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Estudos sobre o Poder Executivo

Estudos sobre o Poder Executivo

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As raízes do Executivo

            A sociedade constitui-se de pessoas, que são indivíduos do tipo racional e humano, com sua profundidade e seu mistério inconfundíveis.

            Ela é a base da sociedade. Para Tomás de Aquino (1221-1274), é "o que há de mais perfeito em toda a natureza" (persona significat id quod est perfectissimum in tota natura, scilicet subsistens in rationali natura - S. th. I, 29, a. 3 c.). E por quê?

            Em primeiro lugar, porque a pessoa é um ser inteligente, que vai descobrindo a verdade pelo raciocínio ou pelo seu pensar. Ora, a faculdade de pensar confere enorme dignidade ao ser humano, como nota o filósofo francês Blaise Pascal (1623-1662):

            "Pelo espaço o universo me abarca e me traga como um pontinho. Mas pelo pensamento eu abarco o universo" (Pascal, Blaise, 348 Roseau pensant : Ce n´est point de l´espace que je dois chercher ma dignité, mais c´est du règlement de ma pensée. Je n´aurai pas davantage en possédant des terres: par l´espace, l´univers me comprend et m´engloutit comme un point; par la pensée, je le comprends).

            A capacidade de pensar ou de conceber noções universais, definições e concatená-las entre si provém do fato de que no homem existe mais do que matéria; existe um princípio vital ou alma espiritual que, com o corpo, forma um sujeito único de todas as ações. Por seu pensamento, a espiritualidade da alma humana torna o homem "imagem e semelhança de Deus " (Gn 1, 27) e confere-lhe a sua dignidade própria.

            Do fato de ser racional, segue-se que o homem é livre ou tem o domínio sobre os seus atos; pode decidir soberanamente diante de várias possibilidades, à diferença dos animais irracionais, que são determinados pelo instinto a agir de tal ou tal modo.

            Se é livre, a pessoa é responsável. Deve assumir os direitos e deveres decorrentes de suas opções; não lhe é lícito fugir disto e atribuir sistematicamente aos outros a responsabilidade de êxito e fracassos.

            Ser pessoa implica também ter consciência...consciência psicológica (estou lendo e sei que estou lendo) e consciência moral. Em todo o ser humano, há uma voz íntima que lhe diz: "Pratica o bem, evita o mal", princípio básico do qual se seguem imediatamente outros: "Não mates, não roubes, respeita pai e mãe..." É a lei natural que assim se configura e que é congênita em todo o homem.

            Dada a complexidade de sua composição psicossomática, cada pessoa é única e não repetível; é um pequeno mundo original.

            Toda a pessoa traz dentro de si interrogações fundamentais, pois nutre aspirações nobres que são cerceadas por limitações várias: a fragilidade do corpo, que adoece e morre; a fragilidade moral, que leva a falhas ou a incoerências de comportamento. Donde provêm essas contradições? Como podem ser compatíveis com a dignidade do homem?

            Ao refletir, a pessoa tende a perguntar: De onde venho? Para onde vou? Qual o sentido da vida? Os que não encontram resposta para tais indagações julgam que a vida é um absurdo. Facilmente são presas do medo da doença, da velhice, do isolamento, da morte e, principalmente, do que virá após a morte.

            O medo só pode ser amenizado ou superado pelo conforto de alguém que ama. Ora, o grande amante é o próprio Deus, que criou a pessoa humana não para a desgraça, mas para a plenitude da vida.

            No ser humano há o senso religioso nato. A demanda do Absoluto ou do Bem Infinito é espontâneo em toda a pessoa.

            Para desenvolver suas virtualidades e adquirir personalidade, o ser humano precisa de contato com os seus semelhantes. E é aí que se acha o fundamento natural da vida do homem em sociedade.


As bases do Executivo

            Dependente dos outros nos primeiros meses e anos da infância, o homem precisa ser adestrado para a vida pelos ensinamentos e experiências dos outros homens; cada pessoa é herdeira de seus genitores e das gerações de seus antepassados.

            Isso é riqueza, pois o ser humano é aberto ao tu e à sociedade, a fim de receber e transmitir valores pessoais. O matrimônio, a amizade, a colaboração correspondem à necessidade da pessoa e a enriquece. A palavra e o amor são canais que fazem partilha.

            A linguagem é algo tipicamente humano, pois fundamenta a concórdia dos homens entre si, "uma representação que projeta a realidade" (the propositions show the logical form of reality. They exhibit it) nos dizeres do Ludwig Wittgenstein, o "primeiro" Wittgenstein (1889-1951), in Tractatus logico-philosophicus, prop. 4.121, Londres, Kegan Paul, 1922. Pela palavra o homem comunica o que lhe é mais íntimo e cria afinidade com outros homens. Em Pentecostes, a multiplicação dos idiomas congregou os homens na mesma família espiritual (At. 2, 1-11).

            Assim, o homem não é simplesmente parte anônima de um todo social, mas integra-se dentro da sociedade para realizar-se plenamente. Por isso, deve contribuir para que se realize o bem da sociedade ou o bem comum, mediante os esforços de cada um dos seus membros.

            Intimamente ligados entre si, o bem comum (de todos) é superior ao bem particular (de um indivíduo apenas). Mas o bem comum só é bem à medida que favorece a realização de todos e de cada um. E a autoridade não é autoridade senão quando está a serviço de todos e de cada um.

            No binômio "pessoa e grupo", a pessoa é o fim, a meta; e a ordem social, o meio. O homem não é para a sociedade ou para o Estado, mas a sociedade e o Estado são para o homem. Daí que o absolutismo do Estado ou da sociedade, a estatolatria significam a inversão da escala dos valores, pois a elas cabe proporcionar a cada um dos seus membros que viva...e viva bem, praticando as virtudes.

            "Imagem e semelhança de Deus" (Gn 1, 27), os homens são fundamentalmente iguais entre si. São Paulo o dizia muito enfaticamente: "não há judeu nem grego, não há escravo nem livre, não há homem nem mulher, pois todos vós sois um só em Cristo Jesus" (Gl 3, 28; cf. Cl 3, 11).

            Todos são iguais porque são pessoas, dotadas da mesma dignidade essencial de seres racionais e livres. Se João é músico, Pedro é esportista, Maria é artista, Elisa tem prendas domésticas, essas desigualdades não atingem a respectiva identidade de cada um (a) como ser racional, livre e responsável.

            Nas civilizações pré-cristãs, como nos regimes totalitários posteriores ao cristianismo, as pessoas valiam pela sua produtividade ou sua casta, sua categoria, suas funções... No mundo greco-romano só o cidadão podia participar da vida pública e ter direitos e deveres. O estrangeiro (bárbaro), o escravo, a mulher não eram sujeitos de direitos e deveres civis.

            A civilização greco-romana mitigou a mentalidade primitiva, tentando reunir num só império povos de raças, culturas e línguas diferentes; os romanos, em vez de escravizar os povos conquistados, transformavam-nos em "romanos", fazendo-os "cidadãos romanos", ufanos de tal título; assim Roma sonhava com um mundo unificado ou uma comunidade imperial sob a sua bandeira. Seriam todos "irmãos", contanto que fossem "romanos"; não seria possível, porém, imaginar que fossem todos irmãos, permanecendo cada qual na sua identidade cultural.

            Quando um grupo recusava romanizar-se, como se daria no caso dos judeus, era obrigado a permanecer à parte como um quisto ou a viver em guetos; tal povo continuava "bárbaro", isto é, estrangeiro, estranho, suspeito e potencialmente inimigo.


O bem comum no Executivo

            A pessoa é tendente à sociedade. Esta constitui-se de pessoas. Daí concluir que deva existir solidariedade entre as pessoas, membros da sociedade.

            Solidariedade vem de sólido, aquilo que faz algo compacto e coeso. É a união recíproca dos membros da sociedade que faz com que os interesses de uns sejam, em certo grau, os interesses de todos.

            O individualismo nega a natureza social do homem e vê na sociedade um conglomerado utilitarista, do qual cada um procura tirar a melhor fatia para atender a seus interesses pessoais.

            O coletivismo despoja o homem da sua dignidade pessoal, rebaixando-o à qualidade de peça de engrenagem, que só tem valor como um todo.

