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A MP 966

isenção da responsabilidade de agentes públicos durante a pandemia

A MP 966: isenção da responsabilidade de agentes públicos durante a pandemia

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“O mero nexo de causalidade entre a conduta e o resultado danoso não implica responsabilização do agente público”, diz a MP 966. É necessário que se reflita sobre isso.

I – O FATO E A NORMA

Em nova medida provisória publicada na madrugada da quinta-feira, dia 14 de maio de 2020, no Diário Oficial da União, o presidente Jair Bolsonaro isenta agentes públicos de serem responsabilizados “nas esferas civil ou administrativa” por erros no combate ao novo coronavírus. As medidas de “enfrentamento da emergência de saúde pública” e do “combate aos efeitos econômicos e sociais” provocados pela covid-19 só serão atribuídos aos agentes se eles “agirem ou se omitirem com dolo ou erro grosseiro”, ou seja, quando há intenção clara de dano.

“O mero nexo de causalidade entre a conduta e o resultado danoso não implica responsabilização do agente público”, diz a MP 966. O texto é assinado por Bolsonaro, pelo ministro da Economia Paulo Guedes e por Wagner de Campos Rosário, responsável pelo comando da Controladoria Geral da União (CGU)

Observa-se o teor da MP 966 na íntegra:

O PRESIDENTE DA REPÚBLICA, no uso da atribuição que lhe confere o art. 62 da Constituição, adota a seguinte Medida Provisória, com força de lei:

Art. 1º Os agentes públicos somente poderão ser responsabilizados nas esferas civil e administrativa se agirem ou se omitirem com dolo ou erro grosseiro pela prática de atos relacionados, direta ou indiretamente, com as medidas de:

I - enfrentamento da emergência de saúde pública decorrente da pandemia da covid-19; e

II - combate aos efeitos econômicos e sociais decorrentes da pandemia da covid-19.

§ 1º A responsabilização pela opinião técnica não se estenderá de forma automática ao decisor que a houver adotado como fundamento de decidir e somente se configurará:

I - se estiverem presentes elementos suficientes para o decisor aferir o dolo ou o erro grosseiro da opinião técnica; ou

II - se houver conluio entre os agentes.

§ 2º O mero nexo de causalidade entre a conduta e o resultado danoso não implica responsabilização do agente público.

Art. 2º Para fins do disposto nesta Medida Provisória, considera-se erro grosseiro o erro manifesto, evidente e inescusável praticado com culpa grave, caracterizado por ação ou omissão com elevado grau de negligência, imprudência ou imperícia.

Art. 3º Na aferição da ocorrência do erro grosseiro serão considerados:

I - os obstáculos e as dificuldades reais do agente público;

II - a complexidade da matéria e das atribuições exercidas pelo agente público;

III - a circunstância de incompletude de informações na situação de urgência ou emergência;

IV - as circunstâncias práticas que houverem imposto, limitado ou condicionado a ação ou a omissão do agente público; e

V - o contexto de incerteza acerca das medidas mais adequadas para enfrentamento da pandemia da covid-19e das suas consequências, inclusive as econômicas.

Art. 4º Esta Medida Provisória entra em vigor na data de sua publicação.

Brasília, 13 de maio de 2020; 199º da Independência e 132º da República.


II – A RESPONSABILIDADE DO ESTADO

Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte:

.....

§ 6º As pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa.

Pedro Lessa sintetiza os três sistemas de responsabilidade em direito público: teoria do risco integral, ou por causa do serviço público; teoria da culpa administrativa; teoria do acidente administrativo ou da irregularidade do funcionamento do serviço público.

Disse ele que, desde que um particular sofre um prejuízo em consequência do funcionamento (irregular ou regular, pouco importa) de um serviço público organizado no interesse de todos, a indenização é devida como corolário do princípio da igualdade dos ônus e encargos sociais; segundo a teoria da culpa administrativa, só há direito à indenização, quando se prova imprudência, negligência ou culpa de qualquer espécie dos órgãos e propostos da União; a terceira teoria tenta a conciliação das anteriores: assim pressupõe o princípio da igualdade dos ônus e encargos sociais, mas não vai a ponto de mandar que se indenizem todos os prejuízos resultantes do funcionamento, regular ou irregular, dos serviços públicos; sente-se nesta terceira teoria um vestígio do conceito de culpa, mas a culpa, aqui, é impessoal, objetiva do serviço público como expôs no conhecido Do Poder Judiciário, pág. 165.

Na teoria do risco integral, o prejuízo sofrido pelo particular é consequência do funcionamento, seja regular ou irregular, do serviço público.

Mas visando atenuar a amplitude da responsabilidade objetiva constitucional, Hely Lopes Meirelles acena com uma discriminação do conceito de risco, mas que recebe a oposição de autores como Alcino Falcão (Responsabilidade patrimonial das pessoas jurídicas de direito público, RDP 11:45). Para Hely Lopes Meirelles (Direito Administrativo brasileiro, São Paulo, 1978) , a teoria do risco integral faz surgir a obrigação de indenizar os danos, do ato lesivo e injusto causado à vítima pela Administração, não se exigindo qualquer falta do serviço público, nem culpa dos seus agentes; basta a lesão, sem o concurso do lesado; baseia-se esta teoria no risco que a atividade pública gera para os administrados e na possibilidade de acarretar danos a certos membros da comunidade impondo-lhes um ônus não suportado pelos demais. Entendia Hely Lopes Meirelles que a teoria do risco administrativo não se confunde com a teoria do risco integral: “Nesta a Administração ficaria obrigada a indenizar todo e qualquer dano suportado por terceiros, ainda que resulte de culpa ou dolo da vítima”; no risco administrativo embora se dispense a prova da culpa da Administração, permite-se que o Poder Público demonstre a culpa da vítima para excluir ou atenuar a indenização.

