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Estado de sítio: o fascismo no anti-direito

Estado de sítio: o fascismo no anti-direito

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Reflexões sobre a eventual possibilidade de declaração do estado de sítio em razão da pandemia de coronavírus. O pior vírus que se pode imaginar, como abatimento global da democracia, no país, nesse momento, é aquele que venha travestido de transmutação constitucional a serviço do autoritarismo político.

A MORADA DO MEU PAI TEM MUITAS LÍNGUAS

A primeira é a linguagem. A segunda é o interesse – e, talvez, a necessidade. A terceira é a interpretação. A quarta é o segredo. A 5ª é a metáfora. A 6ª é a invenção. A 7ª é a fala. A 8ª é a “desconversação”. A 9ª, se houver, é o entendimento da língua original. A 10ª é a mentira.

Propõe-se, no texto, que a Carta Política de 1988 seja a principal perspectiva da democracia, do Estado de Direito e da preservação da saúde pública, que a Carta Política seja afirmativa, a própria afirmação da emancipação, da igualdade fundamental, da liberdade essencial. 

Propõe-se ainda que a Carta Política de 1988 seja nosso estofo de sanidade mental, moral, pública, no vigor do combate ao fascismo, este que é a pior forma de negação dos preceitos da Vida Pública salutar: eticamente, politicamente, institucionalmente.

Propõem-se, então, que a Carta Política de 1988, negação da negação, seja nosso convite e convívio de todas e todos que repelem o fascismo, a negação democrática, e que seja por nós tomada como afirmação da resistência ao escapismo e ao fascismo.

Propõem-se, enfim, que sejamos capazes de resistir e de nos elevarmos como negadores da negação da Carta Política de 1988.


DO PREÂMBULO E DAS CONSIDERAÇÕES

A conjuntura é alarmante em muitos aspectos, do desemprego em massa (subempregos, lumpesinato crescente) à falência pública e privada diante da política neoliberal, da pandemia do COVID-19, mutação do coronavírus, à proposição de um possível Estado de Sítio, e passando-se pela descontinuidade institucional e pelo desfazimento da segurança jurídica de dois valores cruciais: Vida e Liberdade.

É óbvio que não há escolha racional, validável, entre esses dois valores. Assim como em face da igualdade: igualdade frente à lei, igualdade para que os “inimigos combatentes” do fascismo não sejam o alvo de um pretenso Estado de Sítio, igualdade para que pobres e miseráveis não sejam dizimados pelo vírus que se alastra por causa da mediocridade estatal.

É este contexto político-jurídico que devemos considerar. Dito isso:

Considerando-se que o Estado de Sítio é uma forma do Estado de Exceção.

Considerando-se que não temos a tipologia político-criminal do Estado de Emergência.

Considerando-se que o Estado de Sítio, nas circunstâncias atuais, “autorizaria” o uso/abusivo da “exceptio”.

Considerando-se que, diante dos sintomas fascistas apresentados no Brasil de 2020, a “exceptio” seria utilizada segundo a lógica “amigo-inimigo”.

Considerando-se que o Estado de Sítio, assim incrementado, é um “pandemônio jurídico” designado para se evitar o contágio e a pandemia da emancipação e da verdade republicana.

Considerando-se que se trata de poder “ex parte princeps”.

Considerando-se isso, e muito mais, defenestramos qualquer investida do Estado de Exceção (Agamben, 2004).

No entanto, antes de avançarmos no argumento nomológico demonstrativo de que a tecnicalidade do Estado de Sítio é infundada, apresentaremos o argumento político-institucional de que, na prática fascista, o Estado de Sítio é o equivalente da ”quartelada”, um Estado de Sítio voltado para dentro, com repressão interna, e não para se evitar o contato externo.


ESCORÇO HISTÓRICO

Há dois momentos clássicos do Estado de Sítio: A Ilíada, de Homero, e Cerco a Numancia, de Cervantes. Ao que se seguiram fases interpostas do tal “Estado de Sítio Internalizado”, com vistas a combater o inimigo político e não sufocar o conquistado, por aqueles que vêm de fora.

