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Mercadoria virtual

aspectos tributários relevantes

Mercadoria virtual: aspectos tributários relevantes

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I. Introdução

Observamos e vivenciamos, nas últimas décadas da história da humanidade, a chamada "Era da Informação" ou "Sociedade da Informação". Trata-se de uma etapa histórica onde se constatam modificações profundas nas formas de existência, produção, posse, propriedade e transmissão da informação e do conhecimento.

Entre os aspectos mais relevantes da verdadeira revolução [01] em andamento destaca-se a separação entre a informação e seu substrato material. Assim, a sociedade humana que lidou preponderantemente, durante séculos, com bens corpóreos, com realidades materiais e suas múltiplas relações, passou a conviver, com intensidade incrivelmente crescente, com bens incorpóreos ou intangíveis.

Importa, por conseguinte, investigar as conseqüências mais relevantes das novas realidades nos vários quadrantes da vida social. Nesta linha de preocupações, este trabalho busca discutir as mudanças operadas no conceito de mercadoria, particularmente o surgimento da idéia de mercadoria virtual. Será trabalhado, também, o problema estratégico da tentativa de identificação da ocorrência da circulação da mercadoria virtual.


II. Conceitos básicos (bem, coisa, mercadoria, produto, serviço, comércio, circulação e operação)

Alguns conceitos [02] são fundamentais, e, portanto, recorrentes na operacionalização do direito, notadamente na seara tributária. Eles integram as normas jurídicas mais importantes, inclusive no próprio texto da Constituição.

Apesar de envolver significativas dificuldades, inclusive variações de sentido, podemos arrolar os seguintes conceitos mais importantes e suas acepções mais aceitas:

a) coisa designa tudo o que existe. Pode ser algo material ou imaterial, corpóreo ou incorpóreo. Registre-se que vários autores utilizam a palavra "coisa" apenas quando há materialidade. A Constituição de 1988 consagra o uso mais abrangente possível do vocábulo ("ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei" – art. 5º, inciso II e "as causas intentadas contra a União poderão ser aforadas na seção judiciária em que for domiciliado o autor, naquela onde houver ocorrido o ato ou fato que deu origem à demanda ou onde esteja situada a coisa, ou, ainda, no Distrito Federal" – art. 109, parágrafo segundo);

b) bem é a coisa material ou imaterial com valor econômico e que pode ser objeto de uma relação jurídica. Inúmeros autores utilizam indistintamente as palavras bens e coisas;

c) mercadoria é o bem móvel destinado ao comércio. Esta acepção consolidou-se, ao longo do tempo, no âmbito do direito tributário;

d) produto é o bem móvel resultante de esforço humano que lhe acrescenta ou altera utilidades. O termo aparece claramente com este sentido na delimitação material do imposto sobre importação de produtos estrangeiros, do imposto sobre exportação, para o exterior, de produtos nacionais ou nacionalizados e do imposto sobre produtos industrializados (art. 153, incisos I, II e IV da Constituição);

e) serviço é a atividade, ou utilidade, humana fornecida no mercado. No serviço identifica-se a preponderância da atividade sobre o resultado. Neste sentido, o conceito é utilizado na demarcação constitucional dos campos de incidência do imposto sobre operações relativas à circulação de mercadorias e sobre prestações de serviços de transporte interestadual e intermunicipal e de comunicação, ainda que as operações e as prestações se iniciem no exterior (art. 155, inciso II) e do imposto sobre serviços de qualquer natureza (art. 156, inciso III);

f) comércio é a prática habitual de mediação de negócios de compra e venda com o objetivo de obter lucro;

g) circulação, com conotação jurídica, significa a mudança de titularidade de uma mercadoria;

h) operação é o ato ou negócio jurídico apto a provocar a circulação de mercadorias.

Os conceitos elencados nas alíneas "f", "g" e "h" são cruciais na definição do imposto sobre operações relativas à circulação de mercadorias e sobre prestações de serviços de transporte interestadual e intermunicipal e de comunicação, ainda que as operações e as prestações se iniciem no exterior (art. 155, inciso II da Constituição). Com efeito, a noção de circulação, como operação comercial, é inafastável da análise dos fatos aptos a desencadearem a tributação por intermédio do ICMS.

Destaque-se que o Supremo Tribunal Federal já reconheceu que o simples deslocamento, entre estabelecimentos da mesma empresa, de insumos destinado a composição do produto não caracteriza operação de circulação de mercadorias [03].


