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O caráter normativo dos princípios jurídicos

O caráter normativo dos princípios jurídicos

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A fim de superar o positivismo e seus métodos arcaicos de interpretação, o Supremo Tribunal Federal vem, de maneira acrítica, importando uma doutrina alemã que já há muito é alvo de severas objeções.

SUMÁRIO: 1 – Introdução. 2 – A teoria dos sistemas de Niklas Luhmann. 2.1 – O direito como sistema em Luhmann. 2.2 – Fechamento operacional e acoplamento estrutural dos sistemas. 2.3 – O Poder Judiciário e sua posição no sistema jurídico. 3 – O direito entre faticidade e validade: uma crítica à opção metodológica pela jurisprudência de valores. 3.1 – Algumas considerações de Jürgen Habermas acerca da teoria dos sistemas de Niklas Luhmann. 3.2 – Jurisprudência de valores: o impacto e a recepção de teoria de Robert Alexy pelo Judiciário. 3.3 – A crítica de Jürgen Habermas a jurisprudência de valores: o código binário do direito e sua validade deontológica. 4. Os problemas de um Judiciário autocrático. 5. Conclusões. Referências Bibliográficas.


1 – Introdução

Em 2002, o Supremo Tribunal Federal conheceu de uma reclamação formulada contra uma decisão do juízo federal da 10ª Vara da Seção Judiciária do Distrito Federal. A decisão do juízo ordinário autorizava a coleta da placenta da extraditanda grávida, a cantora Glória Treviño Ruiz, que se encontrava recolhida em uma carceragem da Polícia Federal. A coleta serviria para a realização de um exame de DNA num inquérito policial que investigava os fatos relacionados à gravidez da cantora, uma vez que esta teve início dentro da carceragem. A cantora acusava funcionários daquele órgão público. No mérito da decisão, o Supremo Tribunal Federal autorizou a realização do exame de DNA, asseverando expressamente, como se pode constatar no Informativo do STF de nº 257, que o Tribunal fazia uma ponderação de valores constitucionais contrapostos: o direito à intimidade e à vida da extraditanda e o direito à honra e à imagem dos servidores e da Polícia Federal como instituição [01].

A adoção da ponderação de valores como opção metodológica para fundamentação de decisões tem sido uma constante no Brasil. A fim de superar o dito positivismo e seus métodos arcaicos de interpretação, o Supremo Tribunal Federal vem, de maneira acrítica, importando uma doutrina alemã que já há muito é alvo de severas objeções. A referida utilização dessa doutrina para a fundamentação de decisões tem sido feita por parte dos juízes ordinários e tribunais inferiores. Comparando direitos a valores, tal doutrina coloca em cheque o próprio conceito de direito, o que nos leva a uma reflexão sobre os limites da atuação do Poder Judiciário no Estado Democrático de Direito. Até que ponto juízes e tribunais se submetem a um direito promulgado pelo legislador? Há realmente uma possibilidade de justificação racional de decisões baseadas numa jurisprudência de valores? O sistema do direito perde sua diferenciação com tais decisões?

O trabalho que se segue não visa dar uma resposta final a todas estas questões. Limitar-me-ei a expor alguns pontos das teorias de Luhmann e Habermas que podem esclarecer a questão, bem como a apresentar os contornos de uma doutrina "deontológica" do direito.


2 – A teoria dos sistemas de Niklas Luhmann

Niklas Luhmann, jurista e sociólogo, pretendeu desenvolver uma teoria para a sociedade. Seu projeto almejou explicar sociologicamente vários setores da sociedade (direito, religião, política, economia etc) para, ao fim, tentar traçar um panorama da moderna e complexa sociedade contemporânea. De modo crítico, Luhmann assume a ambição de Talcott Parsons (de quem foi aluno, nos anos de 1960 e 1961, em Harvard) de elaborar uma teoria geral da sociedade, fundamentada numa proposta funcionalista (IZUZQUIZA in LUHMANN, 1997, p. 11), já não mais conciliadora (um "estruturalismo funcional"). Há na teoria luhmanniana uma constante pretensão de generalidade, nunca reduzindo os fundamentos científicos apenas a um âmbito particular de incidência. Com isso, cresce proporcionalmente a capacidade de uma proposta teórica gerar problemas a serem discutidos e investigados, algo que evidencia a contemporaneidade da obra do autor [02]. Além disto, a teoria de Luhmann revela um apego evidente a multidisciplinariedade, englobando conceituações e proposições próprias da cibernética, da neurociência e outras áreas do conhecimento.

Um ponto de extrema importância refere-se ao reconhecimento por Luhmann da complexidade da sociedade moderna e o intento que ele relega à ciência de tentar reduzir tal complexidade. Assim, ele coloca a ciência dentro dos seus limites próprios e assume noção de sua precariedade. A complexidade é entendida como a abundância de relações, possibilidades, conexões, sem que seja possível estabelecer uma linha contínua entre cada elemento (IZUZQUIZA in LUHMANN, 1997, p. 16). O problema próprio de uma sociedade complexa como a hodierna é o da impossibilidade de se referir apenas a um centro; nisto se revela a marcada diferenciação desta sociedade. Tal diferenciação é extremamente importante em nossa análise para que possamos entender a autonomização de sistemas como o direito frente a outras ordens normativas, como a moral e a ética. A complexidade da sociedade moderna é enfrentada pela própria assunção de um paradoxo: só é possível reduzir complexidades aumentando a própria complexidade. Daí que uma teoria da sociedade que pretenda reduzir a complexidade da mesma deverá ser, ela mesma, complexa.

Esse primeiro paradoxo demonstra muito acerca do que a teoria dos sistemas de Luhmann tem a dizer. O direito, assim como outros subsistemas sociais, é construído sobre um paradoxo. Um paradoxo que é enfrentado de forma criativa. É ele quem revela que um sistema é autopoiético [03].

O paradoxo é que é a unidade é, necessariamente, circularidade; sempre que procurarmos pelas fundações nos defrontaremos com soluções provisórias e ineficientes: os paradoxos têm uma fatal inclinação a reaparecer. Aportando o modelo autopoiético para a sua teoria, Luhmann assume, então, que a circularidade é constitutiva da realidade e que, portanto, o paradoxo é o pressuposto da própria autopoiése do sistema. (NEUENSCHWANDER MAGALHÃES, 1998, p. 83)

Ao incorporar a teoria dos sistemas, Luhmann procede a uma reformulação do conceito de sistema de modo a que ele possa se tornar um meio adequado para a descrição da sociedade e para a elaboração de uma teoria adequada, nunca uma finalidade da própria teoria dos sistemas (IZUZQUIZA in LUHMANN, 1997, p. 17).

2.1 – O direito como sistema em Luhmann

O conceito de sistema apresentado por Luhmann é fruto da evolução e desenvolvimento da teoria dos sistemas. Ele admite um conceito de sistema auto-referente, apartado em pontos do conceito clássico difundido por von Bertalanffy (IZUZQUIZA in LUHMANN, 1997, p. 18). O conceito clássico precisava que um sistema é um conjunto de elementos que mantêm relações entre si e que se encontram separados de um certo ambiente. A relação entre sistema e ambiente desempenha um importante papel na caracterização do próprio sistema e o sistema se define a partir, sempre, de um certo ambiente. Na teoria dos sistemas auto-referentes, o sistema se define precisamente por sua diferença em relação ao ambiente, uma diferença incluída no próprio conceito de sistema. O sistema só pode ser entendido a partir da diferença em relação ao ambiente. Mais à frente, tal sistema pode ser observado como um sistema auto-referente e autopoiético. Assim, ele pode criar tanto sua estrutura quanto os elementos que o compõem.

De este modo, al unir la autorreferencia – que hace al sistema incluir en sí mismo el concepto de entorno – y la autopoiesis – que posibilita al sistema elaborar, desde sí mismo, su estructura y los elementos de que se compone –, Luhmann posee una base teórica que aplicará universalmente a su propia teoría. (IZUZQUIZA in LUHMANN, 1997, p. 19)

Pode-se conceituar um sistema como o conjunto de elementos inter-relacionados, cuja unidade é dada por suas interações. As propriedades destes elementos são distintas das propriedades da soma dos mesmos (CHAI, 2004, p. 50). Os sistemas podem ainda se constituir como elementos de sistemas ainda maiores.

O sistema é sempre menos complexo que seu ambiente, já que a ele se refere na medida em que pode reduzir a sua complexidade. Por isso uma teoria sociológica deve ser complexa: para lidar com sistemas complexos (MANSILLA in LUHMANN, 2002, p. 28). A base dos sistemas sociais é a pergunta pela diferença, por possibilidades outras.

Um sistema só pode se diferenciar na medida em que o faz em relação ao seu ambiente. O sistema traça, por intermédio de suas operações, seus próprios limites em relação aos elementos que não lhe pertencem e que, justamente por isso, fazem parte de seu ambiente. Ele não opera para além de seus limites, o que não significa um total isolamento do sistema. As operações são, realmente, sempre internas, mas através da observação os limites podem ser passíveis de serem transcendidos, verificando-se várias formas de interdependência entre sistema e ambiente. As operações de um sistema funcionam de acordo com o código do sistema. A codificação é uma duplicação da comunicação a partir de uma afirmação e de uma negação.

Con código se entiende una regla de duplicación que permite relacionar toda entidad que caiga en su campo de aplicación con una entidad correspondiente. Esto es válido en primer lugar para el código del lenguaje [...] que permite relacionar toda enunciación positiva (Ja-Fassung) con una enunciación negativa correspondiente (Nein-Fassung): el enunciado negativo hoy llueve puede entenderse como la negación del enunciado negativo hoy no llueve. Con base en el lenguaje, esto es válido para los códigos de los diversos sistemas de funciones [...] basados siempre en un esquema binario. (CORSI, ESPOSITO e BARALDI, 1996, p. 40)

O código com o qual opera o direito é o código direito/não direito (recht/unrecht). O código binário de um sistema importa na utilização da lógica do terceiro excluído: uma comunicação científica é verdadeira ou não é verdadeira, não havendo um meio termo. Os códigos são distinções com as quais um sistema observa [04] suas próprias operações e define sua unidade. A corrupção do sistema ocorre sempre que ele opera sem obediência ao seu próprio código. Ao sistema jurídico só interessam as comunicações [05] que se referem à legalidade ou ilegalidade. Por isso mesmo, o não direito também interessa ao sistema do direito. O não direito faz parte do sistema jurídico. Nada é indiferente ao direito. O não direito é o que é antijurídico ou o que não foi objeto de deliberação jurídica.

