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O magistrado e as audiências judiciais.

Para uma aplicabilidade judicial da Teoria da Justiça de Rawls e da Legitimação pelo Procedimento de Luhmann

O magistrado e as audiências judiciais. Para uma aplicabilidade judicial da Teoria da Justiça de Rawls e da Legitimação pelo Procedimento de Luhmann

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I – Localizando o Autor

O conhecimento jurídico está limitado aos termos consignados nos autos processuais, daí a frase: "o que não está nos autos, não está no mundo". Dessa forma limita-se o conhecimento dos juristas ao que constar nas páginas do processo judicial. Acontece que, antes de realizado qualquer ato processual, cada componente da relação processual - parte autora, parte ré e o Estado-Juiz - tem o poder de decidir o que constar ou não nos autos do processo.

Os advogados têm o poder de definir o que expor e o que não expor em suas petições, assim, servem de filtro às informações a serem conhecidas por todos. Os magistrados, todavia, têm o poder de mandar produzir provas, poder este que, mesmo diante das limitações fáticas, bem explorado pode servir para esclarecer questões fáticas, as quais exercerão forte influência na formação de sua livre convicção.

Não pode o magistrado deixar de julgar, porém compete-lhe julgar segundo sua convicção. Este não deve provir de opiniões pessoais, mas de elementos contidos no processo judicial. A construção desta convicção é livre, não porque possa o juiz julgar como quiser, mas porque ele não está submisso a qualquer prova, antes, tem plena liberdade para apresentar na sentença quais os fundamentos que o levaram a tomar a decisão final. Eis aí o espaço à busca de uma justiça através do direito.

É sabido que a palavra justiça não goza de uma definição objetiva, nem dispõe de conteúdo preciso o suficiente para transmitir a todos um sentido único, todavia, isso não significa que não exista. É certo que nós seres humanos não dispomos de uma fórmula para objetivarmos a justiça, contudo, dispomos de um elemento, ainda não trabalhado cientificamente, por falta de meios e métodos para tal, que nos permite conhecer genericamente, movendo-nos, provocando nossas reações e instigando nossas escolhas. Este elemento é o que a corrente de psicologia cognitiva, a gestalt, trata por capacidade de perceber o todo, ou seja, formamos imagens genéricas no subconsciente capazes de reportar-nos à percepção do objeto, por isso conseguimos identificar várias espécies a um mesmo gênero.

Justiça é uma palavra que não comporta um único significado, é vaga, todavia transmite uma noção, um sentido que não se reduz às opiniões pessoais, à percepção de cada um; ela representa expectativas de comportamentos, maneiras socialmente esperadas de agir, ou ainda, o mínimo de ética que se espera no convívio social. Daí que, mesmo em situações de processo social dissociativo - como a competição, o conflito, a oposição (Fichter, 1967: 268; Lerner, 1976: 205; Ogburn e Nimkoff, 1976: 236; Souto, 1985: 85-94; Wiese, 1976: 212) -, uma das partes divergentes concorda que determinada solução seja a mais justa, mesmo não sendo a melhor para ela. Assim, cabe trabalhar os mecanismos, que se dispõe atualmente, capazes de produzir este estado de justiça.

Nosso objetivo, com este texto, portanto, é provocar reflexões em torno da atividade do magistrado nas audiências, principalmente em relação ao exercício de seu poder de indeferir perguntas, bem como de agir não como administrador, mas como poder autoritário, quando se nega, p. ex., a consignar na ata da audiência o ocorrido.

Para isso, recorremos à teoria da justiça de John Rawls e à teoria da legitimação pelo procedimento de Niklas Luhmann.


II - As Audiências como Objeto de Estudo Sociológico Jurídico

Tendo por um dos maiores problemas a morosidade processual, realizaram-se reformas no direito processual brasileiro. Dentre as reformas já realizadas, interessa-nos a institucionalização dos Tribunais de Pequenas Causas, com a Lei 9.099, de 26/09/95 - onde prima o princípio da oralidade, desde o ajuizamento da demanda judicial, bem como a conciliação desde a audiência de conciliação até a audiência de instrução e julgamento - e a reforma do Código de Processo Civil Brasileiro (CPC), pela Lei 8.952, de 14/12/94, quando modificou-se o conteúdo do art. 331, do CPC, substituindo a designação da audiência de instrução e julgamento por uma audiência de conciliação.

Nossa preocupação não é com a sistematicidade do CPC, antes, interessa-nos a forma como vêm sendo realizadas as audiências judiciais. Um dos aspectos indispensáveis é o despreparo dos conciliadores (Junqueira, 1993: 100), por afetar a perspectiva do direito como instituição responsável por digerir, administrar e dirimir os conflitos intersubjetivos (inter = entre; subjetivo = pessoas) de interesses.