III. Desmaterialização de conceitos

Existe, atualmente, um razoável consenso científico em torno da ocupação, pela informação (ou conhecimento) [04], do posto de mais importante fator de produção. A idéia de "Sociedade da Informação" aparece, de certa forma, como decorrência lógica da premissa anterior.

Um dos aspectos mais relevantes da nova "Sociedade da Informação" (ou do conhecimento), particularmente em relação ao universo jurídico, consiste no fenômeno identificado como "desmaterialização de conceitos". Vejamos do que se trata.

Verificamos, em linhas gerais, uma evolução (ou mutação) dos bens mais significativos dos formatos tangíveis para os intangíveis [05]. Com efeito, durante séculos as atenções do legislador estiveram voltadas majoritariamente para disciplinar juridicamente relações sociais envolvendo bens, coisas ou objetos palpáveis ou tangíveis [06]. Por conseguinte, as preocupações doutrinárias e as decisões judiciais ocupavam-se de realidades com tais características.

Atualmente, boa parte dos bens mais relevantes nas várias relações sociais assumem o formato eletrônico. Nesta linha, um conceito "materializado" no passado passa por um processo de verdadeira "desmaterialização". Assim, surge um nítido descompasso entre as normas jurídicas, as considerações doutrinárias e as decisões judiciais e a realidade econômico-social subjacente.

Na origem dos principais problemas mencionados aparece um conceito tradicional onde figura, normalmente como elemento central, um traço de materialidade. O exemplo mais importante, pelas conseqüências econômicas e sociais, reside na noção de mercadoria. Como antes referido, a idéia de mercadoria assimilou, ao longo do tempo, a marca da materialidade como elemento conceitual fundamental [07]. Numa afirmação, segundo o entendimento tradicional: mercadoria deve ser entendida como o bem móvel destinado ao comércio.

Ocorre que a modernidade tecnológica conseguiu suprimir a materialidade da idéia de mercadoria, colocando no centro das atenções a mercadoria virtual.


IV. Mutação do conceito de mercadoria rumo à idéia de mercadoria virtual

O conceito de mercadoria (e de produto) está impregnado pelo traço da materialidade ou tangibilidade por razões históricas e tecnológicas. Com efeito, praticamente todos os objetos das relações econômicas no mercado possuíam, até passado recente, a marca da palpabilidade. Este traço decorria dos padrões tecnológicos utilizados até então.

Perceba-se que a materialidade ou tangibilidade não está presente, necessariamente, como nota essencial, nas idéias de coisa e de bem, como antes destacado. Assim, por certo ângulo, tomando mercadorias (e produtos) como espécies de coisas ou bens, não seria um imperativo do primeiro conceito a presença da materialidade ou tangibilidade.

Ademais, no caso do conceito de "mercadoria", sua referência mais remota no campo do direito privado, encontrada no art. 191 do Código Comercial editado no Século XIX, já contemplava elementos não tangíveis, buscando abarcar todos os objetos do comércio independentemente da forma [08]. Este, inclusive, é o sentido mais corrente e adequado para a idéia de mercadoria: "aquilo que é objeto de compra ou venda" ou "aquilo que se comprou e que se expõe à venda" [09].

Por outro lado, a modernidade e seus inusitados componentes impõem a adequação ou atualização dos conceitos jurídicos, mesmo aqueles determinados e fechados, sob pena de que manifestações de capacidade contributiva, identificadas com bases econômicas juridicamente tributadas, deixem de ser atingidas e colaborem para o financiamento das atividades de interesse público realizadas pelo Estado [10]. Estas ponderações ganham relevo quando identificamos a crescente, rumo a predominância, realização de atividades econômicas debaixo das novas formas tecnológicas.

São duas, portanto, as ordens de considerações que "retiram" de mercadorias (e produtos) os traços de tangibilidade: a) mercadorias (e produtos) são espécies de um gênero que não exige materialidade como elemento essencial e b) o avanço tecnológico, as novas formas de produção de riqueza, viabilizou a existência de mercadorias (e produtos) desprovidos da marca da tangibilidade.

Estas afirmações podem parecer heréticas. Afinal, a tradição do direito brasileiro aponta no sentido de considerar mercadoria necessariamente o bem corpóreo ou tangível. Ademais, as dificuldades de acatar a mercadoria intangível ou virtual também residem nas disposições do art. 110 do Código Tributário Nacional [11]. Se o termo "mercadoria" foi utilizado pelo constituinte para delimitar competência tributária ou impositiva não poderia ser entendido ou manuseado pelo legislador tributário além do sentido que tradicionalmente possui [12].