Neste segundo modelo, que se vislumbra como cesarismo ou bonapartismo, encontramos a Comuna de Paris, o Estado Nazista, o exemplo da Argélia sob a dominação francesa. Esses três celebraram nomologicamente o Estado de Sítio. Os dois primeiros se limitaram a “sitiar”, no auge da condição da “guerra de conquista”, o inimigo-conquistado.

Os três últimos casos foram regime autocráticos impostos ao inimigo político, interno, e jamais ao inimigo conquistado, portanto, externo. Como esta diferença não é de sutileza ou questiúncula jurídica, e nem de ramificação, fato que se inverte completamente o sentido, os dois primeiros são armas de “guerra de conquista”, ao passo que os três últimos são armas políticas.


A DISTOPIA JURÍDICA

Para quem "acha" que podemos atropelar o Estado de Direito só um pouquinho, em nome de uma cura para problemas político-institucionais, vale uma analogia. Imaginemos uma cidade atacada por uma moléstia grave. Sem cura definitiva, há um só tratamento temporário que alivia sintomas, enquanto se produza um remédio efetivo e uma vacina depois. O problema é a taxa de óbito elevada, porque não há medicação específica. Nesta cidade há dois grupos: médicos de verdade e salvadores. Os médicos insistem em pesquisas, campanhas de conscientização, profilaxia dos bairros, e seguros dos padrões científicos. Os salvadores querem isolar os doentes, sem comunicação, à espera de uma morte quase certa. Os médicos salvam muitos, são rigorosos nos limites colocados pelo juramento de Hipócrates. Os salvadores querem medidas rápidas, de baixo custo e são seletivos ao prender sob a mínima suspeita de contágio. É assim que vagueia o país, por isso não tem fim a história do racial-fascismo.

Como é de conhecimento regular do homem médio em sua vida comum, a realidade costuma imitar a ficção. Numa inspiração político-jurídica subsequente, com efeito pragmático, para aplicar o Estado de Sítio à pandemia do COVID-19, teríamos que juntar quatro distopias numa só realidade: Eu Robô (Asimov, 2014), O Alienista (Machado de Assis, 2014), A Peste (Camus, 2002), Ensaio sobre a cegueira (Saramago, 2008). Especialmente se considerarmos o desajuste dessa proposição de Estado de Sítio, no Brasil na inépcia estatal, em 2020, ao escopo e à nomenclatura específica trazida pela Carta Política de 1988.

No Direito, como se apregoa – assim como no senso comum e mais ainda no Bom Senso –, vigora a regra de ouro: “dos males o menor”. Desse modo, a fim de que não se institua o Estado de Sítio como manu militari – poder “ex parte princeps” – há que se observar que a disposição constitucional referente ao Estado de Defesa (art. 136 da CF88) – ainda que com extensiva e coparticipação dos Estados-membros da União invocados e atingidos – seria válvula de escapismo jurídico para o encerramento da democracia.

Pois, sequer traria viabilidade institucional de controle da pandemia do COVID-19. Com efeito reduzido e incapaz de solução na área da saúde pública, a previsível ineficácia do Estado de Defesa (art, 136 da CF88) tão-somente abriria espécie, degrau de passagem, à decretação do Estado de Sítio e ao encerramento do Direito Democrático e das garantias constitucionais aos direitos fundamentais.

Neste escopo, seguimos a recomendação do CFOAB (Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil).


CONSELHO FEDERAL DA ORDEM DOS ADVOGADOS DO BRASIL

Na data de 20/03/2020, a Presidência da Comissão Nacional de Estudos Constitucionais do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (CFOAB), em conjunto com a própria Presidência dessa entidade, emitiu parecer acerca dos rumores em curso em Brasília de que o Presidente da República solicitou a alguns ministérios orientação para a decretação de Estado de Sítio.

