a raiz do que se encontra disposto nos artigos referentes ao registro, presentes no Livro II – Do Direito de Empresa, ao dispor que "começa a existência legal das pessoas jurídicas de direito privado com a inscrição do ato constitutivo no respectivo registro, procedida, quando necessário, de autorização ou aprovação do Poder Executivo, averbando-se no registro todas as alterações por que passar o ato constitutivo."

            A pessoa jurídica é uma realidade jurídica, como um atributo que a ordem jurídica estatal outorga a determinados entes, podendo ser definida como "a unidade de pessoas naturais ou de patrimônios que visa à consecução de certos fins, reconhecida pela ordem jurídica como sujeito de direitos e de obrigações. [02]" Assim, ela só nasce com o registro, tornando-se, a partir dele, pessoa distinta de seus componentes.

            2.1. As sociedades não-personificadas e os profissionais liberais

            Através da nova direção dada ao Direito de Empresa, considera o Código Civil a existência de sociedades não-personificadas, isto é, que não possuem personalidade jurídica: são a sociedade em comum e a sociedade em conta de participação. Na primeira, os atos constitutivos não estão inscritos e os sócios respondem solidária e ilimitadamente pelas obrigações sociais; na segunda, a atividade constitutiva do objeto social (que é o meio para que a sociedade alcance o seu fim econômico) é exercida pelo sócio ostensivo, que ostenta toda a responsabilidade da sociedade, mas os resultados são partilhados entre todos os demais sócios. A grande diferença entre elas é que, na sociedade em comum, os atos levados a registro lhe conferirão personalidade jurídica (razão pela qual muitos consideram-na uma sociedade irregular, conforme veremos adiante), o que não ocorre com a sociedade em conta de participação, por força do disposto no artigo 993 do Código Civil; esta jamais será pessoa jurídica, embora a ela possam ser aplicadas, subsidiariamente, as normas da sociedade simples (artigo 996).

            Os profissionais liberais não estão considerados dentro do Direito de Empresa do Código Civil, embora estejam contidos de forma implícita no parágrafo único do artigo 966. Podem ser conceituados como pessoas naturais que exercem atividade econômica através da utilização de suas aptidões pessoais, sejam ou não decorrentes de formação profissional, assumindo ilimitadamente todos os riscos decorrentes de sua atividade. A sociedade de profissionais liberais é sociedade simples, porque a atividade desempenhada não constitui elemento de empresa.

            2.2. O empresário individual e a personalidade jurídica

            O empresário stricto sensu, por sua vez, encontra-se caracterizado no artigo 966 do Código Civil: "considera-se empresário quem exerce profissionalmente atividade econômica organizada para a produção ou circulação de bens ou de serviços." Este conceito é uma figura técnica louvável, que vem em substituição à designação do titular de firma individual da lei antiga, e delimita características básicas da atividade empresária: exercício profissional (isto é, constante, não-eventual), finalidade econômica e organização para que se chegue a ela.

            O empresário é uma pessoa natural que assume em seu próprio nome os riscos de seu empreendimento, semelhantemente ao sócio ostensivo da sociedade em conta de participação, ora mencionada. Esta pessoa natural, ainda que com o auxílio de funcionários e mediante delimitação de capital [03] em seu requerimento de inscrição no Registro Público competente, não se constitui em pessoa distinta pelo simples fato de exercer atividade econômica e de se sujeitar aos mesmos procedimentos tributários que as sociedades.

            2.3. O Cadastro Nacional da Pessoa Jurídica (CNPJ), as obrigações tributárias e a personalidade jurídica

            A despeito do conceito jurídico de empresário stricto sensu, há a equiparação deste à pessoa jurídica para fins de Cadastro Nacional da Pessoa Jurídica (CNPJ), na Secretaria da Receita Federal, por força da Instrução Normativa SRF nº 200. Daí decorre a igualdade de tratamento nas obrigações tributárias, inclusive para fins de Imposto de Renda, amparada não-expressamente pelo Decreto-Lei nº 1.706, de 23 de outubro de 1979, do governo de João Figueiredo, causando à primeira vista dúvidas sobre sua validade hierárquica.

            Há grande celeuma conceitual no campo prático (e também doutrinário) que envolve estas questões. Ao tomar como pessoa jurídica todas as "entidades" (que, às vezes, nem entidades são) às quais se destina seu registro, a Receita Federal acaba por causar confusão no entendimento de muitas leis que dizem respeito à atividade empresária. Tomemos por exemplo a Lei nº 9.317/1996, a Lei do SIMPLES (Sistema Integrado de Pagamento de Impostos e Contribuições das Microempresas e Empresas de Pequeno Porte): ao definir o que é Microempresa e o que é Empresa de Pequeno Porte, afirma taxativamente que os limites de receita bruta afirmados em seu texto se referem a pessoas jurídicas [04]. No entanto, para fins do imposto de renda, a ela são equiparados os empresários individuais, de acordo com o Decreto-Lei nº 1.706/79. Nem por isso é menos criticável a má redação do dispositivo de 1996, que é causa de confusão sobre a responsabilidade do empresário individual perante o Fisco Federal no corrente meio dos contabilistas.