Para superarmos a perplexidade anterior, um limite aparentemente intransponível [13], devemos considerar os objetivos do citado art. 110 do Código Tributário Nacional e os imperativos de delimitação da competência impositiva. Sem dúvida, a preocupação subjacente é de resguardar a segurança jurídica, notadamente na ação tributária, forma de exceção ao direito de propriedade. Assim, o que se pretende é criar um obstáculo para o legislador tributário não manusear os instrumentos normativos ampliando arbitrariamente o campo de incidência dos tributos.

Pensamos, no entanto, que não violenta o valor segurança jurídica, nem diminui a força operacional da noção de conceito classificatório ou determinado, a adaptação de elementos tributários estruturantes a mudanças radicais de paradigmas sociais. Não advogamos a sensibilidade a qualquer mudança. Sustentamos a vinculação do conceito aos cânones de uma nova etapa histórica, condutora de fatos e situações novas, mas nele enquadráveis razoavelmente, porque apenas formas originais de efetivamente praticar os mesmos atos, ou, sob o ângulo do conteúdo, da essência, realizar as mesmas manifestações econômicas [14].

Portanto, a mercadoria virtual (e o produto virtual), ente não palpável, pode e deve ser aceita como objeto do chamado comércio eletrônico para efeitos de tributação.


V. Problema crucial: como identificar a ocorrência da circulação no comércio eletrônico próprio (envolvendo a mercadoria virtual)

A situação-problema mais relevante envolvendo a mercadoria virtual seria a seguinte: envio, estritamente por meio eletrônico, de um arquivo ou conjunto de arquivos eletrônicos como conseqüência ou decorrência de um negócio jurídico realizado.

Nestas condições, o arquivo eletrônico (ou conjunto de arquivos) pode ser, entre outras hipóteses de importância secundária para estas considerações:

a) uma mercadoria. Quando padronizado e distribuído em série, havendo, portanto, predomínio da coisa, do resultado ou do fim. Neste caso, cabível, em tese [15], a incidência do ICMS;

b) veículo de uma prestação de serviço. Quando personalizado e distribuído sob encomenda ou pedido específico. Aqui, o arquivo é simplesmente um meio ou instrumento do serviço prestado. Neste caso, cabível, em tese [16], a incidência do ISS.

A situação-problema apresentada suscita um dos mais estratégicos e delicados dos dramas tributários dos tempos atuais. Com efeito, subsiste sem resposta conclusiva ou satisfatória a pergunta de como identificar, de forma segura, a operação comercial envolvendo a mercadoria virtual ou eletrônica. Em outras palavras, como identificar a ocorrência do fato gerador no chamado comércio eletrônico próprio?

As considerações mais significativas sobre o tema buscam em terceiros, em intermediários, a exemplo das operadoras de cartões de crédito, a possível solução para o problema da identificação da ocorrência do fato gerador [17]. A principal fragilidade desta solução reside nas formas alternativas de pagamento adotadas com freqüência crescente, notadamente as transferências diretas de fundos entre comprador e vendedor.

Vislumbramos, em dois rumos, a solução para a dificuldade apresentada. São eles: a) identificação da operação a partir dos pagamentos contabilizados em contas bancárias especificamente abertas para este fim e b) marcação eletrônica dos arquivos utilizados viabilizando a identificação dos downloads [18] realizados.

Os dois esboços de soluções nutrem-se da possibilidade de fixação de obrigações acessórias em benefício da fiscalização e da arrecadação tributárias. As obrigações acessórias, previstas no art. 113, parágrafo segundo, do Código Tributário Nacional [19], são aquelas obrigações de fazer ou não-fazer distintas da obrigação de dar (pagamento) própria da obrigação principal.

Importa considerar que os conteúdos das obrigações acessórias devem ser ajustados às exigências da fiscalização nos novos tempos de império das formas eletrônicas. Assim, as obrigações acessórias já foram preponderantemente exigências relacionadas com a apresentação de documentos (físicos). Agora, com o avanço das formas eletrônicas de comercialização, nada impede, aliás, tudo aconselha, uma adaptação das exigências qualificadas como obrigações acessórias para viabilizar a efetividade da tributação neste meio.


VI. Conclusões

Na revolução em curso, condutora da "Sociedade da Informação" vivenciada nas últimas décadas, a separação entre a informação e seu substrato material ocupa lugar de destaque.