Mostra, logo após, que a teoria do risco administrativo, embora dispense a prova da culpa da Administração, permite que o Poder Público demonstre a culpa da vítima, para excluir e atenuar a indenização, o que não aconteceria no caso de risco integral, modalidade extremada do risco administrativo, e segundo o qual a Administração fica obrigada a indenizar todo e qualquer dano suportado por terceiros, ainda que resultante de culpa ou dolo da vítima. Ora, como observam Mário Marzagão e Otávio de Bastos (Responsabilidade pública, 1956), essa teoria jamais foi acolhida em toda a sua intensidade.

A teoria do risco administrativo foi adotada pela doutrina, sendo reconhecida como a que mais se mostra adequada à compreensão da responsabilidade civil do Estado, acrescentando-se que, na legislação brasileira, a Administração Pública pode ser responsabilizada na forma do risco integral apenas quando praticar dano ambiental, na forma do artigo 14 da Lei 6.938/81, e artigo 225, § 3º, da Constituição Federal, ou dano nuclear, nos termos do artigo 21, XIII, alínea “ d”, da Constituição Federal.

Será a teoria do risco administrativo apontada a objeto de utilização pelos operadores do direito no sentido de exigir a responsabilidade do Estado pelo factum principis delineado.

Ora, há danos por ação ou omissão do Estado.

Na primeira hipótese, como disse Celso Antônio Bandeira de Mello (Curso de direito constitucional, 17ª edição, pág. 893) o Estado gera o dano, produz o evento lesivo, sendo caso de aplicação de responsabilidade objetiva, independente de dano. Isso porque a própria noção de Estado determina tal solução.

Ora, no Estado de Direito, o Estado é responsável.

O Estado detém o monopólio da força. O Estado dita os efeitos da sua presença na coletividade, sem que os administrados possam esquivar-se. O Estado frui o poder de intervir unilateralmente na esfera jurídica de terceiros. O Estado tem o dever de praticar atos em benefício de todos.

Assim se houve conduta estatal lesiva a bem jurídico garantido de terceiro, o princípio da igualdade – inerente ao Estado de Direito – é suficiente para reclamar a restauração do patrimônio jurídico do lesado.

O Estado pode, eventualmente, vir a lesar bem juridicamente protegido para satisfazer um interesse público, mediante conduta comissiva legítima e que sequer é perigosa. Mas o princípio da isonomia estaria a exigir reparação em prol de quem foi lesado a fim de que se satisfizesse o interesse da coletividade. Quem aufere os cômodos, como disse ainda Celso Antônio Bandeira de Mello, há de suportar os correlatos ônus.

Há danos por omissão do Estado.

Quando o dano foi possível em decorrência de uma omissão do Estado (o serviço não funcionou, funcionou tardiamente ou de forma ineficaz), a doutrina entende que deve ser aplicada a teoria subjetiva. Com efeito, se o Estado não agiu, não pode, logicamente, ser ele o autor do dano. E, se não foi o autor, só cabe responsabilizá-lo caso esteja obrigado a impedir o dano. Isto é: só faz sentido responsabilizá-lo se descumprir dever legal que lhe impunha obstar ao evento lesivo.

A responsabilidade civil por ato omissivo leva em conta um comportamento ilícito.

Em síntese: se o Estado, devendo agir, por imposição legal não agiu ou o fez deficientemente, comportando-se abaixo dos padrões legais, que, normalmente, deveriam caracterizá-lo, responde por essa incúria, negligência ou deficiência, que traduzem um ilícito ensejador do dano não evitado quando, de direito, devia sê-lo. Também não o socorre eventual incúria em ajustar-se aos padrões devidos.

De forma reversa, descabe responsabilizá-lo se, inobstante, atuação compatível com as possibilidades de um serviço normalmente organizado e eficiente, não lhe foi possível impedir o evento danoso gerado por força (humana ou material) alheia.

Assim, em síntese, há responsabilidade objetiva no caso de um comportamento danoso comissivo e subjetiva no caso de comportamento omissivo.

A responsabilidade fundada na teoria do risco-proveito supõe sempre ação positiva do Estado, que coloca terceiro em risco, pertinente à sua pessoa ou ao seu patrimônio, de ordem material, econômica ou social, em benefício da instituição governamental ou da coletividade em geral, que o atinge individualmente, e atenta contra a igualdade de todos diante dos encargos públicos, em lhe atribuindo danos anormais, acima dos comuns inerentes à vida em sociedade.

Disse Oswaldo Aranha Bandeira de Mello (Princípios gerais de direito administrativo, volume II, 1969, pág. 482 e 483):

“Consiste em ato comissivo positivo, do agente público, em nome e por conta do Estado, que redunda em prejuízo a terceiro, consequência do risco decorrente de sua ação, repita-se, praticado tendo em vista o proveito da instituição governamental ou da coletividade em geral. Jamais de omissão negativa”.