Tratar as audiências judiciais sob o prisma da sociologia do direito significa, então, abordar a possibilidade de se atribuir ao direito o papel de gestor de um convívio social, não sem conflitos, mas com seus conflitos gerenciáveis, de forma a promover maior aproximação, ao invés de afastamento, entre as pessoas (Souto, 1981: 101; Souto, 1987: 2; Souto, 1992: 43; Souto, 1997: 22). Para isso deposita-se no bom senso a perspectiva de se aferir objetivamente (como veremos na metodologia intuicionista de Rawls) o como aplicar o direito estatal como instrumento promotor da coesão e não descoesão entre os seres humanos. Para isso, atribui-se a todo magistrado a capacidade de verificar, assim como todo ser humano, como gerir maior segurança nas relações sociais, ao invés de instigar o desprezo e a vingança privada, a justiça com as próprias mãos, muitas vezes resultado de uma reação revoltada contra a morosidade processual.

Não ignora-se o prisma subjetivo desta posição, porém, qual concepção de mundo jurídico não está eivada de elementos subjetivos? Isto, porém, não se confunde com a perspectiva jusnaturalista de lançar os magistrados à arbitrariedade, mas o reconhecimento de que não dispomos de métodos e fórmulas à previsibilidade de um conteúdo às decisões judiciais. Acontece que quanto maior a abertura cognitiva do magistrado ao conhecimento dos dados fáticos, maior segurança na decisão a ser proferida, ou seja, quanto maior a ascese erótica - combinação entre razão e emoção, entre compreender e querer compreender (Adeodato, 1996, 85) - maior a probabilidade de se tomar uma decisão que venha a promover aproximação entre os seres humanos.

A forma como as audiências judiciais são realizadas transforma-a num campo de batalha onde a estratégia prevalece em detrimento de se procurar esclarecer os elementos fáticos. O direito, assim utilizado, não exerce as funções de promover uma justiça social e legitimar as decisões finais, antes consolida as regras pré-estabelecidas do jogo, pouco importando seu conteúdo (Adeodato, 1989: 55). Evitando-se a participação das partes litigantes nestas audiências, o jogo se limita à participação dos agentes jurídicos e, com isso, exclui-se uma gama de informações extremamente indispensáveis, porque úteis ao esclarecimento dos fatos. Fatores como a falta de profissionalismo das testemunhas e a falta de "ensaio" são capazes de conduzir à perda da ação judicial, sinal de que o direito cada vez mais afasta-se do âmbito social, da realidade social, passando a depender dos artifícios e da destreza de cada jogador.

Para em estudo destas questões, recorremos à teoria da justiça como equidade proposta por John Rawls e às idéias da legitimação pelo procedimento de Niklas Luhmann.

Pela impossibilidade de desenvolver uma teoria substantiva da justiça baseada em verdades lógicas e em definições (Rawls, 1986: 60), Rawls, defende que a teoria da justiça como equidade é uma teoria dos nossos sentimentos morais, na forma como se manifestam através dos nossos juízos refletidos e ponderados, obtidos em equilíbrio refletido (Rawls, 19: p.110). Por juízos ponderados, entende-se aqueles em que nossas capacidades morais podem se manifestar sem distorção, corresponde à nossa verdadeira moral (Rawls, 1986: 58); já os juízos refletidos são as revisões que fazemos de nossos próprios juízos, é quando repensamos nossa moral conformando-a aos princípios dessa análise, construímos uma teoria mesmo que esta não coincida com os juízos efetivos (Rawls, 1986: 59); e o equilíbrio refletido é o resultado da análise dos juízos ponderados com os refletidos (Rawls, 1986: 59). Uma decisão judicial será, portanto, mais justa quanto mais se aproximar dos juízos refletidos, por isso, não resta ao aplicador do direito reportar-se exclusivamente aos preceitos legais, assim como não devem recorrer aos seus preconceitos. A primeira atitude deve ser procurar abstrair-se das idéias pré-concebidas, levantando o máximo de dados possíveis.

Ao propor sua Teoria da Justiça como Equidade, John Rawls afirma que esta é apenas uma das formas de conceber a justiça e não a única, em seguida afirma que, por isso, sua teoria contém erros. Mesmo assim admitindo e considerando que a verdadeira questão é saber qual das leituras propostas constitui a melhor aproximação da justiça (1986: 61), este autor diz que "a única justificativa para mantermos uma teoria errada é a falta de uma alternativa melhor; uma injustiça só é tolerável quando serve para justificar uma injustiça ainda maior" (Rawls, 1986: 27).

Já Niklas Luhmann diz que "uma estrutura jurídica é legítima na medida em que é capaz de produzir uma prontidão generalizada para aceitação de suas decisões, ainda indeterminadas quanto ao seu conteúdo concreto, dentro de certa margem de tolerância", contudo a legitimação não está na decisão inicial, mas no processo decisório, no procedimento (1980: 3-4).

Antes, porém, rescinde distinguir visões jurídicas diferentes.


III - Correntes Jurídicas Divergentes

A pretensão de monopólio de criação do direito por parte do Estado ocasionou a teoria da completude do ordenamento jurídico, com a previsão de todo e qualquer o conflito social, desde que juridicamente admitido, e a obrigatoriedade de os magistrados decidirem todos os litígios, fundamentando-os em textos legais (Adeodato, 1989: 53-55; Adeodato, 1992: 211; Weber, 1996: 27 e 508). Assume, então, a dogmática jurídica o status de única ciência do direito e reduz-se o mundo jurídico ao direito estatal. As fontes do direito são apenas as legalmente, por que legisladas, previstas. Busca-se apresentar um modelo hermenêutico como método de interpretação e aplicação do direito estatal, aquele posto pelo Estado. Nesta perspectiva, pretende-se atribuir à atividade jurisdicional a atividade de reconhecer direitos. Para concretização deste modelo, propõe-se métodos próprios à interpretação e aplicação do direito estatal, ou seja, elaboram-se modelos de interpretação: filológica ou gramatical, lógica, histórica e sistemática. (Betti, 1955: 801-66; Ferraz Jr. 1994: 287-93; Machado, 1997: 75-6; Barroso, 1996: 119-39; Paula Batista, 1986: 10-14).

