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A aplicabilidade das limitações aos juros das instituições financeiras, pela inconstitucionalidade da Lei nº 4.595/64

A aplicabilidade das limitações aos juros das instituições financeiras, pela inconstitucionalidade da Lei nº 4.595/64

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Sendo inconstitucional a Lei nº 4595/64, bem como a interpretação que se lhe vem conferido, as limitações esboçadas na Lei da Usura e na Lei nº 1521/51 permanecem em pleno vigor.

Resumo

Este estudo examina a vigência e aplicabilidade da lei da usura (Decreto 22.626/33) e da Lei 1521/51, que limitam as taxas de juros, às pessoas em geral, sejam físicas ou jurídicas e, especialmente, às instituições financeiras. Examina o conteúdo normativo das limitações aos juros, cotejando com os dispositivos da Lei 4595/64, Lei da Reforma Bancária, em que se tem fundamentado as instituições financeiras para se julgarem excepcionadas das referidas limitações. Por tal norma, delegou-se ao Conselho Monetário Nacional competência para limitar os juros no âmbito do sistema financeiro nacional e esse limitar tem sido entendido, com o aval do STF na Súmula 596, como liberar. Examina a constitucionalidade e real extensão desta Lei 4595/64, frente à CF/46, vigente quando de sua edição, e sua recepção ao não frente à CF/88, especialmente em virtude da proibição de delegação de competências, presentes em ambos os textos constitucionais. A constitucionalidade da Lei 4595/64, bem como a real extensão da delegação ali trazida são determinantes da aplicação, ou não, das limitações aos juros praticados pelas instituições financeiras.


I. Introdução

Diversos dispositivos infraconstitucionais esboçaram limites objetivos à pratica dos juros abusivos, tanto pelas pessoas físicas, quanto pelas pessoas jurídicas em geral, aqui incluídas as instituições financeiras. Ocorre que essas últimas têm logrado êxito em desconhecer tais limites, excetuando-se de seus efeitos. Isso, sociologicamente, encontra provável explicação na grande capacidade por elas demonstrada de influir no mundo do ser, com sua inegável pujança econômica.

Ou seja, embora estejamos as pessoas físicas (nós, pobres mortais) e as pessoas jurídicas em geral (excetuando-se as instituições financeiras) expressamente proibidos de emprestar dinheiro a juros superiores às taxas legais, sob pena de sermos presos pelo crime de usura, tipificado em legislação vigente desde 1933 (Decreto 22.626/33 e depois pela Lei 1.521/51), as instituições financeiras se proclamam inteiramente livres, para cobrarem as taxas de juros que lhes aprouverem.

Tal liberação teria sido conferida pela Lei 4.595/64, que teria delegado ao Conselho Monetário Nacional a competência para limitar os juros praticados pelas instituições financeiras, afastando-as das limitações expressas aos demais sujeitos de direito. E a Súmula nº 596/STF acolheu tal entendimento, em benefício excepcionalmente dirigido às referidas instituições.

Nesse contexto, necessário tratarmos da Lei da Usura (Decreto nº 22.626/33), bem como da Lei dos crimes contra a economia popular (Lei 1.521/51), analisando sua vigência e aplicabilidade às instituições financeiras, em cotejo com a Lei 4.595/64, cuja constitucionalidade e extensão dos efeitos deve ser examinada, uma vez que a interpretação que se lhe vem atribuindo traduz privilégio injustificável às instituições financeiras, viabilizando-lhes a prática dos juros exorbitantes, de modo extremamente nocivo à coletividade.


II. O Decreto nº 22.626/33 (Lei da Usura)

Inexistia dúvida sobre os limites legais às taxas de juros no Brasil, pois o combate à usura era feito de forma explícita, o que se extrai com clareza já das considerações que introduzem os artigos do Dec. nº 22.626/33 (Lei da Usura):

Considerando que todas as legislações modernas adotam normas severas para regular, impedir e reprimir os excessos praticados pela usura;

Considerando que é de interesse superior da economia do País não tenha o capital remuneração exagerada impedindo o desenvolvimento das classes produtoras.

Decreta:

A preocupação do legislador em reprimir as práticas usurárias era tamanha, que tal comportamento foi tipificado como crime, punível até na forma tentada, conforme pode ser observado em três destacados artigos do Dec. nº 22.626/33. Diz o art. 1º:

É vedado, e será punido nos termos desta lei, estipular em quaisquer contratos taxas de juros superiores ao dobro da taxa legal.

§ 1º Essas taxas não excederão de 10 %. ao ano se os contratos forem garantidos com hipotecas urbanas, nem de 8% ao ano se as garantias forem de hipotecas rurais ou de penhores agrícolas.

§ 2º Não excederão igualmente de 6 % ao ano os juros das obrigações expressa e declaradamente contidas para financiamento de trabalhos agrícolas, ou para compra do maquinismos e de utensílios destinados á agricultura, qualquer que seja a modalidade da divida, dêsde que tenham garantia real.

§ 3º A taxa de juros deve ser estipulada em escritura pública ou escrito particular, e não o sendo, entender-se-á que as partes acordaram nos juros de 6 % ao ano, a contar da data da propositura da respectiva ação ou do protesto cambial.

Nesse primeiro artigo, percebe-se a limitação objetiva às taxas de juros, com patamar percentual máximo expressamente fixado pela norma, que lança mão da taxa legalmente estabelecida pelo então vigente Código Civil de 1916, em 6% (seis por cento) ao ano. Há ainda a advertência inicial de que a infringência aos limites nela colocados será punida, nos termos de que a mesma norma tratará adiante.

Quanto ao parágrafo 1º, esboça exceção ao conteúdo normativo do caput articulado, fixando limites máximos ainda mais rígidos aos juros, para os contratos que forem garantidos com hipotecas urbanas (máximo de 10% ao ano), ou com hipotecas rurais ou penhores agrícolas (máximo de 8% ao ano), em função da maior garantia que em tais situações se confere ao credor.