Para Luhmann, o direito é uma forma especial de comunicação, a unidade da diferença direito/não direito. Ele é um sistema como os outros: não está no topo da sociedade e não cumpre uma função de integração social, como quer Habermas [06]. Uma sociedade fracionada e constituída por um completo descentramento não se deixa sujeitar passivamente. O direito deverá enfrentar a racionalidade de outros sistemas que se desenvolvem numa lógica própria. Luhmann, ao contrário de Habermas, não cria uma teoria para justificar o direito, mas sim para descrevê-lo.

Se o direito não pode cumprir a função de integração social, qual a sua função [07]? Na sociedade, sempre ocorrerá uma diferenciação funcional quando a sociedade estiver diante de um problema e precisar resolvê-lo. O direito tem que comunicar expectativas de comportamento e fazer com que elas sejam reconhecidas. O significado social do direito é reconhecido quando há conseqüências sociais justamente em virtude de que ele pode estabilizar expectativas temporais (LUHMANN, 2002, p. 183). É a dimensão temporal da função do direito. A função do direito pode ser assim dividida:

- O direito deve expressar expectativas de comportamento;

- O direito deve comunicar tais expectativas;

- O direito deve fazer com que elas sejam reconhecidas.

A função do direito não é a de controlar condutas; se as condutas fossem controláveis, o direito seria despiciendo. A conduta é sempre contingente, ou seja, é algo que é como é, mas poderia ser de outra maneira (MANSILLA in LUHMANN, 2002, p. 30). Contingência é liberdade de escolha, mas, ao mesmo tempo, obrigação de escolher. O direito protege apenas a expectativa de condutas. A norma pode no máximo oferecer vantagens para quem a obedece.

2.2 – Fechamento operacional e acoplamento estrutural dos sistemas

Um dos pressupostos da autopoiése dos sistemas é o seu fechamento operacional. Nada que provenha do exterior do sistema pode se tornar elemento seu. Sistemas autopoiéticos criam seus elementos por meio de operações internas, sem se importar com o ambiente. O que não significa que o sistema possa se manter sem necessidade do ambiente. O sistema está permanentemente vinculado ao ambiente, naquilo que Maturana descreve como acoplamento estrutural (MANSILLA in LUHMANN, 2002, p. 31). O acoplamento estrutural é uma constante, uma condição de sobrevivência do sistema.

Sistemas autopoiéticos estão determinados estruturalmente. Tudo que se dá num sistema é uma possibilidade de antemão contemplada na sua própria estrutura e não segundo a lógica do agente que intervém. Este só pode fazê-lo pelo modo definido na estrutura do sistema.

Sistemas sociais estão fechados operacionalmente. As comunicações que constituem seus elementos são produzidas no interior do sistema e não advêm de seu ambiente. Para que um certo fenômeno possa ser tematizado na comunicação, é preciso que ele apele para alguma possibilidade do sistema que guarde sintonia com o mesmo.

O acoplamento estrutural é uma adaptação permanente entre sistemas diferentes, que mantêm, não obstante, sua especificidade. Todo sistema se adapta ao seu ambiente; não fosse assim, ele nem poderia existir. O sistema realiza suas operações em condições de absoluta autonomia. Acoplamento estrutural e autodeterminação do sistema encontram-se numa relação ortogonal, no sentido de que ainda pressupondo-se, eles não podem se determinar reciprocamente (CORSI, ESPOSITO e BARALDI, 1996, p. 19). O ambiente pode afetar o sistema apenas à maneira de irritações que são reelaboradas internamente. Irritações são também construções internas, resultantes da confrontação de eventos com estruturas do sistema. Uma irritação é sempre uma auto-irritação.

Daí a tese de Luhmann de que a Constituição promove o acoplamento estrutural entre os sistemas da política e do direito.

Portanto, deve-se distinguir: a Constituição utiliza conceitos como povo, eleitor, partidos políticos, Estado remetendo-se assim à política. Esses conceitos, no entanto, enquanto conceitos do texto constitucional , não podem ser outra coisa senão conceitos jurídicos eventualmente redutíveis a conteúdos judiciáveis. Na hipótese de uma descrição externa do sistema jurídico, a mesma categoria (fattispecie) pode ser, no entanto, formulada de outro modo. As referências ao sistema político estabelecem ao mesmo tempo um acoplamento estrutural entre o sistema jurídico e o político que se coloca "ortogonalmente" em relação às operações internas ao sistema e que não pode ser por ele apreendido. Todas as distinções especificamente jurídicas pressupõem o sistema que opera com esse acoplamento na qualidade de operador, como elemento de distinção, como contexto autopoiético de comunicação presente na sociedade. Neste plano implícito, o conceito de acoplamento estrutural descreve uma condição socialmente indispensável (embora historicamente variável em suas formas) de diferenciação. E é precisamente isso o que antes se buscava dizer com a tese de que a autoreferenciabilidade permanece incompleta na medida em que não pode assumir por si o referência discernidora. A Constituição constitui e ao mesmo tempo torna invisível o acoplamento estrutural entre direito e política. (LUHMANN, s/d, p. 7)

A Constituição, de um lado, vincula o sistema político ao direito, com a conseqüência de que o comportamento contrário ao direito resulta no fracasso político. Por outro lado, a Constituição permite que o sistema político, através da promulgação das leis, modifique o direito. Apesar do acoplamento estrutural, como noticia Mansilla (in LUHMANN, 2002, p. 51), as operações recursivas internas de cada sistema se mantêm separadas. O significado político de uma lei é diferente de sua validade jurídica.

2.3 – O Poder Judiciário e sua posição no sistema jurídico

Luhmann (2002, p. 359) assevera que o processo de diferenciação de um sistema implica na sua diferenciação interna [08]. O próprio sistema do direito só entra num processo de diferenciação se ele mesmo tenha se diferenciado internamente. Luhmann observa, contudo, que ainda não se decidiu acerca da forma de diferenciação interna.

A ordem geral do sistema do direito pode ser vislumbrada no fato de que a relação entre sistema e ambiente dos subsistemas é limitada pelas disposições que regulam as relações entre sistemas. Tais disposições podem prever diversos graus de liberdade, diferentes graus de densidade da integração, segundo a própria evolução do sistema. Há uma infinidade de tribunais que se assemelham e que devem se tratar reciprocamente como iguais. Mas há muito, surgiram formas de diferenciação que se apóiam na desigualdade. Por exemplo, cita Luhmann (2002, p. 360), tribunais e advogados, tribunais e legisladores. Com isso, há mais diferenciação e maiores graus de liberdade no interior do sistema. Para Luhmann (2002, p. 361) importa, sobretudo, o posicionamento dos tribunais como sistemas parciais, ou subsistemas, do direito.

De Roma até uma época avançada da modernidade, tem-se conservado a idéia de que legislação e julgamento são variáveis de uma mesma tarefa: a jurisdictio (dizer o direito). Em tal sentido, a diferenciação do direito frente à ordem estratificada e a influência das famílias dependia de uma autonomia um tanto quanto precária do poder político. Com os séculos XVI e XVII, de uma maneira quase desapercebida, a compreensão legislativa se desloca do contexto da jurisdictio para o contexto da soberania. Por séculos, em tal processo estavam fundidas as idéias de soberania política e de soberania jurídica.

La eminencia del concepto de ley exige que se incluyan en la competencia legislativa, otras competencias parciales: la competencia de anular y cambiar a ley, la competencia de derogarla mediante privilegios que "rompen con la ley" y, no por último, la competencia de interpretar la ley en lo que se ahora se ha dado en llamar "hard cases". (LUHMANN, 2002, p. 363)

Apenas com o devir do século XVIII a diferenciação entre legislar e julgar adquire a conotação que hoje conhecemos. Bentham foi quem pugnou, no modelo da common law, por tal separação, sem que sua proposta se concretizasse.

A diferenciação entre competência legislativa e competência judicial tem como referência os correspondentes procedimentos. Tem por suposição a evolução de normas de competência e sua delimitação restritiva. O juiz aplica as leis, obedecendo às instruções do legislador; por outro lado, o mesmo legislador deve levar em conta o modo de proceder dos tribunais para editar novas leis. Isto é o que permite representar a diferença como uma espécie de círculo cibernético pelo qual o direito se observa a si mesmo como uma observação de segunda ordem (ou seja, um outro sistema observa o sistema). O juiz deverá entender o que o legislador quis dizer, ou seja, como ele observou o mundo. Por isso os métodos de aferição da "vontade do legislador". Desse modo, a relação entre competência legislativa e competência judicial é estabelecida segundo uma hierarquia. O tribunal é o órgão executivo da competência legislativa e a metódica jurídica é entendida como mera dedução. Há muito se sabe que tal interpretação não corresponde à realidade, mas ao mesmo tempo se compreende que a nova agudeza da distinção (legislação/jurisprudência) só se pode perceber e recomendar com a ajuda de um conceito unitário (LUHMANN, 2002, p. 365).

Por eso el derecho se acentúa como sistema, en el sentido de que su multiplicidad emerge de un principio. Por eso, se resalta que el método es una deducción que no tolera desviaciones. Por eso, se exige el référé legislatif como recurso para aquellos casos que presentan problemas de interpretación. Y, por eso, no era ningún problema conceptuar el sistema de derecho paralelo (o idénticamente) al orden político. (LUHMANN, 2002, p. 365)

De uma maneira muito rápida a realidade se contrapôs a tal conceito de diferenciação. Não há como retirar dos tribunais sua competência de interpretar as leis. Os tribunais devem decidir até que ponto podem se utilizar da interpretação para decidir e até que ponto devem exigir do legislador que altere o direito positivo. "Y sólo esta concepción de tarea judicativa es la que posibilita llegar a prohibir la denegación de justicia y a exigir que los tribunales deban decidir sobre todos los casos que les presenten" (LUHMANN, 2002, p. 365).

Assim, do século XIX em diante, os poderes de interpretação dos juízes têm crescido de uma maneira ampla [09]. Os juízes estão sempre diante da seguinte questão:decidir sobre cada caso e decidir de maneira justa. Tal significa, para Luhmann (2002, p. 366), aplicar a igualdade aos casos concretos através da utilização das mesmas regras. Uma interpretação de uma lei deve ser justa. Pontos de vista de justiça restringem tanto a necessidade de decidir como a liberdade de buscar razões para tanto. É a tríade necessidade, liberdade e restrição que produz o direito em Luhmann.

Para que houvesse tal desenvolvimento havia uma hipótese de proteção, a qual estipulava que o legislador teria agido racionalmente e, desse modo, também de forma racional deveriam ser os textos interpretados. Com isso, foi mantida a hierarquia entre a atividade legislativa e a judicante. O método seria a garantia de coincidência entre o hierarquicamente superior e o hierarquicamente inferior. Em auxílio desta idéia, estava a doutrina da plenitude ou ausência de lacunas do direito como uma ficção útil, bem como a diferenciação entre letra e espírito da lei. Em confrontação se posicionaram a retórica e a tópica como críticas às ambições de alcance dos métodos. No ápice dessa oposição, as doutrinas do realismo jurídico [10] pregavam a idéia de que só é válido o direito que os tribunais podem ditar. Conseqüência disto é a de que a relação entre competência legislativa e judiciária passa a ser muito mais uma relação de circularidade e não de assimetria linear, realizando uma restrição recíproca do espaço de decisão.