Os acontecimentos suscetíveis de acarretar responsabilidade estatal por omissão, ou atuação insuficiente as seguintes:

a) Fato da natureza a cuja lesividade o Poder Público não obstou, embora devesse fazê-lo;

b) Comportamento material de terceiros, cuja atuação lesiva não foi impedida pelo Poder Público, embora pudesse e devesse fazê-lo.

Caio Tácito (RDA 55/262 e seguintes) entende cabível a responsabilidade objetiva, sem comprovação de culpa, nos casos de dano anormal, decorrente da atividade lícita do Poder Público, mas lesiva ao particular.

Hely Lopes Meirelles (Direito administrativo brasileiro, 25ª edição, 2000, pág. 600 e seguintes) entendia que a responsabilidade civil desde a Constituição de 1946, é a regra no direito brasileiro.

Não há dúvida, pois, com relação a responsabilidade objetiva no caso de atos lícitos causadores de prejuízo especial e anormal aos administrados.

A responsabilidade subjetiva somente será aplicada com relação aos atos omissivos. Aqui aplica-se a teoria da culpa.


III – A RESPONSABILIDADE PATRIMONIAL DO AGENTE POR DANOS CAUSADOS A TERCEIROS

Passo a observar quanto a responsabilidade patrimonial do agente por danos a terceiros.

Na matéria, Hely Lopes Meirelles (Direito administrativo brasileiro, pág. 626 e 627) sustentou que o funcionário público só responde perante o Estado, descabendo ao lesado acionar o funcionário. São essas as suas considerações:

“A reparação do dano causado pela Administração a terceiros obtém-se amigavelmente ou por meio da ação de indenização, e, uma vez indenizada a lesão da vítima, fica a entidade pública com o direito de voltar-se contra o servidor culpado para haver dele o despendido, através de ação regressiva, como dispõe o artigo como dispõe o artigo 37, § 6º, da Constituição.”

Assim o legislador constituinte bem separou as responsabilidades: o Estado indeniza a vítima; o agente indeniza o Estado regressivamente”.

Mas o Supremo Tribunal Federal já reconheceu a possibilidade de propositura da ação contra o Estado e o agente conjuntamente (RE 90.071, RDA 142/93 e AI 106.483, RDA 162/236).

Sobre a matéria bem disse Daniel Baggio Maciel (Ação de regresso do Estado):

“Questão tormentosa nos tribunais é a possibilidade ou não de o Estado denunciar à lide o agente causador do dano, quando for chamado a reparar um dano sofrido pelo particular. Neste campo os posicionamentos se dividem porque há entendimento de que a denunciação da lide afigura-se obrigatória, sob pena de o Estado perder o direito de regresso contra o seu funcionário, como, ademais, determina o artigo 70, inciso III, do Código de Processo Civil (RT 690, p. 100). Há, de outra banda, posicionamento no sentido de que a admissão da denunciação à lide nestes casos implica introduzir novo fundamento na demanda e na modificação da sua “causa petendi”, isto é, a discussão em torno da culpa do agente causador do dano, o que não se pode conceber na processualística. Nesse sentido o acórdão relatado pela Juíza Valéria Maron, do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, proferido na apelação cível 7.387 (j. 16.10.96): “RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO – Ação pleiteada pela viúva de deputado falecido em acidente de trânsito. Demandada a administração pública por responsabilidade objetiva, descabe a denunciação da lide ao servidor, porque implica na introdução de fundamento novo (dolo ou culpa), estranho à “causa pretendi” da ação principal. O trabalho do parlamentar não se resume àquele realizado em seu gabinete ou no plenário. Inexistência de prova de culpa da vítima. A pensão mensal há de ser fixada levando em consideração os ganhos do “de cujus” por ocasião de sua morte. Segundo a jurisprudência dominante, o montante do dano moral deve ser fixado em 100 salário mínimos.” No Superior Tribunal de Justiça há entendimento mais flexível no tocante à introdução de fundamento novo na lide, concluindo, porém, pela facultatividade da denunciação, a critério do juiz segundo as circunstâncias do caso: “RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO – Administrativo – Denunciação da lide – Direito de regresso – Agente do Estado – Inexistência de obrigatoriedade – Culpa objetiva e subjetiva – Adição de fundamento novo – Precedentes do STJ – CPC, artigo 70, III – CF/88, artigo 37, parágrafo sexto. A denunciação da lide ao agente do Estado em ação fundada na responsabilidade prevista no artigo 37, parágrafo sexto, da CF/88 não é obrigatória, vez que a primeira relação jurídica funda-se na culpa objetiva e a segunda na culpa subjetiva, fundamento novo não constante da lide originária” (STJ – EDiv. em Resp. nº 313.886 – RN – 1ª Seção – Rel. Ministra Eliana Calmon, J. 26.02.2004, DJ 15.03.2004). Porém, há ainda forte corrente doutrinária e jurisprudencial que interpreta restritivamente a mencionada norma que trata da denunciação à lide daquele que estiver obrigado, pela lei ou pelo contrato, a indenizar em ação regressiva o prejuízo do que perder a demanda. Nessa linha, conforme enfatiza Carlos Roberto Gonçalves (Responsabilidade Civil, Saraiva, 1.994, p. 153), o artigo 70, inciso III, do Código de Processo Civil, apenas cria a obrigatoriedade da denunciação“quando, resolvida a lide principal, torna-se automática a responsabilidade do denunciado, independentemente de discussão de culpa ou dolo (casos das seguradoras), isto é, sem a introdução de um fato ou elemento novo”. Em outros termos, quando a responsabilidade do terceiro não depender de sentença em processo de conhecimento, o réu deve valer-se do mecanismo da denunciação à lide, sob pena de perder o direito de acioná-lo em ação autônoma. No caso da ação de indenização promovida pelo particular contra o Estado, importa assinalar que o agente causador do dano somente terá responsabilidade se provada culpa ou dolo de sua parte em processo de cognição exauriente. Não sendo automático o ônus ressarcitório, a denunciação à lide do agente público deixa de ser obrigatória e passa a depender, pensamos, das circunstâncias de cada caso, mais propriamente da postura processual que o Poder Público adotar ao defender-se da pretensão indenitária.”