Como a realização da atividade prática forense revelou a insuficiência da letra da lei como critério único às tomadas de decisões judiciais, surgiram autores sustentando que direito não são as leis emanadas do Legislativo, mas apenas aqueles textos legais aplicados (efetivamente utilizados) pelos magistrados e tribunais. Direito não são as normas válidas, estagnadas nas leis, mas as normas eficazes, aquelas aplicadas pelo Poder Judiciário. Referimo-nos à concepção que trata da eficácia jurídica, o movimento do realismo jurídico (Adeodato, 1989: 64-65; Alf Ross, 1977: 105-51; Alf Ross, 1982: 138; Alf Ross, 1961: 23; Massini, s.d.: passin).

Destes distinguem-se os chamados sociólogos do direito, os quais, preocupados com o afastamento do direito em relação à sociedade, trabalham a eficácia social, ou seja, a coesão social aos preceitos legais, a reação do comportamento social perante as leis. Divulgam-se pesquisas que revelam a existência de normas sociais, por vezes mais eficazes que as impostas pelo Estado, para dirimir os conflitos sociais, por guiar os comportamentos. Fala-se em direito vivo, com Eugen Ehrlich, na Alemanha (Ehrlich, 1986: 373-88; Treves, 1993:112-17) e em direito livre, como na escola da livre investigação do direito de François Gény, na França (Azevedo, 1991: 5-19; Treves, 1993:118-20). Nem por isso eles, realistas e sociólogos, deixam de defender a indispensabilidade do direito estatal como forma de controle social, todavia sustentam um mundo jurídico mais amplo que o estatal, pois este último é apenas uma das formas de manifestação do fenômeno social jurídico.

O dogmatismo reage a estas posturas acusando-os de lançarem a sociedade à insegurança ao porem em "cheque" o direito estatal e, consequentemente, sua certeza. Com base no argumento de que a segurança da sociedade provém das prescrições normativas, sustentam que elas garantem, por serem modelos de comportamento, as expectativas de cada um, pois permitem prever-se os comportamentos alheios. Assim, frustradas as expectativas, recorre-se ao Poder Judiciário requerendo a restauração da situação de equilíbrio social. Acontece que o "marketing" dogmático da certeza do direito estatal só tem lugar àqueles que restringem seu conhecimento às leituras apressadas ou à informação do "ouvi dizer". Em nenhum escrito os realistas nem os sociólogos proclamam o fim do direito estatal, antes pretendem auxiliá-lo.

Fique evidenciado, portanto, que essas correntes são contrárias, mas não contraditórias, ao dogmatismo e não ao positivismo jurídico. Elas nada mais fazem que evidenciar a insuficiência de as decisões judiciais serem tomadas com base restrita aos textos legislativos, pois inúmeros são os casos concretos em que o magistrado vê-se entre alternativas à decisão, inclusive devido à ambigüidade e vagueza dos textos legais (Reale, 1994: 23 e 25). Daí, ordenamentos jurídicos, como o brasileiro, acatam meios de integração do direito, como a analogia, os princípios gerais do direito e a equidade, como prevê a Lei de Introdução ao Código Civil Brasileiro (Decreto-Lei 4.657, de 4 de setembro de 1942); amplia-se assim a perspectiva da formação do livre convencimento do juiz.

Como é indispensável uma instância interpretativa, pois além da ambigüidade e da vagueza, há a possibilidade de mais de norma jurídica estatal servir de norte à solução de um caso concreto, infere-se que a decisão judicial será mais segura quanto maiores informações, não só sobre as prescrições legais, mas também quanto aos dados fáticos.


IV - Metodologia Intuicionista

Rawls formula a teoria da justiça como equidade afastando-se do utilitarismo clássico, do perfeccionismo e do contratualismo, todavia, por meio do método intuicionista aproveita questões utilitaristas e contratualistas.

4.1. O Intuicionismo (raciocínio hipotético e idéia intuitiva)

Intuicionismo é a doutrina que afirma haver um grupo irredutível de princípios, os axiomas, os quais devem ser comparados entre si, determinando o mais justo equilíbrio entre eles. Suas duas características são (Rawls, 1986: 39): pluralidade de primeiros princípios que podem entrar em conflito no fornecimento de diretivas diante de situações concretas; e não incluir um método explícito, nem regras capazes de determinar a ponderação desses princípios, admite-se, porém, o estabelecimento de um equilíbrio, através da intuição, por meio do que nos parece mais próximo do justo.