            A despeito do Decreto-Lei referido, Fabio Ulhôa Coelho acredita que os benefícios da Lei do Simples não devem ser estendidos aos empresários individuais, confundido pela má redação do dispositivo que nos leva a uma antinomia aparente [05].

            Daí a confusão prática presente na aplicabilidade destes conceitos de empresário e de pessoa jurídica, o que não é um problema presente apenas após o Código Civil de 2002. Há grande falta de suporte jurídico adequado para os micro-empresários, vez que muitos acabam se vendo surpreendidos ao serem acionados judicialmente e descobrirem que respondem ilimitadamente ao valor do capital pelas obrigações que contraíram.


3. A pequena empresa

            A pequena empresa pode ser conceituada juridicamente ao fazermos apelo aos perfis empresariais de Asquini: é a atividade econômica em pequena escala. Devido à natureza de sua atividade e área de atuação, se prolifera com velocidade no cenário nacional, gerando empregos e se constituindo como fonte de renda para os empresários ou profissionais envolvidos.

            É um setor que carece de maiores favores governamentais quanto a sua existência, regularidade e tributação, porquanto representa a condição da absoluta maioria de empresas constituídas no âmbito nacional. A atividade empresarial regionalizada dá ao consumidor final do produto ou usuário do serviço a vantagem da opção e da comodidade: muitas empresas oferecendo os bens ou serviços, com proximidade e rapidez. E a atividade da pequena empresa é sinônima desta situação.

            3.1 Microempresa e Empresa de Pequeno Porte

            Já é de grande importância a atividade da pequena empresa, há muito tempo sendo verificado o seu papel prático. A Constituição Federal de 1988 dispõe a esse respeito, em seu artigo 179, estabelecendo que as microempresas e empresas de pequeno porte deverão ter tratamento jurídico diferenciado que busque o incentivo à simplificação de suas obrigações administrativas, tributárias, previdenciárias e creditícias. Esta norma constitucional é o que chamamos norma de eficácia limitada, para ser posta a efeito através de legislação ulterior. E esta legislação já existe: é a Lei 9.841/99, o Estatuto da Microempresa e da Empresa de Pequeno Porte. Nela, são estabelecidos procedimentos para a simplificação da inscrição das pessoas jurídicas e empresários individuais a que se refere, bem como para os efeitos dela decorrentes.

            De acordo com esta lei, considera-se microempresa a pessoa jurídica ou o empresário individual que aufira como receita bruta anual valor não-superior a R$ 433.755,14; e considera-se empresa de pequeno porte a pessoa jurídica ou o empresário individual que aufira como receita bruta anual valor superior a R$ 433.755,14 e igual ou inferior a R$ 2.133.222,00 [06]. A lei estabelece que, ao final do nome empresarial das pessoas a que se refere, deverá ser inserida a sigla ME ou EPP, designando que a empresa se enquadra nas hipóteses de tratamento simplificado defendidas, evitando assim maiores obstáculos que decorreriam da verificação da condição da empresa.

            A Lei 9.317/96, Lei do Simples (Sistema Integrado de Pagamento de Impostos e Contribuições das Microempresas e das Empresas de Pequeno Porte), anterior ao Estatuto, estabelece vantagens tributárias que se aplicam às pessoas jurídicas nela descritas, considerando-se microempresa aquelas que aufiram receita bruta anual não-superior a R$ 120.000,00, e empresa de pequeno porte aquelas que não superem R$ 1.200.000,00 anuais. [07]

            A Lei 11.196, de 21 de novembro de 2005, dobrou os limites de enquadramento das pessoas jurídicas as quais se refere para R$ 240.000,00, se se tratar de microempresa, e R$ 2.400.000,00, se se tratar de empresa de pequeno porte. O dispositivo entrará em vigor a partir de 1º de janeiro de 2006.

            3.2. O que é pequeno empresário?

            À expressão pequena empresa pode ser esboçada uma conceituação, mas o mesmo não ocorre quanto ao pequeno empresário referido no artigo 970 do Código Civil, posicionado no plano do empresário rural (a quem é facultativa a inscrição). Este pequeno empresário está dispensado de seguir um sistema de contabilidade e de levantar balanço patrimonial e balanço de resultado econômico. Sem dúvida, o artigo do diploma civil é norma em branco, necessitando também de complementação por lei posterior, visto que ainda não há lei em vigor no Brasil que conceitue o pequeno empresário.