No campo da tributação, alguns conceitos assumem papel de fundamental importância. São eles: bem, coisa, mercadoria, produto, serviço, comércio, circulação e operação.

A "desmaterialização de conceitos", fenômeno de extrema relevância nos tempos modernos, impõe a supressão do traço de tangibilidade presente em conceitos tradicionais.

Mercadorias (e produtos) perdem os traços conceituais de materialidade por conta: a) de serem espécies de um gênero (coisa ou bem) que não exige a tangibilidade como característica essencial e b) do avanço tecnológico que viabiliza o surgimento de mercadorias (e produtos) desprovidos de tangibilidade.

A idéia de "mercadoria virtual" não afronta a delimitação material de competência tributária posta na Constituição porque não se configura como possível arbítrio do legislador, e sim, como adequação do conceito a uma nova realidade econômico-social.

O problema, central nas preocupações jurídico-tributárias, de identificação da ocorrência de circulação da mercadoria virtual, apoiado na possibilidade de fixação de obrigações acessórias e afastando-se da tentativa de utilizar intermediários (a exemplo das operadoras de cartão de crédito), deve buscar resolução em dois rumos: a) contabilização dos pagamentos em contas bancárias especificamente abertas para este fim e b) marcação eletrônica dos arquivos utilizados em downloads.


Referências bibliográficas

CASTRO, Aldemario Araujo. Os meios eletrônicos e a tributação. In: Demócrito Reinaldo Filho (Coordenador). Direito da Informática. Temas Polêmicos. Bauru, SP: EDIPRO, 2002.

DERZI, Misabel Abreu Machado. Limitações Constitucionais ao Poder de Tributar (atualização). 7 ed. Rio de Janeiro: Forense, 1997.

DRUCKER, Peter. Sociedade Pós-Capitalista. São Paulo: Pioneira Thomson Learning, 2002.

GOUVÊA, Sandra. O Direito na Era Digital. Crimes Praticados por meio da Informática. Rio de Janeiro: Mauad, 1997.

GRECO, Marco Aurelio. Internet e Direito. São Paulo: Dialética, 2000.

QUEIRÓZ, Regis Magalhães Soares de. Assinatura Digital e o Tabelião Virtual. In: Direito e Internet. Aspectos Jurídicos Relevantes. Bauru, SP: EDIPRO, 2000.

SOETE, Luc e WEEL, Bas Ter. Globalização, erosão fiscal e Internet. In: Revista AFRESP de Tributação. Ano II. N. 4. Outubro/Dezembro de 1998.


Notas

01 "O uso da expressão ''revolução'' pode parecer hiperbólico, mas faz jus à enorme evolução - já experimentada e em vias de se expandir - nas relações comerciais proporcionadas pelo advento da Internet, tanto que foi utilizada pelo documento oficial produzido pelo Departamento de Comércio dos Estados Unidos, denominado Emerging Digital Economy (capítulo I, The digital revolution, págs. 3/7); e também na Comunicação ao Parlamento Europeu, ao Conselho, ao Comitê Econômico e Social e ao Comitê das Regiões, de 15.4.1997, intitulada ''Uma iniciativa européia para o comércio electrónico'' (COM (97) 157). Como os documentos oficiais costumam ser ''econômicos'' quanto ao uso de expressões grandiloqüentes, achamos que a utilização do termo era compatível (diante da realidade que se nos apresenta), com o objetivo do presente estudo." QUEIRÓZ, Regis Magalhães Soares de. Assinatura Digital e o Tabelião Virtual. In: Direito e Internet. Aspectos Jurídicos Relevantes. Bauru, SP: EDIPRO, 2000, p. 373.

"O ponto de partida desta análise é a constatação de uma revolução que está acontecendo no mundo atual. Revolução mais do que de natureza técnica, revolução ligada ao próprio padrão da civilização ocidental. A civilização está se alterando em sua concepção básica./Esta revolução pode ser resumida no reconhecimento de que estamos passando ''dos átomos para os bits''". GRECO, Marco Aurelio. Internet e Direito. São Paulo: Dialética, 2000, p. 16.

"Enfim, graças ao desenvolvimento tecnológico, verificou-se uma mudança radical nas sociedades modernas. Assim como a roda representou a maior invenção da civilização primitiva, o computador revolucionou a civilização moderna, desencadeando a Revolução da Informação e a Era Digital. (...) Enfim, não há mais dúvida de que o mundo está passando por uma mudança radical. Os hábitos, conceitos e valores da humanidade estão sendo transformados em um processo que se pode chamar de The Bit Bang!". GOUVÊA, Sandra. O Direito na Era Digital. Crimes Praticados por meio da Informática. Rio de Janeiro: Mauad, 1997, pp. 39 e 40.