Caso se reconheçam regras de prioridade, estas são consideradas triviais, não fornecendo um auxílio útil para atingir uma decisão. Por exemplo, a dicotomia agregação/distribuição contém dois princípios: o primeiro é produzir um bem maior, no sentido de maior equilíbrio de satisfação (modelo da utilidade); o segundo, distribuir de modo igual a satisfazer as necessidades, limitando a acumulação do bem estar por agregação e igualizando a distribuição dos benefícios (padrão de justiça). Esta concepção é intuicionista porque não fornece qualquer regra de prioridade para determinar como é que estes dois princípios são ponderados. (Rawls, 1986: 50-1 e 237).

Estudos de psicologia social revelam mecanismos de construção de uma padronização social das idéias de justiça (Rumiati, 1990: passim; ). Recorre-se ao intuicionismo acusando-se a falta de uma metodologia específica à constatação dos sentimentos humanos, todavia, pesquisas vêem sendo realizadas, tanto em psicologia como em sociologia, apresentando dados científicos, baseadas principalmente na observação controlada, na busca de detectar uma padronização ao sentimento de justiça. Não se nega que estamos longe de construir um método capaz de estudar objetivamente a justiça, mas é de se reconhecer que há um sentimento ético básico permanente no ser humano (Souto, 1956: 27, 38-39, 61-62,66-67, 69 ), isto pode não servir como mecanismo capaz de evitar a violência, como a marginalidade e a corrução, contudo, deve-se distinguir o marginal que tem e o que não tem plena consciência de que seus atos não são aprovados socialmente, bem como que são atos contrários ao direito, o qual pode até ser estimulado pelos seus páreas, mas ele sabe muito bem o quanto é recriminado socialmente.

4.2. A Teoria da Moral (sentimento de justiça)

Na teoria da moral a melhor análise do sentido de justiça não é aquela que corresponde aos juízos pré-estabelecidos, mas aquela que se adequa aos seus juízos proferidos em equilíbrio (Rawls, 1986: 59). Para Rawls moral não se subordina a preconceitos, a uma visão pessoal pré-concebida, antes significa nossa capacidade de moldar e modificar nossos juízos morais segundo a situação fática. Moral, assim entendida, não é a formulação de uma perspectiva baseada em princípios irredutíveis, mas a nossa disposição de apreender e ponderar valores conforme as circunstâncias de uma relação social.

Não se fala em moral pré-estabelecida, mas em moral como guia de comportamento, de juízos proferidos segundo se pondere o contexto de uma situação concreta. É aí que Rawls apresenta o intuicionismo como único método capaz de oferecer meios ao estudo da moral, por não comportar convenções metodológicas que forneçam formas de apreensão previamente definidas. Assim sustenta-se a necessidade de uma disposição para revisitar as próprias convicções, o que significa a possibilidade de modificá-las.

A teoria da justiça como equidade fornece princípios da justiça aplicáveis às estruturas sociais de natureza pública, por isso, afasta a questão da moral individual, pessoal. Tendo por instituição "um sistema público de regras que determina funções e posições, fixando, p. ex., os respectivos direitos, deveres, poderes e imunidade" (Rawls, 1986: 63), Rawls distingue as instituições justas das instituições mais importantes. Instituição justa é quando não há discriminações arbitrárias na atribuição dos direitos e deveres básicos e quando as regras estabelecem um equilíbrio adequado entre as diversas pretensões que concorrem na atribuição dos benefícios da vida em sociedade (1986: 29). Já por instituições mais importantes refere-se à constituição política e às principais estruturas econômicas e sociais.

Quanto à sociedade, a visão de Rawls é a do cooperativismo, a de comunidade: um grupo de pessoas com interesses comuns que se unem para melhor atingir seus objetivos. Para a realização desta visão, este autor lança a idéia de sociedade bem ordenada. Para haver justiça impõe-se haja igualdade e liberdade de direitos a todos os cidadãos, o que torna imprescindível a formação de um conjunto de princípios que forneçam os critérios definidores dos "direitos e deveres nas instituições básicas da sociedade e definem a distribuição adequada dos encargos e benefícios da cooperação social. Assim, dir-se-á que a sociedade é bem ordenada quando não só é concebida para aumentar o bem dos respectivos membros"... "trata-se de uma sociedade em que, por um lado, cada um aceita, sabendo que todos também aceitam, os mesmos princípios da justiça, e por outro, em que, no geral, as respectivas instituições básicas satisfazem esses princípios, sendo reconhecidas como tal." (Rawls, 1986: 28; Osborn e Neumeyer, 1936: 455-460).

A imposição de realização dos princípios não se reduz à pretensão de que todos aceitem determinado princípio de justiça, antes prescinde um comportamento à realização do que se entende por justo. Não se deixa de contar com os conflitos sociais e com as divergências de opiniões, todavia admite-se haver uma concepção de justiça comum e aceita por todos, principalmente quando se trata de reconhecer a necessidade de um conjunto de princípios aos direitos e deveres básicos. Na atualidade, não há um raciocínio capaz de substituir a idéia de ser indispensável ao convívio social um sistema normativo condutor da distribuição adequada dos encargos e benefícios para construção da cooperação na sociedade. A padronização, então, não elimina as diferenças sociais, sendo inclusive indispensáveis às mudanças sociais (Souto, 1981: 3 e 10; Souto, 1985: 259-262).