Já no parágrafo 2º, encontramos também regra especial excepicionante do limite geral do caput, desta feita assentada não só na existência da garantia real (bastante vantajosa ao credor), mas também em razão do desejo de conferir tratamento privilegiado aos financiamentos de trabalhos agrícolas ou para compra do maquinismo e de utensílios destinados à agricultura, cujos juros não poderão ser superiores a 6% ao ano.

Ressalte-se que os comandos contidos nos citados parágrafos foram expressamente revogados pelo Decreto-Lei n º 182, de 5/01/38, artigo único [01]. Por fim, no parágrafo 3º, repete-se disposição já positivada pelo art. 1063 do Código Civil vigente á época de sua edição, referente à presunção de taxa de 6% (seis por cento) ao ano, na ausência de estipulação expressa em sentido diverso, seja em escritura pública ou escrito particular.

Diz o art. 13:

É considerado delito de usura, toda a simulação ou prática tendente a ocultar a verdadeira taxa do juro ou a fraudar os dispositivos desta lei, para o fim de sujeitar o devedor a maiores prestações ou encargos, além dos estabelecidos no respectivo título ou instrumento.

Penas – Prisão por (6) seis mêses a (1) um ano e multas de cinco contos a cincoenta contos de réis. No caso de reincidência, tais penas serão elevadas ao dobro.

Parágrafo único. Serão responsáveis como co-autores o agente e o intermediário, e, em se tratando de pessoa jurídica, os que tiverem qualidade para representá-la.

Esse dispositivo traz a tipificação específica da conduta criminosa usurária, consistindo em desobedecer aos limites estabelecidos no decreto, ainda que por simulação ou prática tendente a ocultar a verdadeira taxa do juro ou a fraudar os dispositivos que a limitam, prevê ainda a respectiva pena, inclusive elevando-a ao dobro para o caso de reincidência.

Interessante, também, a responsabilização atribuída pelo parágrafo único ao agente e ao intermediário, que serão tidos como co-autores, bem como, em se tratando de pessoa jurídica, aos que tiverem qualidade para representá-la. Diz o art. 14:

Art. 14. A tentativa dêste (sic) crime é punível nos termos da lei penal vigente.


Perceba-se como esse decreto pôde esmiuçar com precisão as variadas modalidades de prática usurária e, como sua tipificação e respectiva sanção estão em plenas condições de aplicação mesmo nos dias atuais. Aliás, ainda que se argumente sua caducidade no seio social, podemos notar que tal pequena eficácia se deve muito mais à falta de instrumentos eficazes de fiscalização pelos órgãos competentes, do que a deficiência normativa.
Por outro lado, é inegável o benefício econômico-social que poderia trazer a eficaz aplicação desses dispositivos, pois os juros usurários passam longe de ser saudáveis, tanto para os indivíduos, suas maiores vítimas, quanto, sob um prisma macroeconômico, para o desejado desenvolvimento da nação.
Essas regras valiam para todos, indistintamente. O advento da lei nº 4.595/64, com regulamentação específica da atuação dos bancos no sistema financeiro nacional, iria, como veremos, permitir interpretações iníquas, excluindo de seu âmbito de aplicação os agentes econômicos que, na verdade, deveriam ser seus maiores destinatários, quais sejam, as instituições financeiras.

III. A Lei 1.521/51 (Lei dos crimes contra a economia popular)

Ratificando a legislação anterior, a Lei dos Crimes contra a Economia Popular (Lei nº 1.521 de 26 de dezembro de 1951) diz:

Art. 1º- Serão punidos, na forma desta Lei, os crimes e as contravenções contra a economia popular. Esta Lei regulará este julgamento.

[...]

Art. 4º- Constitui crime da mesma natureza, a usura pecuniária ou real assim se considerando:

a)cobrar juros acima da taxa permitida por lei;

b)obter ou estipular, em qualquer contrato abusando da premente necessidade, inexperiência ou leviandade de outra parte, lucro patrimonial que exceda o quinto do valor corrente ou justo da prestação feita ou prometida.

§ 3º- A estipulação de juros ou lucros usuários será nula, devendo o juiz ajustá-los à medida legal, ou caso já tenha sido cumprida, ordenar a restituição da quantia paga em excesso, com os juros legais a contar da data do pagamento indevido.

Como afirma Clausens (1999, p.52):

Com muita perícia, criou o legislador o teto, além do qual, caracteriza-se o fenômeno. A pedra angular de referenciamento da usura é o lucro patrimonial, conceito de ciência contábil, para exprimir o lucro gerado pelo patrimônio, em posição ao lucro derivado de outras fontes. O lucro em foco constitui a medida por excelência do sistema capitalista. Expressa o retorno do capital.

Os itens a e b do art. 4° da lei n. 1.521/51 tipificam o crime de usura, em suas duas modalidades, quais sejam a usura pecuniária e a real.

Tem-se a pecuniária, quando o benefício ilegalmente usufruído decorre da obtenção de frutos exorbitantes sobre empréstimos, ágios de câmbio, conversão de moedas estrangeiras, financiamentos e empréstimos de modo geral. Já a usura real, pouco conhecida e de difícil identificação pelos sujeitos passivos – embora frequentemente praticada – é a que se dá quando do lucro exorbitante em ajustes, desde que o agente demonstre intenção ou abuso efetivo aproveitando-se de necessidade premente, leviandade ou inexperiência da parte prejudicada.

O crime de usura, em qualquer das modalidades, há de ser reprimido como delito que atinge a sociedade, como um todo, e, não apenas um indivíduo, isoladamente, mas um número indeterminado de pessoas.

Vale ressaltar o caráter formal do crime de usura, seja ela pecuniária ou real, pois, resta perfeitamente configurado o crime com o simples ajuste de vantagem exorbitante, independentemente da obtenção, ou não, do resultado ilícito pretendido.