            Não vemos semelhança entre pequena empresa e pequeno empresário. Há dois motivos: em primeiro lugar, quando nos referimos ao empresário lato sensu, estamos nos referindo, ao mesmo tempo, ao empresário stricto sensu e à sociedade empresária; é um ponto doutrinariamente pacífico. Porém, o artigo 970 está posicionado no Título I do Livro do Direito de Empresa, que se refere ao empresário stricto sensu, como um esforço metodológico do Código para abarcar as figuras empresariais mais simples, para depois alcançar as mais complexas; então, não poderia se referir à sociedade empresária. Em segundo lugar, há projeto de lei em tramitação no Congresso Nacional, o Projeto de Lei Complementar 410/2004 [08] (para o qual remetemos o leitor), onde se define como pequeno empresário o empresário individual que aufira receita bruta anual de até R$ 36.000,00, para fins específicos do artigo 970 do Código Civil. Isto posto, se o legislador considera a necessidade de definição de o que se deve considerar pequeno empresário, só temos a concluir que o conceito jurídico-positivo não existe e, igualmente, que o artigo 1179, parágrafo segundo, do Código Civil, não estará em vigor antes da edição desta lei complementar, ou de outra que venha a regular a matéria.

            A confusão no plano prático, contudo, é evidente. Contabilistas discutem sobre a necessidade de se levantar balanço patrimonial de microempresas e empresas de pequeno porte, tomando pequena empresa e pequeno empresário como sinônimos [09].

            3.3 O projeto de Lei Geral da Micro e Pequena Empresa

            Prosseguindo no mesmo plano de análise, o SEBRAE (Serviço Brasileiro de Apoio à Micro e Pequena Empresa) apresentou ao Congresso Nacional, em junho de 2005, projeto de lei complementar que viria em substituição à Lei 9.841/99 como Estatuto da Microempresa e da Empresa de Pequeno Porte. Mais completo e ousando bastante, inclusive ao esboçar disposição sobre o empresário individual de responsabilidade limitada (E.I.R.L.) [10], vem considerar pequeno empresário para os fins do artigo 970 do Código Civil todos os empresários individuais e pessoas jurídicas que se enquadrem nos limites de seu texto.

            Neste projeto – o qual provavelmente tramitará longamente no Congresso, principalmente devido a algumas falhas jurídico-estruturais (como a citação do chavão "pessoas jurídicas, inclusive as equiparadas", que não desfrutam de nossa aceitação por fomentarem a confusão conceitual, e a adoção de "modelo próprio" de contrato social para a constituição de pequenas empresas, o que fere flagrantemente a dispositividade do direito privado e do negócio jurídico) e também devido a resistência de certos setores, considerar-se-á microempresa a pessoa que faturar anualmente valor não superior a R$ 480.000,00, e empresa de pequeno porte aquela que não superar faturamento anual de R$ 3.600.000,00.

            Sem dúvida, urge legislação mais completa para disciplinar as pequenas empresas e os pequenos empresários. A "Lei Geral" é um bom caminho, mas não está devidamente madura. Cremos que ficará.


4. O contrato social antes e depois do novo diploma

            As normas que se referem ao contrato social estão consubstanciadas nos artigos 997 a 1000 do Código Civil de 2002, na parte que se refere à sociedade simples, aplicável por extensão às demais sociedades, quando definido em lei. O contrato de sociedade é a concretização da affectio societatis, o pressuposto para a existência de personalidade jurídica, adquirida, conforme já vimos, através do registro.

            Sob a égide da lei comercial anterior, parte da doutrina considerava o contrato de sociedade como de natureza bilateral e seu objeto social como o fim colimado pelos sócios [11]. As sociedades dividiam-se em civis e mercantis, de acordo com a atividade desempenhada. Havia, ainda, a possibilidade de existência de sociedades civis sem fins lucrativos, as associações.

            O Código Civil de 2002 é a consolidação de certos princípios atinentes ao contrato social, defendidos pela doutrina adepta à Teoria da Empresa. Requião, por exemplo, de há muito considerava o contrato de sociedade como de natureza plurilateral, havendo a conjugação de vontades destinadas a um mesmo fim. Também o objeto da sociedade não é um fim em si mesmo, porque a hermenêutica do novel diploma civil deixa claro que não há sociedade cuja finalidade não seja econômica; outrossim, a teoria do ato ultra vires societatis acaba por tornar clara esta distinção: a atuação da sociedade deve se limitar ao objeto social constante do contrato, mas a finalidade (o fim) social não é a realização do objeto, e sim a lucratividade [12].