O CFOAB, por sua presidência, acaba por se posicionar de forma contrária a este tipo de medida como meio de combate à pandemia causada pelo coronavírus (COVID-19), que promove a doença denominada pela Organização Mundial da Saúde (OMS) como SARS-CoV2. O parecer descreve inicialmente o instituto do Estado de Sítio como um meio constitucionalmente garantido de gestão de crises causadas por estado de guerra e ataque estrangeiro ou comoção grave de repercussão nacional ou ocorrência de fatos decorrentes da ineficácia do estado de defesa, por via de restrições mais graves de direitos fundamentais, podendo suprimir a liberdade de imprensa e de reunião, avançando na busca e apreensão em domicílio, restrição à liberdade de locomoção, entre outros atos graves de restrição de direitos fundamentais.

Assim, o parecer passou a analisar os fatos vivenciados no atual cenário nacional e internacional, derivados da pandemia decretada pela OMS, para conectá-los com os requisitos legalmente exigidos para a decretação do Estado de Sítio, descrevendo que os requisitos necessários para tal estado não estão presentes. Se não estão presentes os requisitos necessários para a configuração do Estado de Sítio, a sua decretação tem o fito de promover medida inconstitucional e objetivando a atuação política de um agir autoritário e de suspensão de direitos fundamentais, ainda mais quando medidas menos gravosas ainda estão inicialmente sendo utilizadas e há um empenho amplo das instituições estabelecidas para a solução desta crise de forma menos impactante na vida democrática e por via de atuação constitucionalmente indicada.

Indica-se, portanto, que a via da decretação do Estado de Sítio é irresponsável e não possui guarida constitucional, sendo medida que não deve ser tomada pelo Estado brasileiro, uma vez que há medidas individuais, hospitalares e fito-sanitárias a serem tomadas e que podem importar no combate satisfatório desta crise vivenciada. Ainda, descreve que a sua decretação retomaria a um período do constitucionalismo de sítio que já vivenciamos no país, importando na fragilização dos direitos e das garantias fundamentais sem qualquer necessidade premente deste Estado de Sítio. E assim, o CFOAB, por sua presidência, manifesta-se pela inconstitucionalidade na adoção desse tipo de medida no atual cenário, não sendo uma medida jurídica aceitável para o combate ao COVID-19.


ESTADO DE SÍTIO E OS CONCEITOS JURÍDICOS INDETERMINADOS

Na obscura senda em que se insere a pandemia, tudo leva ao extremo. No entanto, cabe a premissa reflexiva de que o Estado de Direito Democrático é o oposto ao extremo à histeria e ao pandemônio fascista. É, portanto, a conversação, a pluralidade e a ponderação. Ou seja, na democracia encontra-se o antídoto ao absolutismo, assim com a ciência combate o obscurantismo. A cura ao exercício do poder dominante se dá pela horizontalização do poder que se desdobra nos fundamentos da Constituição.

Como o Estado de sítio suplanta o Estado de Direito, e dá margem ao arbítrio, razões não faltam para afastar sua própria cogitação. Basta-nos lembrar que o art. 139 da CF88 traz medidas contra as pessoas que passam ao largo dos direitos fundamentais, formando uma das mais vis exceções ao direito.

Pois bem, a que(m) interessa o Estado de Sítio? Ao interesse público? Qual seria esse interesse público?

As respostas para essas perguntas podem ser obtidas mediante uma brevíssima leitura do que é o instituto dos conceitos jurídicos indeterminados. Assim sendo, os conceitos jurídicos indeterminados são aqueles “cujos termos são ambíguos ou imprecisos – especialmente imprecisos –, razão pela qual necessitam ser completados por quem os aplique” (GRAU, 2003, p. 200). Incontroversos, os conceitos jurídicos indeterminados possuem uma margem interpretativa a ser preenchida, em cada caso concreto, pelo administrador. Dessa forma, exigem do administrador um ato de inteligência, devendo este interpretar o que a estrutura normativa em vigência exige. Ao contrário da discricionariedade que demanda uma escolha, no conceito jurídico indeterminado é preciso que o administrador preencha o conteúdo da norma, tanto é assim que o STF já entendeu tal diferenciação no RE 167.137 e no RMS 24.699.