A lei 1.521/51 traz, ainda, as penalidades para o referido crime, com sanção estabelecida especificamente, em seu art. 4.°:

Pena ? detenção de seis meses a dois anos, e multa de cinco a vinte cruzeiros.

§ 1.° Nas mesmas penas incorrerão os procuradores, mandatários ou mediadores que intervierem na operação usuário, bem como os cessionários de crédito usuário que, cientes de sua natureza ilícita, o fizerem valer em sucessiva transmissão, ou execução judicial.

Ou seja, se alguém, ciente da ilicitude do crédito, originariamente ilegal, o transmite e/ou o executa judicialmente, incorre nas mesmas penas capituladas para o autor inicial; o cessionário, desde que consciente da ilicitude do título emitido em seu favor, é considerado tão infrator quanto aquele que o emitiu.

2.° São circunstâncias agravantes do crime de usura:

I ? ser cometido em época de grave crise econômica;

II ? ocasionar grave dano individual;

III ? dissimular-se a natureza usuária do contrato

IV ? quando cometido:

a) por militar, funcionário público, ministro de culto religioso; por pessoa cuja condição econômico-social seja manifestamente superior a da vítima;

b) em detrimento de operário ou de agricultor; de menor de 18 anos ou de deficiente mental, interditado ou não.

Assim, se cometido em época de dificuldades econômicas, o crime de usura é agravado, visto que períodos de crise levam as pessoas a necessitarem de empréstimos com maior desespero, sujeitando-se, ao pagamento de juros, superiores à taxa permitida pela lei, ao sabor da ganância dos usurários.

Por outro lado, embora o crime de usura sempre cause dano à economia popular como um todo, ele deverá ter sua pena agravada se for cometido de forma a ocasionar, individualmente, grave dano ao sujeito passivo.

Igualmente, mais grave ocorre se for dissimulada, a natureza delituosa, ou seja, usuária, de contrato que estipule condições ilegais de taxação.

Nos casos do inciso IV, o legislador parece ter dispensado especial atenção às condições pessoais dos envolvidos, apenando com maior severidade aqueles que, prevalecendo-se de condição hierarquicamente superior ou, até mesmo, privilegiada, cometem o delito (alínea "a"). E, também, agravado o crime quando o infrator o comete em detrimento de pessoa humilde ou economicamente mais fraca, ou quando atinge menores de dezoito anos e ainda aos deficientes mentais, quer sejam eles interditados, ou não (alínea "b").

Merece relevo, ainda, a lógica disposição do § 3.º do art. 4.° em questão:

§ 3.° A estipulação de juros ou lucros usuários será nula, devendo Juiz ajustá-los à medida legal, ou, caso já tenha sido cumprida, ordenar a restituição da quantia paga em excesso, com os juros legais a contar da data do pagamento indevido.

Este dispositivo expressa a lógica solução quanto aos valores econômicos envolvidos no crime de usura, pois não se poderia apenar a prática da usura e permitir que eventuais frutos econômicos permanecessem em benefício dos infratores.

Esclareça-se que este dispositivo abrange igualmente a usura pecuniária e a real; portanto, em ambos os casos, provocada a tutela jurisdicional do Estado, este, na figura do Juiz, deverá [02] ajustar os juros ou lucros usurários à medida legal, inclusive determinando eventual restituição de valores já pagos a maior.


Também essas regras, assim como os dispositivos da lei da usura, valiam para todos, indistintamente. Porém, com o advento da lei nº 4.595/64, surgiram interpretações iníquas, excluindo de seu âmbito de aplicação as instituições financeiras, que, na verdade, deveriam ser seus maiores destinatários.

IV. A lei nº 4.595/64

Para subsidiar, com aparente juridicidade, a não aplicação da legislação limitadora dos juros às instituições financeiras, uma novidade foi introduzida em nosso sistema jurídico, a lei nº 4.595/64, como se encontra em seus arts. 2º, 3º, incs. II e IV, 4º, incs. VI, IX, XVII e XXII, que delegam poderes legislativos ao CMN e ao Banco Central para limitar os juros praticados pelos componentes do sistema financeiro nacional.

Na análise da constitucionalidade e extensão dessa delegação estão as raízes da discórdia, pois é, fundamentalmente, nela que as instituições financeiras se agarram para excepcionar suas taxas de juros das limitações legais.

Apesar de a CF/46 não permitir a delegação de poderes, com proibição expressa, esculpida no § 2º, do art. 36: "É vedado a qualquer dos poderes delegar atribuições", o STF, ao apreciar o RE nº 78.953-SP (RTJ 72/916), consoante o voto do Relator, Ministro Oswaldo Trigueiro, em que pese não dizer, explicitamente, que era constitucional a delegação de poderes - o que seria contrário à norma expressa - decidiu como se a delegação de poderes legislativo fosse possível e houvesse, no caso, ocorrido. Vejamos como introduziu a questão:

A Jurisprudência do Supremo Tribunal tem afirmado, repetidamente, que a cobrança de juros acima da taxa legal é vedada pela chamada Lei da Usura (Decreto nº 22.626, de 07.04.33).

No caso, porém, trata-se de taxa livremente pactuada e de contrato firmado na vigência da Lei nº 4.595, de 31.12.64, que dispõe sobre a política e as instituições monetárias, bancárias e creditícias e cria o Conselho Monetário Nacional.

Aqui temos o resumo dos argumentos em favor da aplicação da lei 4595/64, e supondo revogação do Decreto n. º 22.626/33 (Lei da Usura), no mesmo voto:

O art. 2º desse diploma dá ao Conselho a incumbência de formular a política da moeda e do crédito, objetivando o progresso econômico e social do País.