Segundo Luhmann (2002, p. 367), à diferença da legislação, no exercício da adjudicação trata-se da aplicação do direito a situações particulares. Com a necessidade de fundamentação das decisões e com a premissa geralmente aceita de que o Judiciário só age sob provocação, torna-se seguro que a decisão seja concreta e que o desenvolvimento de regras se dê paralelamente. Já com o apoio da relação assimétrica entre legislação e jurisprudência e de meios conceituais derivados, como a doutrina das fontes do direito, busca-se evitar a circularidade da assunção da idéia de que o tribunal "cria" o direito que "aplica". Há a assimetrização [11] de uma relação que, de outro modo, permaneceria circular. O círculo não apareceria se os tribunais, no momento em que não encontrassem o direito, em lugar de decidir se contentassem em dizer que não está claro o direito – non liquet. Isto não é possível do ponto de vista do direito. O fato de que o sistema se confronte internamente com a necessidade de decidir nada mais é do que a conseqüência correspondente ao desacoplamento do sistema em relação a qualquer participação direta do ambiente. Mas, nesse caso, o que os tribunais fazem? Eles realmente decidem (LUHMANN, 2002, p. 369)?

A decisão sempre está ligada a uma alternativa no que respeita a caminhos a serem seguidos e suas ulteriores derivações. Por isso, a decisão é o terceiro excluído da própria "alternatividade" da alternativa. É a diferença que constitui a alternativa, ou melhor, a unidade dessa diferença. Em outras palavras, um paradoxo. A decisão sempre pressupõe algo que é não é passível de decisão, e não apenas que não está decidido. De outro modo, a decisão já estaria anteriormente tomada e seria o caso de apenas reconhecê-la. O paradoxo está na relação deste terceiro excluído com a alternativa que ele constrói para se manter excluído – para poder decidir –, ad instar do observador que não pode ser ele mesmo a distinção com a qual distingue, mas dever ser, antes, o ponto cego da observação. A isso tudo Luhmann diz que é acrescentado um problema de tempo (2002, p. 370). No mais das vezes, aceita-se que um sistema só existe no momento em que opera; por isso, o sistema sempre parte de um mundo simultâneo (é dizer, não controlável) ao momento. Daí se poder utilizar o presente como o momento da decisão. Cuida-se de solidificar o que já é modificável (em relação ao passado) e o possivelmente modificável (em relação ao futuro) para introduzir no mundo (este simultâneo) a forma de uma alternativa. No que respeita ao passado e ao futuro, pode-se comportar de maneira seletiva, já que os horizontes não necessariamente são atuais. Com tal comportamento, é possível apreender a situação como uma situação de decisão, uma decisão só possível se concebida temporalmente desta maneira.

Uma tal análise da decisão possui relevantes conseqüências, ainda que inaceitáveis do ponto de vista jurídico. Uma decisão não estaria determinada pelo passado, mas operaria dentro de sua própria construção que só é possível no presente. De outro lado, a decisão tem conseqüências para os presentes no próprio futuro. Com isso, a decisão não se deixa determinar pelo passado, mas busca determinar o futuro, ainda que isso seja parcialmente impossível diante da contingência de novas decisões. Por isso os tribunais se preocupam com as conseqüências de suas decisões e buscam legitimá-las pela valoração daquelas. Já que não é possível determinar todas as conseqüências diante de novas decisões, é que surge a ilusão de que o passado determina a decisão, entendido este como procedimento (LUHMANN, 2002, p. 371).

Com a modernidade, ficou assente que qualquer demanda requer uma decisão, ainda que não prevista na lei. Apenas com isto, o juiz deixou de ser mero servo da política.

Tal obrigação de decidir demonstra que se deve suspender a eterna interpretação do mundo ou dos textos. Mesmo que se possa contrariar, o juiz deve encontrar algo em que possa se fundamentar e que justifique o início da ação. Para que haja a capacidade da decisão, é necessária a previsão institucional, tornando o sistema do direito universalmente competente e capaz de decidir. Tal combinação se evidencia no princípio da não denegação da justiça. Mesmo nos hard cases [12], os tribunais devem tomar uma decisão, não obstante as regras para tanto sejam duvidosas (LUHMANN, 2002, p. 376).

Luhmann (2002, p. 378) questiona a natureza da norma de proibição de denegação da justiça. Para ele, trata-se de uma disposição autológica, ou seja, que inclui a si mesma no seu campo de aplicação. Se há coação para que se decida, está excluído de antemão tudo aquilo que não é decisão, de vez que infringe a disposição autológica. Mas quem procede à aplicação de tal disposição? Os próprios tribunais? Há um paradoxo aqui. Os tribunais devem decidir onde não podem decidir. E se não podem, devem se esforçar por poder; se não se encontra o direito, deveria ele ser inventado (LUHMANN, 2002, p. 379). O paradoxo da decisão que não se pode decidir deve se desenvolver de um ou de outro modo, deve se traduzir em distinções manejáveis como decisão/conseqüência, princípio jurídico/aplicação.

Que los tribunales se vean en la necesidad de decidir es el punto de partida para la construcción del universo jurídico, para el pensamiento jurídico y para la argumentación jurídica. Por eso, todo depende de que las decisiones anteriores que orientan perduren: salvo que se las cambie. Por eso, la res judicata es intocable, a no ser que se apliquen reglas excepcionales prevista por el derecho. Y, por eso, el derecho debe aprehenderse como un universo cerrado en sí mismo en el que, aun bajo tensiones sociales extremas, se puede practicar la "argumentación puramente jurídica" que decide por sí misma los espacios de interpretación que se pueden permitir, y en el que se puede rechazar la deformación pretendida. (LUHMANN, 2002, p. 379)

Tal necessidade de decidir traz conseqüências nos procedimentos de que se utilizam os tribunais. O sistema se orienta por regras de decisão (programas) que servem para especificar pontos de vista de seleções. Ao final, importam apenas os valores do código direito/não direito com os quais é possível julgar, não importando os aspectos moralistas, políticos ou econômicos. O sentido de um sistema do direito que se apóia na Constituição tem que ver com a garantia procedimental (aceitabilidade racional), já que o processo não pode prometer a cada um que o direito decidirá a seu favor.

Debilidade metodológica, perda de certeza, a queda das diretrizes dogmáticas e a crescente falta de limites entre legislação e jurisprudência, são todas conseqüências da necessidade de que se decida. Por isso cresce a importância de um olhar crítico sobre os tribunais (LUHMANN, 2002, p. 380).

Assim, é o imperativo de decidir que distingue os tribunais das demais instituições do sistema do direito. Os tribunais, ao contrário de outras instituições de direito, devem decidir qualquer caso que se lhes apresente. Só a eles cabe manejar o paradoxo do sistema. Eles devem transformar a indeterminação em determinação; só eles podem transformar necessidade em liberdade.

A unidade de um sistema se expressa através de distinções que buscam esconder o que manifestam. Isso é possível, estruturalmente, por meio do processo de diferenciação, ou seja, pela multiplicação, dentro do sistema, da distinção sistema/ambiente.

Se for adequada a assertiva de que aos tribunais compete a tarefa de superar o paradoxo do sistema de direito – como se exige e se esconde o paradoxo da proibição de denegação de justiça –, pode-se dizer que é dissolvida a possibilidade de descrever a diferenciação do sistema de direito como uma organização hierárquica. O legislador fixa as condições com as quais os tribunais podem entender, aceitar e praticar a adjudicação: isto nada mais é do que firmar sua existência. Assim, Luhmann (2002, p. 383) propõe a substituição da cadeia hierárquica por uma diferenciação entre centro e periferia. A organização da jurisdição seria um sistema parcial no qual o sistema do direito tem seu centro. A tomada de posição da magistratura significa que o juiz se subordina a restrições de comportamento que não são válidas para qualquer pessoa, ou seja, ele deve atender à produção de regras jurídicas voltando-se para os standards metodológicos e de conteúdo vigentes. Para a periferia não há a necessidade de decidir; nela são manejados interesses de qualquer caráter, sem que seja necessária a distinção entre interesses legais e interesses ilegais. Justamente por isso, a periferia serve de zona de contato com outros sistemas de funções da sociedade, como economia, família ou política. Ao mesmo tempo, a legislação, cedendo à pressão política, infiltra-se em espaços outrora não alcançados pelo direito. É na periferia que as irritações [13] se formalizam (ou não) através do direito. Já os tribunais, como centro, possuem uma zona de atuação menor justamente porque só trabalham no código direito/não direito.

Regra geral: tanto quanto se encontre submetido de maneira irrestrita às pressões de seu meio (entorno) social, o sistema do direito é incapaz de se concentrar em determinadas perturbações, contudo não pode se furtar a elas. Particularmente no ordenamento constitucional brasileiro em razão de comando explícito: nenhuma questão de lesão ou ameaça a direito será (deveria ser) excluída da apreciação do Poder Judiciário. (CHAI, 2004, p. 63-64)


3 – O direito entre faticidade e validade: uma crítica à opção metodológica pela jurisprudência de valores

3.1 – Algumas considerações de Jürgen Habermas acerca da teoria dos sistemas de Niklas Luhmann

Para Habermas, o direito moderno cumpre as funções de integração social que as ordens sociais já não conseguem alcançar. Utilizando-se da ação comunicativa, o potencial de racionalidade da linguagem é explorado com aquele desiderato. Habermas (1998, p. 105) salienta que na medida em que se toma consciência do conteúdo ideal da validade do direito ocorre um choque entre o mesmo e as exigências de uma economia regulada pelo mercado e de um poder administrativo; nesse ínterim, a mesma autocompreensão normativa é posta em jogo por uma crítica das ciências sociais. Tal crítica parte de dois flancos:

- de um lado o direito tem que sustentar a pretensão de que nem o subsistema econômico e nem o sistema regulado pelo poder administrativo podem fugir de uma integração social mediada por uma consciência social global;

- de outro lado, a sociologia vê tal pretensão justamente como vítima de desencantamento.