            O princípio da solidariedade leva em conta tanto a dignidade pessoal quanto a índole social do homem. A pessoa tem o seu valor próprio intangível, mas deve saber que só o realizará plenamente se compartilhar os interesses do seu próximo. Abrindo-se para o outro, a pessoa dilata-se e enriquece, sem perder a sua identidade.

            E o bem comum?

            Em todo o ser humano distinguem-se dois aspectos: 1) o da pessoa individual, inconfundível, que é o aspecto primário e permanente do ser humano; 2) o aspecto de membro da sociedade, pois, para existir bem, a pessoa precisa agregar-se a determinada(s) sociedade(s): a sociedade civil, a sociedade escolar, a sociedade profissional.

            Ante o seu clube o indivíduo é sócio; em face da sociedade civil o indivíduo é cidadão; perante sua empresa, é membro do corpo administrativo ou do corpo técnico. Mas nenhuma sociedade tem o direito de absorver os seus membros com tudo o que eles são, pensam e fazem, porque a pessoa humana é mais do que parcela da sociedade civil ou de um clube ou de uma empresa.

            O ser humano é, antes de mais, pessoa, à qual sobrevém o título de membro de tal ou tal sociedade. Conseqüentemente, a pessoa está subordinada às leis e aos interesses da sociedade, já que está incorporada a esta (medida parcial, que não compreende todo o ser da pessoa).

            Como membro da sociedade, a pessoa tem a obrigação de contribuir para o bem comum ou o bem de todos, ainda que isto lhe custe a renúncia a interesses particulares; assim lhe toca o dever de pagar seus impostos, de respeitar as leis do trânsito, do comércio, de eleger seus governantes... Cumpridos os deveres de cidadão ou de sócio, a pessoa conserva a liberdade para atender a seus interesses particulares (emprego do seu dinheiro, do seu lazer, desejo de viajar, de informar-se...).

            O sentido último de qualquer sociedade ou do bem comum é concorrer para o aperfeiçoamento das personalidades. Afinal, a sociedade é que deve servir à pessoa, exigindo que esta sirva à sociedade, porque, no dizer de Tomás de Aquino (1221-1274), "somente a criatura espiritual é por Deus desejada como tal... as demais criaturas existem por causa dela" (Disponuntur igitur a Deo intellectuales creaturae quasi propter se procuratae, creaturae vero aliae quasi ad rationales creaturas ordinatae – C. g. III 112).

            . Pio XI diz mais explicitamente: "A sociedade humana existe para o homem, e não vice-versa" (encíclica Divini Redemptoris)

            Tomás de Aquino chega a aventar o caso em que a vida eterna de um indivíduo e os bens naturais de uma sociedade estariam em conflito mútuo, e afirma: "A salvação sobrenatural de um único homem vale mais do que todos os bens naturais do universo inteiro" (bonum universi est maius quam bonum particulare unius, si accipiatur utrumque in eodem genere. Sed bonum gratiae unius maius est quam bonum naturae totius universi – S. th. I-II 113, 9).

            Tomás de Aquino é coerente com um princípio clássico: todos os bens da natureza reunidos valem menos do que um só valor de índole sobrenatural (ou da ordem da graça e da filiação divina).

            O bem comum da sociedade, se cultivado em conformidade com a lei de Deus, tem grande valor, pois faz que uma comunidade como tal dê honra e glória ao seu Criador.


O organismo do Executivo

            Alguns pensadores, antes de Cristo, já tentaram esclarecer as relações do indivíduo com a sociedade mediante a imagem de um organismo, o que resultava, implícita ou explicitamente, em totalitarismo ou em subordinação total da pessoa à sociedade.

            Platão (428/427 a.C.–347 a.C.), na sua Política, comparava o "Estado bem organizado" ao corpo com seus membros. Sêneca (4 a.C.–65) ensinava que "todos somos membros de um grande organismo, porque a natureza nos gerou e nos fez seres sociais" (membra sumus corporis magni. Natura nos cognatos edidit, cum ex isdem et in eadem gigneret; haec nobis amorem indidit mutuum et sociabiles fecit. – Epistulae Morales ad Lucilium XCV, 52).

            Os cristãos retomaram essa imagem, tendo em vista combater o individualismo e acentuar o princípio do bem comum, por várias razões.

            Em primeiro lugar, porque os organismos se conservam, enquanto as células são substituídas por outras de sete em sete anos. Assim, a sociedade sobrevive ao vaivém dos seus membros. Agostinho (354-430), no livro XXIII de Cidade de Deus, diz que a sociedade é semelhante a uma oliveira, cuja folhagem cai e renasce, enquanto tronco e copa permanecem.

            Igualmente, as folhas e raízes de uma planta ou as partes de um organismo estão a serviço do todo; não têm vida própria, mas vivem da energia vital que vivifica o corpo inteiro. Por analogia, os membros de uma sociedade integram uma imagem organizada, em que servem ao todo.

            Por fim, os organismos não deixam perecer os seus membros, mas os alimentam e conservam. Por comparação, à sociedade não é lícito explorar os membros; deve cuidar deles e estes, por sua vez, devem estar dispostos a sujeitar os seus interesses ao bem comum.

            Tomás de Aquino (1221-1274) diz que, assim como a mão, sem pensar, se expõe ao golpe da espada para salvar o corpo, do mesmo modo o cidadão "se exporá ao risco de vida para salvar a comunidade inteira (Videmus enim quod naturaliter pars se exponit, ad conservationem totius, sicut manus exponitur ictui, absque deliberatione, ad conservationem totius corporis. – S.th. I 60, 5).

            No século XIX, a imagem foi retomada com muito realismo por diversos sociólogos. Augusto Comte (1798-1857), por exemplo, falava de "anatomia social" e designava a sociologia como sendo uma "física social". Os totalitaristas e coletivistas encontram nessa comparação um forte apoio para suas teorias, que sacrificam totalmente o indivíduo à coletividade.

            É evidente que a imagem é falha, pois significa a destruição da liberdade e da dignidade da pessoa. Um ser vivo orgânico e a sociedade são duas realidades diferentes. A célula não tem vida própria e consome-se a serviço do organismo; o homem, porém, deve ser respeitado e dignificado pela pertença à sociedade e pelo serviço que lhe presta; deve conservar-se como sujeito do processo social.

            Paulo recorreu à imagem do corpo para ilustrar a Igreja (1Cor 12, 12-27). Tal confronto, todavia, aplicado à Igreja tem sentido diverso do que lhe toca na sociologia. A Igreja é uma realidade sobrenatural; é o sacramento primordial, através do qual, sem dúvida, Cristo comunica sua vida aos homens, sem porém lhes retirar a identidade.

            É assim que Paulo dizia: "Já não sou eu que vivo, mas é Cristo que vive em mim. Minha vida presente na carne, vivo-a pela fé no Filho de Deus" (Gal 2, 20). O apóstolo afirma sua personalidade, sua vida, que ele considera elevadas por Cristo a um plano superior ou ao plano da filiação divina.

            Essa imagem do organismo contribuiu, ao menos, para corroborar a convicção de que toda a sociedade precisa de uma autoridade centralizada, que leve os seus membros à realização do bem comum. À autoridade compete organizar o convívio das pessoas, de tal modo a facilitar a plena realização de cada um dentro do bem comum.


A subsidiariedade no Executivo

            Os romanos dividiam as coortes em ação na frente de batalha (prima acies) e as coortes de reserva (subsidiarii cohortes). Assim, a palavra subsidiariedade, derivada do latim subsidium, significa "ajuda da tropa de reserva".

            Em sociologia, subsidiariedade designa a ajuda complementar que uma sociedade maior e mais poderosa pode prestar a indivíduos ou grupos menores e mais fracos.

            Esse dever ou ajuda eventual decorre dos princípios de solidariedade e do bem comum. Por isso, é necessário que a sociedade mais elevada (o Estado e seus órgãos de ação) saiba discernir exatamente as ocasiões em que lhe convém intervir em favor de grupos menores, sem os sufocar ou sem impedir que desenvolvam suas virtualidades tanto quanto possível.

            Na encíclica Quadragesimo Anno, Pio XI definiu classicamente esse princípio:

            "Como não se pode subtrair do indivíduo e transferir para a sociedade aquilo que ele é capaz de produzir por iniciativa própria e com suas forças, assim seria injusto passar para a comunidade maior e superior o que grupos menores e inferiores são capazes de empreender e realizar. Isso é nocivo e perturbador também para a ordem social...Quanto mais fiel for o respeito dos diversos graus sociais através da observância do princípio de subsidiariedade, tanto mais firmes se tornarão a autoridade e o dinamismo da sociedade, e tanto melhor e mais feliz será o Estado" (nº 79s).