02 "Mas a enumeração da matéria, que configura os conceitos de instituir e aumentar tributo, apenas nos introduz em uma lona série de problemas que a prática jurídica revela, uma vez que o legislador, necessariamente, se utilizará de generalizações, abstrações conceituais, quantificações e presunções, ao disciplinar os tributos que compõem o sistema tributário nacional./Essas generalizações e abstrações de que se socorre o legislador formam tipos ou conceitos? (...) A generalidade e a abstração, inerentes ao tipo e ao conceito, estão a serviço, como já anotou N. Bobbio, de princípios e valores jurídicos. (...) o conceito, no sentido aristotélico de ‘essência’ da coisa, une os objetos em classe pela identidade e distingue-os segundo diferença de espécie, mas sempre tem como pressuposto a idéia de que o conceito mais específico e menos geral estará contido naquele superior e mais amplo da mesma classe./Igualmente o tipo ordena o conhecimento segundo as saemelhanças e dissemelhanças encontráveis nos indivíduos, mas abole o rigor da identidade e admite as transições fluidas, a comparação e a gradação entre diferentes ordens. (...) Tanto o conceito abstrato classificatório como tipo servem a princípios jurídicos. Quando se pergunta como alternativa excludente: conceito ou tipo?, a rigor, se está pretendendo uma opção entre determinados valores e princípios jurídicos. (...) A Teoria Geral e a Ciência do Direito foram fortemente influenciadas pelo conceito geral abstrato, classificatório. Segundo a Lógica tradicional, a abstração conceitual, desencadeada pela percepção sensível de um objeto concreto (cujas peculiaridades ou determinações múltiplas nele se ‘uniram’, possibilitando o seu existir concreto), vem a ser o processo pelo qual se dá a separação, a percepção isolada e, ao mesmo tempo, a denominação e a determinação genérica das características do objeto. Será omitido aquilo que não for considerado essencial para a regulamentação jurídica. (...) O conceito menos geral pertence ao gênero do mais abrangente. O menos abrangente denomina-se espécie, e aquilo que diferencia uma espécie de outras, situadas sob um mesmo gênero, designa-se por ‘diferença de espécie’. Definir será determinar um gênero a um conceito e acrescentar a diferença de espécie (...)./ Só um conceito geral abstrato se deixa definir, pois, para isso, é necessário fixá-lo através de determinadas características. Se o conceito A possui as notas ‘a, b, c’, na investigação jurídica, somente se afirma o conceito A, se o conceito do fato contiver as mesmas características ‘a, b, c’. Diz-se, então, que há subsunção. Para o conceito de classe vale a proposição lógica do terceiro excluído: ‘cada X é A ou não-A’. Tertium non datur. Não tem cabida aqui o mais ou menos, mas a relação de exclusão ‘ou um.. . ou outro’. Porque ou o conceito do objeto corresponde integralmente às características do conceito abstrato nele se subsumindo, ou não. (...) Contra o pensamento limitador do conceito classificatório, o tipo surgiu como nova proposta, uma ordem mais adequada para captar as fluidas transições da vida. (...) O conceito de classe é definido em um número limitado e necessário de características. Entretanto, o tipo não é definido, mas apenas descrito, suas características não são indispensáveis, sendo que algumas delas podem faltar. Ele está na imagem geral, na visão ou intuição do total. A comparação entre o tipo construído ou imaginado e o fato ‘típico’ sucedido deve procurar compreender a ‘totalidade’ da realidade. Com isto, o tipo é mais concreto e rico de conteúdo que o conceito, e a investigação jurídica consuma-se por meio da ordenação (e não da subsunção), da comparação e da analogia. (...) Há quem fale em tipos abertos e tipos fechados. O tipo fechado não se distingue do conceito classificatório, pois seus limites são definidos e suas notas rigidamente assentadas. (...) No entanto, como nova metodologia jurídica, em sentido próprio, os tipos são abertos, necessariamente abertos, com as características que apontamos. Quando o Direito ‘fecha’ o tipo, o que se dá é a sua cristalização em um conceito de classe./Neste contexto, a expressão ‘tipo fechado’ será uma contradição e uma impropriedade. (...) Indagar se o Direito Tributário contém tipos ou conceitos fechados, como alternativas que se excluem, parece-nos inadequado. O certo será indagar pala predominância de uma ou outra forma de pensamento. (...) Na verdade, os penalistas, em especial latino-americanos, denominam de tipo ou conceito determinado e fechado, forma de pensamento que já cuidamos de distinguir. Usam a expressão tipo no sentido não-técnico e designam por tipicidade o princípio segundo o qual a norma deve descrever os delitos e os tributos, descendo a especificações que permitam ao intérprete e aplicador da lei determinar com precisão os fatos jurígenos e suas conseqüências. A lei, pois, não se deve valer de conceitos indeterminados, amplamente abstratos ou ambíguos, mas utilizar conceitos determinados especificantes./Onde quer o legislador reforçar a segurança jurídica, impõe a legalidade material absoluta. A norma legal colhe então o tipo (socialmente aberto) modelando-o e fechando-o em conceitos determinados. A rigor, o conhecido princípio da ‘tipicidade’, no Direito Penal e no Direito Tributário, cede lugar ao da especialidade ou especificidade conceitual. (...) Em certos setores jurídicos (como no Direito Penal, no Direito Tributário e no Direito Civil, na parte relativa aos direitos reais) prevalecem os conceitos fechados, enquanto em outros (no Direito Civil, nas normas relativas a contratos e negócios jurídicos) encontra-se largo espaço aos tipos". DERZI, Misabel Abreu Machado. Limitações Constitucionais ao Poder de Tributar (atualização). 7 ed. Rio de Janeiro: Forense, 1997, pp. 118-130.