No julgamento do RE 327.904/SP, tem-se:

Ementa: RECURSO EXTRAORDINÁRIO. ADMINISTRATIVO. RESPONSABILIDADE OBJETIVA DO ESTADO: § 6º DO ART. 37 DA MAGNA CARTA. ILEGITIMIDADE PASSIVA AD CAUSAM. AGENTE PÚBLICO (EX-PREFEITO). PRÁTICA DE ATO PRÓPRIO DA FUNÇÃO. DECRETO DE INTERVENÇÃO. O § 6º do artigo 37 da Magna Carta autoriza a proposição de que somente as pessoas jurídicas de direito público, ou as pessoas jurídicas de direito privado que prestem serviços públicos, é que poderão responder, objetivamente, pela reparação de danos a terceiros. Isto por ato ou omissão dos respectivos agentes, agindo estes na qualidade de agentes públicos, e não como pessoas comuns. Esse mesmo dispositivo constitucional consagra, ainda, dupla garantia: uma, em favor do particular, possibilitando-lhe ação indenizatória contra a pessoa jurídica de direito público, ou de direito privado que preste serviço público, dado que bem maior, praticamente certa, a possibilidade de pagamento do dano objetivamente sofrido. Outra garantia, no entanto, em prol do servidor estatal, que somente responde administrativa e civilmente perante a pessoa jurídica a cujo quadro funcional se vincular. Recurso extraordinário a que se nega provimento.

No Recurso Especial 23.453/SP, Relator Ministro Demócrito Reinaldo, DJ de 28 de novembro de 1994, conclui-se que acionado o Estado, para indenizar dano causado por funcionário dos seus quadros, estará ele obrigado a responder, via ação regressiva, pelo prejuízo provocado, se configurado dolo ou culpa, a teor do artigo 37, parágrafo sexto da Constituição Federal. Sendo assim, é admissível a denunciação da lide, hipótese prevista no artigo 70, III, do CPC, quando o litisdenunciado estiver obrigado, por lei ou contrato, a indenizar o litisdenunciante, em ação regressiva.

Observo, outrossim, o traçado no RE 1027633:

Na sessão do dia 14 de agosto de 2019, o Plenário do Supremo Tribunal Federal (STF) concluiu o julgamento de processo em que se discute a responsabilidade civil do agente público por danos causados a terceiros no exercício de atividade pública. Os ministros entenderam que, nesses casos, o agente público não responde diretamente perante a vítima: a pessoa prejudicada deve ajuizar ação contra o ente público ao qual o agente é vinculado. O ente público, por sua vez, poderá acionar o causador do dano para fins de ressarcimento (ação de regresso).

Por unanimidade dos votos, a Corte deu provimento ao Recurso Extraordinário (RE) 1027633, que corresponde ao tema 940 de repercussão geral. Sobre esse assunto, 47 processos estão suspensos aguardando a decisão do STF.

A tese aprovada pela Corte é a seguinte: “A teor do disposto no artigo 37, parágrafo 6º, da Constituição Federal, a ação por danos causados por agente público deve ser ajuizada contra o Estado ou a pessoa jurídica de direito privado, prestadora de serviço público, sendo parte ilegítima o autor do ato, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa”.


IV – A DISTINÇÃO ENTRE AGENTE PÚBLICO E AGENTE POLÍTICO

Há que se distinguir agente público de agente político.

A expressão agente público designa um gênero, do qual são espécies distintas o agente político e o agente administrativo. E a distinção entre essas duas espécies é de fundamental importância quando se trata da questão de saber se aquele que se sente prejudicado por um ato estatal pode, ou não, promover ação cobrando a indenização correspondente diretamente contra o agente público que tenha agido com culpa ou dolo, ou se tal responsabilidade só pode ser cobrada pela entidade pública em ação regressiva. Por isso mesmo vamos explicar em que consiste essa distinção, que infelizmente não tem sido apontada pelos que cogitam da responsabilidade desses agentes, seja para pleitear indenização, seja para julgar esses pleitos, inclusive no Supremo Tribunal Federal.