Desse raciocínio, tem-se que, por mais diversas que sejam as concepções de justiça, todos reconhecem que uma instituição é justa quando não há discriminação arbitrária, inclusive porque "a desconfiança e o ressentimento afectam ao laços da civilidade, bem como a suspeição e a hostilidade levam os homens a actuar por formas que normalmente evitariam". (Rawls, 1986: 29). Mas qual o conceito de justiça de Rawls?

4.3. Conceito versus Concepções de Justiça

Rawls distingue conceito de justiça de suas várias concepções, explica que cada membro da comunidade tem uma concepção de justiça, mas todos reconhecem a necessidade de um conjunto específico de princípios para atribuição dos direitos e deveres básicos e para determinação do que se entende ser distribuição adequada dos encargos e benefícios da cooperação em sociedade. Daí se dizer que para a teoria da justiça como equidade o que interessa é a justiça pública.

Conceito é o equilíbrio adequado entre pretensões concorrentes, já concepção é o conjunto de princípios inter-relacionados que permitem a identificação dos aspectos relevantes para a determinação do equilíbrio adequado (Rawls, 1986: 32). Este autor trata a justiça como consenso, asseverando que um consenso sobre as concepções de justiça é uma das condições para uma comunidade viável e que a posição de determinação do justo ou injusto é normalmente objeto de disputas, de forma que os projetos individuais possam ser articulados em conjunto e a realização deles deve conduzir à realização dos objetos sociais de uma forma que seja eficiente e conforme a justiça (Rawls, 1986: 29-30).

Neste sentido, ao refletir sobre a postura do magistrado nas audiências, pode-se classificar - formulando-se tipos ideais, no sentido werberiano - em duas posturas: a do magistrado ditador, aquele que se vê como portador da verdade indiscutível, como se as leis pusessem-no em estado de certeza; a segunda, é a do juiz administrador, aquele que provoca e instiga o debate observando as alegações, controlando as exaltações das partes e evidenciando os pontos controversos.

Enfatizar os debates é conferir às partes participação na solução do litígio, pois "a função legitimadora do procedimento não está em se produzir consenso entre as partes, mas em tornar inevitáveis e prováveis decepções em decepções difusas: apesar de descontentes, as partes aceitam a decisão"; assim , o litigante que insistir em sua expectativa decepcionada, termina pagando um preço muito alto, por isso se vê forçado a ceder. "Nesse sentido, a função legitimadora do procedimento não está em substituir uma decepção por um reconhecimento, mas em imunizar a decisão final contra as decepções inevitáveis" (Luhmann, 1980: 4). É que a decisão judicial tem por características de legitimação: a função de absorver e reduzir as inseguranças; conduzir à segurança, devido à certeza de que uma decisão ocorrerá; legitima-se pelo procedimento (ilusão funcional); e baseia-se na ficção de que pode haver decepção rebelde, só que de fato esta não se realiza.

Impõe-se, então, imparcialidade ao magistrado, pois a confiança é adquirida no decorrer do processo e não previamente, como nas sociedades primitivas, pois os status sociais e os papéis não conferem uma base firme (Luhmann, 1980: 59); assim, na "legitimação pelo procedimento são a diferenciação e a autonomia que abrem um espaço de manobra para a autuação dos participantes pleno de alternativas e de importância básicas, reduzindo a complexidade. Só assim os participantes podem ser motivados a tomarem, eles próprios, os riscos da sua ação, a cooperarem, sob controle, na absorção da incerteza e dessa forma a contraírem gradualmente um compromisso" (Luhmann, 1980: 64), inclusive porque para a legitimação pelo procedimento é válido o procedimento apoiado no poder de persuasão e no valor considerado pelas normas jurídicas, bem como os mecanismos extralegais (Luhmann, 1980: 68). Provocando a participação das partes legitima-se a decisão final pelo procedimento, pois, não se trata de justificá-la, como prevê o direito processual, antes de uma transformação estrutural das expectativas, pois forma-se um clima social que institucionaliza o reconhecimento das opções como obrigatórias.

O papel da justiça é fornecer um critério de atribuição de direitos e deveres nas instituições básicas da sociedade e definir a distribuição adequada dos encargos e benefícios da cooperação social, seu objeto é a estrutura básica da sociedade (a justiça social), ou seja, a forma pela qual as instituições sociais mais importantes distribuem os direitos e deveres fundamentais e determinam a divisão dos benefícios da cooperação (Rawls, 1986: 30). Enfim, a aplicação do direito estatal será justa na medida que melhor servir para distribuir direitos e deveres.


V - A Teoria da Justiça como Equidade

Essa denominação tem lugar porque se considera que todas as pessoas da sociedade partem de uma posição original de igualdade, daí essa teoria ser vista como uma parte da teoria da escolha racional, inclusive porque vê o contratualismo como melhor caminho à constituição teórica da justiça.

Sua idéia intuitiva é que a estrutura básica da sociedade abarca diferentes situações sociais e aqueles que nascem nessas situações diferentes têm diferentes expectativas de vida (Rawls, 1986: 30). Assim, lança-se postulados à teoria da justiça como equidade.