03 "REPRESENTAÇÃO. INCONSTITUCIONALIDADE DA LEI N. 4.418, DE 27.12.82, DO ESTADO DE ALAGOAS, QUE DEFINE FATO GERADOR DE ICM, DE MODO A DETERMINAR A SUA INCIDÊNCIA EM RAZÃO DO SIMPLES DESLOCAMENTO DE INSUMOS DESTINADOS A COMPOSIÇÃO DO PRODUTO, NA MESMA EMPRESA. PRECEDENTES DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL - REPRESENTAÇÃO N. 1.181, DO PARÁ; REPRESENTAÇÃO N. 1.355 DA PARAÍBA; REPRESENTAÇÃO N. 1.292, DE MATO GROSSO DO SUL. INCONSTITUCIONALIDADE DO PARÁGRAFO 2º DO ART. 264, DA LEI N. 4.418/82, E DO ART. 375 E SEU PARÁGRAFO ÚNICO DO DECRETO N. 6.148/84, POR VIOLAÇÃO DO ART. 23, INCISO II, DA LEI MAGNA." (STF. Pleno. Unânime. Representação n. 1.394-AL. Rel. Min. DJACI FALCÃO. DJ de 25.09.87)

04 "O recurso econômico básico – ‘os meios de produção’, para usar uma expressão dos economistas – não é mais o capital, nem recursos naturais (a ‘terra’ dos economistas), nem a ‘mão-de-obra’. Ele é e será o conhecimento. As atividades centrais de criação de riqueza não serão nem a alocação de capital para usos produtivos, nem a ‘mão-de-obra’ – os dois pólos da teoria econômica dos séculos dezenove e vinte, quer ela seja clássica, marxista, keynesiana ou neoclássica. Hoje o valor é criado pela ‘produtividade’ e pela ‘inovação’, que são aplicações do conhecimento ao trabalho". DRUCKER, Peter. Sociedade Pós-Capitalista. São Paulo: Pioneira Thomson Learning, 2002, p. XVI.

05 "Historicamente os bens que as pessoas consumiam eram físicos, motivo pelo qual a produção, distribuição e consumo desses bens era facilmente tributável. (...) Bens intangíveis vendidos via Internet são típicos bens de informação: o custo relativo para se providenciar uma nova unidade é próximo de zero. (...) Considerando, ademais, a desnecessidade de entrada de novas unidades de bens, os agentes do fisco acabam não tendo como proceder ao confronto entre entradas e saídas. (...) A Internet também reduz o papel dos intermediários porque o consumidor pode contatar diretamente o fabricante da mercadoria que deseja adquirir. (...) O problema da tributação dos serviços de informática advém do fato de que as normas tributárias foram desenvolvidas vinte anos atrás". SOETE, Luc e WEEL, Bas Ter. Globalização, erosão fiscal e Internet. In: Revista AFRESP de Tributação. Ano II. N. 4. Outubro/Dezembro de 1998. pp. 54 e 55.