O art. 3º, II, diz que essa política objetiva regular o valor interno da moeda, para tanto prevenindo ou corrigindo os surtos inflacionários ou deflacionários. No item IV prevê o modo de orientar a aplicação dos recursos das instituições financeiras, quer públicas, quer privadas.

O art. 4º, no item VI, dá competência ao Conselho para disciplinar o crédito em todas as suas modalidades, e as operações creditícias em todas as suas formas. No item IX, dá-lhe encargo de limitar as taxas de juros, descontos, comissões e qualquer outra forma de remuneração de operações e serviços bancários ou financeiros. No item XVII confere-lhe a atribuição de regulamentar, fixando limites, prazos e outras condições, as operações de redescontos e empréstimos. No item XXII, atribui-lhe a competência de estatuir normas para as operações das instituições financeiras públicas, para preservar sua solidez e adequar seu funcionamento aos objetivos da lei.

E eis a conclusão do julgamento:

Que o Conselho Monetário e seu agente executivo, o Banco Central, estejam desempenhando essa tarefa com a amplitude prevista na Lei nº 4.595, é fato que dispensa qualquer esforço de demonstração. Que, na época inflacionária em que vivemos, aquela tarefa estaria de todo frustrada se condicionada à remota proibição da Lei da Usura, é inferência que, a meu ver, paira acima de qualquer dúvida razoável. Penso que o art. 1º do Decreto nº 22.626 está revogado, não pelo desuso ou pela inflação, mas pela Lei nº 4.595, pelo menos no pertinente às operações com as instituições de crédito, públicas ou privadas, que funcionam sob o estreito controle do Conselho Monetário Nacional.

A porta começava a ser aberta para a legalização da usura bancária. O positivismo jurídico institucionalizado pelo art. 2º da LICC estava ruindo, em benefício da especulação financeira e da exploração com juros usurários.

Após esse entendimento, que validou a delegação competencial ao Conselho Monetário Nacional, para limitar os juros praticados no âmbito do sistema financeiro nacional, veio o "elastério hermenêutico", conferindo ao termo limitar amplitude diferenciada, passando a significar regular, ou até liberar.


V. A Súmula nº 596/STF

No mesmo sentido do julgamento acima referido, viria, em seguida, a súmula nº 596, do STF: "As disposições do Decreto-Lei 22.626 não se aplicam às taxas de juros e aos encargos cobrados nas operações realizadas por instituições públicas ou privadas, que integram o Sistema Financeiro Nacional".

Tal súmula, assim como os tantos entendimentos jurisprudenciais que obedeceram, adveio do entendimento do excelso pretório no sentido de que a delegação de poderes trazida pela lei 4595/64 ao CMN, teria afastado da incidência das limitações aos juros as operações realizadas por instituições que integram o Sistema Financeiro Nacional, que estariam sujeitas, apenas, às regulamentações expedidas pelo CMN.

Porém, muito questionável a constitucionalidade dessa delegação de poderes à luz do texto constitucional vigente na época em que foi procedida, CF/46 e, mais ainda, sua subsistência frente à Magna Carta de 1988.

Além desse relevante aspecto, deve se verificar também a real extensão da delegação competencial, isso se considerando que ela tivesse sido constitucionalmente válida, e assim permanecesse frente à nova Constituição.


VI. A delegação de poderes trazida pela Lei 4595/64, sua inconstitucionalidade e real extensão, frente à CF/46 e CF/88

A despeito do entendimento do Egrégio STF, que acabou por pacificar-se na súmula 596, ainda hoje invocada, confiamos não ter sido esta a melhor interpretação a oferecer à questão, pois, respondendo às seguintes indagações, veremos que a CF/46 e a CF/88 possuem dispositivos proibindo, expressamente, delegações legislativas; entenderemos a real extensão da delegação concedida ao CMN e compreenderemos que a lei nº 4.595/64, o Dec. nº 22.626/33 e a lei 1.521/51, podem ser interpretados de forma que aquela lei não revogue, em nenhuma parte, estes dois últimos. Vejamos:

1- a suposta delegação de poderes era constitucionalmente possível, sob a égide da Constituição da época (CF/46)?

2- essa suposta delegação é constitucionalmente válida, na atualidade, em face dos dispositivos da CF/88?

3- qual é a real extensão da delegação concedida?

4- a Lei nº 4.595/64 revogou o Dec. nº 22.626/33 e a lei 1.521/51?

Para essa primeira indagação, a Carta Magna de 1946, vigente à época da edição da Lei nº 4.595/64, precisamente em seu § 2º, do art. 36, vedava, expressamente, a delegação de competências entre os poderes, com clareza que chegou a ofuscar seus intérpretes, no mais alto pretório pátrio, Corte exatamente encarregada de guardá-la. Vejamos o dispositivo:

CF/46

Art 36 - São Poderes da União o Legislativo, o Executivo e o Judiciário, independentes e harmônicos entre si.

§ 1º - O cidadão investido na função de um deles não poderá exercer a de outro, salvo as exceções previstas nesta Constituição.

§ 2º - É vedado a qualquer dos Poderes delegar atribuições.

Como pode, então, ser válida a delegação conferida por norma infraconstitucional, agredindo frontalmente proibição expressa no texto normativo superior? Até mesmo numa interpretação literal, simples e direta, somos forçados a concluir pela inconstitucionalidade dessa delegação, mantendo-se, portanto, as normas limitadoras dos juros plenamente aplicáveis às instituições financeiras, pois o CMN não tem competência para excepcioná-las do âmbito de incidência normativa, não lhe sendo válido substituir o legislador.

Por outro lado, e aqui se responde a segunda indagação, esta delegação de poderes igualmente não é aceitável em face da CF atual, de modo que, mesmo se em alguma época foi admitida sua validade pelo Supremo Tribunal Federal, hoje, esta possibilidade de delegação não foi recepcionada, sendo, portanto inconstitucional.