5.1. Os Postulados da Teoria da Justiça como Equidade.

1º postulado: a escolha dos primeiros princípios - A dificuldade está no fato de que cada pessoa deseja proteger seus interesses e não têm razões para consentir uma perda significativa com o fim de obter um valor líquido de satisfação superior, dessa forma o utilitarismo mostra-se incompatível com a concepção de uma cooperação social entre iguais, destinada a assegurar benefícios mútuos, é que as instituições não podem ser justificadas pelo argumento de que as dificuldades de alguns são compensadas por um maior bem total. "Pode, em certos casos, ser oportuno que alguns tenham menos para que outros possam prosperar, mas tal não é justo. Porém, não há injustiça no facto de alguns conseguirem benefícios maiores que outros, desde que a situação das pessoas menos afortunadas seja, por esse meio, melhorada. A idéia intuitiva é a seguinte: já que o bem-estar de todos depende de um sistema de cooperação sem o qual ninguém poderia ter uma vida satisfatória, a divisão dos benefícios deve ser feita de modo a provocar a cooperação voluntária de todos os que nele tomam parte, incluindo os que estão em pior situação" (Rawls, 1986: 35). Por ser contratualista envolve na escolha a interpretação da situação inicial e o conjunto de princípios suscetíveis de serem objeto dessa escolha.

2º postulado: a formulação da carta fundamental da sociedade - Adotada uma concepção da justiça, poder-se-á escolher a constituição, um sistema de produção de leis e assim por diante (Rawls, 1986: 34).

Entendendo que nenhuma sociedade pode ser um sistema de cooperação no qual se participa de forma voluntária, Rawls afirma que "pelo nascimento todos estamos situados numa sociedade concreta e numa posição determinada e a natureza desta posição afeta naturalmente as nossas perspectivas de vida, porém a teoria da justiça como equidade é a mais próxima do sistema voluntário" (Rawls, 1986: 34), visando evitar essa circunstância, Rawls propõe a expressão posição original.

5.2. Posição Original

5.2.1. Situação Inicial dos Participantes

A posição original (status quo inicial) é hipotética e não histórica, onde todos os cidadãos estariam numa posição de igualdade, em pleno exercício de sua racionalidade e com desinteresse mútuo, ou seja, nela as pessoas são livres, racionais (escolha da via mais efetiva para atingir fins determinados) e mutuamente desinteressadas (não significa serem egoístas mas que não têm interesse nos interesses dos outros). Nesta posição é formulado o contrato original, aquele que tem por objetivo os princípios da justiça aplicáveis à estrutura básica da sociedade (Rawls, 1986: 33).

Numa sociedade há desigualdades inevitáveis, tais como, a posição social, as perspectivas de vida e as vantagens sociais. Como portanto se pode pensar numa posição original nesses padrões? Recorre-se à expressão véu da ignorância.

5.2.2. Véu da Ignorância

Na posição original estamos obrigados a definir as atribuições sem a menor noção de se seremos o presidente da república, um deputado, um magistrado, um professor, um lavrador, um pedreiro etc.. Procedem-se essas escolhas com base em considerações gerais, sem situar-se na nossa posição atual, que só será definida posteriormente. O véu da ignorância é elemento fundamental à teoria da justiça como equidade por nele ser impossível o conhecimento de elementos pormenorizados, o que resultaria no desvio das escolhas das regras da justiça como equidade devido às contingências arbitrárias (Rawls, 1986: 121-23).

Em relação às audiências judiciais, verifica-se o véu da ignorância, pois a certeza promovida pelo direito é que uma decisão será tomada e não a previsibilidade do conteúdo desta (Luhmann, 1980: 46 e 53); além de que, no procedimento judicial, as partes impõem papéis aos outros e a si mesmo, como o compromisso de participar do processo e aceitar a decisão final, este compromisso não repousa na lei, mas na liberdade de proceder (1980: 81). Há pois uma ignorância das posições que eles, os litigantes, assumirão após a sentença transitada em julgado. Daí revelar-se um processo de aprendizagem com o procedimento judicial, pois a participação das partes é indispensável à formação do conteúdo da decisão judicial (1980: 72-3).

É, pois, através do véu da ignorância que as pessoas podem realizar suas escolhas abstraídas de sua posição social, nele as pessoas só têm conhecimentos gerais, não têm condições de saber qual o seu lugar na sociedade, sua posição de classe, sua fortuna ou distribuição de talentos naturais, suas capacidades, sua inteligência, sua força etc., por isso não sabem como é que as várias alternativas vão afetar a sua posterior situação concreta. Assim, dois princípios se mostram irrefutáveis à justiça como equidade.


VI. Dois Princípios da Justiça

Na posição original dois princípios da justiça seriam os escolhidos por todos: primeiro, "cada pessoa deve ter um direito igual ao mais extenso sistema de liberdade básicas que seja compatível com um sistema de liberdades idêntico para as outras"; e, o segundo, "as desigualdades econômicas e sociais devem ser distribuídas por forma a que, simultaneamente: a) redundem nos maiores benefícios possíveis para os menos beneficiados, de uma forma que seja compatível com o princípio da poupança justa, e b) sejam a conseqüência do exercício de cargos e funções abertos a todos em circunstância de igualdade eqüitativa de oportunidades" (Rawls, 1986: 239).