            Pio XII vê nesse princípio "uma norma sempre defendida pela doutrina social da Igreja"; observa que "a atividade e a eficiência da sociedade sempre devem ter apenas caráter subsidiário e limitar-se a apoiar e complementar a atuação do indivíduo, da família e do profissional" (discurso de 18/07/1947).

            Dessa forma, combinam entre si a liberdade e a dignidade da pessoa humana e, de outro lado, o dever de colaboração e amor fraterno que une os membros de uma sociedade entre si.

            Assim, o princípio de subsidiariedade defende a maneira de ser e viver dos indivíduos e dos grupos menores contra a tendência dos maiores a absorvê-los. Tenta garantir a legítima autonomia dos pequenos.

            De outro lado, supõe o fato de que os grupos menores, às vezes, precisam realmente da ajuda de cima para baixo. Precisam...ou porque fracassaram na execução de suas tarefas, com ou sem culpa dos responsáveis, ou porque aos pequenos toca um trabalho que ultrapassa as suas capacidades. A ocorrência de tais situações deve ser percebida com isenção de ânimo ou de paixões das autoridades interessadas.

            Tão antigo, esse princípio aparece na Escritura Sagrada, quando falou o sogro de Moisés ao legislador de Israel:

            "Certamente desfalecerás, tu e o povo que está contigo, porque a tarefa é muito pesada para ti; não poderás realizá-la sozinho. Agora, pois, escuta o conselho que te darei... Escolhe do meio do povo homens capazes, tementes a Deus, seguros, incorruptíveis, e estabelece-os como chefes de mil, chefes de cem, chefes de cinqüenta e chefes de dez. Eles julgarão o povo em todo o tempo. Toda a causa importante a trarão a ti, mas toda a causa menor eles mesmos julgarão" (Ex 18, 18-22).

            Isso supõe a distinção entre a sociedade (o grupo humano organizado, tendente ao bem comum e particular) e o Estado (o governo posto à frente da sociedade, com o dever de respeitá-la e de favorecer na demanda de seus ideais). O Estado nunca deverá absorver a sociedade.


A ética no Executivo

            A corrupção é, sem dúvida, a coisa mais velha do mundo. Nasceu com Adão e Eva (Gn 3) e só vai desaparecer com o último dos mortais

            O nepotismo, o compadrio, o favorecimento de parentes, cabos eleitorais e afilhados, às custas dos impostos arrecadados dos quase moribundos contribuintes brasileiros, fazem parte da cultura nacional.

            No Brasil, de acordo com os jornais, política e corrupção são características permanentes dos homens que dominam o poder, considerando-se mais dotados do que a plebe, para subir na vida, à custa dela.

            A situação é grave demais.

            Há juízes que empregam familiares, para angariar mordomias, e que dão ganho de causa a pessoas gananciosas, negociando a própria honra.

            Existem políticos que se deixam corromper, que varrem as mazelas para debaixo do tapete, pois temem desagradar amigos e desapontar poderosos.

            Qual a causa de tudo isso?

            Nenhuma reforma social é possível sem a renovação moral ou sem a conversão dos corações. É a velha advertência evangélica: "Ninguém põe vinho novo em odres velhos...Mas vinho novo em odres novos" (Mc 2, 22). Isso quer dizer que quem quer renovar o mundo deve começar por renovar a si mesmo; é preciso cortar o mal pela raiz.

            Em conseqüência do materialismo alastrado em nossos dias, é freqüente crer que as reformas de estrutura são suficientes para assegurar um mundo melhor. Bastaria "socializar" a propriedade, para erradicar o egoísmo do homem. A igualdade jurídica e econômica acarretaria naturalmente a fraternidade e a benevolência entre os homens.

            Tais expectativas, no entanto, são desmentidas pelas experiência. As melhores instituições são ineficazes, se os homens, que as regem, forem injustos e corruptos.

            No fundo, o problema social é um problema moral. Mas essa observação não é satisfatória. O homem honesto e reto é capaz de modificar seu ambiente; por sua vez, o ambiente exerce forte pressão sobre o indivíduo. De nada adianta pregar a moral conjugal cristã, se não se proporcionam às famílias casas saudáveis e o espaço vital necessário. É difícil levar uma vida familiar moral num cortiço promíscuo.

            Essa, a razão por que a reforma social deve ter em vista tanto a renovação dos costumes como a das instituições;

            Desde a encíclica Rerum Novarum, os papas vêm insistindo nessa dupla modalidade da questão social,, demonstrando que a renovação social tão desejada deve ser precedida por uma total renovação do espírito cristão.

            Tenho para mim que o Executivo não deveria estar preocupado apenas em se defender, em preservar-se e em acobertar os correligionários e o seu governo. Deveria, sim, é retratar-se diante do povo, que foi lesado, espoliado e enganado em sua boa-fé.

            Há um exemplo bíblico, que deveria ser o modelo da atitude do nosso governo, e que nos ajuda a refletir sobre o que acontece no proscênio da vida política brasileira.

            O evangelista João (2,13-22) narra o episódio da ida de Jesus ao templo de Jerusalém. Ao deparar-se com os vendilhões que montam suas bancas e fazem do lugar sagrado uma casa de comércio, o manso mestre de Nazaré toma o chicote, derruba mesas e expulsa do templo quem nele não deveria estar.

            Com sua atitude forte e decidida, Jesus quis purificar o templo e defender o povo da exploração e corrupção de que eram vítimas. Ele se preocupou com as pessoas que eram atingidas pelo que ali se passava.


A justiça no Executivo

            Virtude é o hábito e uma disposição estável para praticar o bem. Viver bem, do ponto de vista ético, é viver virtuosamente.

            Algumas virtudes são chamadas cardeais, porque são as primeiras de todas e fontes de outras. Têm por finalidade reger o comportamento do homem para que, cumprindo seus deveres de estado, chegue ao seu fim supremo.

            Ninguém pode, no entanto, alcançar a sua meta sem o auxílio dos outros; nossas relações com o nosso semelhante são regidas pela virtude da justiça. Ela é que indica os deveres para com a família, a sociedade, a profissão e a pátria.

            No dizer de Tomás de Aquino (1221-1274), justiça é a virtude que dá a cada um o que lhe é devido (iustitia est habitus secundum quem aliquis constanti et perpetua voluntate ius suum unicuique tribuit – S.th. II-II 58, 1).

            Dar a cada um o que lhe compete não significa dar a todos a mesma coisa; a distribuição deve ser proporcional ou deve corresponder à capacidade de cada qual; onde um é igual ao outro, há direitos iguais; onde um é diferente do outro, há direitos diferentes; as responsabilidades de cada um correspondem aos seus talentos.

            Os vizinhos de rua, os colegas de trabalho, de estudo, os comerciantes e seus clientes, o direito de usar o salão de festas, a piscina, o campo de esportes, tudo isso se baseia nos direitos particulares de cada um dos interessados. É a justiça comutativa, do particular ao particular, cuja violação obriga à restituição ou indenização.

            Nos impostos, taxas, comércio e trânsito, que favoreçam o bem comum, aos governantes, como responsáveis do direito, toca servir à comunidade; aos governados, observar fielmente as leis que fomentam o bem comum. Trata-se da justiça legal, do particular à comunidade, cujo sujeito do direito é a própria comunidade.

            Na previdência social – que procura atender aos eventos da doença, invalidez, morte e idade avançada, a proteção à gestante, os trabalhadores desempregados, o salário-família, o auxílio-reclusão, a pensão por morte (CF art. 201) –, o sujeito do direito é o indivíduo dentro da comunidade. É a justiça distributiva, que garante os direitos dos cidadãos, que vai da comunidade ao particular.

            Nos supermercados, as mercadorias são tabeladas. Não se pode porém tabelar o serviço de um operário. O trabalho é a expressão de um ser humano, que tem seu ideal e sua família.

            Quem avalia a lida de um operário não se pode orientar apenas pela justiça comutativa nem somente pela justiça distributiva, mas há de levar em conta fatores mais profundos: os direitos da pessoa humana a ser valorizados como tal e não como mera máquina produtora de lucros. É a justiça social, que vai de uma comunidade a outra comunidade.