O que procede de uma crítica à ideologia e de uma crítica ao poder é a mediatização de tal contradição no seio da sociedade. Teorias sociológicas, voltadas para a oposição entre pretensão e realidade, só são analisadas por Habermas (1998, p. 105/106) na medida em que se formam na objeção de que um direito já periférico deve despojar da aparência de normatividade se quiser cumprir suas funções na complexa sociedade hodierna. Antes de mais nada, segundo Habermas (1998, p. 106), a aceitação desse imperativo como correto retiraria parte do fundamento de uma teoria discursiva do direito que se conecta a uma autocompreensão normativa do direito, a limine descolado de uma realidade "cínica". Por outro lado, teorias filosóficas do direito voltam-se decididamente para o conteúdo moral das instituições jurídicas modernas. Elas formulam princípios para uma sociedade que se pretenda bem ordenada, mas de uma forma tão desgarrada da realidade que tal empresa enfrenta dificuldades de implementação.

A teoria dos sistemas supera o realismo marxista com seu conceito de sociedade descentrada, formada por vários subsistemas que se auto-observam e observam uns aos outros, mas que não se intervêm mutuamente, adotando uma atitude reflexiva acerca dessa relação. As capacidades transcendentais de sujeitos-consciência monadicamente concebidos por Husserl tornam-se propriedade de sistemas despidos da subjetividade das mônadas [14] da consciência, mas monadicamente encapsulados sobre si mesmos (HABERMAS, 1998, p. 110). De antemão, essa é uma afirmação de Habermas facilmente refutada pelas considerações tecidas acima acerca da teoria dos sistemas de Luhmann. Habermas parece não levar em conta conceitos como o de irritação presente na teoria luhmanniana, além do modo como, através do acoplamento estrutural, sistemas se observam e utilizam operações de outros para reconduzi-las no seu próprio código.

No caso do sistema do direito, sua diferenciação tem por base fundamental a possibilidade de diferenciar as expectativas "normativas" das expectativas do tipo "cognitivo". As expectativas têm um caráter de norma ou de conhecimento em função da forma que lhe serve de base para absorver a incerteza. A autocriação do sistema jurídico é normativamente fechada pelo fato de que só este sistema pode conferir um caráter juridicamente normativo a seus elementos e, desta forma, constituí-los como elementos (a normatividade não tem outra finalidade ulterior). Mas, ao mesmo tempo, e em relação a esse fechamento, o sistema jurídico é cognitivamente aberto. Em cada um de seus elementos e na correspondente reprodução destes, ele depende de sua capacidade de determinar se certas condições encontram-se, ou não, preenchidas. A cooperação entre o caráter normativo e o caráter cognitivo do sistema é uma condição para sua constante reprodução; desta combinação resulta a própria unidade do sistema. Enquanto o caráter de norma serve para a autocriação do sistema, à sua continuidade, na medida em que o diferencia do meio ambiente, o caráter cognitivo serve para a coordenação deste processo com o meio ambiente do sistema. (NEUENSCHWANDER MAGALHÃES, 1998, p. 86-87)

Para Habermas (1998, p. 110), Luhmann é o sucessor da fenomenologia transcendental da perspectiva da teoria dos sistemas, tendo ele dado um giro sobre a filosofia do sujeito e colocando-a sobre um objetivismo radical. Tal como Lévi-Strauss, Althusser e Foucault, os sujeitos perdem seu lugar e o direito de intencionalmente se integrar através de suas própria consciências. Todos vestígios hermenêuticos seriam apagados de uma teoria da ação que partisse da autocompreensão dos atores. A visão se abre para a gama de variação, contingência, pluralidade e diversidade das sociedades complexas.

O sistema do direito recupera a autonomia que a crítica da ideologia o fizera perder (HABERMAS, 1998, p. 111). Passa a ser um sistema ou discurso dentro de uma pluralidade desordenada de sistemas e discursos. Numa linguagem articulada objetivamente, a autocompreensão dos atores e seu saber intuitivo são ignorados. O observador, ele mesmo ambiente, artificialmente visualiza todo fragmento da vida social como que congelado, uma espécie de segunda natureza que não se acessa hermeneuticamente; o máximo que se pode obter é o saber contra-intuitivo próprio das ciências da natureza.

Todas essas teorias e controvérsias colocam em jogo o direito como categoria central da teoria da sociedade. A teoria de Luhmann passa a ser o ponto de referência de Habermas (1998, p. 112) nessa seara. Em tal teoria, o direito é entendido unicamente desde o ponto de vista funcional da estabilização de expectativas de comportamento. Nos casos de conflito ele decide de acordo com o código binário "justo" jurídico/ "injusto" jurídico. Em sentido amplo, o sistema jurídico em conjunto compreende todas comunicações que se orientam pelo direito. Em sentido estrito compreende todos atos jurídicos que alteram situações jurídicas, se retro-alimentando de procedimentos jurídicos institucionalizados, normas jurídicas e considerações da dogmática jurídica. Tais considerações só têm sentido mediante a suposição de que a diferenciação do sistema jurídico realiza sua autonomização, convertendo-o num sistema autopoiético (HABERMAS, 1998, p. 112). Ele se desliga de seus ambientes, com os quais se relaciona apenas mediante observações.

Com isso, o sistema jurídico não mantém um intercâmbio direto com os ambientes internos à sociedade, nem tampouco pode agir regulativamente sobre eles. O contato com os fatos para além desse sistema só tem o condão de fazer com ele aja sobre si próprio. Funções de controle relativas à sociedade global são vedadas, podendo o direito regulá-la apenas num sentido metafórico: ao se modificar ele se apresenta a outros subsistemas como um ambiente modificado, momento em que aqueles podem reagir de forma indireta (HABERMAS, 1998, p. 113).

O direito vem a ser reduzido, por uma interpretação empirista, a sua aplicação. Perde-se a conexão entre o direito e a organização do poder político no Estado democrático de direito. A comunicação que se efetua através do código binário direito/não direito, apenas dentro da construção meramente autopoiética – saliente-se –, ignora a conexão de normas e ações jurídicas com a suposição de processos de entendimento racionalmente motivados que constituem a comunidade jurídica, não obstante seja condição da diferenciação do sistema (HABERMAS, 1998, p. 114). Argumentos jurídicos passam a servir apenas para diminuir o valor de surpresa de decisões motivadas por outras vias e de aumentar sua aceitação. Do ponto de vista do observador o que era fundamentação para os participantes passa a ser ficção necessária. As argumentações são, para a teoria dos sistemas, meras formas de comunicação especial que resolvem diferenças de opiniões sobre como utilizar o código binário. Dentro da teoria dos sistemas, apenas têm sentido os efeitos perlocucionários da argumentação; as razões são meios com os quais o sistema jurídico se convence de suas próprias decisões (HABERMAS, 1998, p. 114). Mas se as razões não possuem mais a força intrínseca de motivar racionalmente, a cultura da argumentação se converte num enigma.

Se Habermas opõe tais críticas severas a Luhmann, num ponto ele concorda e aceita a teoria luhmanniana: o sistema do direito opera através de um código binário, não gradual. Só podem ser incluídas dentro do sistema jurídico decisões que operem nesta lógica.

3.2 – Jurisprudência de valores: o impacto e a recepção de teoria de Robert Alexy pelo Judiciário

A chamada jurisprudência de valores consiste numa opção metodológica, de origem na Corte Constitucional Alemã, para a argumentação e justificação de decisões judiciais. Robert Alexy (2003, p. 2) delineia a assunção pela Corte Constitucional Alemã de um quadro de regras e princípios nos quais se constituiriam os direitos fundamentais, pela primeira vez, na decisão proferida junto ao caso Lüth, em 1958. Lüth teria incitado e convocado o povo alemão a boicotar os filmes produzidos por Veit Harlan, uma vez que eles divulgariam idéias nazistas. No caso, haveria uma situação típica do conflito de princípios, em que o princípio da liberdade de expressão, que estaria amparando a divulgação do boicote, estaria se chocando com o princípio constitucional de política pública que permite restrições à liberdade de expressão. Para tanto seria necessária por parte da Corte a utilização de um balanceamento ou sopesamento: no caso, o princípio da liberdade de expressão se sobreporia à considerações constitucionais concorrentes.

Na decisão do caso Lüth há três idéias que serviram para moldar fundamentalmente o Direito Constitucional Alemão. A primeira idéia foi a de que a garantia constitucional de direitos individuais não é simplesmente uma garantia dos clássicos direitos defensivos do cidadão contra o Estado. Os direitos constitucionais incorporam, para citar a Corte Constitucional Federal, "ao mesmo tempo uma ordem objetiva de valores". Mais tarde a Corte fala simplesmente de "princípios que são expressos pelos direitos constitucionais". Assumindo essa linha de raciocínio, pode-se de dizer que a primeira idéia básica da decisão do caso Lüth era a afirmação de que os valores ou princípios dos direitos constitucionais aplicam-se não somente à relação entre o cidadão e o Estado, muito além disso, à "todas as áreas do Direito". É precisamente graças a essa aplicabilidade ampla que os direitos constitucionais exercem um "efeito irradiante" sobre todo o sistema jurídico. Os direitos constitucionais tornam-se onipresentes (unbiquitous). A terceira idéia encontra-se implícita na estrutura mesma dos valores e princípios. Valores e princípios tendem a colidir. Uma colisão de princípios só pode ser resolvida pelo balanceamento. A grande lição da decisão do caso Lüth, talvez a mais importante para o trabalho jurídico cotidiano, afirma, portanto, que: "Um ‘balanceamento de interesses’ torna-se necessário" (ALEXY, 2003, p. 3-4)

O caso Lüth, portanto, teria fixado as bases de uma jurisprudência valorativa ao conceber a Constituição como uma "ordem concreta de valores". Princípios possuem o mesmo caráter de valores: eles podem ser relativizados na sua aplicação ao caso concreto, cedendo em parte diante de outro princípio ou cedendo totalmente. A lógica de Alexy e da Corte Constitucional Alemã permite retirar a muralha de fogo que constitui a qualidade deontológica dos princípios em prol de uma decisão que pode, no extremo dos casos, definir um terceiro princípio do conflito entre outros dois. Princípios, diferentemente de regras, são mandados de otimização que pretendem que se realize algo na maior medida possível, consideradas as possibilidades jurídicas e fáticas (ALEXY, 1993, p. 27).

Alexy (2003, p. 5) busca justificar a racionalidade da ponderação de valores através do uso de um princípio abrangente: o princípio da proporcionalidade. Tal princípio envolve outros três subprincípios: princípio da adequação, princípio da necessidade e princípio da proporcionalidade em sentido estrito. Todos abarcam a idéia da otimização. O princípio da adequação se refere ao que é factualmente possível, avaliando qual das medidas propostas por cada princípio é a mais idônea. O princípio da necessidade requer que, na presença de dois meios para dar curso ao mesmo princípio, seja escolhido o menos gravoso ou o que gere menos interferência nos princípios em concorrência. Por fim, o princípio da proporcionalidade em sentido estrito expressa a própria máxima da ponderação, ao pretender a otimização em relação às possibilidades jurídicas: quanto mais intensa for a interferência num princípio, maior tem que ser a realização de outro.