Tal conclusão se extrai da simples observância ao disposto nos arts. 22, VII, 48, XIII e 68, §1º, todos da atual Magna Carta da República. Vejamos:

CF/88

Art.22.Compete privativamente à União legislar sobre:

[...]

VI - sistema monetário e de medidas, títulos e garantias dos metais;

VII - política de crédito, câmbio, seguros e transferência de valores;

Art.48.Cabe ao Congresso Nacional, com a sanção do Presidente da República, não exigida esta para o especificado nos arts. 49, 51 e 52, dispor sobre todas as matérias de competência da União, especialmente sobre:

[...]

XIII - matéria financeira, cambial e monetária, instituições financeiras e suas operações;

Art.68.[...]

§1ºNão serão objeto de delegação os atos de competência exclusiva do Congresso Nacional, os de competência privativa da Câmara dos Deputados ou do Senado Federal, a matéria reservada à lei complementar, nem a legislação sobre:

Ora, por força do art. 22, VII, é da competência da União legislar sobre o sistema monetário, de medidas, e sobre política de crédito. Pelo art. 48, inc. XIII, cabe exclusivamente ao Congresso Nacional a competência para dispor sobre a matéria financeira, cambial e monetária, instituições financeiras e suas operações. E, por fim o art. 68, em seu parágrafo 1º, proíbe a delegação de atos de competência exclusiva do Congresso Nacional.

Assim, à toda evidência, nossa atual Constituição Federal não recepcionou qualquer legislação anterior que permitia tais delegações, ou as efetivava, tais quais a referida Lei 4.595/64, especificamente em seu art. 4.º, pelo que, as instituições financeiras não podem mais ter suas taxas de juros reguladas, ou limitadas, ou liberadas, pelo Conselho Monetário Nacional, órgão do Executivo, sendo tal atribuição afeta ao Congresso Nacional, que já a exerceu pelos Decreto 22626/33 (Lei da Usura) e pela Lei 1.521/51, dirigida indistintamente a todos, aqui incluídas as instituições financeiras.

Atento a tais aspectos, Justen Filho (1998, p. 61) sustenta a "[...] impossibilidade jurídica de o CMN autorizar a cobrança da comissão de permanência ou dispor normas sobre quaisquer contratos praticados entre instituições financeiras e particulares."

Oportuno, ainda quanto à impossibilidade de admitir-se a delegação aqui referida, por incompatível com a repartição competencial constitucional, o afirmado pelo Ministro aposentado do STF, Paulo Brossard, em prefácio à obra de Gabriel Wedy (1997, p.14).

Pois bem, o que o Chefe do Poder Executivo não podia fazer, poderia fazê-lo o Conselho Monetário Nacional... até por telefone, como se tornou notório. Ora, por mais amplas que fossem as atribuições do dito Conselho, e o são, não poderiam, em caso algum, revogar a lei, a lei civil e a lei penal, a lei que não só considerava ilícito o juro superior a 12% ao ano, como cominava a pena de nulidade em caso de pactuado, como a lei que capitulava a infração como ilícito penal, Lei 1.521, art. 4º, a. [...]

Admitir-se que um órgão da administração financeira pudesse dizer que o ilícito civil passava a ser lícito, quando praticado por bancos, e que o ilícito penal deixava de ser crime, importaria em proclamar que um órgão da administração pudesse legislar e efetivamente o fizesse. [...] O fato está a mostrar que a Nação não necessita de mais leis, mas do cumprimento legal das leis existentes.

Outro aspecto que merece especial relevo, quando demonstra a insubsistência da delegação da malsinada Lei 4.595/64, frente à CF/88, é que, como regra de transição, esta Carta Política estabeleceu o prazo de 180 (cento e oitenta) dias, a partir da sua promulgação, para que todos os dispositivos legais que atribuíssem ou delegassem a órgão do Poder Executivo competência por ela assinalada ao Congresso Nacional fossem extirpados do mundo jurídico, com imediata perda de vigência (ADCT, art. 25). Vejamos:

Art.25.Ficam revogados, a partir de cento e oitenta dias da promulgação da Constituição, sujeito este prazo a prorrogação por lei, todos os dispositivos legais que atribuam ou deleguem a órgão do Poder Executivo competência assinalada pela Constituição ao Congresso Nacional, especialmente no que tange a:

I - ação normativa

Esse prazo, contudo, conforme expressamente anunciado no próprio texto articulado, poderia ser prorrogado por lei. Porém, o Congresso não a editou. Assim, o Executivo Federal, para estender a validade da aludida delegação, acabou por editar a Medida Provisória n. 45, de 31.03.89 (DOU de 03.04.89), prorrogando até 30 de abril de 1990 a vigência dos dispositivos legais que houvessem atribuído ou delegado ao Conselho Monetário Nacional, ao Conselho Nacional do Comércio Exterior, ao Conselho Nacional de seguros Privados e ao Conselho Interministerial de Preços, as competências assinaladas pela Constituição ao Congresso Nacional.

A Medida Provisória n. 45, de 31.03.89, perdeu a eficácia, desde a sua edição, no dia 02.05.89, porquanto não convertida em Lei (CF, art. 62, par. único) ou ao menos reeditada, conforme se tem admitido por construção pretoriana.

Os efeitos imediatos desse fato jurídico foram o transcurso do prazo de 180 (cento e oitenta) dias previsto no artigo 25 do ADCT e a revogação de todos os dispositivos legais que atribuíssem ou delegassem a órgão do Poder Executivo competência assinalada pela Constituição ao Congresso Nacional, como ocorre, especificamente, a delegação esboçada na Lei 4595/64.

Portanto, o Conselho Monetário Nacional, desde de 04.04.89, não possui legitimidade para limitar, fixar ou dizer sobre taxas de juros e, assim sendo, as instituições financeiras, desde o dia 04.04.89, submetem-se ao regime normativo geral dos juros.