6.1. Princípio das Iguais Liberdades Básicas

Trata-se dos princípios da liberdade. O debate passa pela questão da liberdade individual reclamada por todos versus a necessidade de institucionalização, reconhecida por todos. Mesmo reconhecendo-se a necessidade de existir uma instituição definidora dos padrões de comportamento, as pessoas gostam de escolher seus modos de vida. Assim, qual princípio seria o escolhido na posição original para resolver este impasse?

Rawls analisa o princípio do paternalismo; o princípio da utilidade; e a concepção contratualista, para enfim afirmar que "o ponto essencial é que as pessoas na posição original não se representam como sujeitos individuais isolados. Pelo contrário, admitem que têm interesses que devem proteger o melhor que podem e que estão ligadas a certos membros da geração seguinte, os quais formularão pretensões semelhantes às suas. Quando as partes tomam consciência desses factos, a argumentação em favor dos princípios da justiça é reforçada". (Rawls, 1986: 171)

Como a liberdade de consciência igual para todos se funda na idéia de que os sujeitos não se apresentam isolados, mas admitem que têm interesses que devem proteger, tais como suas convicções religiosas e morais, na posição inicial, com o véu da ignorância, elimina-se a perspectiva do princípio do paternalismo e do utilitarismo, pois o princípio do paternalismo está limitado ao se cogitar liberdade de consciência igual para todos, é que o pai para garantir os direitos de seus descendentes procurará decidir adotando o princípio da igual liberdade (Rawls, 1986: 173).

Já o utilitarismo, nos moldes de Mill, provoca a reflexão da realização da liberdade de consciência para a tomada de decisão na posição original. Mill aponta três fundamentos paras as instituições livres: o primeiro refere-se ao desenvolvimento das capacidades e potências; o segundo é ver a liberdade como instituição, de onde as preferências por uma ou outra atividade é definida racional e informativamente; o terceiro, fundamento à preferência que os seres humanos têm de viver em instituições que respeitem a liberdade, pois "apesar de os homens se queixarem do peso da liberdade e da cultura, têm um desejo imperioso de determinar o modo como vivem e decidir os seus próprios assuntos. Como o utilitarismo pressupõe a existência de uma capacidade igual de todos, pensa na sociedade maximizando a possibilidade de realização dos seus objetivos, o princípio da utilidade não justifica a liberdade de todos exatamente porque os seres humanos não gozam das mesmas disposições e potências para realizar as atividades. O utilitarismo, com seu teleologismo, mostra-se auto-refutável, pois retirando-se a suposição da capacidade igual de todos para realizar atividades, conclui-se que "a prossecução dos objectivos humanos pode ser compatível com a opressão de certas pessoas, ou pelo menos com a atribuição de uma liberdade limitada. Sempre que a sociedade se dispõe a maximizar o total do valor intrínseco ou o saldo líquido de satisfação de interesses, arrisca-se a descobrir que a recusa da liberdade para alguns é justificada em nome desse objectivo isolado" (Rawls, 1986: 173-74).

Cabe então refletir sobre a capacidade e necessidade da tolerância como fator preponderante à realização da liberdade de consciência. É o que Rawls passa a abordar através do princípio das desigualdades, inclusive tratando da tolerância para com os intolerantes (Rawls, 1986: 175-81).

6.2. Princípio das Desigualdades

A teoria da justiça como equidade deve oferecer, para servir à condução de uma sociedade justa, por que entre iguais, mecanismos capazes de amenizar as desigualdades. São eles:

a) as desigualdades econômicas, devem ser equilibradas de forma que os rendimentos sejam distribuídos em benefício de todos. Supera-se assim a argumentação de a distribuição da riqueza e do rendimento ter que ser igual. Esse argumento é substituído pela idéia de essa distribuição dever ser realizada em benefício de todos (Rawls, 1986: 68).

as desigualdades sociais, restam controladas a partir da noção de se admitir o acesso às funções e posições sociais para todos. As posições de autoridade e responsabilidade devem ser acessíveis a todos. Todos devem poder dispor da faculdade de acesso a essas posições sociais (Rawls, 1986: 68,9). Posteriormente, trata da família como instituição que possa vir a servir de barreira à igualdade de oportunidades (Rawls, 1986: 238).

Só tratando assim essas desigualdades é que se pode construir uma sociedade de iguais e conseqüentemente formas as instituições capazes de propiciar a justiça como equidade, pois cada indivíduo se beneficia com as desigualdades admissíveis da estrutura básica da sociedade.


VII - Aplicabilidade dos Princípios da Justiça

Após escolhidos os princípios da justiça como equidade na posição original, Rawls retoma a posição dos indivíduos em seus lugares na sociedade, em seus respectivos status quo, e afirma que então passam a julgar as exigências e situações próprias do convívio social baseados nesses princípios. Rawls analisa a aplicação dos princípios da justiça quanto às instituições (1986: 163, 260) e quanto ao indivíduo (1986: 261,301). Limitar-nos-emos à primeira aplicação.