O agente político é aquele que tem deveres de conteúdo eminentemente político, como o presidente da República, os governadores, senadores, deputados, prefeitos e outros, que exercem atividade política. Tais agentes não dispõem de autoridades superiores às quais estejam subordinados e possam consultar para saber o que devem fazer em face de determinadas situações, e, por isso mesmo, precisam de maior liberdade para agir.


V – OS LIMITES DO DOLO E DA CULPA NA AÇÃO DO FUNCIONÁRIO QUE CAUSE PREJUÍZO A TERCEIRO

Ora, a MP noticiada fala em dolo ou erro grosseiro. Ela não fala em culpa, daí sua inconstitucionalidade.

Ensinou Hely Lopes Meirelles (obra citada, 2006,pág. 470):

“A comprovação do dano e da culpa do servidor é comumente feita através do processo administrativo, findo o qual a autoridade competente lhe impõe a obrigação de repará-lo, através de indenização em dinheiro, indicando a forma de pagamento. Os estatutos costumam exigir a reposição de uma só vez quando o prejuízo decorrer de alcance, desfalque, remissão ou omissão de recolhimento ou entrada no prazo devido”.

Em uma decisão unânime, o STF fortificou seu entendimento quanto à questão, firmando a distinção entre responsabilidade objetiva do Estado decorrente da ação de seus agentes (objetiva) e a verificada nas situações de danos causados pela omissão do Poder Público, conforme se destaca no trecho do acórdão abaixo transcrito:

A posição adotada pelo Supremo Tribunal Federal, perfilhando a doutrina, entre outros, de Celso Antônio Bandeira de Mello. Com efeito, do voto vencedor do Ministro Sepúlveda Pertence, consoante citado pelo autor (Curso de direito administrativo. 15. Ed. São Paulo: Malheiros, 2003. P. 871 -872):

“Na doutrina brasileira contemporânea, a teoria subjetiva, derivada da culpa, torna admissível imputar ao Estado a responsabilidade pelos danos possibilitados por sua omissão.

Adiante, em uma decisão unânime, o STF fortificou seu entendimento quanto à questão, firmando a distinção entre responsabilidade objetiva do Estado decorrente da ação de seus agentes (objetiva) e a verificada nas situações de danos causados pela omissão do Poder Público, conforme se destaca no trecho do acórdão abaixo transcrito:

I — A responsabilidade civil das pessoas jurídicas de direito público e das pessoas jurídicas de direito privado prestadoras de serviço público, responsabilidade objetiva, com base no risco administrativo, ocorre diante dos seguintes requisitos: a) do dano; b) da ação administrativa; c) e desde que haja nexo causal entre o dano e a ação administrativa. II — Essa responsabilidade objetiva, com base no risco administrativo, admite pesquisa em torno da culpa da vítima, para o fim de abrandar ou mesmo excluir a responsabilidade da pessoa jurídica de direito público ou da pessoa jurídica de direito privado prestadora do serviço público. III — Tratando-se de ato omissivo do poder público, a responsabilidade civil por tal ato é subjetiva, pelo que exige dolo ou culpa, numa de suas três vertentes, negligência, imperícia ou imprudência, não sendo, entretanto, necessário individualizá-la, dado que pode ser atribuída ao serviço público, de forma genérica, a falta de serviço dos franceses.”

Fica nítido que a culpa vem, portanto, de negligência, imperícia ou imprudência. Basta comprová-las para que o agente tenha o dever de ressarcir.

Mas haverá limites com relação ao nexo causal: a culpa reciproca, entre a ação do Estado e do particular. Será o caso do caso fortuito ou da força maior.

A força maior é o acontecimento imprevisível, inevitável e estranho à vontade das partes, por exemplo, uma tempestade ou um raio. Este tipo de evento não pode ser imputado ao Estado, pois independe de sua vontade. Ademais, não há nexo de causalidade entre as ocorrências.

Para Sérgio Cavalieri Filho (Programa de responsabilidade civil. 8. Ed. São Paulo: Atlas, 2008):

“O caso fortuito e a força maior excluem o nexo causal por constituírem também causa estranha à conduta do aparente agente, ensejadora direta do evento. Eis a razão pela qual a jurisprudência tem entendido que o defeito mecânico em veículo, salvo em caso excepcional de total imprevisibilidade, não caracteriza caso fortuito, por ser possível prevê-lo e evita-lo através da periódica e adequada manutenção. O mesmo entendimento tem sido adotado no caso de derrapagem em dia de chuva, porquanto, além de previsível, pode ser evitado pelo cuidadoso dirigir do motorista.”


VI – A LEI DE INTRODUÇÃO ÀS NORMAS JURÍDICAS

Os artigos 20 a 24 instauraram um novo corolário do princípio do devido processo legal, qual seja, o princípio do devido processo decisório. Apesar de o legislador almejar a segurança jurídica, percebeu-se que ele foi além, uma vez que traduziu nuances de certeza jurídica. Paulo Nader (Introdução ao estudo do direito) trata da questão estabelecendo a diferença entre a segurança jurídica e a certeza jurídica, a saber:

“Os conceitos de segurança jurídica e de certeza jurídica não se confundem. Enquanto o primeiro é de caráter objetivo e se manifesta concretamente através de um Direito definido que reúne algumas qualidades, a certeza jurídica expressa o estado de conhecimento da ordem jurídica pelas pessoas. Pode-se dizer, de outro lado, que a segurança possui um duplo aspecto: objetivo e subjetivo. O primeiro corresponde às qualidades necessárias à ordem jurídica e já definidas, enquanto o subjetivo consiste na ausência de dúvida ou de temor no espírito dos indivíduos quanto à proteção jurídica”.