Estando revogada a delegação competencial ao CMN, como revogado está, o Dec. 22.626/33 e a Lei 1.521/51, dirigidos indistintamente a todos, aqui incluídas as instituições financeiras, tem total aplicabilidade. Em tal conclusão não se contém nenhum efeito repristinatório, porque a Lei 4.595/64 jamais revogou as normas limitadoras dos juros. Mesmo para quem defendia a inaplicabilidade destas às instituições financeiras, remanesciam íntegros os dispositivos quanto às demais pessoas. A própria Súmula 596 cria para as instituições financeiras uma exceção aos limites legais, mas não os desconhece ou aponta revogação.

Se a Lei 4.595/64 consubstanciava comando especial em relação às Leis limitadoras dos juros, por regular apenas as instituições financeiras, enquanto aqueles dispositivos regulavam a generalidade dos negócios a juros entre as demais pessoas, não há que se cogitar de revogação, bastando o exame do artigo 2º, § 2º, da LICCB:

Art. 2º

§ 2º A lei nova, ainda que estabeleça disposições gerais ou especiais a par das já existentes, não revoga nem modifica a lei anterior.

Nesse sentido, leciona Carlos Maximiliano (1995, p.360-361):

A disposição especial afeta a geral, apenas com restringir o campo da sua aplicabilidade; porque introduz uma exceção ao alcance do preceito amplo. Portanto, o derroga só nos pontos em que lhe é contrária. Na verdade, a regra especial posterior só inutiliza em parte a geral anterior, e isto mesmo quando se refere ao seu assunto, implícita ou explicitamente, para alterá-la.

[...]

Se a lei eliminada de modo expresso, ou tácito, não ab-rogava, apenas derrogava, outra, com introduzir uma exceção ao seu preceito amplo; há de ser conseqüência da última norma revocatória fazer prevalecer, na íntegra, a primitivamente abolida em parte. Assim acontece, por se dever sempre, na dúvida, optar pela regra geral. Ressurge esta logo que se extingue a exceção.

Dessa lição, perfeitamente adequada ao caso em análise, conclui-se que, se a lei 4595/64 apenas pode ser entendida como disposição especial, que excluía as instituições financeiras do âmbito de incidência normativo da regra geral limitativa, sem que estas tivessem deixado de ser aplicadas às demais pessoas, findou-se a exceção, portanto a regra geral retoma total aplicabilidade quanto à situação anteriormente excepcionada.

O desembargador Jorge Alcibíades Perrone de Oliveira, do TJRS, em artigo intitulado "juros - A limitação de 12% ao ano está em vigor", publicado no Jornal do Comércio de 18.07.96, Coluna Espaço Vital, faz verificação histórica:

O CMN, em face do que dispunha o art. 4º da Lei 4595, tomara a expressão ‘limitar’ taxas de juros, por ‘liberar’, o que foi aceito pela Súmula 596 do STF, de 1.976.

Tal entendimento guardava coerência com o sistema então vigente. É notório que a Carta outorgada de 1.969 dotara o Poder Executivo de poderes extraordinários, inclusive o de legislar pelo instrumento do Decreto-Lei e pelas delegações de poderes, como a referida na Lei 4595.

É sabido que tal carta teve forte inspiração na Constituição ‘gaullista’, da França de 1.968, em que a pretexto de combate ao terrorismo e ao comunismo, o Executivo daquele país, então representado pela figura carismática do General Charles de Gaulle, passou a editar leis, sendo reservado o poder legiferante da Assembléia Nacional apenas para determinadas matérias.

Não se pode esquecer, porém, que sendo o sistema francês um misto de Presidencialismo, o Legislativo se integra ao Executivo, na constituição do Gabinete e na escolha do Primeiro Ministro. Aqui, no entanto, o que houve foi uma simples entrega do poder de legislar ao Executivo, situação, em essência, completamente diversa... Era, assim, coerente com os tempos então vividos pelo país pós-64, a concentração enorme de poderes nas mãos do Executivo.

Cotejando a delegação de competência da Lei 4591/64, que intentou afastar a incidência da legislação reguladora dos juros sobre as instituições financeiras, com atual Carta da República, CF/88, afirmou o mesmo Desembargador, no mesmo texto:

Entretanto, a Carta de 1.988 resgatou o Estado Democrático de Direito, com o retorno - ou melhor a efetiva implantação - da independência dos poderes (que são do Povo), estabelecida a competência de cada um. Em várias áreas do Executivo nacional, especialmente na econômica, permaneceu, todavia, a idéia de que nada mudara. A Constituição, porém, alterara sobremaneira o quadro, a começar pelo art. 22, em seus incisos VI e VII estabelecendo que é da competência da União legislar sobre o sistema monetário e de medidas e política de crédito.

Prossegue o texto, atribuindo, no art. 48, inc. XIII exclusivamente ao Congresso Nacional a competência para dispor sobre a matéria financeira, cambial e monetária, instituições financeiras e suas operações. Por fim o art. 68, em seu parágrafo 1º, proíbe a delegação de atos de competência exclusiva do Congresso Nacional.

E prossegue, concluindo pela não recepção, e conseqüente insubsistência da comentada delegação ao CMN:

Vista a questão por este prisma é forçoso concluir que a Constituição Federal não recepcionou e nessa medida revogou toda a legislação anterior que permitia tais delegações. Entre elas, por óbvio, inclui-se aquela do art. 4º da Lei 4595. Ou seja, após a Constituição de 1.988, não tem mais o Conselho Monetário Nacional o poder de, por ato administrativo de caráter normativo, legislar sobre matéria de competência exclusiva do Congresso Nacional. Nem se argumente que Medidas Provisórias posteriores, algumas até convertidas em lei, poderiam ter outorgado tais poderes, porque padeceriam de vício flagrante de inconstitucionalidade.