Tratando por instituições a estrutura básica da sociedade, Rawls demonstra o modo de aplicação dos princípios da justiça nas instituições e aponta três raciocínios que o cidadão teria que fazer: primeiro, "deve apreciar a justiça da legislação e da política social", porém as afirmações sobre essas justiças não são unânimes, as opiniões e as convicções tendem a ser diferentes, principalmente quando interesses estão em jogo (Rawls, 1986: 163); segundo, "decidir quais soluções constitucionais, de um modo justo, podem conciliar as opiniões contrárias quanto à justiça", considerando o mecanismo do processo político como meio mais justo que outros, aceita-se que a justiça não seja concebida só ao se apreciar leis e medidas políticas, mas também através de uma hierarquia dos "processos políticos que selecionam qual a opinião política que é transformada em lei"; terceiro, "o cidadão deve distinguir quando é que as decisões da maioria devem ser obedecidas e quando é que dever ser rejeitadas como não vinculativas" (Rawls, 1986: 164).

Quanto ao primeiro princípio, das liberdades básicas para todos, os direitos e liberdades básicas são definidos pelas regras públicas da estrutura básica. A liberdade constitui um padrão para as formas sociais, pois as liberdades individuais são determinadas pelos direitos e deveres estabelecidos pelas instituições, assim, considera por única razão para limitar as liberdades, evitar que colidam entres si (Rawls, 1986: 69).

Quanto ao segundo princípio, das desigualdades, refere-se aos sujeitos representantes que ocupam posições sociais ou funções estabelecidas pela estrutura básica. Há, pois, a exigência de que todos ganhem com certa desigualdade. Ao alargar as expectativas de um sujeito representativo colocado numa dada posição, alarga-se ou restringe-se as de outros sujeitos representativos colocados em posição diferente, assim, "a situação em que alguém considera o problema de distribuir certos bens entre pessoas necessitadas que ele conhece pessoalmente não cabe no âmbito dos princípios. Estes destinam-se a revelar a organização de instituições básicas" (Rawls, 1986: 70). É quando fala-se em imparcialidade como elemento essencial para que os magistrados tomem suas decisões judiciais.


VIII – As Audiências Como Instrumento Legitimador das Decisões Judiciais

Aplicar essa concepção de justiça nas audiências é possível, inclusive porque nela há uma situação semelhante à da posição original. Os litigantes não sabem qual será a decisão futura a ser proferida, o que permite falar em igualdade de todos devido ao véu da ignorância, ou seja, por não se saber qual sua posição social após a sentença, o que pode resultar das escolhas dos princípios de justiça efetuadas na posição original. Assim, na posição posterior, mesmo formada por desigualdades de rendimento e diferença de autoridade, todos conduzir-se-ão considerando os princípios de justiça escolhidos na posição original, o que forma a harmonia de uma concepção geral de justiça, resultando na melhoria das condições, posições de todos, em benefício de todos.

A seqüência é que na posição original, primeiro escolhe-se os princípios da justiça; depois, uma constituição básica (escolha da constituição justa que seja mais efetiva, aquela que satisfaça os princípios da justiça e que seja melhor concebida para permitir a obtenção de legislação que seja também justa e efetiva); e em seguida, distinguem-se dois problemas: o do processo justo e o de selecionar entre as estruturas justas a que tem maiores condições de levar a uma ordem jurídica justa e efetiva (processo legislativo - os representantes não têm informações detalhadas sobre si próprio - lei justa ou injusta depende das diferenças de opinião; por fim, a aplicação das regras existentes a casos concretos feita por juízes e autoridades administrativas, todos dispõem de acesso a todos os fatos, deixa de haver limite ao conhecimento) (Rawls, 1986: 165,66).

Uma constituição justa é aquela que os delegados racionais adotariam para a sua sociedade. Leis e políticas justas são as que seriam escolhidas na etapa legislativa. (Rawls, 1986: 167). Assim, a teoria da justiça como equidade será uma teoria válida se definir um domínio para a justiça que esteja mais de acordo com os nossos juízos ponderados do que as teorias existentes e caso mostre, com maior acuidade, os erros graves que uma sociedade deve evitar (Rawls, 1986: 167).

Para aplicar estas idéias no exercício da atividade judicial, basta aos magistrados alertarem-se à noção de que a participação das partes processuais no processo decisório, conexa à ascese erótica cognitiva do julgador, é um mecanismo à legitimação da decisão. Dar, então, aos litigantes espaço para exporem, relatarem suas visões, serve para ampliar a convicção do julgador. A postura, portanto, do magistrado durante as audiências é uma situação social que não está, nem pode ser, submetida ao crivo do direito estatal, está fora de sua alçada. Mesmo que se pensasse em criar uma lei sobre esse assunto, esta jamais teria eficácia. Enfim, ao se decidir pelo indeferimento de perguntas, ao se negar a constar em ata a pergunta indeferida, bem conceder a palavra diretamente às partes são meios de legitimar a decisão final e de atuar com justeza e não uma questão de direito estatal.


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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

STAMFORD, Artur. O magistrado e as audiências judiciais. Para uma aplicabilidade judicial da Teoria da Justiça de Rawls e da Legitimação pelo Procedimento de Luhmann. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 3, n. 27, 23 dez. 1998. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/810. Acesso em: 19 maio 2024.