De acordo com a doutrina de Floriano de Azevedo Marques e Rafael Véras de Freiras citada pelo Ministro Edson Fachin, o artigo 20 da LINDB é erigido para compatibilizar as decisões administrativas, controladoras e judiciais à ordem constitucional vigente, inaugurando um “devido processo legal decisório”.

O Ministro Edson Fachin, em decisão interlocutória, dissertou sobre o art. 20, afirmando que tal dispositivo homenageia o consequencialismo jurídico como corolário do princípio da segurança jurídica. Leciona também, citando Floriano de Azevedo Marques e Rafael Véras de Freiras que o dispositivo em questão instaura um devido processo legal decisório. Confira:

“A despeito disso, na qualidade de Estado-Juiz, impende apontar que art. 20 do Decreto-Lei 4.657/1942, a Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, consolidou, em algum grau, no ordenamento jurídico o dever de obediência a prescrições emanadas do consequencialismo jurídico como corolário necessário do princípio da segurança jurídica e do interesse social.

Eis o teor do dispositivo supracitado:

“Art. 20. Nas esferas administrativa, controladora e judicial, não se decidirá com base em valores jurídicos abstratos sem que sejam consideradas as consequências práticas da decisão.

Parágrafo único. A motivação demonstrará a necessidade e a adequação da medida imposta ou da invalidação de ato, contrato, ajuste, processo ou norma administrativa, inclusive em face das possíveis alternativas.”

De acordo com Floriano de Azevedo Marques e Rafael Véras de Freiras, essa norma vincula ao Poder Judiciário e significa o seguinte:

‘A prescrição é um tanto mais sofisticada. Estabelece um devido processo legal decisório, mais interessado nos fatos, por intermédio do qual os decisores terão de explicitar-se: (i) dispõem de capacidade institucional para tanto, ou se, excepcionalmente, estão exercendo uma função que lhe é atípica, mas por uma necessidade pragmática, porém controlável; (ii) a decisão que será proferida é a mais adequada, considerando as possíveis alternativas e o seu viés intrusivo; e (iii) se as consequencias de suas decisões são predicadoras de medidas compensadoras, ou de um regime transição. Cuida-se de uma motivação para além da exigida pelo disposto no artigo 50 da Lei 9.784/1999. Não se trata de um dever de utilização de uma ‘retórica das consequências’, como já se cogitou, nem, tampouco, tem o propósito de tornar o controle mais lasso. Quem exerce o controle não pode descurar o seu autocontrole.

Na verdade, trata-se de dispositivo que visa estabilizar e a conferir exequibilidade às decisões do controlador. E, de outro bordo, estabelecer parâmetros a partir dos quais tais decisões poderão ser controladas. Assim é que, caso se trate de decisão na esfera administrativa, a inobservância dessa exigência poderá importar na sua invalidação, por ausência de motivos, como determina o disposto no artigo 2º, d e parágrafo único, d, ambos da Lei 4.717/1965 (Lei da Ação Popular). De outro lado, caso tal inobservância seja observada em provimento jurisdicional, tratar-se-á de decisão considerada sem fundamentação, nos termos do artigo 489, parágrafo 1º, do CPC 2015, o que pode ensejar a sua nulidade (nos termos do artigo 1.013, parágrafo 3º, I, do CPC 2015). O dispositivo, portanto, não só é compatível com sistema normativo já vigente como, de resto, com ordenamento constitucional brasileiro’.” (Disponível em: . Acesso em 13.09.2018)

Em 2018, a Lei de introdução às normas brasileiras foi modificada com acréscimo de dois artigos, relativos ao direito administrativo:

Art. 22. Na interpretação de normas sobre gestão pública, serão considerados os obstáculos e as dificuldades reais do gestor e as exigências das políticas públicas a seu cargo, sem prejuízo dos direitos dos administrados. (Regulamento)

§ 1º Em decisão sobre regularidade de conduta ou validade de ato, contrato, ajuste, processo ou norma administrativa, serão consideradas as circunstâncias práticas que houverem imposto, limitado ou condicionado a ação do agente. (Incluído pela Lei nº 13.655, de 2018)

§ 2º Na aplicação de sanções, serão consideradas a natureza e a gravidade da infração cometida, os danos que dela provierem para a administração pública, as circunstâncias agravantes ou atenuantes e os antecedentes do agente. (Incluído pela Lei nº 13.655, de 2018)

§ 3º As sanções aplicadas ao agente serão levadas em conta na dosimetria das demais sanções de mesma natureza e relativas ao mesmo fato.

Art. 28. O agente público responderá pessoalmente por suas decisões ou opiniões técnicas em caso de dolo ou erro grosseiro.


VII – O PROBLEMA DA IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA

Outra situação envolve a improbidade administrativa.