Com isso estaria satisfeita a necessidade de racionalização e de justificação das decisões que ponderassem direitos. Ou seja, direitos são tratados como bens passíveis de uma mensuração e qualificação.

A proposta de Robert Alexy vem ganhando adeptos na teoria constitucional brasileira. Para além de nomes como Daniel Sarmento [15], Luís Roberto Barroso [16], entre outros, recentemente, o próprio Supremo Tribunal Federal tem recorrido inúmeras vezes ao método da ponderação para justificar suas decisões. Para ficar em um exemplo, a decisão no Habeas Corpus nº 82.424/RS incorpora, com o voto do Min. Gilmar Ferreira Mendes, as idéias da doutrina tedesca:

A máxima da proporcionalidade, na expressão de Robert Alexy (Theorie der Grundrechte, Frankfurt am Main, 1986), coincide igualmente com o chamado núcleo essencial dos direitos fundamentais concebido de modo relativo – tal com o defende o próprio Alexy. Nesse sentido, o princípio ou máxima da proporcionalidade determina o limite último da possibilidade de restrição legítima de determinado direito fundamental. A par dessa vinculação aos direitos fundamentais, o princípio da proporcionalidade alcança as denominadas colisões de bens, valores ou princípios constitucionais. Nesse contexto, as exigências do princípio da proporcionalidade representam um método geral para a solução de conflitos entre princípios, isto é, um conflito entre normas que, ao contrário do conflito entre regras, é resolvido não pela revogação ou redução teleológica de uma das normas conflitantes nem pela explicitação de distinto campo de aplicação entre as normas, mas antes e tão-somente pela ponderação do peso relativo de cada uma das normas em tese aplicáveis e aptas a fundamentar decisões em sentidos opostos. Nessa última hipótese, aplica-se o princípio da proporcionalidade para estabelecer ponderações entre distintos bens constitucionais.

3.3 – A crítica de Jürgen Habermas a jurisprudência de valores: o código binário do direito e sua validade deontológica

Jürgen Habermas, partindo da constatação de que a razão prática (razão preocupada com a ação) não oferece mais soluções normativas diretas para o direito e para a moral, apenas uma medida crítica para as práticas constitucionais, propõe que a teoria do agir comunicativo tente explicar a reprodução da sociedade no frágil solo das pretensões de validade transcendentes. A razão comunicativa, não adstrita a nenhum ator singular nem a um macrossujeito sóciopolítico (HABERMAS, 1997, p. 20), possibilitada pelo medium lingüístico, dá vazão à apropriação e reapropriação crítica de resultados que pretendem validade. Com isso, o princípio do discurso (que exige que a fundamentação imparcial leve em conta a participação e aceitação de suas conseqüências por todos os envolvidos) comprova-se no campo individual, ético e moral. A moral pós-convencional de princípios depende, no entanto, da complementação do direito positivo.

As normas desse direito possibilitam comunidades extremamente artificiais, mais precisamente, associações de membros livres e iguais, cuja coesão resulta simultaneamente da ameaça de sanções externas e da suposição de um acordo racionalmente motivado. (HABERMAS, 1997, p. 25)

Habermas transporta a tensão entre facticidade e validade presente no seio da linguagem para a estrutura do direito. Ele pretende alcançar uma resposta satisfatória para a questão da integração social em sociedades extremamente complexas, onde a pluralidade de mundos da vida e de formas de vida não permite mais o apelo a fundamentações metafísicas em nível arcaico.

O Direito e a organização política pré-modernas encontravam fundamentação, em última análise, em um amálgama normativo indiferenciado de religião, direito, moral, tradição e costumes transcendentalmente justificados e que essencialmente não se discerniam. (CARVALHO NETTO, 1999, p. 476) (grifos do autor)

Para Kant, a relação entre facticidade e validade apresenta-se como uma relação interna entre coerção e liberdade fundada pelo direito. O direito está autorizado ao uso da coerção; mas isso só é possível quando ele se opõe aos abusos da liberdade de cada um. Essa relação interna se manifesta na pretensão de validade do direito. "Embora pretensões de direito estejam ligadas a autorizações de coerção, elas também podem ser seguidas, a qualquer momento, por "respeito à lei", isto é, levando em conta sua pretensão de validade normativa" (HABERMAS, 1997, p. 49). Normas de direito são, ao mesmo tempo, leis da coerção e leis da liberdade. Há um entrelaçamento entre aceitação (referente a fatos sociais) e aceitabilidade exigida por pretensões de validade, presente já no agir comunicativo, sob a forma de tensão entre facticidade e validade, e intensificada no direito. Como o direito se interliga às três fontes de integração social (dinheiro, poder administrativo e solidariedade), é preciso manter essa tensão através da positividade discursiva.

Se Habermas se aproxima de Kant para relacionar facticidade/validade e coerção/liberdade, dele se afasta ao não derivar o direito da moral, mas estabelecer uma complementariedade entre estes e a política. Segundo ele, o direito moderno não deve apenas satisfazer às exigências funcionais de uma complexa sociedade econômica, mas deve também atender às condições precárias de integração social satisfeitas por sujeitos que agem comunicativamente, ou seja, através da aceitabilidade racional de pretensões de validade.

O direito moderno tira dos indivíduos o fardo das normas morais e as transfere para as leis que garantem a compatibilidade de liberdades de ação [...]. Estas obtêm sua legitimidade através de um processo legislativo que, por sua vez, se apoia no princípio da soberania do povo. (HABERMAS, 1997, p. 114-115)

Direito e moral não se confundem. Ambos se referem à definição de normas de ação, sendo que normas morais regulam relações interpessoais e conflitos entre pessoas naturais, que se reconhecem reciprocamente como membros de uma comunidade concreta e como indivíduos insubstituíveis; ao passo que normas jurídicas regulam relações interpessoais e conflitos entre atores que se reconhecem como membros de uma comunidade abstrata, criada através de normas do direito. "Em sociedades complexas, a moral só obtém efetividade em domínios vizinhos quando é traduzida para o código do direito" (1997, p. 144). Essa tradução se dá através do princípio da democracia que poderá fazer com que se externem conteúdos morais em comunidades jurídicas. Isso sob a égide do princípio do discurso, que dá validade a essas relações intersubjetivas (São válidas as normas de ação às quais todos os possíveis atingidos poderiam dar o seu assentimento, na qualidade de participantes de discursos racionais).

Estabelecida a legitimidade dos direitos, Habermas passará a definir a legitimidade de uma ordem de dominação através da relação do poder político com o direito. Para a tradição do direito racional, o direito surgia da renúncia à violência e servia para a canalização de uma força equiparada ao poder. Ao diferenciar poder e violência, Hannah Arendt elimina essa oposição, no dizer de Habermas (1997, p. 188, grifos do autor): "O direito se liga naturalmente a um poder comunicativo capaz de produzir direito legítimo". Assim o direito dará forma às normas reguladoras de conflitos; mas também deve ele impor, através da formação discursiva da opinião e da vontade, restrições à realização de fins coletivos.

É assim que, absorvendo e transformando a herança kantiana, Habermas fará a diferenciação entre os usos pragmático, ético e moral da razão prática.

Questões pragmáticas colocam-se na perspectiva de um ator que procura os meios apropriados para a realização de fins e preferências que já são dados.

[...]

Questões ético-políticas colocam-se na perspectiva de membros que procuram obter clareza sobre a forma de vida que estão compartilhando e sobre os ideais que orientam seus projetos comuns de vida [...].

Em questões morais, o ponto de vista teleológico, que nos permite enfrentar problemas por meio de uma cooperação voltada a um fim, desaparece por trás do ponto de vista normativo, sob o qual nós examinamos a possibilidade de regular nossa convivência no interesse simétrico de todos. (HABERMAS, 1997, p. 200-203)

Essa diferenciação é crucial para a determinação do código binário do direito e da moral, bem como o código gradual, afeito à ética.

Para fazer frente ao problema da indeterminação do direito, Habermas recorre à teoria hermenêutica construtivista de Ronald Dworkin. Superando as propostas de standards dos costumes dos hermeneutas, das determinantes extrajurídicas do realismo e do tributo ao arbítrio do juiz presente no positivismo, Dworkin aposta na premissa de que há pontos de vista morais relevantes na jurisprudência. Distinguindo argumentos de política (que se formam em discursos éticos ou pragmáticos) e argumentos de princípio (formados em discursos jurídicos ou morais), Dworkin tem em mente que direitos merecem reconhecimento sob pontos de vista da justiça. Direitos são "trunfos" num jogo de baralho. Isso implica dizer que há uma resposta correta e que será ela encontrada pelo esforço hermenêutico do juiz Hércules em realizar o conceito de integridade. Habermas substitui, então, o solipsismo de Hércules pelo princípio do discurso, pelo agir comunicativo que permite ao juiz assumir a perspectiva do outro. Nesse espectro, paradigmas funcionam como redutores de complexidade e auxiliam na elaboração participativa do discurso de aplicação numa "sociedade aberta de intérpretes da Constituição" (HÄBERLE).

Nesse diapasão, o tribunal não pode funcionar como único e último intérprete da Constituição. Elaborando uma crítica à opção metodológica da Corte Constitucional Alemã por uma jurisprudência de valores, Habermas irá acentuar a diferenciação normativa de Dworkin entre regras e princípios, reforçando aquele caráter para esses últimos. A Constituição não é uma "ordem concreta de valores", mas um conjunto coerente de princípios e regras (os princípios são abertos e precisam ser densificados com os elementos do discurso de aplicação; as regras contêm em si, na maioria das vezes, os elementos suficientes de sua aplicação, trabalhando em uma lógica de sim/não) constituído num processo discursivo de formação da opinião e da vontade que garanta a autonomia pública (soberania popular) e privada (direitos fundamentais) do cidadão.

Discriminando o que sejam normas e valores, Habermas se opõe à proposta argumentativa de Robert Alexy. Aqui instaura-se a grande controvérsia entre Habermas e Alexy sobre a devida compreensão dos princípios e seu caráter deontológico. A tese de Robert Alexy leva a uma confusão entre discursos de justificação (referentes à validade das normas) e discursos de aplicação (referentes a adequabilidade das normas) (GÜNTHER, 2004), permitindo que o controle de constitucionalidade acabe se tornando, em última análise, num tipo de legiferação.