            As sociedades têm fins lucrativos. A atuação sem finalidade lucrativa é reservada às associações e fundações, pessoas jurídicas na forma do artigo 44 do Código Civil. Assim, a distinção hoje feita muda as atenções para o desenvolvimento ou não de atividade empresária, qual seja, organização profissional para a produção ou circulação de bens ou serviços. As sociedades serão simples (incluídas as cooperativas, qualquer que seja o seu objeto) ou empresárias (incluídas as sociedades anônimas, qualquer que seja o seu objeto), devendo as primeiras submeter-se à inscrição no Registro Civil das Pessoas Jurídicas e as segundas, no Registro Público de Empresas Mercantis. As normas gerais relativas ao contrato social, relembra-se, aplicam-se a todas elas.

            É necessário lembrar que a sociedade simples poderá se constituir como pura ou adotar um dos demais tipos societários, bem como as características que não lhes modifique a natureza.

            4.1. Elementos essenciais e elementos dispositivos

            Enuncia o artigo 997 do Código Civil que a sociedade constitui-se mediante contrato escrito, particular ou público, que, além de cláusulas estipuladas pelas partes, mencionará: 1) descrição completa dos sócios, sejam pessoas naturais, sejam jurídicas; 2) denominação, sede, objeto e prazo da sociedade; 3) capital social; 4) quotas sociais e sua realização; 5) as prestações a que se obriga o sócio cuja participação consista em serviços [13]; 6) as pessoas naturais que administrarão a sociedade, e seus poderes; 7) a participação de cada sócio nos lucros e nas perdas [14]; e 8) se os sócios responderão subsidiariamente pelas obrigações sociais [15]. Estes elementos, unidos aos elementos essenciais gerais do negócio jurídico, quais sejam, capacidade do agente [16], objeto lícito e forma não-defesa em lei, são obrigatórios do contrato social.

            Ao mencionar "cláusulas estipuladas pelas partes", o legislador se refere aos elementos dispositivos do contrato social. Assim, nada obsta que os sócios determinem que a sociedade deva se dissolver automaticamente após o falecimento de um dos sócios [17], ou que não possam abrir filiais no território nacional durante certo lapso de tempo.

            O contrato social deverá ser levado a registro nos trinta dias subseqüentes, no órgão competente, sob pena de sua personalidade jurídica produzir meramente efeitos ex nunc, isto é, do registro para a frente; obedecido o prazo, os efeitos são ex tunc, alcançando a data de assinatura do documento. O órgão responsável pela administração do registro de empresários individuais e sociedades empresárias é o Departamento Nacional de Registro do Comércio (DNRC); responsáveis pelos procedimentos concretos, de execução, são as Juntas Comerciais, de competência estadual.

            4.2 Critérios técnicos da Junta Comercial do Estado de São Paulo

            A Junta Comercial do Estado de São Paulo (JUCESP) tem competência sobre todos os registros de empresários individuais e sociedades empresárias paulistas. Segue instruções e pareceres emanados diretamente do Departamento Nacional de Registro do Comércio (DNRC), bem como o Código Civil vigente. O registro de empresas está sob responsabilidade de seus Vogais, que delegam a verificação para seus técnicos autorizados [18].

            É reservado ao Registro Público de Empresas Mercantis e Atividades Afins (que são as próprias Juntas Comerciais) o não-arquivamento de contrato social que não obedeça aos requisitos legais de composição – elementos essenciais, ou cujo nome empresarial colida com outro já ou cujo nome empresarial colida com outro jjurreal como o objetivo ao qual deve se propor um emado e levado a registro. Da mesma forma, é autorizada a exigência de documentos necessários à avaliação da veracidade das informações constantes do documento constitutivo da sociedade, bem como de suas posteriores alterações. Nenhuma alteração ou modificação que diga respeito à sociedade poderá ser oposta a terceiros sem que esteja arquivada no respectivo órgão de registro.

            Infelizmente, os efeitos práticos da atividade técnica da JUCESP são percebidos de forma negativa consoante aos envolvidos de fato; os usufrutuários de seus serviços, não raro sem os conhecimentos jurídicos necessários, acabam sendo levados a adotar posturas não-exigidas e, quantas vezes, até a dissimular seus contratos. O contrato de sociedade é formal porque é escrito, e não porque exige formalidade em sua elaboração ou porque deva-se seguir palavras sacramentais específicas [19]. Da mesma forma, consideramos a busca da verdade real como o objetivo ao qual deve se propor um órgão de Registro Público, e não a aceitação e mecanização da verdade formal. No entanto, a atividade registrária está sujeita à forma eleita pelo DNRC em seus "Manual do Empresário" e "Manual da Sociedade Limitada", fonte da solução e base do problema, seja por si só, seja por sua interpretação.