Constitui ato de improbidade administrativa que causa lesão ao erário qualquer ação ou omissão, dolosa ou culposa, que enseje perda patrimonial, desvio, apropriação, malbaratamento ou dilapidação dos bens ou haveres das entidades referidas no art. 1º desta lei, e notadamente:

Realmente, como falar em grave desvio ético sem que o agente ao qual se imputa ofensa à ordem jurídica tenha se conduzido sem propósito viciado, eivado de má-fé, sem consciência da antijuridicidade do resultado, a que tenha dado causa? Ora, só há grave desvio ético de conduta quando alguém atua, revelando móvel viciado, má intenção, desígnio moralmente reprovável. Esse é o ímprobo.

Juarez Freitas (Princípio Jurídico da Moralidade e a Lei de Improbidade Administrativa), na mesma linha de Gilmar Ferreira Mendes e Arnoldo Wald (Mandado de segurança e ações constitucionais), entende que a improbidade pode ser punida a título de dolo ou de culpa grave, restando impossível apenas a configuração dessa infração ético-funcional nas condutas pautadas por culpa leve e levíssima.

Aliás, é Juarez Freitas, que ao defender a posição intermediária (improbidade administrativa caracterizada por dolo ou culpa grave), acaba por cair em insanável contradição, visto que ele expressamente arrola a “inequívoca intenção desonesta” como sendo o precípuo requisito à configuração da improbidade. Entenda-se que é cediço que o dolo é composto por representação e vontade (ou intenção), de modo que, sendo a grave intenção desonesta um requisito inarredável da improbidade, deve-se afastar, pelos fundamentos expostos pelo doutrinador, a possibilidade de improbidade culposa. Assim onde se verifica a inequívoca intenção desonesta há, de forma nítida, dolo, e não simples culpa na conduta funcional.

Na linha de Edilson Pereira Nobre Júnior (Improbidade Administrativa: alguns aspectos controvertidos), dir-se-á que a presença do dolo é um dos principais elementos configuradores do ato improbus. Repita-se que o conceito de improbidade está, de forma inexorável, atrelado à ideia de imoralidade administrativa qualificada, que pressupõe a presença do ânimo desonestidade.

Se tudo isso não bastasse, há possível confronto na conduta noticiada com relação ao artigo 11 da Lei de Improbidade, que exige respeito aos princípios constitucionais da Administração protegidos no artigo 37 da Constituição, dentre os quais os da moralidade, impessoalidade, legalidade.

Aqui então poder-se-á falar em erro grosseiro, diante de culpa grave.


VIII – A INCONSTITUCIONALIDADE DA MEDIDA

No entanto, a matéria deve ser avaliada no Congresso Nacional por projeto de lei, com ampla discussão das duas casas legislativas, e não por Medida Provisória, onde se reservam os requisitos da relevância e, principalmente, da urgência.

Ademais, são feridos os princípios republicano (democrático por excelência) e da igualdade ao legislar sob matéria tão séria envolvendo agentes políticos e públicos e que os livra da responsabilidade, em casos pontuais, de forma diversa de outros casos, isso porque estabelece um elemento arbitrário para o julgamento.

Assim está ferido o princípio da igualdade.

Ela estabelece um instrumento arbitrário para solução do problema.

Celso Antônio Bandeira de Mello observa que qualquer elemento residente nas coisas, pessoas ou alterações pode ser escolhido pela lei como fator discriminatório, donde se segue que, de regra, não é o traço de diferenciação escolhido que se deve buscar algum desacato ao princípio isonômico. Todavia as discriminações legislativas são compatíveis com a cláusula igualitária apenas tão-somente quando existe um vínculo de correlação lógica entre a peculiaridade diferencial acolhida, por residente no objeto e a desigualdade de tratamento em função dela conferida. Não basta, porém, a existência desta correlação: é ainda necessário que ela não seja incompatível com interesses prestigiados na Constituição (O conteúdo jurídico do princípio da igualdade, São Paulo, 1978, pág. 24).

O vínculo de correlação lógica entre o fator de discriminação e a desigualdade de regime jurídico, a que alude Celso Antônio Bandeira de Mello, nada mais é do que "a proibição do arbítrio" de que falou a doutrina alemã ou a exigência da razoabilidade que tem sido utilizada pela Corte Constitucional da Itália, como cânone interpretativo para o exame da constitucionalidade das leis.

Assim deve-se acautelar com relação às chamadas desequiparações fortuitas, injustificadas, desrazoáveis. E essa ocorre sempre que não exista uma pertinência e uma coerência lógica do fator de discrímen com a diferenciação procedida.

Concluiu Celso Antônio Bandeira de Mello (obra citada): "é agredida a igualdade quando o fator diferencial adotado para qualificar os atingidos pela regra não guarda relação de pertinência lógica com a inclusão ou exclusão no benefício deferido ou com a inserção ou arredamento do gravame imposto".

Fala-se em igualdade perante a lei e igualdade na lei.

Aquela corresponde à obrigação de aplicar as normas jurídicas gerais aos casos concretos, na conformidade com o que eles estabelecem, mesmo se delas resultar uma discriminação, o que caracteriza uma igualdade puramente formal, enquanto a igualdade na lei exige que nas normas jurídicas não haja distinções que não sejam autorizadas pela própria Constituição. A igualdade perante a lei seria uma exigência feita a todos aqueles que aplicam as normas jurídicas gerais aos casos concretos, ao passo que a igualdade na lei seria uma exigência dirigida tanto àqueles que criam as normas jurídicas gerais como àqueles que as aplicam aos casos concretos, como ensinou Hermann Pertzold (Le principe de l'egalité devant la loi dans le droit de certain état d'Amerique Latin).