            Ela existe igualmente na família. Os filhos têm o direito de viver e de receber educação; os pais devem atender a tal direito, porque são pais ou porque ocupam um lugar especial na comunidade. Da mesma forma, os filhos têm de prestar a seus genitores o apoio necessário e os meios de sobrevivência, quando idosos, independentemente das normas da justiça comutativa.

            Hoje é grande a distância entre os que possuem muito e os que nada têm e, por isso, levam uma vida infra-humana. Assim, a justiça social pode exigir que alguém dê aos pobres muito necessitados uma parte do seu supérfluo; os pobres não receberão isso a título de caridade, mas sim a título de justiça, porque têm o direito de viver em termos humanos e dignos.

            As relações entre os povos são atingidas também pela justiça social. Os mais aquinhoados e evoluídos têm a obrigação de ajudar os povos deserdados, a fim de que possam evitar condições de vida indignas do ser humano; entre outros deveres está o de acolher populações deslocadas ou desabrigadas e os que correm o risco de perecer em alto-mar ou de ser vítimas de selvageria alheia.


A caridade no Executivo

            Infelizmente, a justiça não pode atender a todos os casos em que se requeiram ajuda mútua e colaboração entre os homens.

            A seu lado, deve haver no bom cidadão a caridade atuante, caridade que não é apenas a distribuição de esmolas; é algo de mais profundo, pois implica partilha de interesses derivada da convicção de que todos os homens são filhos do mesmo Pai Celeste.

            Assim, a caridade requer respeito pela justiça e não a substitui. Quem ama o próximo começa por respeitar seus direitos; o justo salário nunca pode ser omitido a troco de esmolas.

            A justiça há de ser temperada pela caridade. É legal despejar um pobre do cômodo cujo aluguel ele não pode pagar, mas esse feito legal (Lei nº 8.245/91, art. 59) é contrário à eqüidade. No dizer de Cícero (106 a.C.), a suprema justiça vem a ser a suprema injustiça, (summum jus, summa injuria – De Officiis, I,10,33). Deve pois a caridade intervir para impedir que se cometa, em nome da legalidade, uma grande injustiça, moderando constantemente as reivindicações da justiça e construindo a paz e a concórdia na sociedade.

            A caridade é auxiliar da justiça. Mesmo que, por hipótese, fosse atingida a justiça perfeita entre os homens, ainda restaria amplo campo de ação para a caridade. Sempre haverá misérias morais, corações injustiçados, sofrimentos ocultos, que só a caridade pode perceber e aliviar; é ela a responsável pela benevolência e a caridade sincera, sem as quais não há autêntico convívio humano.

            Justiça e amor fraterno não se excluem mutuamente, mas, ao contrário, devem colaborar para garantir a sobrevivência e o progresso da sociedade humana.

            Aristóteles (384/383 a 322 a.C.), in Ética a Nicômaco, escreveu belas páginas sobre a amizade. No capítulo VIII, diz que o legislador deve preocupar-se mais em despertar a compreensão mútua entre os cidadãos do que em fazer observar a justiça, porque esta ordena apenas os atos exteriores, ao passo que a amizade une os corações: "A justiça não seria mais necessária, se entre os homens reinasse perfeita amizade."

            O progresso da vida na sociedade impôs novas obrigações aos patrões e proprietários. O que ontem era objeto de caridade hoje se tornou, em muitos casos, objeto de justiça. O repouso semanal remunerado, o salário-família, o seguro-desemprego (CF, art. 7º, II, XII e XV) podiam ser gestos de caridade antes de serem sancionados pela justiça social.

            Na vida social pode haver obrigações que não decorram unicamente da estrita justiça; não raro existe uma obrigação moral, onde não há dever jurídico propriamente dito, e essa obrigação pode ser tão grande, ou até mais grave, do que um dever de estrita justiça.

            Um credor que aceita uma prorrogação de pagamento, uma restituição parcial da dívida do cliente em situação difícil, um contratante que modifica um compromisso tornado oneroso por circunstâncias imprevisíveis, todos percebem que, agindo assim, são razoáveis nas relações com seus semelhantes. Seria uma injustiça agir de outro modo.

            Mas se a justiça e a caridade devem complementar-se mutuamente, de outro lado é necessário que não sejam confundidas entre si. Há deveres de justiça que não podem ser considerados obras de caridade. O trabalhador não deve receber a título de esmola o que lhe cabe por direito. A caridade e a justiça impõem deveres, sempre em relação ao mesmo objeto, mas sob aspectos diferentes.

            Isso não quer dizer que a esmola, totalmente gratuita, não se imponha, por vezes, como obrigatória solução de emergência.

            A caridade é paciente, a caridade é prestativa (1Cor 13, 4), mas o ideal não é dar pão a quem tem fome; melhor seria que ninguém tivesse fome. O ideal não é vestir a quem está nu; quem dera todos tivessem roupa para se vestir.

            Mais autêntico, mais puro, muito mais leal será o amor por uma pessoa feliz, a qual não se possa fazer devedor. Talvez seja melhor desejar que o infeliz seja nosso igual e nós todos submissos Àquele que não tem que agradecer a ninguém.


O Executivo no antigo Oriente Médio

            A análise realizada por G. E. Mendenhall mostra que, no antigo Oriente Médio, as funções da realeza eram duas: a guerra e a lei. Seu ensaio (Ancient Israel’s Faith and History: an introduction to the Bible in context. Louisville: John Knox Press, 2001) apresenta uma clara e compreensiva descrição da tradição bíblica, particularmente no que diz respeito à fé e à história da antiga Israel; é "... an attempt to condense and incorporate sixty years of study into a clear and comprehensive overview of the biblical tradition, particularly as it pertains to ancient Israel’s faith and history" (p. xvii).

            Às funções da guerra e da lei era acrescentada uma terceira: a função cultual do rei. E esse seu ofício era o fundamento e a fonte do poder, mediante o qual ele governava.

            O poder real constituía a base de uma sociedade ordenada. O rei era o Estado, e seus atos eram atos do Estado. A ordem na sociedade era obtida pela guerra, que protegia o Estado dos ataques externos, e pela lei, que mantinha a estabilidade interna. O rei era a fonte da lei tanto como legislador quanto como juiz.

            A história do Egito (2800 a 525 a.C.) demonstra uma estabilidade dinástica. Seu alicerce teórico era a divindade do rei; o rei era um deus, Horus, filho de Ra e Horus, filho de Osíris. Por essa razão, o rei não era um ministro ligado à liturgia, mas um objeto de culto.

            Na arte egípcia, o rei era representado como um gigante em estatura. Em cenas militares, ele aparecia desbaratando o inimigo quase só com uma das mãos. Todos os faraós eram representados tendo a mesma aparência divina, sempre serena.

            Todos os atos da administração eram atos do rei, porque somente ele possuía o poder divino de governar e ditar leis. O Estado egípcio era administrado por uma hierarquia altamente centralizada, onde a corrente de autoridade fluía do rei e ia alcançar o nível administrativo mais baixo. No Nilo a monarquia egípcia encontrava meios de comunicação fáceis e rápidos, mediante os quais conseguia atingir todo o país.

            Já na Mesopotâmia a realeza descia do céu; era uma instituição divina, mas não absoluta como a monarquia egípcia. O rei governava com um conselho de anciãos e com a assembléia geral composta de todo o povo.

            Seu apoio teórico era a posição do rei como representante dos deuses. Ele era o seu eleito. Era o chefe não só da cidade, mas, também, do ritual religioso; era o sumo sacerdote e o principal ministro do culto, sem o qual os homens não se podiam comunicar com os deuses.

            As dinastias da Mesopotâmia eram instáveis, se comparadas às egípcias, em face do clima. Um estudo de Thorkild Jacobsen (The Treasures of Darkness: a History of Mesopotamian Religion New Haven: Yale University Press, 1976) relaciona esse fato com a sua concepção do cosmo, que era uma integração de muitas vontades, cuja estabilidade dependia do entrosamento e da harmonia dessas vontades sob um legislador ou governante eleito.