Dessa forma, se temos o interesse público pautado no art. 3º da CF, na hipótese de Estado de Sítio haveria a mitigação desses objetivos fundamentais, colocando o destino da República nas mãos – “rectius”: consciência livre – do administrador, dependentes, reféns, exclusivamente, de sua inteligência (convicção?) para o preenchimento do conteúdo normativo, em tese, desvinculado do Estado de Direito Democrático. Cabe, por fim, a menção de que “o Direito deveria ser aplicado por iniciativa própria, tendo em vista os interesses da própria administração (administrar é aplicar a lei de ofício)” (CAMBI, 2018, p. 233), mas se tal ideia que não ocorre sequer com a Constituição em vigência, imaginemos em uma ruptura com seus valores.


BREVES CONCLUSÕES

O pior vírus que se pode imaginar, como abatimento global da democracia, no país, nesse momento, é aquele que venha travestido de transmutação constitucional a serviço do autoritarismo político. O problema do país não é imaginário, surreal como se fôssemos doentes terminais de uma loucura social, cegos por alguma Treva Branca ou uma Peste derivada. Nosso Alienista Abduzido não é O Estrangeiro. Nosso inimigo abduzido não é um vírus ou não é um vírus de cepa “nova”, posto que deriva da velha tática conhecida como Transmutação Constitucional, quando se vilipendia a interpretação da CF/88 para o menos, nunca para avançar o Processo Civilizatório.

A pandemia de vírus não pode, jamais, servir de trampolim a qualquer tipo de pandemônio político-jurídico.

O vírus é letal sim, em escala que, sem o devido controle, rapidamente chegaria ao genocídio populacional. Porém, nenhum artifício – com a desculpa da saúde pública em frangalhos neoliberais – será demandado para legitimar o emprego de “remédios jurídicos” asfixiantes do Estado de Direito Democrático. Por tudo isso, os preceitos civilizatórios e os princípios político-jurídicos da Carta Política de 1988 são o melhor remédio de prevenção e combate à idiocracia e à autocracia como forma-Estado do fascismo no século XXI.

Assim, é fácil perceber que a Carta Política de 1988 afirma-se como a negação da negação. A afirmação, portanto, como negação da negação, visto que a negação é o fascismo e a negação do fascismo é a democracia (negação da negação), aponta para a celebração da educação pública, para todas as salvaguardas que inferem a saúde pública, para a conservação de todos os preceitos científicos e do conhecimento acumulado pela Humanidade, da filosofia à ciência aplicada.

Este é o encaminhamento dos que aqui subscrevem, como Advogados e Advogadas da Democracia, do Estado de Direito e da Carta Política de 1988.


Bibliografia

AGAMBEN, Giorgio. Estado de Exceção. São Paulo : Boitempo, 2004.

ASIMOV, Isaac. Eu, Robô. São Paulo: Aleph. 2014.

ASSIS, Machado de. O alienista. São Paulo : Penguin Classics Companhia das Letras, 2014.

CAMBI, Eduardo. Neoconstitucionalismo e neoprocessualismo: direitos fundamentais, políticas públicas e protagonismo judiciário. 2. ed. São Paulo: Almedina, 2018.

CAMUS, Albert. Estado de Sítio. Rio de Janeiro : Civilização Brasileira, 2002.

GRAU, Eros Roberto. O direito posto e o direito pressuposto. São Paulo: Malheiros, 2003.

SARAMAGO, José. Ensaio sobre a cegueira. São Paulo : Companhia das Letras, 2008.


Autores


Informações sobre o texto

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LEMOS, Walter Gustavo; CHACUR, Rachel Lopes Queiroz et al. Estado de sítio: o fascismo no anti-direito. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 25, n. 6113, 27 mar. 2020. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/80358. Acesso em: 29 mar. 2024.