            Há um outro e principal fato que merecerá destaque nestas linhas: a imposição da JUCESP à obediência do artigo 2.031 do Código Civil, que trata do prazo para adaptação dos contratos sociais à lei nova, o que merecerá análise nos dois próximos tópicos.


5. A adaptação dos contratos sociais ao Código Civil de 2002

            Já mencionamos, embora brevemente, a importância e as implicações causadas pela adoção da Teoria da Empresa pelo ordenamento jurídico brasileiro, inserida no Código Civil como uma tentativa de unificação do Direito das Obrigações (no dizer do próprio Miguel Reale, um dos autores do projeto, apresentado em 1975). O Direito é uma realidade dinâmica, um fato social em constante movimentação e modificação, porque está presente onde está a sociedade, e acompanha a sociedade muito mais do que é acompanhado. Nada mais lógico do que promover, então, as adaptações que se fizerem necessárias aos textos legais, como resultado da evolução social em determinado momento histórico.

            Buscando concretizar este objetivo, o legislador determinou taxativamente no artigo 2.031 do Código Civil "prazo fatal" (embora posteriormente alongado) para que as associações, sociedades, fundações e empresários promovessem a adaptação de seus contratos, estatutos e requerimentos às novas disposições empresariais. Enuncia a Lei nº 11.127, de 28 de junho de 2005, que altera a redação do artigo 2031: "as associações, sociedades e fundações, constituídas na forma das leis anteriores, bem como os empresários, deverão se adaptar às disposições deste Código até 11 de janeiro de 2007." É uma busca pela uniformidade e avanço da atividade empresária, porém inaplicável face a nosso ordenamento jurídico, devido à logicidade que é cobrada do hermeneuta.

            5.1. O ato jurídico perfeito

            Em teoria, o ordenamento jurídico é uma estrutura lógica, baseada em normas dispostas harmonicamente seguindo critérios de hierarquia e importância, sendo aplicáveis diversos princípios capazes de evitar a insegurança jurídica, isto é, o não-saber qual norma deverá ser aplicada ao caso concreto. Assim, a Lei de Introdução ao Código Civil (Decreto-Lei 4.567/42) já prenunciou em seu artigo 6º que a lei em vigor terá efeito imediato e geral, respeitados o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada. Houve a recepção pela Constituição de 1988; aliás, mais que recepção: esta proteção foi elevada a nível constitucional, tornando-se norma de ordem pública e garanta fundamental, sobre a qual não será possível sequer versar sobre a possibilidade de emenda. Está no artigo 5º, XXXVI, da Constituição Federal.

            O ato jurídico lato sensu é o acontecimento que depende da vontade humana e que produz efeitos jurídicos queridos pelo agente. E o ato jurídico perfeito é, segundo a doutrina, aquele consumado de acordo com a lei vigente ao tempo que se efetuou [20]. Este conceito irá abranger todos os negócios jurídicos válidos praticados de acordo com a lei vigente ao tempo de sua celebração, incluindo os contratos de sociedade e os estatutos, bem como os requerimentos de empresário (antigas declarações de firma individual), por extensão do artigo 2.031 do Código Civil.

            Este é um princípio fundamental para que se realize a segurança do direito, visto que inibe qualquer insegurança que venha a pairar sobre ato jurídico praticado em consonância com as normas vigentes no tempo da manifestação válida de vontade e de sua expressão jurídica. É um princípio, consideramos, superior até mesmo à própria necessidade de o Direito acompanhar a evolução social. Se fosse de outra forma, a norma penal que previsse punição mais severa para determinado crime retornaria para agravar a pena do condenado, e seria esquecido o princípio da irretroatividade da lei penal.

            5.2. O artigo nº 2.031 do Código Civil: há uma antinomia jurídica?

            A questão que se nos apresenta é totalmente inevitável: apresenta-se antinomia jurídica entre o artigo 2.031 do Código Civil e o artigo 5º, XXXVI, da Constituição Federal? A resposta é sim, há uma antinomia aparente. Antinomia é o conflito entre duas normas ou princípios, em sua aplicação a um caso concreto, e os critérios para sua solução, quando aparente (isto é, solucionável dentro das regras existentes), são o hierárquico (lex superior derrogat inferiori), o cronológico (lex posterior derrogat priori) e o da especialidade (lex specialis derrogat generali). Sem sombra de dúvida e devido à presunção de coerência do ordenamento jurídico, a norma civil não é válida face à norma constitucional, e tem a sua existência impugnada: há a supremacia do critério lex superior derrogat inferiori.