            A principal função do rei era a de representar o deus na festa do ano novo. O complemento da sociedade com a natureza era garantido pelo rei, que, aí, mais do que em qualquer outro lugar, se identificava com o Estado. Esse papel também fazia parte vital da base especulativa do poder do rei que, no caso, sustentava a vida.

            O rei mesopotâmico era um salvador; a ênfase colocada nesse título refletia a ameaça de caos, oculta sob a instável integração das vontades. Tanto como vencedor na guerra como legislador e juiz, o rei libertava o reino do mal presente e ameaçador. Ele era o princípio da paz e da justiça, o defensor dos pobres e o vingador dos direitos dos súditos.

            Pouca coisa se sabe a respeito da ideologia da realeza das cidades-Estados de Canaã e dos estados-Nações que eram vizinhos de Edom, Amon e Moab.

            É impossível que a realeza de Israel não tenha sido influenciada por esses povos, mas não há possibilidade de assinalar pontos certos de contato.

            O fato de que os deuses cananeus fossem chamados de reis deduz-se claramente por causa dos numerosos nomes pessoais compostos com o título "rei" dado à divindade.


O Executivo em Yahweh

            Que Yahweh seja rei verifica-se nitidamente em numerosas passagens do Antigo Testamento. Tal concepção, no entanto, peca por falta de unidade, e pode-se perguntar se a realeza de Yahweh constituía elemento básico da crença israelita.

            Yahweh é rei de Israel (Nm 23, 21; Dt 33, 5; Jz 8, 23; 1Sm 8, 7; 12, 12). Ele é rei de todas as nações (Sl 22, 29; Zc 14, 16s). É rei em virtude da criação (Sl 74, 12).

            O título lhe é conferido sem nenhuma especificação (Ex 15, 8; 1Rs 22, 19; Sl 146, 10; Is 6, 5). Ele é o rei salvador que vinga sua realeza por meio de suas obras salvíficas em favor de Israel (Sl 145, 11-13; Is 33, 22; 43, 14s; 52, 7). Essas suas obras às vezes são mais escatológicas do que históricas, o estabelecimento final de seu reino e de Israel como centro do seu reino (Is 24, 32; Ab 21; Sf 3, 15; Zc 14, 16).

            Todos esses aspectos acham-se combinados nos salmos régios: Sl 47; 93; 95-99. Neles Yahweh é rei e conquistador das nações (Sl 47), rei da criação (Sl 93; 97), criador e rei de Israel (Sl 95), criador, rei e juiz das nações (Sl 96), rei de Israel e de todas as nações (Sl 99).

            Muito difícil identificar qual desses aspectos teria sido o primeiro ou o principal. Ligado a essa dificuldade está o problema de saber em que período surgiu o conceito de Yahweh como rei.

            As tradições da origem da monarquia incluem o argumento de que a realeza humana é um desrespeito à monarquia de Yahweh – até mesmo uma infração ou transgressão contra ela (Jz 8, 23; 1Sm 8, 7; 12, 12).

            Essa idéia certamente predominou em Israel, mas resultou de uma construção teológica elaborada pelos escritores posteriores, que se opunham à monarquia. Ademais, a realeza de Yahweh provavelmente só surgiu depois que Israel instituiu para si a monarquia.

            A. Alt (Essays on Old Testament History and Religion. New York: Doubleday Anchor, 1968) associou a idéia da realeza de Yahweh com a arca da aliança, o trono de Yahweh, e situou a origem da idéia entre o estabelecimento de Israel na Palestina e a instituição da monarquia.

            W. Eichrodt (Theologie des Alten Testaments II/III. Stuttgart/Göttingen,1961) relacionou o título de rei com as obras escatológicas de Yahweh, fato que situaria a origem do título num período posterior.

            A. R. Johnson (Sacral Kingship in Ancient Israel. Cardiff: University of Wales Press, 1955, 2nd edn, 1967) fez uma conexão entre o título e os festejos da aliança, que ele julgava ocorridos na monarquia, e, assim, considerá-lo-ia quase contemporâneo ao aparecimento desta.

            Parece provável que Yahweh tenha sido primeiramente concebido como rei de Israel mesmo antes da instituição da monarquia, que a realeza de Yahweh sobre todas as nações resultou do fato de haverem sido levadas em conta suas obras salvíficas, e que sua realeza cósmica representou uma terceira etapa da idéia.

            A designação deve ter sido, até certo ponto, fruto de uma atribuição feita a Yahweh de títulos e poderes que eram reclamados para outros deuses e dos quais Yahweh não poderia ser privado.

            Na estrutura do pensamento mitológico, Israel encontrou recursos mediante os quais lhe seria possível descrever o poder e a soberania de Yahweh.


O Executivo na realeza israelita

            A sua origem é relatada em 1Sm 1-12. O complexo dessas tradições impõe a conclusão de que a sua instituição foi uma resposta à crise criada pelos filisteus. Essa conclusão apóia-se também na descrição da dignidade real de Saul em 1Sm 13-31.

            Ele aparece, de início, quase inteiramente, como um chefe militar que exercia apenas uma das duas funções: a da guerra ou a da lei. Reuniu uma pequena força de soldados profissionais, vinculados pessoalmente ao seu serviço (1Sm 13, 2.15; 14, 2.52; 18, 5). Davi era um dos membros dessa tropa.

            Embora se diga convencionalmente mais de uma vez que Saul governou Israel ou todo o Israel, é impossível determinar quantas tribos aceitaram a sua soberania; é muito provável que Judá não estivesse entre elas.

            Em Saul não se vê o caráter pleno da realeza israelita; ele assemelha-se mais a um juiz permanente.

            A ausência de qualquer atividade legislativa ou judicial não decorre, porém, exclusivamente da crise em que surgiu sua grandeza. Mesmo nessa época remota já havia uma longa tradição relativa à lei israelita, que possuía uma fonte diversa do poder civil.

            Essa tradição legal era anterior à monarquia. Nem durante o reinado de Saul nem posteriormente o rei esteve livre de aceitá-la e autorizado a zombar dela. A função legislativa do rei nunca foi enfatizada na tradição; mas a função judicial do rei era acentuada.

            A base teórica do poder real em Israel difere da realeza em outros povos. O rei era um chefe carismático, tal como os juízes. Isso significa que ele estava impregnado do espírito de Yahweh para desempenhar suas funções.

            O ato de conferir o espírito era liturgicamente simbolizado pelo rito da unção, que fazia do rei uma pessoa sagrada. Mas ele não é o representante de Yahweh, como o rei mesopotâmico, que era o representador dos deuses.

            Como líder carismático que possui o espírito, ele é rei por eleição divina proclamada por meio de um oráculo profético. Essa eleição foi transferida para a dinastia de Davi como um todo (2Sm 7; Sl 89, 20-38), e é bastante provável que essa concepção tenha contribuído para a estabilidade da dinastia do rei até 587 a.C., em contraste com a instabilidade dinástica de Israel do Norte.

            A qualidade carismática do rei desapareceu depois de Salomão, exceto nos cânticos litúrgicos, e começou a ser buscada no rei messiânico.

            A sociedade pré-monárquica apóia-se na ratificação dos anciãos e do povo que acompanha a ascensão de um rei. Presume-se que isso ocorresse por ocasião da elevação de cada rei: Saul, Davi, Salomão, Roboão e Joás.

            As tradições do Israel pré-monárquico jamais combinaram perfeitamente com a monarquia: uma rejeição da realeza de Yahweh. Não há razão para crer que essa tradição resulte inteiramente da criação de experiências posteriores com a monarquia. A insatisfação é expressa na "lei do rei" (Dt 17, 14-20; 1Sm 8, 11-17), sendo que ambos os relatos constituem composições posteriores.

            A mesma atitude antimonárquica parece estar refletida em Os 8, 4; 10, 3s; 13, 11; esses trechos vão além de críticas tais como as encontradas em Jr 22, 1-5.15ss; Ez 22.34, que aceitam a instituição e rejeitam seus abusos.


O Executivo na administração israelita

            A ascensão do rei é descrita em 1Rs 1, 32-48 e em 2Rs 11, 12-20. O ritual essencial era a unção, e a tradição inclui os símbolos da realeza: trono, coroa e cetro. As "testemunhas" mencionadas na coroação de Joás (2Rs 11, 12) são consideradas como um documento contendo o título do rei ou o oráculo de sua ascensão. Sl 2 é apontado como possível exemplo de tal oráculo.