06 A análise ou estudo do tipo penal do furto, consagrado no art. 155 do Código Penal, é riquíssima de significados. Com efeito, a ação ou conduta criminosa consiste em subtrair coisa alheia móvel. A marca da tangibilidade do bem sobre o qual recai a ação criminosa fica patente nos termos "subtrair", "coisa" e "móvel". Temos, para confirmar esta conclusão, o parágrafo terceiro do mesmo artigo estabelecendo taxativamente, porque não compreendido no caput, o furto de energia elétrica, algo desprovido de materialidade, consagrada como padrão.

07 Afirmou o Ministro Sepúlveda Pertence, como relator, no julgamento do RE n. 176.626: "Estou, de logo, em que o conceito de mercadoria efetivamente não inclui os bens incorpóreos, como os direitos em geral: mercadoria é bem corpóreo objeto de atos de comércio ou destinado a sê-lo". Reafirmou em passagem posterior: "... bem incorpóreo sobre o qual, não se cuidando de mercadoria, efetivamente não pode incidir o ICMS;.. ."

08 Art. 191 do Código Comercial: "O contrato de compra e venda mercantil é perfeito e acabado logo que o comprador e o vendedor se acordam na coisa, no preço e nas condições; e desde esse momento nenhuma das partes pode arrepender-se sem consentimento da outra, ainda que a coisa se não ache entregue nem o preço pago. Fica entendido que nas vendas condicionais não se reputa o contrato perfeito senão depois de verificada a condição (artigo nº. 127).

É unicamente considerada mercantil a compra e venda de efeitos móveis ou semoventes, para os revender por grosso ou a retalho, na mesma espécie ou manufaturados, ou para alugar o seu uso; compreendendo-se na classe dos primeiros a moeda metálica e o papel moeda, títulos de fundos públicos, ações de companhias e papéis de crédito comerciais, contanto que nas referidas transações o comprador ou vendedor seja comerciante."

09 Michaelis Moderno Dicionário da Língua Portuguesa em http://www.uol.com.br/michaelis.

10 No mesmo sentido, quanto à necessidade de tributar o comércio eletrônico para o financiamento dos serviços públicos: Jeffrey Owens no texto "O comércio electrónico e a fiscalidade", apresentado na Conferência Técnica do CIAT realizada na Cidade do Porto - Portugal.

11 "Art. 110. A lei tributária não pode alterar a definição, o conteúdo e o alcance de institutos, conceitos e formas de direito privado, utilizados, expressa ou implicitamente, pela Constituição Federal, pelas Constituições dos Estados, ou pelas Leis Orgânicas do Distrito Federal ou dos Municípios, para definir ou limitar competências tributárias."

12 O Supremo Tribunal Federal entendeu inconstitucional a ampliação da base de cálculo da COFINS e do PIS pela Lei n. 9.718, de 1998. Houve, segundo o STF, ampliação indevida do conceito de receita bruta para toda e qualquer receita, violando, assim, a noção de faturamento veiculada no art. 195, inciso I, alínea "b", da CF, na redação anterior à Emenda Constitucional n. 20, de 1998. Na visão do STF, o conceito de faturamento equivalia ao de receita bruta das vendas de mercadorias, de mercadorias e serviços e de serviços de qualquer natureza (RE n. 357.950 e RE n. 346.084).

13 Reclamando, para o raciocínio jurídico mais rigoroso, a edição de emenda constitucional.

14 O comércio, a compra e venda, ou em sentido mais amplo, a circulação de bens ou serviços é uma das principais, talvez a principal, manifestação econômica desde os primórdios da história da humanidade. Houve, ao longo do tempo, por força das mudanças sociais, econômicas e tecnológicas, tão-somente mudanças nas formas de "negociar" e nos objetos das transações.

15 Atualmente, com as regras constitucionais e legais vigentes, sustentamos que as operações do chamado comércio eletrônico próprio estão fora do campo da tributação.

Não encontramos obstáculos intransponíveis na delimitação constitucional de competência tributária. Advogamos que o desenho constitucional das competências tributárias, assim como as normas uniformizadoras dos tributos incidentes sobre o comércio de bens e serviços, entendidos e aplicados segundo as necessidades de um novo momento histórico e seus paradigmas estruturantes, viabilizam a ação institucional do legislador tributário no sentido de fixar novas hipóteses de incidência ajustadas aos tempos modernos.