            Não é a posição adotada pela JUCESP, ao julgar necessária, embora informalmente [21], a adaptação dos contratos de sociedade e requerimentos de empresário, baseada no artigo 2.031 do diploma civil, a ponto de tomar aspecto "impositivo" por meio de seus técnicos e pela propaganda da mídia. Assim também diversas organizações contábeis, que recomendam a adaptação. Até 10 de janeiro de 2005, prazo limite para adaptação até a superveniência da Medida Provisória nº 234 (que é do mesmo dia, e alterou o prazo para adaptação, para ser posteriormente convertida na Lei 11.127/05), as filas às portas das Juntas Comercias (principalmente no Estado de São Paulo) eram enormes; auxiliares de escritório, "motoboys" e pequenos empresários com pilhas de processos às mãos para o obedecimento do prazo fatal, sob o fantasma da responsabilidade social ilimitada das sociedades em comum, que seria a punição para aquela sociedade limitada que descumprisse o famigerado artigo. Todos correndo contra o tempo para levar a efeito uma norma juridicamente inválida, sob pena de, também, não conseguir obter financiamentos bancários em virtude da não-adaptação. Qual seria a defesa de uma instituição bancária questionada em juízo em virtude de não ter aceitado um contrato social desatualizado, para cadastro de cliente? É manifesta ilegalidade e descumprimento do princípio da isonomia, visto que não se poderá alegar "desatualização de contrato social" para recusar-se ao oferecimento do serviço.

            O próprio DNRC abre uma hipótese de não-adaptação de cláusula contratual ao novo Código, desde seu Parecer Jurídico DNRC/COJUR nº 125/03, ao dizer que as sociedades constituídas por cônjuges casados sob o regime da comunhão universal de bens não deverão adaptar-se ao artigo 977 do diploma civil (que dispõe sobre a vedação de que pessoas casadas sobre este regime contratem sociedade). É mencionado, taxativamente, que esta permissibilidade se dá em respeito ao ato jurídico perfeito; então, a nosso ver, há uma evidente contrariedade entre a opinião defendida neste parecer e a adaptação que é cobrada dos empresários [22]. Outrossim, se esta proteção é dada aos cônjuges casados sob o regime da comunhão universal que já contraíram sociedade, é de bom tom considerá-la extensível a todos os demais empresários, por força do princípio lógico "quem pode o mais, pode o menos".

            Inegavelmente, é uma absoluta infelicidade para o Direito o fato de o artigo 2.031 do Código Civil, na prática, ter superado (e estar superando) um princípio geral de direito, uma garantia fundamental constitucionalmente assegurada, como o ato jurídico perfeito. Os que sorriem, sem dúvida, são os beneficiados economicamente pela avalanche de processos que já vieram, vêm e virão a registro e alteração até 11 de janeiro de 2007. Aos microempresários, principais atingidos por serem maioria, ainda haverá o medo do "fantasma" da pseudo-ilegalidade que se aproxima, por muito tempo. Em palavras mais específicas, é defendida a necessidade de adaptar, mas as custas e os preparos não serão deixados de lado em nome da regularidade do empresário.


6. Conclusão

            O Direito de Empresa pós-Código Civil de 2002 muda significativamente sua posição acadêmica, aderindo à teoria da empresa e posicionando-se cada vez mais perto do Direito das Obrigações em termos positivos. As novas diretrizes presentes na legislação empresarial consubstanciada no novel diploma civil apontam para o futuro da realidade econômica brasileira, permitindo a maior número de atividades a aquisição de registro e, consequentemente, de regularidade para o desenvolvimento de seu objetivo.

            O Código Civil de 2002, porém, não consegue desburocratizar eficientemente a atividade do pequeno empresário urbano, como fez com o empresário rural que se volta para a subsistência familiar – a quem é facultado o registro. Daí o questionamento que levantamos no presente artigo. Ele a nada mais se refere do que aos impactos provocados nos pequenos empresários brasileiros quanto a mais uma exigência burocrática. Seria necessário que o legislador estabelecesse uma disciplina mais clara para a pequena atividade empresária nas fileiras do novo Direito de Empresa positivo.

            Sendo a atividade empresária o grande motor das civilizações contemporâneas, como resultado direto das revoluções burguesas da Idade Média e Moderna, e surtindo efeitos cada vez mais sensíveis na economia mundial, através do forte apelo dos meios de comunicação frente às massas, bem como das necessidades individuais cada vez mais crescentes, há que ser lembrada a necessidade constante de revisão das normas jurídicas que a tem por objeto. A atividade empresária não é abstrata, mas concreta e mutável, em constante movimento, e cabe às normas jurídicas acompanhar o seu desenvolvimento: não são as normas jurídicas que disciplinam a atividade empresária, é a atividade empresária que disciplina as normas jurídicas.