Princípios ou normas mais elevadas, em cuja luz outras normas podem ser justificadas, possuem um sentido deontológico, ao passo que os valores têm um sentido teleológico. Normas válidas obrigam seus destinatários, sem exceção e em igual medida, a um comportamento que preenche expectativas generalizadas, ao passo que valores devem ser entendidos como preferências compartilhadas intersubjetivamente. Valores expressam preferências tidas como dignas de serem desejadas em determinadas coletividades, podendo ser adquiridas ou realizadas através de um agir direcionado a um fim. Normas surgem com uma pretensão de validade binária, podendo ser válidas ou inválidas; em relação a proposições normativas, como no caso de proposições assertóricas, nós só podemos tomar posição dizendo "sim" ou "não", ou abster-nos do juízo. Os valores, ao contrário, determinam relações de preferência, as quais significam que determinados bens são mais atrativos do que outros; por isso, nosso assentimento a proposições valorativas pode ser maior ou menor. A validade deontológica de normas tem o sentido absoluto de uma obrigação incondicional e universal: o que deve ser pretende ser igualmente bom para todos. Ao passo que a atratividade de valores tem o sentido relativo de uma apreciação de bens, adotada ou exercitada no âmbito de formas de vida ou de uma cultura: decisões valorativas mais graves ou preferências de ordem superior exprimem aquilo que, visto no todo, é bom para nós (ou para mim) [...]. (HABERMAS, 1997, p. 316-317)

Se Habermas discorda da posição dita objetivante de Luhmann no que concerne às possibilidades de integração social que o direito pode levar adiante, por outro lado, é explícita sua incorporação e reafirmação da idéia do último relativa à operacionalização do direito como um sistema. O direito é, ao mesmo tempo, sistema de ação e sistema de valores. Seu modo de operar é a distinção direito/não direito, justo/injusto, e não um código gradual relativizante que permite ao Judiciário refazer o que o Poder Legislativo havia empreendido no âmbito de fundamentação ou justificação das normas [17].

Habermas esclarece que o próprio termo deontológico se refere, em primeiro lugar, a um caráter obrigatório codificado de maneira binária. Mesmo que se restrinja a universalidade de normas a um campo específico localizado social e temporalmente, como sói ocorrer com as normas jurídicas, não se viola o código binário, código este que possui pretensão de verdade análoga a de mandamentos que variam entre "certo" e "errado" e nem é ultrajada a incondicionalidade de sua reivindicação normativa de validação (HABERMAS, 2002, p. 356).

A maneira de avaliar nossos valores e a maneira de decidir o que "é bom para nós" e o que "há de melhor" caso a caso, tudo isso se altera de um dia para o outro. Tão logo passássemos a considerar o princípio da igualdade jurídica meramente com um bem entre outros, os direitos individuais poderiam ser sacrificados caso a caso em favor de fins coletivos; no caso de uma colisão, deixaria de ocorrer o "recuo" de um direito em relação a outros, sem que ele tivesse que com isso perder sua validade. (HABERMAS, 2002, p. 356)

O problema que surge da concepção de Luhmann, se tomada realmente como uma concepção objetivante, está na irrelevância que a argumentação assume na tarefa de justificar o direito moderno. Com ressalta Klaus Günther (2004, p. 382), Luhmann concebe as normas a partir de um dever coativo e da única e exclusiva função de sinalizar a recusa de aprendizagem, não podendo elas ser universalmente fundamentadas e nem adequadamente aplicadas. Além disso, a aplicação de normas a casos isolados significa não mais que uma decisão orientada por critérios internos; da ótica externa, a decisão é somente a correlação de uma expectativa de comportamento com o código direito/não direito. Argumentos não têm mais do que uma função retórica e encobrem a dupla contingência (condições de conhecimento limitado e tempo infinito) do sistema jurídico (GÜNTHER, 2004, p. 383). Essa concepção joga por terra qualquer tentativa de conceber o direito de uma perspectiva racional, pós-convencional [18], que possibilite, ao menos no nível da aceitabilidade racional, que os destinatários das normas possam se entender como seus autores; mesmo que saiam vencidos nos procedimentos de adjudicação, eles devem poder, no mínimo, ter o próprio procedimento como legítimo. Talvez isto não esteja distante da legitimação procedimental luhmanniana. Mas tal desaparece na medida em que em sociedades democráticas, dificilmente argumentos podem ser colocados de lado quando criticados.

Prevalece, contudo, em Luhmann, que o código binário do direito deve ser respeitado, caso não se pretenda romper com autonomia do sistema. E isto é mantido por ele mesmo quando ele reconhece a abertura do sistema do direito em relação a outros códigos. Apenas os programas [19], e não os códigos, possuem o instrumental para aceitar mudanças. Não obstante a crítica de Günther, que acusa de precária a teoria de Luhmann por não ser possível desvincular a argumentação de adequação dos programas relativos aos códigos, podemos entender, com Habermas, a questão da seguinte maneira: só tem acesso e validade nos discursos jurídicos de aplicação os argumentos que, sejam eles de ordem moral, pragmático-política ou ética, foram filtrados pelo código do direito nos discursos de fundamentação das normas.


4. Os problemas de um Judiciário autocrático

Com o advento do paradigma de bem-estar, Ingeborg Maus (2000, p. 183 e ss) noticia um crescimento dos poderes e competências do Poder Judiciário alemão, em especial da Corte Constitucional. Segundo Maus (2000, p. 186), tal crescimento se deve ao tipo de abordagem hermenêutica por parte dos juízes, que há muito não aplicam o direito positivo silogisticamente, mas apelam para fundamentos, segundo ela, de ordem moral.

Esse crescimento pode ser contraposto ao modelo de adjudicação próprio do paradigma liberal, modelo da aplicação por silogismos da lei, um tipo de interpretação formal que, aos olhos de Maus (2000, p. 188) parecia atender ao princípio da soberania do povo, confundido com a própria lei. A proeminência do Poder Legislativo após a Revolução Francesa, justificada teoricamente por Sieyès, teria surtido efeitos na Alemanha, ocasionando a total subserviência, no século XIX, do Judiciário ao direito formal burguês. Com o advento do paradigma social, os juízes alemães reivindicaram mais e mais poderes: isso pode ser notado principalmente com a criação da Associação dos Juízes Alemães, no início do último século. A instauração do regime nazista, outrossim, contribuiu em muito para que os juízes passassem a encarnar o modelo de eticidade tão caro à conformação da unidade do povo alemão. O juiz era a unidade schmittiana, portador de um tipo de autorização dada pelo III Reich para que eles se desligassem das "muletas da lei" e pudessem levar adiante o processo da unificação; eles eram os protetores dos verdadeiros valores de um povo e aniquiladores dos falsos (MAUS, 2000, p. 197).

Com o pós-Guerra e a reinstalação da democracia, no entanto, esse papel de condutor da "moralidade alemã" [20] foi mantido mesmo com a Constituição de Bonn de 1949. Juristas permaneceram nas universidades e juízes em seus cargos, ou seja, o mesmo pensamento de extensão dos poderes e competências do Judiciário permaneceu. Assim, foi fácil para a Corte Constitucional Alemã criar doutrinas como a da jurisprudência de valores, reelaborando o passado nazista como uma amarra do juiz ao direito positivo e propondo o julgamento conforme cláusulas gerais, conceitos indeterminados e outros parâmetros que não tinham qualquer vinculação com a Constituição, mas, ao contrário, eram tratados como normas suprapositivas às quais o Judiciário teria sempre acesso. Justificou-se o domínio da doutrina antiformalista com o recomeço do Estado de Direito. Com isso, o monarca que teria sido destituído com o paradigma liberal burguês reencarnou no superego que constitui o Judiciário (MAUS, 2000, p. 187). A "sociedade órfã" já não dispunha do livre acesso à emancipação moral, mas tinha no Estado um poder que era a imago, a imagem paternal que lhe ditava os principais valores assim classificados por ela. O direito aplicado não é o votado no Legislativo, mas o que o Judiciário entende como aplicável; se ele não existe, basta cria-lo.

O diagnóstico de Maus não se restringe à Alemanha. Para a autora, pode-se verificar nos últimos anos o aumento da popularidade do Poder Judiciário (popularidade fruto da ausência de poderes de crítica por parte de uma sociedade órfã) também em países como os Estados Unidos. A recente literatura traz ao público biografias de juízes, históricos desses personagens em que eles são comparados a deuses do Olimpo [21]. Isto daria margem para a formulação de teorias que, segundo ela (MAUS, 2000, p. 186), atribuem ao juiz um poder excessivo: tal seria, por exemplo, a proposta teórica de Ronald Dworkin. Seria possível vislumbrar, na teoria da integridade, a atribuição por demais onerosa aos juízes de dizer o que é o direito. Apesar do instigante diagnóstico de Maus, que problematiza a questão de se colocar o Judiciário no centro do sistema do direito, a autora não reflete bem acerca do pensamento de Dworkin.

Sociedades pluralistas como as da alta modernidade podem ser situadas, ou pelo menos têm a pretensão de, no estágio 6 do terceiro nível do desenvolvimento moral, como acima salientado (v. nota 15). Desse modo, é preciso também atentar para um nível de diferenciação dos usos da razão prática, como também acima salientamos, através do pensamento de Habermas (usos moral, pragmático e ético). Conseqüência destes fatores é a tão destacada distinção entre normas e valores.

Na esteira desse pensamento, Ronald Dworkin distinguirá argumentos de princípio de argumentos de política. Os argumentos de política decidem sobre o que é bom para uma determinada comunidade; argumentos de princípio dizem sobre o que é justo, ou seja, são argumentos normativos que não podem ter sua obediência afastada.

Denomino "política" aquele tipo de padrão que estabelece um objetivo a ser alcançado, em geral uma melhoria em algum aspecto econômico, político ou social da comunidade (ainda que certos objetivos sejam negativos pelo fato de estipularem que algum estado atual deve ser protegido contra mudanças adversas). Denomino "princípio" um padrão que deve ser observado, não porque vá promover ou assegurar uma situação econômica, política ou social considerada desejável, mas porque é uma exigência de justiça ou eqüidade ou alguma outra dimensão da moralidade. (DWORKIN, 2002, p. 36)

Quando juízes decidem de acordo com a integridade do direito, eles estão agindo conforme membros de uma comunidade de princípios (assim como todos os outros cidadãos). Eles devem interpretar o direito em sua melhor luz, sem se vincular totalmente ao passado (como fazem os convencionalistas [22]) e nem totalmente ao futuro (como os pragmáticos [23]); isso inclui o tratamento deontológico, e não axiológico, dos princípios e o respeito aos direitos, tidos como "trunfos" frente a argumentos de ordem política. A moral política em Dworkin é um todo coerente das virtudes cívicas da eqüidade, da justiça, do devido processo e da integridade [24]; não é o que o juiz pensa que é bom para mim/nós, mas o que é universalmente bom numa dada comunidade de princípios que aceita as obrigações de uma comunidade básica – especial, pessoal, abrangente e igualitária. Uma obrigação é especial porque ela possui um caráter distintivo para o grupo, não sendo deveres que os membros da comunidade devem ter em relação aos não membros. É pessoal porque vai de membro a membro, não percorrendo todo o grupo. Será abrangente na medida em que os membros possam ver tal responsabilidade como decorrente de uma mais geral, o interesse pelo bem estar de todos. Por fim, os membros devem ter em mente não apenas um interesse, mas um igual interesse por todos os membros (DWORKIN, 1999, p. 242-243).