            A administração da monarquia israelita demonstra a influência recebida da corte egípcia. Não existia administração alguma quando Davi se tornou rei, e não se pode provar que ele não tenha adotado a estrutura administrativa de um antigo estado vizinho.

            Os que viam a face do rei (2Rs 25, 19; Jr 52, 25) eram os admitidos regularmente a ficar na sua presença. Eram seus funcionários pessoais as mesmas pessoas mencionadas em 1Sm 16, 21; 2Sm 14, 24; 1Rs 12, 6; Jr 52, 12. O conselheiro (2Sm 15, 12-31; 16, 23; Cr 25, 16) era um sábio profissional. O escudeiro carregava as armas do rei na guerra e prestava-lhe serviços pessoalmente (1Sm 16, 21; 31, 4-6; 1Rs 9, 22; 2Rs 7, 2ss). O "amigo do rei" (2Sm 15, 37; 16, 16; 1Rs 4, 5) era provavelmente também um conselheiro.

            Davi organizou a guarda real pessoal de maneira muito mais ampla do que o fizera Saul. Os corredores (1Sm 22, 17; 2Sm 15, 1; 1Rs 1, 5; 14, 27s; 2Rs 11, 4ss) formavam a escolta do rei, quando ele viajava, e a guarda do palácio, quando ele se achava em sua residência.

            As listas dos oficiais de Davi e Salomão (2Sm 8, 16-18; 20, 23-26; 1Rs 4, 1-6) incluem o comandante do exército, o comandante da guarda real, o arauto, o escriba, os sacerdotes, o chefe dos trabalhos forçados (exceto na primeira lista de Davi), o amigo do rei (Salomão), o mordomo do palácio (Salomão) e o chefe dos governadores de distritos (Salomão).

            O mordomo do palácio (1Rs 16, 9; 18, 3; 2Rs 15, 3; Is 22, 15ss) era provavelmente o principal oficial executivo do rei, correspondendo, com certeza, ao primeiro ministro do faraó no Egito. Foi encontrado um selo de Godolias com o nome desse ofício ou cargo. As funções do arauto foram reconstituídas com base no que se sabia a respeito do ofício no Egito; ele era encarregado de audiências, apresentava ao rei os negócios do dia e enviava ao povo as decisões do rei. Os príncipes formavam uma aristocracia da corte, conhecida sob o nome de príncipes ou "escravos do rei". Eles eram recompensados com doações feitas pelos estados do rei e com a participação nos lucros decorrentes dos empreendimentos reais.

            Salomão organizou todo o reino, com exceção de Judá, em 12 distritos. Essa organização não sobreviveu depois dele, embora possa ter sido mantida pelos reis de Israel. Alguns críticos acham que 12 distritos de Judá podem ser encontrados em Js 15, 21-62 e sugerem que foram instituídos por Davi ou Salomão. Há quem os atribua também a Josafá ou a Josias.

            A administração era totalitária, modificada, até certo ponto, pelo governo local. O rei pagava todas as despesas e recebia todos os rendimentos e lucros, ficando difícil fazer a distinção entre as propriedades da coroa e as do Estado.

            As rendas provinham da guerra, dos tributos, das doações feitas por soberanos estrangeiros e de taxas regulares; estas, muito provavelmente, eram indicadas nas alças de jarras ou vasos que traziam o selo real, embora pudessem ser produzidas por terras da coroa. Os trabalhos forçados eram uma forma de taxação. Os bens da coroa consistiam em terras e rebanhos; as minas eram um empreendimento da coroa. Não é improvável que o comércio exterior constituísse um monopólio seu.


Uma posição típica do Executivo

            Alguns estudiosos afirmam que houve uma co-regência a respeito de Salomão durante a vida de Davi e a propósito de Joatão durante a vida de Ozias. É quase certo também que Josafá, Ozias e Manassés de Judá, e Jeroboão II, de Israel tenham sido co-regentes (governantes concomitantes) com seus predecessores.

            É pouco provável que o filho mais velho não desempenhasse um alto cargo, se já tivesse idade suficiente para tal e, nesse caso, talvez algo de semelhante a uma co-regência se apresentasse como fato normal.

            O princípio da primogenitura não era evidente em Israel. Não há nenhuma indicação de que o filho mais velho de Saul tenha sido designado como seu sucessor. O herdeiro de Davi ficou desconhecido até que o próprio Davi o apontasse. Tanto Absalão quanto Adonias pareciam esperar que, como eram irmãos mais velhos sobreviventes, herdassem a coroa nas mesmas condições de um primogênito.

            2 Sm 14 e 1 Rs 3 mostram que o rei como juiz tinha poder sobre todos os seus súditos. Esses textos não foram casos de apelação por parte de cortes inferiores. A omissão de Davi (2 Sm 15), que não quis ouvir os casos a ele apresentados, sugere que tal erro tenha sido em parte responsável pelo descontentamento popular provocado.

            A posição cultual do rei israelita tem sido muito discutida. Uns acham que ela se inseria num mito e num modelo ritual, que tentavam reproduzir, recorrendo ao antigo Oriente Médio. Assim alegam que o rei é divino, pois se identifica com o deus da fertilidade, o qual morre e ressuscita. Acreditam, contudo, que a posição cultual do rei era mais importante do que se possa deduzir dos textos narrativos do Antigo Testamento.

            É o rei que ergue um altar (2 Sm 24,25). Planeja a construção de um templo (2 Sm 7,2) e executa o plano (1 Rs 5,8). Constrói um santuário, regulamenta o calendário festivo (1 RS 12, 26-33). Designa sacerdotes (2 Sm 8, 17; 20,25; 1Rs 2, 26s; 4,2). Estabelece normas para a receita (rendimentos, tributos etc.) do templo (2 Rs 12, 5-9). Institui reformas cultuais (2 Rs 22, 3-7; 23). Oferece sacrifício (1 Sm 13, 9s; 2 Sm 6.13.17s; 24, 25; 1 Rs 3, 4-15; 8,5. 62-64; 9.25; 12,33; 2 Rs 16,12-15). Abençoa o povo (2 Sm 6,18; 2 Rs 8, 14). Esses trechos referem-se à primitiva monarquia. Nesse período o rei era o chefe do sacerdócio, como o era na Mesopotâmia.

            A posição cultual do rei também pode ser deduzida dos salmos régios. A maioria deles vê o rei sob aspectos messiânicos. O Sl 110 é um cântico que assegura ao rei a eleição divina e a vitória. Ele está provavelmente relacionado com as cerimônias de ascensão e coroação. O Sl 2 é amplamente reconhecido como um cântico de ascensão, contendo o oráculo divino da eleição. O Sl 89, 20-38 celebra o oráculo de Natã e a aliança da eleição da dinastia de Davi. O Sl 72 festeja o domínio universal do rei e sugere que o rei era um instrumento da prosperidade exigido por Yahweh. O Sl 20 é uma oração pelo rei, contendo um oráculo favorável como resposta; ele é possivelmente uma oração feita em tempo de guerra. O Sl 21 é simultaneamente uma petição e uma ação de graças pela vitória desejada para o rei.

            Certamente esses salmos não eram meramente ocasionais, mas pertenciam aos festejos reais de Sião e comemoravam a eleição da dinastia de Davi e de Jerusalém.


O Executivo neotestamentário

            A realeza de Jesus não é enfatizada nos evangelhos nem nas cartas paulinas. Isso constitui uma parte da transformação do messianismo do Antigo Testamento, que apresenta uma figura incompleta da realidade de Jesus.

            O título é dado a Jesus em Mt 2, 2:.. ."Onde está o rei dos judeus recém-nascido? Com efeito, vimos sua estrela no seu surgir e viemos homenageá-lo"

            De fato, o caráter de rei que Jesus possui é a chave de toda essa narrativa, que tem como principal objetivo mostrar a verdadeira realeza de Jesus, destituída da pompa externa e reconhecida somente por alguns gentios.

            Jesus antes aceita do que reclama o título, no seu diálogo com Pilatos: "És tu o rei dos judeus? Jesus declarou: Tu o dizes" (Mt 27, 11; Mc 15,2; Lc 23,3).

            João (18, 33-39) oferece uma versão mais longa desse diálogo: "Meu reino não é deste mundo. Se meu reino fosse deste mundo, meus súditos teriam combatido para que eu não fosse entregue aos judeus. Mas meu reino não é daqui". O intuito joanino era tornar claro o caráter universal da realeza de Jesus.