Salientamos, no entanto, como algo imprescindível para a viabilidade jurídica da tributação do comércio eletrônico próprio ou direto, a veiculação de um conjunto de normas tributárias voltadas para especificidade deste novo campo de atividades. Não se trata de mera questão de conveniência ou adequação. Trata-se de um imperativo jurídico inafastável.

Neste sentido, o art. 146 da Constituição Federal reclama a edição de lei complementar para prevenir e solver conflitos de competência em matéria tributária entre os entes da Federação. Neste rumo, o Supremo Tribunal Federal, por unanimidade, ao julgar a Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 633, entendeu que "o adicional de imposto de renda, de que trata o inciso II do art. 155, não pode ser instituído pelos Estados e Distrito Federal, sem que, antes, a lei complementar nacional, prevista no "caput" do art. 146, disponha sobre as matérias referidas em seus incisos e alíneas, não estando sua edição dispensada pelo parágrafo 3. do art. 24 da parte permanente da Constituição Federal, nem pelos parágrafos 3., 4. e 5. do art. 34 do A.D.C.T." Assim, a existência ou não do estabelecimento virtual, suas características tributárias mais agudas, notadamente sua exata localização e, por via de conseqüência, o local onde ocorrem as operações comerciais, ensejam múltiplas possibilidades, dependendo do critério jurídico adotado. Neste contexto, não cabe definição unilateral por qualquer ente da Federação, e sim, a edição da lei complementar prevista pelo constituinte.

Por outro lado, segundo as mais abalizadas construções tributárias, a regra-matriz de incidência possui critérios ou aspectos que, sob o influxo do princípio constitucional da legalidade, reclamam escolha específica. No lado da hipótese, os critérios ou aspectos material (o fato em si), espacial (condições de lugar) e temporal (condições de tempo) devem ser estabelecidos pelo legislador captando as especificidades e as novidades do mundo eletrônico. Da mesma forma, na parte do conseqüente normativo, os critérios ou aspectos pessoal (a quem pagar e quem deve pagar) e quantitativo (quanto pagar) também exigem os "ajustes" devidos.

Em suma, os conceitos estruturais em matéria tributária, constitucionais ou não, viabilizadores da incidência fiscal sobre as manifestações econômicas de capacidade contributiva exigem, em nome do atendimento das necessidades de financiamento das ações estatais de interesse público, a pertinente adequação aos novos paradigmas históricos, notadamente quando estes apontam claramente para a substituição dos anteriores. Já a regulação dos conflitos de competências tributárias e a veiculação das hipóteses de incidência, em todos os seus aspectos componentes, reclamam a ação do legislador.

16 Ver nota 14.

17 "O esquema básico representativo do comércio via Internet permitiu demonstrar a viabilidade da instituição de um imposto sobre essa modalidade de negócio. Os problemas de implementação serão por certo superados se os Provedores de Serviço da Internet ou os Provedores de Pagamento forem compelidos a assumir a função de arrecadadores do imposto". SOETE, Luc e WEEL, Bas Ter. Globalização, erosão fiscal e Internet. In: Revista AFRESP de Tributação. Ano II. N. 4. Outubro/Dezembro de 1998. p. 73.

18 Operação de trazer um arquivo de um servidor remoto para o computador local, popularmente conhecida como "baixa". É o oposto do "upload", que consiste em enviar um arquivo do computador local para um servidor remoto.

19 "Art. 113. A obrigação tributária é principal ou acessória./§ 1º A obrigação principal surge com a ocorrência do fato gerador, tem por objeto o pagamento de tributo ou penalidade pecuniária e extingue-se juntamente com o crédito dela decorrente./§ 2º A obrigação acessória decorre da legislação tributária e tem por objeto as prestações, positivas ou negativas, nela previstas no interesse da arrecadação ou da fiscalização dos tributos./ § 3º A obrigação acessória, pelo simples fato da sua inobservância, converte-se em obrigação principal relativamente à penalidade pecuniária."


Autor

  • Aldemario Araujo Castro

    Advogado Procurador da Fazenda Nacional. Professor da Universidade Católica de Brasília - UCB. Mestre em Direito pela Universidade Católica de Brasília – UCB. Ex-Conselheiro Federal da Ordem dos Advogados do Brasil – OAB (pela OAB/DF) Ex-Corregedor-Geral da Advocacia da União (AGU)

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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CASTRO, Aldemario Araujo. Mercadoria virtual: aspectos tributários relevantes. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 11, n. 989, 17 mar. 2006. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/8095. Acesso em: 29 mar. 2024.