Assim, após 1.988, caso pretendesse o Executivo - leia-se o Conselho Monetário Nacional - manter a liberação das taxas de juros, deveria ter usado o meio constitucional próprio: a remessa de projeto de lei ao Congresso Nacional, único poder competente para legislar a matéria.

Não o tendo feito, fez com que restando revogada a autorização legislativa, ficassem sem efeito os atos administrativos anteriores do BACEN, que havia autorizado a liberação de taxas de juros. Sem efeito tais atos, volta a ter aplicação integral o disposto na Lei de Usura, que alterou o Código Civil liberal do início do século, que enseja a usura, abortada pelo Decreto 22.626/33, que limitou os juros pactuáveis a 12% ao ano.

Por fim, como jurista e membro do poder judiciário, faz ainda expressa menção à sumula 596 – STF, desatualizada frente à constituição em vigor:

Portanto, é necessário repensar a conclusão tirada da decisão do STF. Hoje afigura-se revogada toda a legislação que delegou esse enorme poder a um órgão do Executivo, poder esse que é exclusivo do Congresso Nacional. Está assim em pleno vigor a limitação das taxas de juros a 12% ao ano, prevista na Lei de Usura - Decreto 22.626/33.

Assim, se é que a delegação de competência aqui examinada foi válida, diante da CF/46 (§ 2º, art. 36), ela não foi recepcionada pela CF/88 (arts. 22, VII, 48, XIII e 68, §1º). E, mesmo que se admita a inconcebível recepção, ainda assim a lei 4595/64 não subsiste frente ao escoamento do prazo do art. 25, ADCT.

Quanto à extensão dessa delegação de poderes (mesmo se tivesse sido constitucional à época e se fosse constitucional frente à Carta atual, por recepção, e se ainda estivesse vigindo), ainda assim, a interpretação flagrantemente elastecida que dela vem sendo feita não se afigura adequada. Isso porque tem-se um claro termo LIMITAR, que está sendo distorcido – ampliado - em favor das instituições financeiras, como se fosse LIBERAR ou regulamentar sem fixar qualquer limite.

Eis a redação do dispositivo da Lei 4.595/64, onde se faz a discutida atribuição de competência ao Conselho Monetário Nacional:

Art. 4º - Compete ao Conselho Monetário Nacional, segundo diretrizes estabelecidas pelo Presidente da República :

[...]

IX - Limitar, sempre que necessário, as taxas de juros, descontos, comissões e qualquer outra forma de remuneração de operações e serviços bancários ou financeiros, inclusive os prestados pelo Banco Central da República do Brasil, assegurando taxas favorecidas aos financiamentos que se destinem a promove...

O elastério exegético, efetuado tanto pelo Conselho Monetário Nacional, quanto pelo próprio STF, foi exatamente a compreensão do "Limitar, sempre que necessário", aludido no dispositivo em enfoque, como carta de permissividade à pratica da usura pelas instituições financeiras. Ora, se havia legislação estabelecendo limites máximos, a autorização conferida para limitar, sempre que necessário, somente poderia ser compreendia como possibilidade de reduzir ainda mais os limites vigentes.

È também o que sustenta Silva (1993, p. 118), inclusive citando dicionário para fundamentar sua assertiva no sentido de que limitar não significa liberar:

a Lei 4.595/64 confere poderes ao Conselho Monetário Nacional, apenas, para limitar as taxas de juros, descontos, comissões e qualquer outra forma de remuneração das operações e serviços bancários; limitar, segundo o Dicionário Aurélio, é "determinar os limites de, ou servir de limite a; extremar

Ora, se um diabético pode consumir até, no máximo, 12 gramas de glicose em um mês, e cabe ao médico, sempre que necessário, limitar, é evidente que este médico não poderá "limitar para permitir" 150 gramas e, menos ainda, tanto açúcar quanto se queira. O limitar, pela súmula 596–STF, passou a ser liberar ou regular, retirando todos os limites. Essa interpretação não nos parece razoável. Nesse sentido, Rizzardo (2003, p.267):

Em primeiro lugar, a Lei 4.595 em nenhum momento permitiu a graduação de juros acima da taxa legal. Autorizou o Conselho Monetário Nacional a delimitar as taxas de juros e outros encargos, mas não a elevá-los a quaisquer níveis, ficando liberados os bancos dos percentuais ordenados pelo Código Civil e pelo Dec. 22.626. Engendrou o STF uma construção fictícia, dando um alcance à Lei 4.595 favorável às entidades bancárias, o que, de certa forma, obedece a uma tradição de nossas instituições, sempre voltadas a consolidar as estruturas das forças econômicas dominantes.

E prossegue o citado Jurista, apontando ainda inconstitucionalidade nessa interpretação, por ofensa ao princípio constitucional da igualdade e classificando, a permissividade que a exegese do dispositivo conferiu aos bancos, como privilégio inconstitucional (2003, p.268-269):

Em segundo lugar, as taxas de juros estão previstas em lei. (...)não há de se consagrar privilégios em favor de uma determinada classe de entidades ou pessoas, mesmo porque, por princípio constitucional, todos são iguais perante a lei.

Não há de se convalidar o privilégio sob o argumento de que a atividade creditícia constitui a razão de ser dos bancos, e que subsistem os mesmo em função de seu exercício. (...) O simples fato da entidade creditícia classificar-se como banconão lhe outorga o direito de situar-se num plano superior e privilegiado, a descoberto de imposições de leis que não tiveram limitado o campo de aplicação, malgrado entendimentos distorcidos e nocivos à economia, numa época em que jazia sepultada a democracia no País.

Evidente que a noção de igualdade, bem enunciada por Aristóteles, assim como posteriormente por Ruy (Bulos, 2003, 77-78), impõe tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais, na proporção em que estas dessemelhanças se apresentarem e traduz o real alcance do mandamento esculpido no caput do artigo 5º da atual Carta Maior, preocupação de isonomia.