O caráter deontológico do direito aceito por Dworkin e Habermas é também compartilhado por Klaus Günther (2004). Princípios são normas que devem ser interpretadas em sua melhor luz segundo um sistema jurídico coerente [25], próprio às sociedades pós-convencionais. A distinção entre discursos de justificação e discursos de aplicação pressupõe a diferenciação entre validade e adequabilidade, ou seja, que normas podem ser válidas e não ser contraditórias pelo simples fato de serem afastadas em determinadas situações de aplicação.

Essa é uma diferenciação que não se aplica a Robert Alexy (1993). Com sua concepção de princípios como mandados de otimização, Alexy relativiza o código binário do direito e aceita a posição da Corte Constitucional Alemã de que a Constituição é uma "ordem concreta de valores", tal como decidido no caso Lüth. Desse modo, Maus dirige uma crítica a Dworkin que seria mais bem endereçada a Alexy [26].

A desconsideração dos direitos fundamentais, risco inerente à "Jurisprudência de Valores", não de maneira excepcional, mas como regra intrínseca à sua mecânica, foi agudamente percebida por Dworkin. Este concebe a decisão judicial em função da principiologia jurídica, como um agir reconstrutivo, normatizando individualmente situações pretéritas. Tal como Alexy, ele admite a existência de antinomias principiológicas, que exigem pesagem/ponderação. Contudo, esse procedimento não pode jamais pautar-se por práticas judiciais utilitárias, ou seja, pela fixação de prioridades/preferências judiciais. Dessa maneira, não haveria uma "colisão" de princípios e sim uma "concorrência" dos mesmos. Dworkin sustenta um critério de "coerências" que refletisse "um nível mais profundo da moral política". (CRUZ, 2004, p. 204)

Dworkin não pensa que os juízes devam incorporar a moral (ética, melhor dizendo) de uma sociedade, mas sim que eles são integrantes de uma comunidade que aceita e leva adiante determinados princípios, caso queiram regular sua convivência com os meios do direito positivo (HABERMAS, 1998). O Juiz Hércules não passa de uma figura de retórica aplicável a qualquer operador do direito. Discursos morais não se confundem com discursos éticos, nem com discursos pragmáticos. Quando um juiz decide aceitando o ideal de integridade, ele só pode levar em conta, no discurso de aplicação, discursos morais, éticos e políticos traduzidos para o código do direito. O princípio da democracia traduz para o direito institucionalizado o princípio do discurso, tornando só aceitáveis os princípios e regras instituídos autonomamente.


5. Conclusões

As sociedades da alta modernidade são marcadamente complexas. Nelas, os sistemas se diferenciam na mesma medida em que cresce tal complexidade; há uma diferenciação dos sistemas autopoiéticos em relação ao ambiente que os circunda e em relação a si mesmos, constituindo subsistemas. O sistema é o conjunto de elementos interrelacionados, cuja unidade é dada por suas interações.

As operações de um sistema observam seus próprios limites. A observação de tais limites leva a uma operacionalização de acordo com um código, que é uma duplicação da comunicação através de uma afirmação e uma negação. O direito opera com o código direito/não direito. Para ele, só interessam comunicações que façam referência à legalidade ou ilegalidade. Tertium non datur. O direito deve expressar expectativas de comportamento, comunica-las e fazer com que elas sejam reconhecidas.

Os sistemas permitem o acoplamento estrutural, não obstante seu fechamento operacional. Para Luhmann, a Constituição é o acoplamento estrutural entre os sistemas do direito e da política. Tal acoplamento não viola a especificidade de cada sistema.

A diferenciação interna do sistema do direito levou a autonomização do sistema dos tribunais. Não obstante, eles devem ainda atender ao código binário direito/não direito. Para Luhmann, diferentemente da hierarquização entre Legislativo e Judiciário, há uma separação entre centro e periferia. O Judiciário ocupa o centro do sistema do direito.

Para Habermas, a análise que Luhmann faz do direito como sistema é objetivista por demais, não incorporando Luhmann os ganhos da hermenêutica. O que Habermas não salienta é que Luhmann não pretende "encapsular" os sistemas que descreve: o próprio conceito de irritação põe esta afirmativa de lado. Mais que isso, a construção do sistema do direito através da diferença centro/periferia permite que o sistema do direito tenha acesso, através da periferia, a argumento de outras ordens, transformados para o código do direito pelo Legislativo.

A proposta de Robert Alexy relativiza ao código binário do direito ao assimilar princípios a valores e não a normas, através de sua teorização acerca dos mandados de otimização. Além disto, fica muito difícil sustentar a racionalidade da jurisprudência de valores através de um método, o princípio da proporcionalidade, levado em conta o giro proporcionado pela transição da filosofia do sujeito para a filosofia da linguagem.

Habermas, Dworkin e Günther não aceitam a proposta axiológica de Alexy. Em Dworkin, a diferença entre argumentos de política e argumentos de princípio permite enxergar a precedência do justo sobre o bom. Em Habermas, normas não se confundem com valores: os primeiros possuem um código binário, os segundo um código gradual. Além disto, em sociedades complexas os usos da razão prática não podem ser confundidos e devem ser identificados caso a caso (uso moral, ético e pragmático). Em Günther, a diferenciação entre discursos de justificação e discursos de aplicação impede a confusão entre validade e adequabilidade.

Maus evidencia o problema da perda de autonomia de uma sociedade que se deixa guiar por um tribunal que escolhe os valores mais caros e os impõe coercitivamente, sem levar na devida conta o caráter recíproco das normas de direito.

Em sociedades complexas e pós-convencionais, a legitimidade do direito assenta-se na possibilidade de aceitabilidade racional por parte dos destinatários dos resultados de discursos jurídicos de fundamentação e de aplicação. Não há mais como apelar para instâncias de fundamentação que não representem o acordo racional, pelo menos no sentido procedimental, dos indivíduos e grupos de uma comunidade jurídica localizada e situada historicamente.

Essa necessidade de legitimação ganha importância na medida em que a lógica da divisão de poderes é revista pela mudança de paradigmas. Funções antes desempenhadas precipuamente pelos órgãos de poder passam a flutuar entre os mesmos, ultrapassando a concepção estanque própria do paradigma do Estado liberal.

A devida compreensão pelo Poder Judiciário da qualidade deontológica das normas jurídicas é, talvez, a única forma de se garantir uma prestação jurisdicional racionalmente aceitável, cujos pressupostos não se assentem apenas nos instrumentos de coação (facticidade) do direito.


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Notas

01 Para uma análise mais pormenorizada da questão, cf. o artigo de MATTOS, Ana Letícia Queiroga de. Apontamentos críticos à ponderação de valores adotada pelo Supremo Tribunal Federal. In CRUZ, Álvaro Ricardo de Souza (org.). O Supremo Tribunal Federal revisitado: o ano judiciário de 2002. Belo Horizonte: Mandamentos, 2003. P. 67-118.

02 A ciência moderna conhece seus próprios limites. As ambições do Iluminismo relacionadas a uma racionalidade extremada há muito cederam espaço para uma concepção de ciência que se sabe precária. Para tanto, cf. CARVALHO NETTO, Menelick de. Racionalização do ordenamento jurídico e democracia. Revista Brasileira de Estudos Políticos. Belo Horizonte, v. 88, p. 81-108, dez. 2003, Imprensa Universitária da UFMG.

03 O conceito de autopoiesis foi elaborado por Humberto Maturana, biólogo chileno, que buscava explicar a organização de organismos vivos. "Un sistema vivo, según Maturana, se caracteriza por la capacidad de producir y reproducir por sí mismo los elementos que lo constituyen, y así define su propria unidad: cada célula es el producto de un retículo de operaciones [...] internas al sistema del cual ella misma es un elemento; y no de una acción externa" (CORSI, ESPOSITO e BARALDI, 1996, p. 31-32).

04 "La distinción entre operación/observación está en la base del planteamiento constructivista de Luhmann [...] y de la extensión del concepto de autopoiesis [...] a los sistemas constitutivos de sentido. Partiendo de esta distinción se pueden combinar en efecto la absoluta determinación de las operaciones autopoiéticas con la contigencia de la observación.

Con operación se entiende la reproducción de un elemento de un sistema autopoiético con base de los elementos del mismo sistema, es decir, el presupuesto para la existencia del sistema mismo. No existe por tanto un sistema sin un modo aun la distinción justo/erróneo es un esquema observativo con sus propios límites y con el propio punto ciego y no garantiza una particular adecuación con el mundo" (CORSI, ESPOSITO e BARALDI, 1996, p. 119-120). A observação é uma operação do sistema, consistente numa distinção. Toda distinção se estabelece com relação ao sistema e ao ambiente; se o sistema aponta para ele mesmo, cuida-se de uma auto-referência; se para o ambiente, hetero-referência. A auto-observação é uma distinção aplicada a ela mesma.

05 Para a teoria dos sistemas, a comunicação não é uma ação. É uma operação social de três momentos: ato de comunicar – informação – compreensão. A comunicação é algo improvável, já que a correspondência entre o ato de comunicar e a compreensão é impossível. No marco de uma teoria dos sistemas, não existe consenso. Para tornar a questão ainda mais problemática, há a complexidade (excesso de possibilidades) da comunicação. O que se pode fazer é reduzir tal complexidade por meios de comunicação.

06 Para tanto, cf. HABERMAS, Jürgen. Facticidad y validez: sobre el derecho y el Estado democrático de derecho en términos de teoria del discurso. Trad. Manuel Jimenez Redondo. Madrid: Trotta, 1998. Na versão para o português, cf. HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade. Trad. Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997.

07 Função, em Luhmann, não é um efeito a ser buscado, mas um esquema regulador de sentido, que organiza um âmbito de comparação de efeitos equivalentes (MANSILLA in LUHMANN, 2002, p. 29)

08 "La diferenciación no se observa tan sólo entre el sistema y un entorno con el transfondo de lo indeterminado del mundo [...]. Es observable también al interior de un sistema (Systemdifferenzierung o de manera más simple Differenzierung). La diferenciación de un sistema consiste en la aplicación de la formación de un sistema a sí misma: se trata de una forma reflexiva y recursiva de construcción de sistema que replica, al interior del sistema mismo, la diferencia sistema/entorno" (CORSI, ESPOSITO e BARALDI, 1996, p. 57).