Para Seabra Fagundes, o princípio da igualdade significa para o legislador que "ao elaborar a lei, deve reger, com iguais disposições, os mesmos ônus e as mesmas vantagens, situações idênticas, e, reciprocamente, distinguir, na repartição de encargos e benefícios, as situações que sejam entre si distintas, de sorte a aquinhoá-las ou gravá-las em proporção às suas diversidades"(O princípio constitucional da igualdade perante a lei e o Poder Legislativo, RT 235/3).

Francisco Campos (Igualdade perante a lei, incorporado em seu Direito Constitucional) sustentou que o legislador é o destinatário principal do princípio, pois se ele pudesse criar normas distintas das pessoas, coisas ou fatos, que devessem ser tratados com igualdade, o mandamento constitucional se tornaria inteiramente inútil. Por sua vez, o executor da lei já está necessariamente obrigado a aplicá-la de acordo com os critérios constantes na própria lei.

O caso não merece assim urgência, a não ser para retirar do agente político envolvido qualquer responsabilidade diante de fatos que seriam imputados, de logo, impondo ao intérprete o conceito de erro grosseiro. Chega a trazer hipóteses, a seu arbítrio contrariando a razoabilidade empírica e a racionalidade.

Nem tudo que é estritamente racional é razoável, mas para algo ser razoável deve, antes, ser estritamente racional, como informou Atienza (Para una razonable definición de razonable, in. Doxa - Cuadernos de Filosofía del Derecho, Vol. 4. Alicante. p. 189-200., 1987, p. 193). Enquanto a noção de razoabilidade aponta a um resultado – em linhas gerais, o aceitável socialmente –, a de racionalidade em sentido estrito se refere a um procedimento (Ibidem). O estritamente racional, no discurso jurídico, se mede pelo seguinte: 1) respeita as regras da lógica; 2) respeita os princípios da racionalidade prática (princípios de consistência, coerência, eficiência, generalização, sinceridade etc); 3) é adotada sem se deixar de utilizar alguma fonte do direito de caráter vinculante; e 4) não se adota sobre a base de critérios éticos, políticos etc, não previstos especificamente no ordenamento jurídico. A razoabilidade, por sua vez, exige um algo mais. É sobre esse algo mais que a controvérsia ainda permanece na dogmática jurídica contemporânea.

Fere-se a razoabilidade como equidade, pela congruência, pela equivalência.

A razoabilidade é vista na seguinte tipologia:

a) Razoabilidade como equidade: exige-se a harmonização da norma geral com o caso individual;

b) Razoabilidade como congruência: exige-se a harmonização das normas com suas condições externas de aplicação;

c) Razoabilidade por equivalência: exige-se uma relação de equivalência entre a medida adotada e o critério que a dimensiona.

Não se pode eleger uma causa inexistente ou insuficiente para a atuação estatal. Os princípios constitucionais do Estado de Direito (artigo 1º) e do devido processo legal (artigo 5º, LIV), da Constituição exigem o confronto com parâmetros externos a elas.

Não se pode conviver com discriminações arbitrárias.

Há de se considerar uma razoabilidade interna, que se referencia com a existência de uma relação racional e proporcional entre motivos, meios e fins da medida e ainda uma razoabilidade externa, que trata da adequação de meios e fins. No caso em tela há absoluta dissonância entre os motivos, meios e fins da medida, de forma a aduzi-la como fora do razoável.

Proíbe-se o excesso.

Que seriam os obstáculos e as dificuldades reais do agente público; a complexidade da matéria e das atribuições exercidas pelo agente público; a circunstância de incompletude de informações na situação de urgência ou emergência? São conceitos, deveras, vagos, incompletos, vazios, que, por si, não retiram a responsabilidade do agente.

Afronta-se a certeza jurídica.

A certeza jurídica, para Aarnio (Lo racional como lo razonable ,trad. Ernesto Garzón Valdès). Madrid: Centro de Estudios Constitucionales 1983, p.393) é um dos fins que a argumentação jurídica busca alcançar, abarcando dois elementos: 1) a exigência de que a arbitrariedade seja evitada (que se liga à previsibilidade dos comportamentos exigidos dos sujeitos de direito em geral, que é alcançada se a decisão se mantém no quadro do ordenamento jurídico vigente); e 2) a exigência de que a decisão seja apropriada. De acordo com esse segundo elemento, “o resultado da decisão deve ser correto no aspecto material”, ou seja, a decisão deve estar fundamentada não apenas em normas jurídicas válidas, mas também deve cumprir certos critérios de natureza moral, sendo que sem essa adaptabilidade da prática jurídica à moralidade crítica não se poderia falar em “decisões razoáveis”.

A medida contraria a Constituição Federal em seu artigo 37, § 6º, por contrariar o texto constitucional, os princípios republicano, da igualdade, sem falar na falta de urgência da medida e na sua irrazoabilidade e irracionalidade.


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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ROMANO, Rogério Tadeu. A MP 966: isenção da responsabilidade de agentes públicos durante a pandemia. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 25, n. 6166, 19 maio 2020. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/82177. Acesso em: 26 abr. 2024.