Fazem-se oportunas, nesse contexto, as ponderações de Bandeira de Mello (2002, p. 11-12) sobre a isonomia constitucional: "quem são os iguais e quem são os desiguais?". Ora, leciona o citado professor que o princípio constitucional da igualdade veda tratamento desuniforme às pessoas, quando não haja fundamento relevante a justificar a distinção. Ou seja, isonomia está em tratar os desiguais na proporção da desigualdade, quando estas forem relevantes para efeito de exigir um tratamento diferenciado.

Tal comando, portanto, nos impele a verificar que não há, de fato, no mundo do ser, razão material suficientemente justificante do tratamento diferenciado conferido às instituições financeiras, quanto à questão dos juros. Dallagnoll (2002, p.8) robustece nossa conclusão, dizendo :

Este panorama sugere, em tese, duas possíveis soluções: ou a possibilidade de as instituições financeiras estipularem juros acima da taxa da LU é inconstitucional em face do princípio igualitário, devendo elas serem postas sob a égide da lei que atinge o particular comum; ou a taxa de juros é livre para todos, não se sujeitando nem mesmo o particular comum à LU.

No que se refere à revogação seja do Dec. 22.626/33 ou da lei 1.521/51, pela Lei 4.595/64, esta, como já vimos, efetivamente inocorreu. De fato, no sistema jurídico pátrio, um instrumento normativo só se revoga, seja expressa ou tacitamente, pela posterior vigência de outro, de iguais ou superiores efeitos, que contenha expressa menção à revogação, ou consagre disposições incompatíveis com as do anterior, ou ainda regule inteiramente a matéria tratada pela anterior (revogação tácita), e nenhuma dessas hipóteses se verificou [03].


VII. Conclusão

A Lei 4.595/64 não faz qualquer menção à revogação nem do Dec. 22.626/33, ou da lei 1.521/51, e tão menos apresenta disposições incompatíveis que ensejem tácita revogação de qualquer deles.

Conforme vimos, lançado mão do art. 2º, § 2º, da LICCB, bem como das lições de MAXIMILIANO,a lei 4595/64 apenas pode ser entendida como disposição especial, que excluía as instituições financeiras do âmbito de incidência normativo da regra geral limitativa, sem que estas tivessem deixado de ser aplicadas às demais pessoas. Portanto, finda a exceção, a regra geral retoma total aplicabilidade quanto à situação anteriormente excepcionada.

Sendo assim, reconhecemos diversas inconstitucionalidades na delegação competencial trazida pela Lei 4.595/64, primeiro em seu nascedouro, frente à CF/46, que não permitia delegação de competência entre poderes. Segundo, frente à CF/88, que não a recepcionou, uma vez que também vedou a delegação competencial entre poderes. Se não bastasse, a exceção da Lei 4.595/64 não subsiste frente ao escoamento do prazo do art. 25, ADCT.

Ao lado de todas essas inconstitucionalidades, a própria extensão do termo limitar trazido na referida norma não pode ser interpretado como liberar, pois tal interpretação, ainda que sufragada na Súmula 596 – STF, importa em nova ofensa à CF/88, desta sorte ao pórtico fundamental da igualdade.

Por todo o exposto, sendo inconstitucional a Lei 4595/64, bem como a interpretação que se lhe vem conferido, as limitações esboçadas na Lei da Usura e na Lei 1521/51 permanecem em pleno vigor, aliás, reclamando aplicação.


Referências

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COSER, José Reinaldo. Juros. Leme – SP : LED - Editora de Direito, 2000.

DALLAGNOL, Deltan Martinazzo. Limite dos juros remuneratórios no direito brasileiro infraconstitucional. Jus Navigandi,out. 2002. Disponível em: <http://jus.com.br/artigos/3264>. Acesso em: 06 nov. 2005.

JUSTEN FILHO, Marçal. Competência normativa do Conselho Monetário Nacional.Curitiba: Juruá, 1998.

MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do direito. 15. ed. Rio: Forense, 1995.

MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Conteúdo jurídico do princípio da igualdade. São Paulo: Malheiros, 2002.

OLIVEIRA, Jorge Alcibíades Perrone de. Juros - A limitação de 12% ao ano está em vigor. Jornal do Comércio de 18.07.96, Coluna Espaço Vital.

RIZZARDO, Arnaldo. Contratos de crédito bancário. 6. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003.

SILVA, Antônio Ferreira Álvares da. Juros – tabelamento geral, amplo e irrestrito. Revista de Direito Civil, Imobiliário, Agrário e Empresarial. São Paulo, n. 64, abr-jun. 1993.

VIANA, Clausens Roberto Cavalcante. Juros e usura. Fortaleza : A & C Associados, 1999.

WEDY, Gabriel. Limite Constitucional dos Juros Reais. Porto Alegre: Síntese, 1997.


Notas

01 Decreto-Lei n º 182, de 5/01/38. Artigo único. Ficam revogadas as disposições contidas nos parágrafos 1º e 2º do art. 1º do decreto n. 22.626, de 7 de abril de 1933, bem como as constantes do parágrafo único do art. 7º da lei n. 454, de 9 de julho de 1937, e do art. 32 da lei n. 492, de 30 de agosto de 1937.

02 Destacamos a expressão pela relevância de seu comando normativo, deverá, não conferindo, portanto, qualquer margem de discricionariedade, sequer ao juiz, que não poderá, mas, deverá ajustar os juros ou lucros usurários à medida legal, fazendo repetir-se o indébito.

03 Cf. Art. 2.º da Lei de introdução ao Código Civil.


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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ALENCAR, Martsung F.C.R.. A aplicabilidade das limitações aos juros das instituições financeiras, pela inconstitucionalidade da Lei nº 4.595/64. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 11, n. 1000, 28 mar. 2006. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/8157. Acesso em: 29 mar. 2024.