09 Há uma vasta bibliografia discutindo tal ampliação de poderes e os perigos nos quais ela incide. De forma sumária, pode-se cf. DWORKIN, Ronald. O Império do direito. Trad. Jefferson Luiz Camargo. São Paulo: Martins Fontes, 1999; GÜNTHER, Klaus. Teoria da argumentação no direito e na moral: justificação e aplicação. Trad. Cláudio Molz. São Paulo: Landy, 2004; HABERMAS, Jürgen. Facticidad y validez: sobre el derecho y el Estado democrático de derecho en términos de teoria del discurso. Trad. Manuel Jimenez Redondo. Madrid: Trotta, 1998 (em especial, o capítulo VI).

10 O movimento do realismo jurídico se projetou nos idos das décadas de 1920 e 1930 nos Estados Unidos, tendo como primeiro divulgador Oliver Wendell Holmes. As doutrinas do realismo jurídico teriam o intento de afastar a suposta pureza do Direito e demonstrar sua íntima vinculação à política. O realismo jurídico, nas palavras de Morton Horwitz, produziria um ceticismo salutar e seria mais adequado para descrever um sistema de Direito que, nos EUA, se construiu muito por contribuição do trabalho dos juízes de interpretar e aplicar a Constituição. A máxima que sintetiza as idéias do realismo jurídico pode ser encontrada na posição do Juiz Presidente da Suprema Corte, Charles Evan Hughes, que alegava ser a Constituição o que os juízes dizem que ela é (MARTINS in VIEIRA, 2002, p. 215-228).

11 Uma vez que os sistemas são auto-referentes e autopoiéticos, a assimetrização de um paradoxo evita que as operações do sistema se voltem sobre si próprias, sem referência a algum outro elemento. Nesse espectro, é preciso notar que um paradoxo tem uma função criativa na teoria luhmanniana. "Las paradojas se crean cuando las condiciones de posibilidad de una operación son al mismo tiempo a las condiciones de su imposibilidad [...]. Las paradojas surgen cuando el observador, que en cuanto tal señala algunas distinciones, hace surgir la cuestión de la unidad de la distinción que está utilizando [...]. Toda distinción es inherentemente paradójica, precisamente porque los dos dados que la constituyen siempre están presentes contemporáneamente: el uno en cuanto lado indicado, el otro como el lado que debe ser sobreentendido como lado al cual se hace referencia" (CORSI, ESPOSITO e BARALDI, 1996, p. 123-124)

12 A expressão hard cases se refere aos casos difíceis ou casos para os quais não há uma decisão no passado que possa orientar a decisão no presente, ou mesmo que a regulamentação sobre eles seja de caráter duvidoso ou nem chegue a existir. H.L.A. Hart resolve o problema desses casos atribuindo um poder discricionário aos juízes para resolvê-los. Ronald Dworkin enfrenta a questão através de sua teoria da integridade do direito e com o recurso a princípios jurídicos. Cf. DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. Trad. Nelson Boeira. São Paulo: Martins Fontes, 2002; HART, H.L.A. O conceito de direito. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1994.

13 "O conceito de irritação (irritabilidade) aponta para o fato de que a causa do acoplamento estrutural dos sistemas acoplados reage de maneira distinta ao que se refere à celeridade às irritações [...]. Os acoplamentos estruturais com seu duplo efeito de inclusão/exclusão fazem mais a concentração da irritabilidade. O mesmo que preparam no âmbito de suas possibilidades para as contingências" (CHAI, 2004, p. 62-63).

14 Na filosofia de Leibnitz, substância simples ativa, de que todos os corpos são feitos.

15 Cf. SARMENTO, Daniel. A ponderação de interesses na Constituição Federal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2002.

16 Cf. BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e aplicação da Constituição: fundamentos de uma dogmática constitucional transformada. 3ª ed. São Paulo: Saraiva, 1999.

17 Günther procede à diferenciação entre discursos de justificação ou fundamentação e discursos de aplicação, diferenciando conseqüentemente validade de adequabilidade. Cattoni de Oliveira (2002, p. 85) bem evidencia os conceitos: "Os discursos de justificação jurídico-normativa se referem à validade das normas, e se desenvolvem com o aporte de razões e formas de argumentação de um amplo espectro (morais, éticas e pragmáticas), através das condições de institucionalização de um processo legislativo estruturado constitucionalmente, à luz do princípio democrático [...].

Já discursos de aplicação se referem à adequabilidade de normas válidas a um caso concreto, nos termos do princípio da adequabilidade, sempre pressupondo um "pano de fundo de visões paradigmáticas seletivas" ".

18 Klaus Günther e Jürgen Habermas apropriam-se da concepção principiológica da teoria de Kohlberg acerca dos estágios de desenvolvimento moral para inseri-la no direito. Segundo Kohlberg, o desenvolvimento moral da criança compreende três estágios: pré-convencional, convencional e pós-convencional. "No nível pré-convencional o indivíduo não chega a compreender que as regras e valores se baseiam em tal acordo, e as reificam. No nível pós-convencional, os indivíduos percebem que estes acordos, por seu turno, baseiam-se em princípios que, inclusive, podem fundamentar a alteração destes acordos. O nível pós-convencional, que aqui nos interessa de modo mais direto, é dividido em dois estágios: o estágio 5 (nível do contrato social ou da utilidade e dos direitos individuais) e o estágio 6 (nível dos princípios éticos universais). O que difere ambos estágios é que o estágio 5 tende a ver tais princípios como intrínsecos à sociedade e a conceber um escalonamento rígido e prévio entre estes princípios. Já o estágio 6 reconhece que estes princípios podem ser postulados (ou reivindicados) universalmente, mas que não existe um escalonamento rígido e prévio entre os mesmos (...)" (GALUPPO, 2002, p. 192/193).

19 "Los programas se definen en general como conjuntos de condiciones para la corrección. Con referencia a los códigos [...], los programas son aquello que establece los criterios para la correcta atribución de los valores de tales códigos, de tal manera que un sistema que se oriente hacia ellos [...] pueda alcanzar complejidad estructurada y controlar el propio proceder [...].

Los programas compensan la rígida condición binaria del código, que permite tomar en consideración únicamente dos valores, introduciendo en la decisión criterios extraños a éste [...]." (CORSI, ESPOSITO e BARALDI, 1996, p.131-132)

20 É preciso salientar que Maus não distingue, tal qual Habermas, discurso éticos de morais e de pragmáticos, tomando o termo moralidade num sentido que, no último, melhor se expressaria por eticidade.

21 Maus se refere ao livro de Alan Barth, Prophets with honor: great dissents and great dissenters and Supreme Court. Nova York, 1974.

22 Para os convencionalistas, "[...] a força coletiva só deve ser usada contra o indivíduo quando alguma decisão política do passado assim o autorizou explicitamente, de tal modo que advogados e juízes competentes estarão todos de acordo sobre qual foi a decisão, não importa quais sejam suas divergências em moral e política." (DWORKIN, 1999, p. 141)

23 "O pragmático adota uma atitude cética com relação ao pressuposto que acreditamos estar personificado no conceito de direito: nega que as decisões políticas do passado, por si sós, ofereçam qualquer justificativa para o uso ou não do poder coercitivo do Estado. Ele encontra a justificativa necessária à coerção na justiça, na eficiência ou em alguma outra virtude contemporânea da própria decisão coercitiva, e acrescenta que a coerência com qualquer decisão legislativa ou judicial anterior não contribui, em princípio, para a justiça ou virtude de qualquer decisão atual." (DWORKIN, 1999, p. 185)

24 A eqüidade requer a existência de procedimentos políticos que distribuem o poder político adequadamente (DWORKIN, 1999, p. 200); não tem o significado da eqüidade grega, mas muito mais o de imparcialidade. A justiça pede aos legisladores e juízes que distribuam recursos materiais e protejam a liberdade sempre de modo a alcançar um resultado moralmente aceitável. O devido processo se refere aos procedimentos corretos para julgar algum cidadão (DWORKIN, 1999, p. 200). Por fim, "Os juízes que aceitam o ideal interpretativo da integridade decidem casos difíceis tentando encontrar, em algum conjunto coerente de princípios sobre os direitos e deveres das pessoas, a melhor interpretação da estrutura política e da doutrina jurídica de sua comunidade" (DWORKIN, 1999, p. 305).

25 "Na última seção pretendo defender a tese de que o sistema legal de uma sociedade tem que ser interpretado como um paradigma de um sistema de normas válidas, em última análise, coerente. De acordo com esta sugestão, um sistema jurídico pode ser criticado pelos mesmos dois tipos de motivos, como no caso das normas morais: as normas jurídicas têm que ser válidas no sentido de uma teoria do discurso e o sistema coerente de normas jurídicas pretende dar uma resposta adequada a todos os casos". (GÜNTHER, 2000, p. 98)

26 Alguns intérpretes de Dworkin tendem a aproxima-lo de Alexy, dizendo sim que ele permite uma ponderação do juiz quanto ele está diante de um conflito entre princípios (DWORKIN, 2002, p. 44). Antes de mais nada, é preciso asseverar que tais intérpretes tem por base a própria compreensão que Alexy tem de Dworkin e que pode ser encontrada em Derecho y razón práctica (1993). Não concordo com tal visão. A distinção entre regras e princípios, em Dworkin, não é uma distinção morfológica; ela depende do caso concreto, dos sinais característicos que ele revela. Tanto é assim que não é possível estabelecer uma lista dos princípios mais importantes para uma comunidade, nem simplesmente querer chamar tal norma de um princípio ou uma regra sem estar diante do caso concreto. Além disso, o termo "ponderação" em Dworkin não significa balanceamento, mas reflexão, algo que um autor herdeiro do giro hermenêutico pode pretender sem se contradizer (Cf. ALEINIKOFF, Alexander. Constitutional law on the age of balancing. The Yale Law Journal, vol. 96, n. 5, abril de 1987.). Outro ponto importante é que ele rechaça veementemente uma axiologização do direito ao aceitar a tese da resposta correta, que pressupõe uma outra tese, a da bivalência (DWORKIN, 2001, p. 176).


Autor

  • Emílio Peluso Neder Meyer

    Emílio Peluso Neder Meyer

    Professor Adjunto de Direito Constitucional da Faculdade de Direito da UFMG (Graduação e Pós-Graduação – Mestrado e Doutorado). Doutor em Direito pela Faculdade de Direito da UFMG. Mestre em Direito Constitucional pela UFMG. Membro do IDEJUST – Grupo de Estudos sobre Internacionalização do Direito e Justiça de Transição.

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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MEYER, Emílio Peluso Neder. O caráter normativo dos princípios jurídicos. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 11, n. 994, 22 mar. 2006. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/8126. Acesso em: 25 abr. 2024.