            Nas narrativas da paixão encontram-se outras alusões que demonstram a crença popular, também aceita pelos soldados que executaram Jesus, de que ele queria restaurar a monarquia de Israel: "Salve, rei dos judeus!"; "Quereis que vos solte o rei dos judeus?"; "Eis o vosso rei!" (Mt 27, 29.37.42; Mc 15.9.18.26.32; Lc 23, 37s; Jo 19, 3.14.19-21).

            Quando Natanael exclamou: "Rabi, tu és o Filho de Deus, tu és o Rei de Israel", o título de rei de Israel combinado com o de Filho de Deus (Jo 1, 49) professa a crença no caráter messiânico de Jesus.

            O título de rei torna-se visível na procissão de ramos em Jo 12, 13 ("Hosana! Bendito o que vem em nome do Senhor e o rei de Israel"), mas não se encontra no relato desse episódio nos evangelhos sinóticos.

            Essa diferença não é importante, já que o incidente reflete explicitamente a vinda do rei em Zc 9, 9: "Exulta muito, filha de Sião! Grita de alegria, filha de Jerusalém! Eis que o teu rei é justo e vitorioso, humilde, montado sobre um jumento"...)

            O rei aqui é humilde e, por isso, Jesus aceita a identificação. Não se tem certeza – há até motivo para dúvidas – se aqueles que o aclamavam compreendiam plenamente o sentido de um tal rei.

            Paulo, em 1 Cor 15, 24s, volta ao assunto: "A seguir virá o fim, quando ele entregar o reino a Deus Pai, depois de ter destruído todo o Principado, toda a Autoridade, todo o Poder".

            Esse texto paulino exibe a realeza de Jesus. Mas ela aí é claramente escatológica, consumada depois da conquista de todos os seus inimigos.


O Poder Executivo

            Expressão de conteúdo incerto, ora exprime a função (CF, art. 76), ora o órgão (cargo e ocupante, CF, art. 2º). Envolve poderes, faculdades e prerrogativas da mais variada natureza. Trata-se de órgão constitucional (supremo) que desempenha a prática de atos de chefia de estado, de governo e de administração.

            Maurice Duverger, in Institutions politiques et droit constitutionnel, PUF, Paris 1970, vol I/135 e ss, mostra que o Executivo reveste na prática as mais diversas formas. Assim é que existem o executivo monocrático (rei, imperador, ditador, presidente), o executivo colegial (dois homens com poderes iguais, como os cônsules romanos), o executivo diretorial (grupo de homens em comitê), como era na ex-URSS e ainda é na Suíça) e o executivo dual (próprio do parlamentarismo, um Chefe de Estado e um Conselho de Ministros, ou seja, um indivíduo isolado e um comitê).

            Sua função tradicional é administrar o Estado de acordo com as leis elaboradas pelo Poder Legislativo.

            Em sua origem, dentro do modelo clássico de menor intervenção possível do Estado na ordem econômica e social, possuía dupla missão: defesa externa e segurança interna. Com a passagem do Estado liberal para o Estado social e a sua maior intervenção na ordem econômica, o Poder Executivo passou a acumular cada vez mais tarefas.

            Foi assim que passou para o Estado o comando da atividade econômica, a realização de obras de infra-estrutura e de atividades de assistência social, bem como uma ampla iniciativa legislativa nos mais variados temas.

            Concretamente, é sua atribuição o governo e a administração do Estado. Governo, como o conjunto de órgãos que tomam decisões políticas fundamentais. Administração, como o conjunto de órgãos que implementam essas decisões.

            No nosso direito constitucional, ele é exercido pelo Presidente da República, auxiliado pelos Ministros de Estado (CF, art. 76). Na classificação de Duverger, temos um executivo monocrático, exercido por um só indivíduo.

            O Brasil adotou o presidencialismo como sistema de governo (ADCT, art. 2º). Auxiliado pelos Ministros de Estado (CF, art. 76), o Presidente da República acumula as funções de Chefe de Estado (representação externa e interna do Estado) e Chefe de Governo (liderança política e administrativa dos órgãos de Estado). Eleito com mandato fixo, não depende de maioria política no Congresso Nacional para investir-se no cargo ou nele permanecer.

            A razão disso é que os constituintes recusaram adotar para o Brasil o sistema de governo parlamentar. Remeteram a um plebiscito a realizar-se em 7 de setembro de 1993 a decisão de manter o presidencialismo ou acolher o parlamentarismo (ADCT, art. 2º).

            O plebiscito, que de verdade se realizou, não na data inicialmente prevista (21/04/93), concluiu, por grande maioria de votos pela manutenção da República presidencialista.


Eleição e mandato no Executivo

            Preenchendo as condições constitucionais de elegibilidade (CF, art. 14, § 3º), o presidente da república é eleito simultaneamente com um vice-presidente.

            A eleição realizar-se-á em primeiro turno, no primeiro domingo de outubro e, em segundo turno, se houver, no último domingo de outubro, do ano anterior ao do término do mandado presidencial vigente (CF, art. 77).

            Ficou consolidado o direito de o povo eleger o presidente da república pelo sufrágio universal e voto direto e secreto (CF, art. 14). Igualmente foi mantido o princípio da maioria absoluta para a eleição presidencial (CF, art. 77, § 2º). Reputa-se eleito presidente o candidato que, registrado por partido político, obtiver maioria absoluta de votos, não computados os em branco e os nulos.

            Não alcançando essa maioria, far-se-á uma segunda eleição, isto é, um segundo turno de votação, concorrendo apenas os dois candidatos mais votados, tendo-se como eleito aquele que conseguir a maioria dos votos válidos (CF, art. 77, § 3º)

            São expressões equivalentes "maioria de votos válidos" entre dois candidatos (CF, at. 77, § 3º) e "maioria absoluta de votos, não computados os em branco e os nulos" (CF, art. 77, § 2º).

            A eleição em dois turnos tem por finalidade assegurar que a pessoa eleita para o cargo de presidente da república, de primordial importância para o Estado, tenha obtido a maioria dos votos válidos. Essa eleição por maioria absoluta não significa necessariamente que seja realizada em dois turnos. Se um dos candidatos obtiver já no primeiro turno mais da metade dos votos, excluídos os em branco, será considerado eleito para o cargo de presidente da república. A eleição em dois turnos mantém a universalidade do sufrágio direto e secreto, pois os eleitores que não tenham participado do primeiro turno de votação poderão votar no segundo.

            O princípio da maioria absoluta é que levou os constituintes a determinarem que, se, antes do segundo turno, ocorrer morte, desistência ou impedimento legal de candidato, convocar-se-á, dentre os remanescentes, o de maior votação (CF, art. 77, § 4º)

            Isso visa evitar conchavos entre os candidatos mais votados, de modo que um concordasse em desistir, com o que o outro seria considerado eleito, mesmo sem satisfazer o princípio da maioria absoluta.

            Se todos os candidatos desistirem, a Constituição não aponta a solução. Mas se tivermos em mente que o princípio é o da maioria absoluta, e não dos dois turnos, parece plausível admitir a anulação da eleição, que resultara fraudada.

            O eleito conquista um mandato de quatro anos (CF, art. 82), do qual tomará posse, no dia primeiro de janeiro do ano seguinte ao de sua eleição, perante o Congresso Nacional.

            A duração do mandato do presidente da república tem variado na história constitucional brasileira. Já foi fixado em seis anos (CF de 1937 e emenda nº 8/77 à de 1969), em cinco (CF de 1946 e 1969) e em quatro (CF de 1891, 1934, 1967 e 1988).

            A emenda constitucional nº 16/97 inovou na ordem constitucional brasileira, ao admitir a reeleição do presidente da república para um único período subseqüente (CF, art. 14, § 5º).


Decorrências da presidência

            A eleição do presidente implica automaticamente a do vice-presidente com ele registrado, que sequer é votado.

            Ao vice cabe substituir o presidente, nos casos de impedimento, suceder-lhe no caso de vaga e auxiliá-lo, sempre que por ele convocado para missões específicas (CF, art. 79, parágrafo único).

            Outros substitutos são o presidente da Câmara dos Deputados, o do Senado Federal e do Supremo Tribunal Federal, que serão chamados, se ocorrer o impedimento concomitante do presidente e do vice, no caso de vacância de ambos os cargos (art. 80).