            A normatização comercial dos primeiros momentos da intensificação do comércio na Europa já é prova de que o costume e a prática mercantis é que traçam as normas jurídicas empresariais. Daí a adoção constante de novas disciplinas, mais adequadas à realidade daqueles que praticam a empresa, bem como da formação de correntes jurisprudenciais em torno de determinadas matérias controvertidas pertinentes à atividade empresária.

            Assim sendo, a unificação do regramento empresarial e civil é um passo à frente para o ordenamento jurídico brasileiro, a despeito da opinião de muitos juristas que apontam tendência à separação, nas legislações alienígenas. Não se pode olvidar que o Brasil é um país de pouquíssima cultura jurídica, apesar dos grandes nomes que possui no meio jurídico. Nos referimos ao vulgo, e até mesmo aos profissionais de outras áreas, os quais devem ter conhecimento da lei tanto quanto for possível, até para que se possa preservar o princípio da isonomia previsto na Constituição Federal. Em outras palavras, não nos basta mostrar a lei ao povo, mas sim fazer com que o povo alcance a lei tanto quanto esta deve alcançá-lo, e, deste ponto de vista, a unificação do regramento civil e empresarial aponta uma tendência de simplificação legislativa.

            Ao mesmo tempo que é uma solução, o novo regramento empresarial brasileiro se nos apresenta como um problema, pelos mesmos motivos. Além de não haver suprido convenientemente as necessidades dos pequenos empresários, maioria absoluta no país (talvez pelo fato de o legislador preferir relegar a matéria à lei complementar, para a qual já há projetos, anteriormente referidos), apresenta sérios problemas de completude, como as questões envolvendo o empresário individual e a personalidade jurídica (cuja solução é de conhecimento de uma parcela muito menor do que o desejado pelo legislador pátrio), a definição de pequeno empresário (divergente até na doutrina, conforme analisamos alhures), e também, principalmente, flagrante inconstitucionalidade (em seu artigo 2.031), que parecem passar despercebidos na realidade empresária.

            Referindo-nos especificamente ao artigo 2.031, podemos traçar um paralelo entre a abstração normativa e a realidade dos empresários e profissionais da área contábil: enquanto há uma garantia constitucional de defesa ao ato jurídico perfeito (de acordo com a lei vigente ao tempo em que se efetuou), reconhecida – embora não expressamente, como seria desejável – pelo próprio Departamento Nacional de Registro do Comércio (DNRC), vistas aos citados "Manual da Sociedade Limitada" e Parecer Jurídico 125/03, de outro lado há uma fortíssima pressão psicológica causada pela imperatividade do referido artigo do diploma civil de 2002, elevada pelo "fantasma" da responsabilidade ilimitada próprio das sociedades em comum.

            Ainda que se houvesse de considerar a sociedade por quotas de responsabilidade limitada (que corresponde a 95% das sociedades registradas nas Juntas Comerciais, por isso tomada como base desta análise) como irregular caso não procedesse à devida "consolidação" de suas cláusulas contratuais nos termos do Código Civil de 2002, como recomendam as Juntas Comerciais, não haveria de ser temido o "fantasma" da responsabilidade ilimitada das sociedades em comum, visto que é pacífico, tanto na doutrina quanto na jurisprudência, que a personalidade jurídica só termina com a dissolução total da sociedade, seja judicial ou extrajudicial. Não há sanção para o descumprimento da famigerada norma civil, e qualquer distinção que fornecedores, clientes ou bancos venham a fazer em relação aos empresários que não procederam à adaptação constitui violação ao princípio da isonomia, esta sim punível.

            É com tristeza que constatamos o flagrante desconhecimento a respeito destes princípios básicos de Direito por parte dos empresários e dos profissionais envolvidos. A impositividade da norma inválida e a análise superficial de alguns "orientadores" ferem não só o Direito Positivo em sua segurança, mas retiram a própria dispositividade dos envolvidos quanto a sua auto-determinação. Ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei, mas se a lei (ou melhor, norma) é inconstitucional, não poderá produzir os efeitos a que se propõe.

            Contudo, em nome da mesma segurança jurídica, não há lei inconstitucional antes de se ter reconhecida sua inconstitucionalidade. Se, por um lado, deve ser privilegiada a interpretação sistemática, para que se evite a insegurança e a injustiça, por outro deve ser respeitado o princípio do devido processo legal através do controle de constitucionalidade das leis. Para que seja impugnado o artigo 2.031 do Código Civil, é necessário provocação da jurisdição constitucional do Supremo Tribunal Federal pela parte legitimada nos termos do artigo 103 da Constituição Federal, visto que a referida norma encontra-se meramente "em tese", por não estar em vigor. De outra forma, não poderá ser. Não se pode defender a segurança jurídica indo contra a própria segurança jurídica.