            Pelo exercício de seus mandatos, eles têm direito a estipêndios mensais, em forma de subsídios em parcela única e fixados pelo Congresso Nacional (art. 49, VIII), que manda observar o art. 39, § 4º, sendo determinada a observância do teto, que são os subsídios dos ministros do Supremo Tribunal Federal.

            Depois da posse, os dois mais altos mandatários da nação podem perder os respectivos cargos para o qual foram eleitos.

            Havendo condenação proferida pelo Senado Federal, por dois terços dos votos, em processo de impeachment, pela prática de crime de responsabilidade, após ter sido admitida a acusação pela Câmara dos Deputados, também pelo quorum qualificado (arts. 51, I, 52, I e parágrafo único, e 85), haverá cassação.

            Igualmente, quando houver condenação proferida pelo Supremo Tribunal Federal pela prática de crime comum (art. 102, I, b).

            Se acontecerem casos de morte, renúncia, perda ou suspensão dos direitos políticos e perda da nacionalidade brasileira, haverá extinção.

            O Congresso Nacional poderá declarar a vacância do cargo, na hipótese de não tomarem posse dos cargos para os quais foram eleitos, se decorridos dez dias da data fixada (art. 78, parágrafo único).

            Como a data fixada é primeiro de janeiro e o prazo vence a onze de janeiro, contando-se a partir do dia seguinte, ou seja, dois de janeiro, inclusive, (arts. 78 e 82), o não comparecimento no prazo indicado, salvo motivo de força maior, vale como renúncia, que é ato unilateral, que não depende de aceitação pelo Congresso Nacional para produzir seus conseqüentes efeitos jurídicos. A hipótese então é de extinção do mandato, e o ato congressual de seu reconhecimento é meramente declaratório.

            O artigo 83 declara que não poderão eles, sem licença do Congresso Nacional, se ausentar do país por período superior a quinze dias, sob pena de perda do cargo.

            A competência para aplicar a pena de perda do cargo é do Congresso Nacional. Só a ele cabe dar a licença (arts. 49, III, e 83).

            A ausência do país, por mais de quinze dias, salvo motivo de força maior, equivale a renúncia. Trata-se de extinção de mandato, não cabendo sua declaração a nenhum órgão jurisdicional, por cuidar-se de questão política.


As atribuições do Executivo

            O presidente da República deve exercer o poder dentro dos limites estabelecidos pela carta política, sob pena de afastamento pela prática de crime de responsabilidade.

            São múltiplas as suas atribuições. A CF (art. 84) consigna as privativas e de prática diuturna. Existem outras, no entanto, em decorrência de sua posição constitucional.

            Como Chefe de Estado, mantém relações com Estado estrangeiro, celebra tratados, convenções e atos internacionais (incisos VII, VIII), nomeia ministros dos tribunais superiores, por ser função de magistratura suprema (inciso XIV), nomeia um terço dos membros do Tribunal de Contas da União, órgão não executivo (inciso XV), declara a guerra e celebra a paz (incisos XIX e XX).

            Como Chefe do Governo, nomeia e exonera os ministros de Estado, inicia o processo legislativo, sanciona e promulga leis, veta projetos de lei, decreta o estado de defesa, o estado de sítio e a intervenção federal, remete mensagem e plano de governo ao Congresso Nacional, concede indulto e comuta penas (incisos I, III, IV, V, IX, X, XI e XII).

            Como Chefe da Administração, exerce a direção superior da administração federal, organizando o seu funcionamento e extinguindo as funções ou cargos públicos, nomeia o Advogado-Geral da União, órgão do Poder Executivo, presta contas ao Congresso Nacional, referentes ao exercício anterior, provê e extingue cargos públicos federais (incisos II, XVI, XXIV e XXV).

            Entre as suas atribuições, destaca-se a de "expedir decretos e regulamentos" para a fiel execução das leis (inciso IV, última parte).

            A faculdade de regulamentar é atribuída também aos chefes do Poder Executivo nas demais esferas de poder político (governadores e prefeitos), por disposições semelhantes das respectivas constituições estaduais e leis orgânicas municipais.

            Se o regulamento é o ato normativo expedido pelo Poder Executivo, não pode contrariar leis nem criar direitos e obrigações.

            Somente a lei pode criar obrigações, em razão do princípio constitucional da legalidade: "Ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei" (art. 5, II).

            A lei depende da Constituição (art. 59, II, III e IV). Nela encontra o seu fundamento de validade. Ao contrário, o regulamento depende da lei, onde se encontra a sua base de legitimidade (inciso IV).

            Apesar de ser também norma abstrata e geral, difere o regulamento da lei, por não importar em modificação da ordem jurídica.

            O meio pelo qual o presidente da República pratica os atos de sua competência é o decreto. Todos os seus atos inclusive os regulamentos, que contêm disposições gerais, são editados na forma de decretos. Entre eles estão a organização e funcionamento da administração federal e a extinção de funções ou cargos públicos (inciso VI, alíneas a e b).


Responsabilidade do Executivo

            Não existe governante irresponsável nos regimes democráticos. Nem há democracia representativa sem eleição. As autoridades eleitas para exercitar o governo devem responder pelo uso que dele fizerem. Como diz Paulo Brossard de Souza Pinto, in O impeachment, pág 9, Livraria do Globo, 1965, "governo irresponsável, embora originário de eleição popular, pode ser tudo, menos governo democrático".

            No sistema parlamentarista, a responsabilidade do governo apura-se perante o Parlamento, com o voto de desconfiança ou a moção de censura.

            No presidencialismo, o próprio presidente é responsável, ficando sujeito a sanções de perda do cargo por infrações definidas como crime de responsabilidade, apuradas em processo administrativo pelas Casas do Congresso Nacional.

            Esses crimes serão infrações políticas, quando atentarem contra a existência da União, contra o livre exercício do Poder Legislativo, contra o exercício dos direitos políticos, individuais e sociais, contra a segurança interna do país (CF, art. 85, I-IV). Serão crimes funcionais, no caso de atentarem contra a probidade da administração, a lei orçamentária e o cumprimento das leis e das decisões judiciais (art.85, V-VII).

            O procedimento para julgamento dos crimes de responsabilidade começa com a sua denúncia, que pode ser apresentada por qualquer cidadão (lei 1079/50, art. 14). Compete à Câmara dos Deputados o juízo de admissibilidade da acusação, com o quorum qualificado de 2/3 dos votos (art. 51, I e 86).

            Admitida a acusação, cabe ao Senado Federal, sob a presidência do presidente do Supremo Tribunal Federal, o processo e julgamento do mérito da acusação (art. 52, I e 86). O Senado Federal atua, nesse caso, como órgão judicante, com o objetivo de assegurar uma direção imparcial e técnica a um órgão de composição essencialmente política.

            A Constituição estabelece duas sanções para os condenados pela prática de crime de responsabilidade: a) perda do cargo e b) inabilitação por oito anos para o exercício de função pública (art. 52, parágrafo único). É isso que caracteriza o chamado impeachment.

            A idéia subjacente era a de que "com inabilitação" importava numa conseqüência advinda da decretação da perda do cargo. Mas o Senado Federal, no caso Collor de Mello, deu outra interpretação ao texto, de onde proveio a compreensão de que a renúncia ao cargo, durante o processo de julgamento, não implica a sustação deste, que prosseguirá para confirmar a inabilitação pelo prazo indicado.

            Deu-se à perda do cargo pela renúncia o mesmo efeito da perda por decisão do juízo político. No caso Collor de Mello, o Senado teve que se pronunciar precisamente, porque a renúncia se dava exatamente no momento do julgamento e cumpria verificar, à falta de precedentes, se o processo se encerrava ou se prosseguia o julgamento.

            A decisão foi no sentido de que o julgamento prosseguia e, em prosseguindo, concluiu, como não poderia ser diferente, pela inabilitação, considerando esta decorrente da perda do cargo pela renúncia.


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Informações sobre o texto

Texto baseado em série originalmente publicada no "Jornal da Cidade", de Caxias (MA), entre 27/11/2005 e 02/04/2006.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LIMA, Máriton Silva. Estudos sobre o Poder Executivo. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 11, n. 991, 19 mar. 2006. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/8108. Acesso em: 29 mar. 2024.