Bibliografia

            COELHO, Fábio Ulhôa. Manual de Direito Comercial: atualizado de acordo com o novo Código Civil e alterações da lei das sociedades por ações, e ampliado com estudo sobre o comércio eletrônico. São Paulo: Saraiva, 2003.

            DINIZ, Maria Helena. Teoria geral do direito civil. 12a ed. São Paulo: Saraiva, 2002.

            DINIZ, Maria Helena. Lei de introdução ao Código Civil brasileiro interpretada. 9a ed. São Paulo: Saraiva, 2002.

            GOMES, Orlando. Contratos. 5ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1975.

            HENTZ, Luiz Antonio Soares. Direito de empresa no Código Civil de 2002. 3a ed. rev. e atual. São Paulo: Juarez de Oliveira, 2005.

            REQUIÃO, Rubens. Curso de direito comercial. 21a ed. São Paulo: Saraiva, 1993.


Notas

            01 Este item foi totalmente baseado nas lições dos mestres Requião e Hentz.

            02 Cf. DINIZ 2002a, p. 206.

            03 Não se trata de capital social, porque empresário, encarado stricto sensu, não se equipara a sócio de sociedade. Seu capital é seu fundo de comércio, sua azienda, os recursos financeiros que possui para levar a cabo seu empreendimento, não limitando a sua responsabilidade.

            04 A Lei nº 9841/99 (Estatuto da Microempresa e da Empresa de Pequeno Porte), no entanto, não comete este "deslize", ao afirmar que enquadram-se nela as pessoas jurídicas e as firmas individuais que obedeçam aos limites de receita bruta estabelecidos. Porém, esta lei não possui relação direta com as obrigações tributárias; trata tão-somente da inscrição e dos efeitos dela decorrentes (não estando compreendidos nestes efeitos as obrigações tributárias, vez que não houve menção expressa à ab-rogação da Lei do Simples, que, convenhamos, se faria necessária). Com a vênia do Prof. Hentz, em HENTZ 2005, p. 207.

            05 Vide COELHO 2003, pp. 34-36, e atente para a redação da Lei do Simples e do referido Decreto-Lei.

            06 Este valor está atualizado pelo Decreto nº 5.028, de 31 de março de 2004.

            07 Conforme mencionado alhures, defendemos serem leis distintas a 9.317/96 e a 9.814/99. A favor, vide Fabio Ulhôa Coelho, COELHO 2003, pp. 34-36 ; contra, HENTZ 2005, p. 207.

            08 Chamado "Projeto Pré-Empresa".

            09 Em opinião diversa da nossa, e tomando pequena empresa e pequeno empresário como sinônimos, Fabio Ulhôa Coelho, em COELHO 2003, p. 47.

            10 A propósito, HENTZ 2005, p. 180 ss.

            11 A esse respeito, GOMES 1975.

            12 A propósito, vide HENTZ 2005, p. 116 ss.

            13 O sócio de serviços não é admitido para a sociedade empresária.

            14 É vedada a cláusula leonina, que trará sérios efeitos jurisprudenciais para os infratores.

            15 Verificamos, aqui, muito mais um elemento dispositivo, vista a possibilidade de omissão.

            16 A capacidade do agente, conforme entendimento do Supremo Tribunal Federal e do Departamento Nacional de Registro do Comércio (DNRC), não deverá se referir à participação na sociedade, mas à administração.

            17 A dissolução automática da sociedade em caso de falecimento de sócio não mais é regra, como já fora, mas é fórmula que poderá ser adotada, posto que estamos em sede de direito dispositivo.

            18 Recomenda-se estudo sobre a organização funcional do Registro do Comércio, bem como visita ao sítio do DNRC, através do endereço www.dnrc.gov.br.

            19 Aqui, fazemos referência ao "modelo" de contrato de sociedade difundido pelo DNRC. Presenciamos casos em que este é preferido (e, porque não dizer, imposto) em detrimento de outro, elaborado diversamente do "modelo", muito embora haja seguido todas as formalidades exigidas em lei, supra analisadas.

            20 Cf. DINIZ 2002b.

            21 A postura informal da JUCESP contraria até o disposto no "Manual da Sociedade Limitada" expedido pelo DNRC (disponível em seu sítio), visto que o órgão nacional não exige adaptação de forma expressa, salvo no caso de transferência do Cartório de Registro Civil.

            22 A este respeito, é indispensável ler a íntegra deste parecer no sítio do DNRC.


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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SAES, Thiago da Silva. A atividade empresária e a adaptação às disposições do Código Civil de 2002. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 11, n. 970, 27 fev. 2006. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/8034. Acesso em: 28 mar. 2024.